26.2.15

A coisa vista de fora













Diário de Bordos - Amelia Island, Florida, Estados Unidos, 26-02-2015

A Little Crew House transformou-se numa mansão. Os catamarans vacas malhadas rápidos e ágeis como a torre Eiffel bêbeda são agora um 12m lindo, elegante e fino, apesar de mal refeito. E a minha tripulação compreende um americano hífen italiano de vinte e quatro anos que sabe cozinhar, um americano americano de vinte e seis que é professor de inglês e tem a maior cara de rapaz-bem-comportado-e-bom-genro que jamais vi e depois se revela e passamos o fim dos dias a falar de Borges e Barthes e Beethoven enquanto bebemos rum e ouvimos Miles.

Nunca percebi bem as pessoas que não gostam da juventude. É como não gostar da manhã, ou coisa que o valha.

Diário de Bordos - Amelia Island, Florida, Estados Unidos, 25-02-2015

Um gajo sai de um círculo vicioso que durou dois anos e começa um círculo virtuoso. Tudo se encaixa, tudo flui. Fica espantado, claro. Surpreso. Há tanto tempo que isto não lhe acontecia.

Os telefones dum gajo ou estão sem bateria, ou sem saldo, ou sem rede, ou na água, ou longe de mais, ou  na pata que os pôs. Nunca funcionam, excepto quando não devem.

Ou quando devem, agora que o círculo mudou de sentido.

Sábado estava em St. Barth a bordo de um Lagoon 450 a reparar a bomba de água doce. O telefone não tinha bateria, o saldo era ínfimo, as ferramentas estavam espalhadas por todo o barco, paneiros abertos, um gajo coberto de suor. Às dez horas e doze  inutos conseguiu falar para a base. Avisá-los de que ao contrário do previsto ia com os clientes para St. Martin e chegaria portanto à noite.

Não tive tempo. "Tens de vir já para St. Martin, tens um charter logo à tarde. Apanha o ferry das dez e quarenta e cinco".

Foi assim que começou o charter mais cansativo e mais bem remunerado da minha vida.

Uma família de indianos - onze pessoas, ao todo - que vive espalhada pela Índia, Estados Unidos, Reino Unido e Canadá junta-se para celebrar os sessentas anos do patriarca.

Agradeci mil vezes a Rushdie e a Naipaul: sem eles não teria percebido nada. É uma sensação esquisita, esta de termos as personagens dos livros que lemos à nossa frente durante uma semana.

Cheguei no sábado seguinte a Marigot, exausto. Domingo apanhei um avião para a Florida. Fiquei seis horas retido na Customs and Border Protection, mas acabaram por me deixar entrar.

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Por isso hoje estou numa vivenda enorme num condomínio fechado. É a minha big crew house... À minha frente, do outro lado da porta da varanda, um pequeno lago (o repuxo começa às oito em ponto) e árvores, muitas árvores. Há só árvores neste país, teria Eugénio de Andrade dito se aqui estivesse.

Estou no norte da Flórida, no delta de um rio, pantanoso e verde. Quando vamos para o estaleiro lembro-me da estrada que ia para Shelter Bay. A vegetação é completamente diferente, claro; e o verde não é o mesmo; mas esta sensação de estar no deserto, ligeiramente inquietante é.

Atravessa-se um parque natural e não se vê vivalma. Árvores e estrada, estrada e árvores.

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O A. está em seco. Foi preciso mudar-lhe o motor. Quem o fez (está quase pronto), foi um mecànico local. O resto é uma lista interminável de coisas a ser feitas pela tripulação. Interminável não é um exagero: o barco merecia um refit melhor do que o que teve, coitado. Penso em L., de Galveston: "Os barcos raramente têm os armadores que merecem"..

O primeiro passo está dado: esvaziar o barco todo e limpá-lo. Hoje vamos escolher o que guardar e o que deitar fora. Amanhã chega a metade da malta que falta. Daqui a uma semana largamos.

Espero.

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Há muito demasiado tempo que não ponho as unhas numa máquina de navegar. A. portou-se mqais do que honoravelmente na America's Cup. Das quarenta e nove regatas em que participou ganhou vinte e quatro.

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Num 12m a caminho de Antigua.  Preciso de repetir-me isto todos os dias ao acordar, para ter a ceretza de que não estou a sonhar.

12.2.15

Dia, noite

Penso no que tenho escrito sobre os lados holandês e francês da ilha e apercebo-me de que a noite é a vida.

O dia não passa de uma ponte, um passadiço, um intervalo.


Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 12-02-2015

"Ľair du printemps est une chose souple et tendre
Les pores s'ouvrent et ľair entre en nous
Et nous, nous nous répandons délicieusement en lui"

(Cito de memória, deve haver falhas. O poema é de Charles Baudouin).

Talvez seja isto a felicidade: o Lagoonies vazio, a música sublime e a um nível perfeito, um soberbo jantar e um monte de amanhãs: o transporte para Antigua, um cata de sessenta e sete pés, a vida toda.

Não sei. Talvez devesse ser mais velho e pensar que a vida toda já foi; ou mais responsável e pensar no futuro, em vez de futuros; ou mais... sei lá. Não sou.

Sou menos e sou feliz. Que se foda o mais.

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Em breve não haverá trabalho aqui em St. Martin. Esta época passou a correr. Agora quero navegar.

Não é pedir muito. É pedir o essencial.

11.2.15

Jantar improvisado - frango com nozes, amêndoas e cardamoma

Mais um jantar porreiro no S., o 57' mais bonito dos hemisférios norte e sul, leste e oeste.

Merece ficar registada, apesar de não ser definitiva. Precisa de algum trabalho:

Refogar nozes, amêndoas e cardamoma em grão; juntar o frango. Acrescentar água e deixar cozer.

Especiarias: pimenta, paprika, cominhos e curcuma.

Um iogurte e algum limão não teriam feito mal nenhum.




10.2.15

Porque sim

Foi assim. Enganámo-nos os dois. Tu porque sim e eu porque não.

Um dