31.3.11

Livro de bordos - 14 (notas)

Resta um consolo: ver os Deux Pitons ao nascer do sol, ou Petit Tabac ao longe na bruma contra Carriacou; nadar em Palm Island; beber runs e fumar um charro com o Gentille na sua Happy Island; largar de St. Vincent e chegar a st. Lucia no mesmo rumo; ver as mudanças de cor da água, do azul turquesa ao azul marinho, em meia dúzia de metros; fazer uma manobra difícil no cais do gasóleo do Marin e ser felicitado pelo tipo da bomba, que já viu outras; ser reconhecido como amigo pelo rasta de Mayreau, ou pelo Lucifer em Bequia; ter conhecido o Amiel e com ele navegado num iate de 80 pés, ter conhecido o Ricardo, o Eric, a Eva, o Joel, o Bernie... - a lista é interminável, seja Deus louvado - é um privilégio.

Um privilégio do qual dou graças todos os dias, todo o dia.

E não há chatices com camarotes, motores, pilotos automáticos ou clientes imbecis, nem nada, nada, que me faça esquecer esta verdade simples, linear, fundamental: é um privilégio, uma sorte, uma bênção.

Livro de bordos - 13 (notas)

E depois seria necessário explicar o que é a Switch. Uma vez comparei-a à McDo, mas a analogia é má: a McDo tem qualidade, pense-se o que se pensar dos hamburgers. A Switch não: o conceito é vender cruzeiros à cabine o mais barato possível. Mas os barcos estão num estado lamentável, os percursos são de endoidecer (fazemos numa semana o que não fiz com os alemães em duas, por "falta de tempo"), a contenção de custos um regra que está tão perto do ridículo que por vezes se confunde com ele.

A certa altura lembrei-me de uma conversa que tive há muitos anos com um financeiro, o qual me explicava, muito sério, que "uma empresa nas mãos da malta do marketing vai à falência em dois tempos". Se tivesse sido hoje ter-lhe-ia dito que os financeiros demoraram um bocadinho mais de tempo - mas o que eles puseram na falência não foi uma empresa, foram vários países. Sempre gostei de gente que vê grande.

A Switch está nas mãos de financeiros, e pergunto-me se se vai aguentar assim muito tempo. "Assim" sendo sem pessoas que se preocupem com os clientes, coisa que a "malta do marketing" faz. Porque em três semanas e 23 passageiros (vinte e três; na primeira semana uma das senhoras estava sozinha) ainda não vi um retour client (comentários dos passageiros) positivo (excepto no que diz respeito ao skipper, mas isso é outra história - se bem seja agradável, deixemo-nos de rococós).

Enfim, por agora acabou. Sábado devo ir à Guadeloupe em transporte, mas ainda não sei se vou, nem qual o bote. E qualquer dia vou para o Brasil, se deus quiser.

Livro de bordos - 12 (Notas)

I
Seria preciso começar por explicar o que e como são as Tobago Cays: um conjunto de ilhotas desabitadas e recifes protegido dos alízeos por dois recifes grandes: o World's End Reef - o que está por fora de tudo - e o Horseshoe Reef. A maioria das embarcações vai para o interior do Horseshoe, fundear entre as ilhas de Baradal e Jamesby. Desta vez vim para Petit Tabac, uma ilhota que fica entre os dois recifes. Somos o únco barco, pois o fundeadouro rola um bocadinho e porque as pessoas gostam de estar em manada.

A lua nasceu tarde, já devia passar da meia-noite. Até lá a escuridão era total: ao longe as luzes de Clifton, a sul; de Canouan, a norte; e entre as duas as luzes de fundeadouro dos barcos que estavam dentro do Horseshoe Reef. Eu vim para fora, para Petit Tabac. Somos o único barco, numa laguna rodeada de recifes.

Quando a lua apareceu era um niquinho de luz, uma unha que alguém esqueceu de cortar; mas chegava para iluminar a praia, da qual estávamos a menos de cem metros. Não se via nada, mas ouvia-se perfeitamente o mar a quebrar no recife de um lado e na praia, de outro. De repente a luz era suficiente para distinguir a rebentação e dar um corpo apaziguador àqueles barulhos, dos quais qualquer marinheiro desconfia.

A noite estava de tal forma escura que as estrelas apareciam em três D.

Entrei à vela; o passe não é muito difícil, mas dá gozo. Pensei em duas ou três pessoas que gostaria de ter aqui comigo; é chato fazer isto com gente que nos diz pouco ou a quem isto pouco diz.

Mas é melhor fazer isto do que fazer outra coisa qualquer.

II
Continua a chocar-me ver pessoas a jogar às cartas, ou a um jogo de sociedade qualquer, quando passamos por paisagens que a mim, que por elas passo todas as semanas, me comovem sempre e não cansam nunca, de tão lindas.

III
À chegada a Rodey Bay vimos baleias. Duas, mãe e filho. É outro espectáculo do qual não me canso - se bem nunca deixe de estar apreensivo, com a história do George.

(Já aqui a contei: o George era o skipper do GUIA, um desses clássicos italianos que ainda hoje me faz chorar, quando penso nele. Uma noite em pleno Atlântico uma baleia afundou-ou, clara e propositadamente. Uma porrada na quilha que a fez subir dois metros; em cinco minutos o barco afundou-se. Felizmente a tripulação foi reolhida menos de 24 horas depois.

Encontrei o George nos Açores. Teve um ataque de coração e levei-o ao hospital da Horta, depois de passar uns dias connosco).

Toco na madeira - já estive pertíssimo de dezenas de baleias e nunca nenhuma se lembrou de me subir a quilha. Inch'Allah.

A mãe era enorme. Numa das vezes que veio à superfície parecia um submarino. Mas o sopro era baixo. Não sei de que espécie eram - provavelmente baleias de bossa, mas não tenho a certeza.

IV
Rodney Bay é uma escala civilizada. A civilização é bom - caro, mas bom.

29.3.11

Paradoxo, liberdade

Há um certo paradoxo em reconhecer a necessidade de convenções - uma evidência - e não ser capaz de as respeitar. Ou, pior ainda, ser capaz de não as respeitar. Chama-se liberdade, acho; mas não tenho a certeza.

Futuro

Os amores com futuro acabam, exactamente da mesma forma que os que o não têm; mas estes acabam melhor, e são mais melhores enquanto duram. Nada como o futuro, para dar cabo do que quer que seja.

26.3.11

Bequia, fim de tarde, brisa - II

Hoje vou jantar ao bar do Lucifer (não é piada, ele diz que é esse o nome dele). Fui promovido a fucking friend, o que significa que tenho o direito de ir directamente ao frigorífico buscar a cerveja: Não preciso de lha pedir. Os ingleses chamam a isto to streamline. Eu acho que ele é o melhor negociante do mundo. E tem um nome que me faz streamline a vontade de ir para o inferno, já.

Fragmento

Estou em Bequia, num café chamado Captain Mack's. Se Deus quisesse estarias aqui a dizer-me "não bebas mais" (acabo de pedir mais um rhum punch). Mas Deus não quer porque não existe. E eu, que só quero que Deus se foda e foder-te tanto quanto Ele precisa de se foder para se foder realmente (acho que seria mais correcto dizer "divinamente", não achas?) eu, dizia, olho para este fim de tarde, penso na noite e no dia que acabei de viver e pergunto-me como é possível que foder-te seja tão bom que é melhor do que isto tudo?

Bequia, fim de tarde, brisa

Está tudo dito. Hoje vou dançar ao Bamboo Shoot. Tu ficas em casa, se quiseres.

"Casa" deveria ser esta baía na qual o sol de deita como um corpo que apanhou um escaldão entra numa cama. As bandeiras do Captain Mack's pendem, desalentadas. "Casa" não é aqui, para ti nem para mim nem para ninguém: casa és tu, é onde tu estás.

O problema das palavras não é serem poucas; é serem de mais. Uma palavra chegaria para resumir "mundo", definir "casa"; uma palavra. Mas seria necessário que estivesses ao meu lado: as palavras precisam de corpos, tanto como os corpos eles próprios precisam de outros corpos; e de palavras. Os corpos precisam de palavras como de brisas de fim de tarde numa baía na qual o sol se deita como se tivesse medo de se magoar. Ou de te magoar, vá saber-se.

O vento está a cair; já não é vento sequer. A passagem de St. Vincent para aqui foi demasiado breve; a brisa só serve para prolongar aqueles momentos. Acaricia-me a pele como tu, e alimenta-me a memória. O fim de uma tarde em Bequia é o fim de todas as tardes em todas as vidas do mundo.

Noite, manhã

É difÍcil descrever uma noite no mar; tanto quanto explicar uma noite de amor, que é muito mais do que "ela fez-me isto e eu fiz-lhe aquilo".

Claro que temos de começar sempre pelos pormenores técnicos: vento de través força 3 - 4, lua meia cheia, mar de pequena vaga, céu pouco nebulado - as constelações são visíveis, perfeitas. O BARADALL faz 7 nós e um cheiro; toda a gente dorme. Sinto-me um prolongamento do barco, do mar, da noite - exactamente como me sinto o prolongamento de uma mulher, certas noites, e certas mulheres.


Manhã

O sol está no topo do Grand Piton. Por baixo, a terra e a Anse des Pitons completamente escuras; por cima, um conjunto nebuloso de formas caóticas filtra a luz do sol como se fosse uma dessas luzes de discoteca, aleatórias. As nuvens têm os bordos delineados pela luz, e contrastam fortemente com as formas simples, lineares, fundamentais dos Pitons.

Nunca os vi tão pouco; nunca os vi tão bonitos.

25.3.11

Maré, palavras

Há uma relação entre a maré que enche e as palavras que se acumulam. Procuro-a, mas só me aparecem adjectivos feios: sorrateira, ineluctável, imperceptível.

Desisto e deixo-me submergir por elas, essas palavras que chegam sem se ver; deito-me de costas, flutuo, deixo-me levar pela corrente; na praia há palmeiras que o vento agita; a água é transparente, como as palavras.

Deito-me nelas como na água da maré que sobe; há uma relação entre a maré e a lua, entre as palavras e tu. Deixo-me levar pela corrente, deitado de costas. O meu mundo é o céu azul, a brisa que agita as palmeiras, a água que não vejo mas sei límpida como alguns sentimentos, algumas palavras; e profunda, também. Onde estou não tenho pé: não posso contar se não comigo, a água, as palavras, com os sentimentos que elas descrevem e as emoções que escondem.

Penso na maré: está a encher; leva-me para um porto seguro; um porto onde, eu sei, me perderei porque o meu mundo é o céu, o mar e esta inelutável vontade de te dizer. Não são as palavras.

Livro de bordos - 11 (Notas)

Ela passeia pelo mundo o seu azedume como outros o chapéu: não serve para mais nada se não para se fazerem notar.

Desejo

E depois de repente o desejo deixa de ser aleatório, oportunista, omnifágico e fica estúpido, selectivo, exigente.

24.3.11

Livro de bordos - 10 (Notas)

Amanhã recomeço a Switchar. "É preciso uma alma de taxista para fazer isto", diz-me P. Tem razão. "E uma de idiota para comprar o programa", respondi mentalmente.

Há pessoas que conseguem trabalhar e escrever. Não é o meu caso - nunca consegui fazer nem um nem outro, e muito menos simultaneamente..

21.3.11

Livro de bordos - 9 (Notas)

Gentille constrói um barco, um barco imóvel chamado "Happy Island". É um barco de areia, conchas de moluscos, rocha, cimento e madeira e zinco à entrada de Clifton Bay. Há meia dúzia de anos não passava de um chapéu de sol de palha, do qual o Júlio fez, como sempre, uma fotografia linda. Bob Marley canta - descubro hoje, tardiamente, que há uma clivagem fundamental no reggae: Bob Marley e os outros - o vento sopra, o calor aquece, o mar azula, o rum aquece, a companhia sorri. Encontrei o compromisso perfeito: amanhã, em Mayreau confirmo.

18.3.11

Um beijo

Um beijo assim de repente só porque me apetece dar-te um beijo, apetece sempre mas hoje mais do que sempre, o que faltas, mulher, tocar-te beijar-te amar-te rir-te sorver-te só porque sim, porque te ris e me faltas o que me faltas, só tu mulher. És a mulher do sempre e do nunca, nunca mais te vejo nem beijo nem toco nem sorvo nem rio nem nada, nunca mais. É um beijo de escapada, eu sei, mas é o que há que queres?, e a vontade essa não é de escapada é de sempre. Beijo, um, mil, um por mil.

Livro de bordos - 8 (Notas)

Hoje lá vou para mais uma volta. Pareço um chauffeur de autocarro.

São ambas infelizes: uma delas passeia pelo mundo a sua fealdade; a outra, o seu azedume.

Bar do Robert, em Mayreau. É um bar cheio de bandeiras de todos os lados, fotografias do Bob Marley e uma brisa simpática, se bem ligeira. As paredes estão cobertas de dizeres "Meilleur bar du monde, Morgan"; "It's all about the children, Sue and Bobby - Canada"; "Amor é liberdade. From Portugal to Robert, Luis Carvalho". É o único graffito em português. Não sei quem é, mas Obrigado, Luis Carvalho.

16.3.11

Livro de Bordos - 7 (Notas)

Comecemos pelo princípio. O barco é um nojo. Metade dos instrumentos não funciona, as casas de banho cheiram mal, tudo é bricolage do pior. A única coisa que se safa são as velas. Está dito: Switch, nunca mais. Faço a próxima semana se não puder evitá-lo; se puder, não faço. Não dá gozo, ser skipper de um barco neste estado.

Passageiros: um veterinário na reforma, visivelmente muito mais rico do que diz; tem um Dufour 385; é adorável, com um sentido de humor cáustico, sempre dito no tom de quem ajuda à missa; e respectiva esposa, uma senhora viva, que em nova deve ter sido linda; ainda é. Um director comercial de informática, simpático, nos quarentas; e respectiva, um nojo de pessoa e de mulher. Feia, magra, contabilista, parece-se com o retrato da mulher que não bebe ginginha, na Ginginha do Rossio. Já tive que a pôr na linha duas vezes; agora, após um curto período de nojo, está a tentar tornar-se mais simpática.

Uma bióloga, 45 anos, solteira. No primeiro ou segundo dia disse-me que talvez fosse não sei onde que ia encontrar o homem da sua vida. Duvido muito que o venha a encontrar – nem um maricas a quereria para mulher. Não é feia, e é desesperante, quando quer. Infelizmente quer muitas vezes. Uma mãe e filha, esta enfermeira de 25 anos, género carro de assalto, com um sentido de humor menos refinado do que o outro mas mesmo assim apreciável; aquela funcionária administrativa numa grande empresa.

E eu, que tento ser paciente e falho, que tentei ligar o grupo e não falhei completamente, que me lembro com saudades do meu gupo de alemães e de quando estive aqui em 2004 com o Júlio, e companhia.

"Aqui" é Mayreau, é a praia de Salt Whistle Bay, uma das mais bonitas onde já estive. Meia lua perfeita, palmeiras, água translúcida e tépida. Não gosto de praia, mas é impossível não gostar desta. Já estamos no caminho para cima: já estivemos nos deux Pitons, em Bequia, sweet Bequia, pelos Cays, por Clifton Bay, onde foi tirada a fotografia que está ali em baixo. Fui àquele bar, em peregrinação; estava aberto, mas vazio – isto é, totalmente vazio. Não havia clientes nem empregados nem a dona. Ninguém. Tirei um copo de uma estante e bebi um Mount Gay Extra Old in memoriam. Júlio, deves-me um copo.

Nesta viagem tudo continua bonito e lindo, e nada é verdadeiramente agradável. Ser skipper é um trabalho; às vezes parece que não; mas é.

Todos os grupos têm um “eu sei” – neste é o Robert, o ex-veterinário armador, e não é desagradável – e um “eu fiz” – praticamente todos os outros. “Eu fiz (ou nós fizemos)” a Guatemala, a ìndia, o Vietnam, o Panamá, o Senegal. Eles fizeram; eu não fiz nada, mas não é por inveja que não suporto ouvir “eu fiz”. É só porque aborrece-me pensar que fizeram tudo, e não perceberam nada. “Eu fiz”, e hoje Pascale, a bióloga, que já fez Cuba, Senegal e metade do raio que a parta disse-me que eu lhes devia comunicar, quando encontrasse coisas “assim interessantes” – neste caso, um roti chicken, uma comida de rua deliciosa. “Fiz” tudo e mais alguma coisa, mas não consegue comprar um croquete (não é um croquete; mas pouco interessa) sozinha. De passagem seja dito que o roti é delicioso, carne de galinha cozinhada num molho de caril e envolta numa massa muito fina.

Hoje dormimos aqui; amanhã saímos cedo para Wallilabou Bay (Wallabou, para os íntimos). Tenho pressa de chegar a sábado da outra semana, para poder dizer adeus à Switch; e mais pressa ainda de ir para o Brasil, onde me espera o Bartolomeu, impaciente, coitado.

Salt Whistle estava cheia de barcos; agora estou em Wallilabou. O meu grupo almoça a bordo. De vez em quando oiço-lhes as gargalhadas, muito longe. Eu vim ao restaurante almoçar, porque me apetece estar sozinho e para ir à net. De manhã tive direite a uma sessão de retrete entupida, mas felizmente resolvi-a depressa. Há muito tempo que não me acontecia. Antigamente costumava dizer que a vida de um charter skipper se resume a desentupir as bombas das retretes e a lavar conveses. Felizmente não é verdade.

Chove. A paisagem fica como que coberta por filme translúcido – o verde da vegetação continua verde, as cores vivas vivas, mas as outras esbatem-se num cinzento claro, verde-azulado. Este ano o aquecimento global deu-nos uma das épocas mais frias de que há memória. Imagino a minha tripulação, que decidiu ir ver as quedas de água.

11.3.11

Auto-estima

Contrariamente ao que às vezes se pensa, a auto-depreciação - essa arte tão bonita dos ingleses - não é um sintoma de falta de auto-estima; é apenas a forma de tornar aceitável - mais: respeitável - o excesso de auto-estima.

10.3.11

Algures nas Grenadines


Por uma razão incompreensível não consigo lembrar-me de onde foi esta fotografia feita.

Adenda: isto é um bocadinho pior do que parece: não sabia sequer que já tinha estado em Clifton, Union Island.

Grécia, Folengandros - 2

Grécia, Folengandros

De experiência feito

A CGTP deve saber, porque a esmagadora maioria deles foi provocada por políticas que ela defende.

"Portugal tem 900 mil contratados a prazo, mas CGTP diz que precários são muitos mais"

Livro de Bordos - 6

Amanhã tenho o briefing para o meu primeiro embarque na Switch. Por coincidência jantei com dois ex-clientes que me parecem ilustrativos: joviais, incultos, comunicativos; vai ser à volta disto que as próximas duas semanas se vão passar.

Ainda não sei qual vai ser o meu percurso. Estes foram a Moustique, o que me surpreende, e a Wallilabou, menos. Espero que o meu tour inclua Wallilabou e exclua a outra - não tenho muita vontade de ir a Moustique, por muito bela que seja a ilha.

Às vezes tenho antipatias assim, que relevam quase da falta de curosidade ou da apatia; depois fico contente por descobrir que me estava enganado. A ver. Estou realmente ansioso por ir para o mar outra vez - ah, fui upgraded, vou skippar (há barbarismos mais bárbaros, mas são poucos) um catamaran. Se até há uma dúzia de horas alguém me tivesse dito que um dia eu ficaria contente por navegar num catamaran em vez de num monocasco chamaria a polícia, os funcionários do manicómio mais próximo ou afogar-me-ia numa garrafa de rum; mas é verdade: prefiro 8 passageiros num Lagoon 41 a dez num Océanis 50.

O tempo vai estar bom; conheço poucas coisas actividades mais inúteis do que ver as previsões meteorológicas aqui: vento leste, es-nordeste ou su-sudeste (a partir de Março), entre 10 e 20 nós, aguaceiros dispersos. Se for pior do que isto as previsões não detectam, e se for melhor (?) tão pouco. (Enfim, não esqueço que subi a costa de St. Vincent com vento noroeste. Mas suponho que tivesse sido um fenómeno de convecção. Não me apetece muito poluir a memória daquele dia mágico com explicações racionais.)

Amanhã embarco. Já escrevi frases mais bonitas do que "amanhã embarco"? Provavelmente, mas agora não consigo pensar em nenhuma.

Muito fala...

...esta senhora. Eu se estivesse no lugar dela calava-me; mas como nem uma nem a outra coisa são possíveis... Olha, paciência. Fiquemo-nos pela demissão do primeiro-ministro, pode ser que não tarde. 

Injustiça

Este gajo inspira-me tanta credibilidade como ver Tom Cruise de médico no Eyes Wide Shut. O filme era excelente, tal como o plano parece bom; mas é a porra da verosimilhança. Uma injustiça, é o que é.

Adenda - nem de propósito: "O país dos interesses deve ser mesmo assustador. Se calhar só um louco o desafiaria. Um louco megalómano, capaz de arriscar o pescoço político para deixar obra. Um louco de extracção democrática, bem entendido, que da outra casta já experimentámos e não correu bem. Só que isto que eu estou para aqui a dizer é sebastianismo puro, não é? Pois é." um post a ler todo, aqui.

Nostalgia

Ainda moro no Marin, debaixo de um arco ao lado da farmácia. Tu não viste, mas o Marin é um pequeno porto de recreio e de pesca no sul da Martinique. É uma vila simpática, que começa e acaba por dois supermercados, um em cada extremidade; entre eles há um cemitério, uma igreja e, claro, a marina, que é a sua razão de ser.

À noite sou devorado vivo pelos mosquitos – habitualmente, mas não sempre, tenho o corpo coberto de pústulas mais ou menos sanguinolentas; de dia mendigo à porta dos supermercados e bebo punch no Marché Couvert. Ocasionalmente uma carteira parace-me nas mãos, vinda de não sei onde. Tenho sorte: estão sempre bem recheadas. A Irene, uma vendedora de bebidas artesanais e de especiarias, encarrega-se de as seleccionar; o resto é obra do acaso.

Uma ou duas vezes por mês faço a barba, tomo um duche na Capitania, cubro-me de uma mistura de Bepanthène e um creme para as picadas dos mosquitos, visto-me como um africano e vou para Fort-de-France. Ninguém me conhece ou reconhece – cruzo muitas vezes caras conhecidas do Marin. Felizmente as pessoas olham mas não vêem; é-me portanto fácil passar, totalmente incógnito, alguns dias de férias. Fico invariavelmente no hotel L’Impératrice, que está bem situado e tem um bar agradável ao fim da tarde. O barman conhece bem os meus gostos até encomendou uma garrafa de rum El Dorado 15 anos para mim.

As minhas escapadelas a Fort-de-France duram três, quatro dias – o tempo de deixar a barba crescer outra vez. Penso (enfim, tenho a certeza, fiz testes) que a barba é mais importante para a minha profissão – sim, mendigar é uma profissão, e bastante exigente – do que as feridas, por exemplo.

Se eu quisesse saberia há quanto tempo tu me deixaste. Se eu quisesse seria feliz. Ainda tenho no banco o dinheiro da venda do barco e em Fort-de-France sou muitas vezes o alvo de um olhar, ou dois.

Mas não quero, ainda não. O meu futuro está delineado. Só me falta o seu calendário. É como um mecanismo de rodas dentadas às quais faltam os dentes, o meu futuro. Ainda bem. Walser, na Rosa, diz “nostalgia é quando não sabemos para onde queríamos ir”. Eu sei muito bem para onde quero ir – só não sei quando, é tudo. Não preciso de nostalgia para nada.

Tu partiste há alguns anos, suponho. É difícil dizer porque neste país nunca faz frio. As estações definem-se pelo calor ou pela falta de vento, o que não se coaduna bem com a infelicidade. Um dia lembrar-me-ei de quando te foste; e sobretudo, porquê. Nesse dia tudo retomará o seu caminho e a nostalgia será, definitivamente, enterrada no cemitério, ao teu lado.

Analogia

Às vezes é preciso tapar o sol para ver bem.

12 de Março

É óbvio que prefiro ser governado por políticos a sê-lo por padres ou militares. Mas não creio que venha grande mal ao mundo se meia dúzia, ou alguns milhares de pessoas se juntarem para fazer entender este governo, e os próximos, que a impunidade tem fim. E, sobretudo, não me parece que agitar o papão do Salazar seja muito adequado (ou eficaz, o que é lamentável). 

Uma verdade simples

"Da implacável estupidez
Há duas maneiras de enfrentar um momento crítico. Esperar que passe, e entretanto repetir insistente e sucessivamente as mesmas fórmulas falhadas, na esperança (ah a esperança! como é bom e agradável ter esperança!) de que na próxima não falhe. É, tecnicamente falando, a mais concisa definição de estupidez que conheço. A outra consiste em tentar perceber por que se deu a crise, como se chegou onde se chegou, o que houve de errado, o que os outros fizeram de errado em circunstâncias idênticas, e procurar uma saída que não replique os mesmos fiascos. E, sobretudo, não ter "esperança": agir apenas de maneira racional. Supõe algumas virtudes: inteligência, probidade e coragem, virtudes que não é costume associar, mas, como já deveria ser claro, são tri-gémeas. Neste sentido "técnico", Sócrates não é um homem corajoso (deixemos de lado a probidade). É apenas implacavelmente estúpido."

Ou tem a inteligência mal orientada, o que ainda é pior.

9.3.11

Uma novidade

Parece que a esquerda não gostou do discurso de tomada de posse de Cavaco. Estou surpreendido. Até hoje tem gostado de tudo o que Cavaco diz, faz, pensa ou sequer imagina Tudo, sem excepção.

Un encontro incrível

8.3.11

Percepções

Isto é bastante interessante; infelizmente não se combatem percepções com números, ou factos.

Mau gosto

Os ingleses têm uma expressão muito bonita: "to spend money like a drunken sailor". Acho que seria de um extremo mau gosto contradizer um povo tão arguto, tão sagaz.

Promesse

Promis, mon... ooops, ma chère, plus jamais je ne te parlerai de tes seins, pourtant si beaux, ronds et fermes comme des moitiés de lune; ni de ton ventre, plat comme l'infini; ni même de ton intelligence, si souriante, ou de tes cheveux roux foncé, comme le désir assouvi.

Si nous devrions encore nous parler - ce que je souhaite et toi pas - nous parlerons du temps, que du temps. Mais nous tâcherons de ne pas y ajouter des analogies, des métaphores, des euphémismes, des sous-entendus. Nous oublierons même ces vers de Maïakovski que tant nous ont fait frémir (ou vibrer? Je ne sais plus) "honorés camarades de l'avenir / je vous parlerai du temps et de moi" car nous ne serons plus des "camarades de l'avenir": nous resterons ce que nous sommes aujourd'hui, des camarades du passé.

Nous parlerons donc du temps; mais au premier degré, strictu sensu. "Il pleut"; "hier le soleil était radieux"; "le front froid ne s'éloignera pas demain". Nous échangerons des sourires cordiaux et laisserons nos mains sur la table, bien visibles. Et nous clorons nos échanges avec une question simple, comme, par exemple "il est impossible de prévoir le temps qu'il fera demain, n'est-ce pas?"

Francês

Les mots viennent en français, aujourd'hui. Et dire que bientôt je quitterai le Marin, par où ils sont arrivés. 

Suppositions, sourires et pizzas

De toute façon il va falloir commencer ici: au bar où une musique atroce et le sourire d'une - une seule - des serveuses me ramène, inéluctablement, à ton sourire, à ta musique; j'aimais bien l'un et pas l'autre, conséquence sans doute de la différence de nos âges. Tu aurais preferé que j'aimasse l'autre et pas l'un; enfin, je le suppose.

Toujours est-il que je suis allé manger une pizza au restaurant où une fois je t'ai dit: "je ne puis t'aimer" et tu m'as répondu "tant mieux". Je ne te le pardonnerai jamais, ne t'en remercierai jamais assez. Nous continuâmes la soirée chez toi; je me suis endormi sur le canapé; au milieu de la nuit je t'ai entendu fermer la porte du salon; le lendemain matin je suis parti.

J'aimerais supposer que tu es heureuse. Je sais que tu ne l'es pas. J'en souffre, mais je n'y puis rien: le malheur est beaucoup plus personnel que le bonheur, intransmissible. Contrairement aux suppositions, à la mauvaise musique et au sourire de la serveuse.

Mulher

E agora, mulher, vais continuar a passear esse teu corpo tão bonito, esses teus olhos tão azuis pelo pátio da prisão e dizer-nos "não olhem para mim, não me desejem, eu sou transparente, eu não me amo, como poderiam vocês amar-me, eu não me desejo, como poderiam vocês?", como se nós fôssemos blocos de gelo cuja única função seria derretermo-nos à tua passagem, e acreditar em ti?

Buenos Aires, mar

Há dias em que amanheço assim, Karla, que queres, nada a fazer. Nem um desses teus sublimes broches, minha querida, nem imaginar-te em cima de mim como se eu fosse a tartaruga e tu o mundo, nem uma das tuas mamas numa das minhas mãos, sinergia mais do que perfeita neste mundo imperfeito no qual, tu bem sabes, as insónias só aparecem à noite, nunca à hora da sesta, excepto nos dias como hoje, Karla, em que nem uma sesta conseguirei dormir e muito pensarei, minha querida, nos teus gritos nas tuas mãos no meu cabelo no teu olhar a dizer-me “desculpa, não te amo como tu me amas” nas tuas mãos sôfregas na minha pele, nas minhas mãos na tua, doce e acolhedora como uma casa aberta ao vento, como uma casa na qual o vento se passeia como as minhas mãos na tua pele ou as tuas na minha, nada me tira desta tristeza, eu sei, Karla, dias que começam assim só acabam contigo em mim ou comigo em ti, somos tão intercambiáveis, não é, Karla?, qual de nós por cima qual por baixo qual ao lado de que lado vá lá saber-se tão pouco importa, o que eu me lembro Karla de ti tão molhada, tão molhada que eu me perguntei se não me teria enganado e não estaria a penetrar-te pela pele adentro, pela alma toda, pelo corpo e perguntei-me “como vou sair daqui?” Nunca mais saí, Karla, tu sabes disso, não sabes?, nem tu sairás de mim, uma maçada, esta coisa dos corpos que não se largam, não se largam mesmo quando já não se vêem.

E não é agora aqui, Karla, nesta goeleta que construí para ti na qual navego parado num porto qualquer da Tasmânia, na África do Sul, na Namíbia, na Rússia, Karla, na Rússia, não é agora aqui, não será nunca aqui nem ali que eu te verei em mim e dormirei, finalmente, apaziguado, saciado, satisfeito, em paz.

Só num corpo há paz, não é, Karla?, os corpos são o repositório todo da paz toda do mundo e sem corpos não há paz, por muito que tergiversemos, Karla, por muito que nos lembremos do mar, esse mar onde tanto nos amámos, tão leve que tu eras e em cada cava de cada vaga eu entrava em ti e em cada crista tu em mim e assim fomos até à Irlanda, até Ushuaia, até Hokaido, tu em mim na crista eu em ti na cava.

Uma goeleta, Karla, uma goeleta de 60' que eu construí para ti em madeira porque madeira é o complemento directo de mar; aço, alumínio, fibra de vidro são complementos indirectos, Karla, uma goeleta de 60' na qual nos amámos e amámos cada vaga, tão ligeiro era o nosso amor fazia rir até as nuvens, essas putas e reputas madres, como dizia o argentino, reputas madres que te pariram.

Ainda hoje estou para saber porque me deixaste em Buenos Aires, eu e a goeleta, eu perdido numa tasca de San Telmo a beber brandies e a ouvir-te, como num filme, “adeus, até logo”, Karla, que queres que te diga?, ainda hoje estou para saber porque me amaste – és a única por quem nutro a mesma dúvida à chegada ou à partida, não sei porque chegaste nem porque foste e hoje amanheço triste e penso em ti. Ou terei pensado em ti ainda a dormir e por isso o dia?

Interessa-me pouco, Karla, os meus dias são feitos de respostas, não de perguntas. De azul do mar alto, de verde acinzentado dos portos, do delicado e complexo dourado de um rum velho, de um reflexo irónico nos olhos castanhos de uma pequena a quem eu explico que a última coisa que quero é amá-la; - bastaria que ela se deitasse ao meu lado, de costas para mim para não me ver, e me deixasse acariciar-lhe as mamas enquanto me liquefaço em recordações e choro mil vezes o teu nome, a tua pele, a tua língua na minha como se a noite começasse na minha nuca, por dentro.

Reputa madre que te pariu, Karla, que nunca mais um dia será noite para mim, nem uma noite dia, até voltarmos àquela tasca em San Telmo e tu desceres o degrau de entrada em marcha atrás, como se nunca tivesses saído e eu pudesse tranquilamente continuar a apreciar-te as coxas o ventre as nádegas as mamas os lábios o nariz os olhos – e o olhar, Karla, esse olhar tão irónico tão verde que me dizia “fode-me, por favor; mas não me faças amor, que estou farta de amor até aos cabelos” enquanto me puxavas para o sofá do primeiro andar do café e onde qualquer pessoa podia entrar enquanto eu te fodia, mas não te fazia amor, porque tu estavas farta de amor até à ponta dos cabelos.

Buenos Aires, Karla, Buenos Aires – é lá que vais aparecer, fodida mas não amada. Ou lá ou no mar, na crista de uma vaga, face ao vento e à vida, essa puta que te pariu. E eu no mar, que é a minha puta.

A dignidade do desemprego e da falência económica

Alguém devia explicar a esta luminária esta besta José Sócrates que o "prestígio e a dignidade" não criam empregos e estão a levar o país a um fosso do qual vai demorar muitos anos a sair.

"Sócrates: Intervenção do FMI significaria perda de prestígio e dignidade"

(Além de que ainda estão por ver, o "prestígio e a dignidade", claro.)

7.3.11

Livro de Bordos - 5

Ainda agora cheguei e já estou cheio de vontade de me ir embora. E não é por causa do Carnaval, que me invade a casa, as orelhas e a paciência; é só porque me apetece voltar para o mar.

Os dias estão maiores. Hoje às sete menos um quarto ainda havia uma réstea de luz, um bocadinho de poente mais claro do que o resto do céu todo. Parece ridículo, falar de alongamento de dias quando se vive a 14º de latitude; e se calhar é. Mas o vento anda fracote, coitado. Estamos em Março: vai ter trabalho até às férias da Páscoa. Depois disso os dias "alongam-se", o vento cai, o calor chega (se o aquecimento global deixar, claro) e o Marin hiberna. Pelo menos é assim que vejo a coisa; já cá não estarei para confirmar.

O próximo embarque vai ser muito diferente deste que passou. Vou trabalhar no McDo do charter. Dez passageiros num 50' monocasco. Pensava que seria um horror, mas um amigo que trabalhou dois anos na Switch disse-me que não, as pessoas saem satisfeitas. "Vêm para férias", explica-me, "não estão para se chatear". Eu, tão cioso que sou do meu lebensraum duvido um pouco. A ver, como dizia o ceguinho.

Há classificações para a música pimba? Hierarquias, e assim? Se houver a nossa não é de certeza a pior.

Uma história ridícula

O pêndulo está a ir demasiado longe numa direcção; esperemos que volte para trás depressa - e sobretudo que não vá tão longe na direcção oposta.

"Une lecture très stricte du droit des homosexuels"

Mudança

Vejo mal Portugal safar-se da crise estrutural em que está. Para sair do século XIX precisou de Salazar (e o resultado não foi brilhante, mas isso é outra história). Quem nos vai fazer sair do século XX - Pedro Passos Coelho?

6.3.11

Articulação

Debate antigo, privado: quando ouvir um futebolista exprimir-se assim talvez mude de opinião sobre o futebol. Um grande talvez para uma mudança muito pequena, mas de qualquer forma não será amanhã a véspera desse dia.

Um artigo interessante

O debate armado / não armado andava apagado; com o renascer da pirataria reacendeu-se, naturalmente. Não tinha uma opinião formada sobre o assunto: por um lado repugna-me a ideia de ser assaltado e não me defender; por outro, sei que por vezes as consequências são piores. Para não mencionar as complicações administrativas, quando se anda com armas a bordo.

Recentemente fui à Venezuela. Quando chegámos às Testigos um piñero (um barco de pesca local)  aproximou-se e o skipper chamou-me para cima. Quando cheguei ao poço havia um saco com duas carabinas e um bastão de basebol em cima da mesa.

Senti-me muito melhor. A única coisa que fiz correctamente na tropa foi dar tiros - tinha uma boa pontaria e gostava do tiro ao alvo, contrariamente ao resto. Naquele caso não seria necessário ter uma boa pontaria - eram carabinas à pompe (não sei como se chama em português) e uma delas com canos muito curtos.

O piñero afastou-se e guardámos as armas - mas no meu debate pessoal a balança inclinou-se bastante para as armas a bordo. A ver.

Já a solução mencionada neste artigo é, obviamente, incomportável, como aliás está explicado. Mas é bom saber que se começam a tomar decisões.

Nem tudo é mau...

...e algumas coisas são muito boas. Como as crónicas de Alberto Gonçalves no Diário de Notícias. Nem tudo está perdido.

Festival

Hoje descobri que ainda existe uma coisa chamada "Festival RTP da Canção", que eu pensava extinta desde pelo menos 1974. Descobri, como não podia deixar de ser, pelas piores razões: acreditem se quiserem, mas a canção que ganhou foi esta (tentei ouvir até ao fim e não consegui. As minhas desculpas se para lá do primeiro minuto há uma mudança radical).

Confesso que estou perplexo e não sei o que dizer. Quando conseguir fechar a boca tentarei de novo.

5.3.11

Mid life crisis

Churchill bebeu vinte mil garrafas de champagne; Boggie, um milhão de whiskies. E eu, que fiz?

Livro de Bordos - 4

Uma embarcação há-de ser bonita: com uma feia fazem-se as mesmas coisas, mas dá menos gozo; e graciosa: a graça é um dom, e quem dá recebe; e rápida: a rapidez é a inteligência de quem anda no mar, sempre foi; e leve: ainda está para nascer a vaga que afundou uma rolha; e fina: "il n'y a jamais assez de mer pour les visages aigus des bateaux".

Uma embarcação de vela há-de ter duas velas à proa, porque um homem tem duas mãos; e ser boa bolinadora, porque a descer todos os santos ajudam: é a subir que se vê quem é quem e o que tem no peito. Uma embarcação há-de ter alta a proa, porque é a cara, erguida; e saber sorrir, porque o sorriso apazigua; e acolhedora, porque é um ventre, e aos ventres não se pede nada, se não que nos acolham.

Foram-se embora ao meio-dia e meio, no meio de grandes sorrisos e abraços e promessas de memória eterna. Dizem que gostaram muito do meu trabalho, e eu penso que trabalho devia estar entre aspas.

Volto ao apartamento das janelas e do vento, do qual daqui a seis dias estarei de novo longe. Os meus livros, os que me restam, passaram mais tempo em sacos Migros do que em estantes; uma embarcação há-de ter espaço para uma biblioteca.

É Carnaval no Marin. À frente da minha casa tenho uma festa popular. Mais vale aprender a dançar.

PS - A citação é de le Clézio.

2.3.11

Livro de Bordos - 3

Os dias vão-se sucedendo; não são iguais. Já estamos a recolher o cabo (enfim, já está quase recolhido, o cruzeiro acaba daqui a 3 dias...). Aprendi que a melhor maneira de tratar espetadelas de ouriço do mar é com água quente, logo a seguir. Ou qualquer coisa quente - até areia. Como não sabia, fui lancetado e estou a antibióticos. Aprendi também que na baía de Wallilabou (pronuncia-se Uàlabu, esta malta precisa de um acordo ortográfico) foram filmadas partes dos filmes Piratas das Caraíbas. O senhor do restaurante pediu à produção para deixar parte dos cenários, por razões mais ou menos evidentes, e a produção aceitou.

Apesar disso o local é bonito: uma baía relativamente pouco cavada - duzentos metros, talvez - na qual se amarra a proa a uma bóia e a popa a uma árvore em terra (há quem preferisse fundear, mas os meus de resto abençoados passageiros desde que ouvem a palavra "bóia" não querem outra coisa). Somos para aí dez barcos, o que dá uma sensação de cheio mas não de esmagamento. A um quilómetro do fundeadouro há uma pequena queda de água que proporciona umas massagens excelentes a quem se puser debaixo dela. Foi o que fiz: parece que se está a ser massajado por uma trupe de mamutes em delírio, mas a verdade é que é óptimo.

Voltámos a Bequia, claro, para tirar os pontos do Bernie, para ver os meus dedos e para reparar o lazy bag. Foi a primeira vez que um médico me pergunta se quero ser anestesiado para me fazer uns golpes; disse que não, e acho que fiz bem: a dor é perfeitamente suportável. Só tenho pena que ele não tenha feito a mesma coisa no outro dedo, que agora me dói muito mais do que o que foi lancetado. E descobri um restaurante francês, l'Auberge des Grenadines, que recomendo vivamente a quem por acaso por aqui passar. Nas ilhas inglesas come-se mal, excepto claro se o jantar for de lagosta (e preparada simplesmente). Mas a bordo do JINGLE a palavra "lagosta" está proscrita, consequência do excesso de demasiadas lagostas. De maneira um restaurante francês é sempre bem vindo.

Pouco a pouco Bequia descobre-se para mim. Em breve estará nua – é uma ilha pequena, na qual os segredos vêm e vão-se logo; será preciso cobri-la com o que for conhecendo.

Como o Yacht Club, o primeiro sítio “branco” onde vou. O mais bonito, o mais profissional e bem localizado (o que para um clube náutico não é de estranhar); e o mais desinteressante. Não é uma espécie qualquer de racismo ao contrário, ou desprezo pela beleza das pequenas, que em alguns casos é surpreendente. É só que é desinteressante.

Sempre tratei bem o meu corpo: dei-lhe a beber quantidades invejáveis de vinho e whisky (e agora rum e cerveja); alimentei-o com muita carne e peixe,  pouquíssimos legumes, vegetais e frutas, bastante azeite, boa manteiga salgada da Bretanha e outras gorduras. Nunca me enchi de remédios, para desespero de alguns médicos e alegria de outros. De todas as substâncias destinadas a tornar suportável a passagem pela crosta terrestre (não incluo nestas as drogas duras, porque me parecem mais venenosas do que benfazejas) a única que não lhe dei em grandes quantidades durante muito tempo foi o tabaco - deixei de fumar cigarros (involuntariamente) há muito tempo, e mesmo os havanos se fizeram esparsos. Tão pouco se pode queixar das carícias que recebeu, dos corpos que lhe dei a conhecer. Mas o maldito não mostra reconhecimento nenhum. É certo que na aparência continua a funcionar bem: as feridas cicatrizam depressa, mexo-me correctamente (desde que não se interprete "mexer" como "dançar", claro) e a azia responde bem ao Maalox, ou a uma redução dos picantes. Mas por dentro parece-me que está todo lixado, com dorzinhas aqui e ali, dorzinhas chatas que vão e vêm e desaparecem mal aparecem mas irritam.

Felizmente tenho o melhor emprego do mundo, nunca é de mais repeti-lo. Um dia de vela como o de hoje trata as maleitas todas. Saímos de Bequia às 11 da manhã, como previsto. Fizemos uma bolina cerrada, amurados a estibordo, como sempre, para chegar a Kingstown - o Peter queria ver a cidade onde esteve em 1963. O objectivo era dar a volta à baía e seguir para Wallilabou. Assim foi. Eu estava sempre à espera de ter que arrear pano e pôr o motor, mas a seguir a Kingstown o vento rondou a noroeste (!) e vim amurado a bombordo - eu repito, para terem a certeza que não se trata de um erro: amurado a bombordo -  com sete ou oito nós de vento real a 100 metros da costa. O JINGLE mostrou-se à altura e lá foi fazendo três, quatro nós; com mais um da corrente de popa chegámos num instante.

Há uma beleza qualquer, que eu ainda não percebi qual é, em passar um cabo sem ter que virar de bordo, só porque se aproveitam todas as rajadas e todas as oportunidades de orçar. O mar estava chão; St. Vincent, já por aqui o disse, é na minha opinião a mais bonita de todas as ilhas, vistas do mar. A 100 metros ainda é mais bonita (e a sotavento, para a adrenalina). Parece uma Suíça tropical. Com mar chão, sem um ruído a bordo (excepto o das senhoras a conversarem, claro. Não se calaram desde que saímos do Marin, excepto para dormir. Não sei onde vão elas buscar tanta conversa, seja Deus louvado) parecia-me que estava a deslizar num bocadinho de paraíso, num tapete mágico, num pedaço de planeta - a expressão é de Conrad - que a gravidade tivesse atraído para aqui. Está calor e sol, finalmente (o aquecimento global fez uma pausa) e eu senti-me nas palmas do mar, como se ele tivesse decidido juntar as mãos e levar-me nelas, a mim só, que fui o único a bordo que se apercebeu da magia daquela navegação.

Amanhã largamos muito cedo - é a maior perna do trajecto, quase cinquenta milhas. Vamos parar em Marigot Bay (St. Lucia), se nada nem ninguém decidir outra coisa. Como dizem os ingleses, é preciso ter um plano, se quisermos não o respeitar. Nesta viagem não houve planos; por isso têm sido respeitados escrupulosamente.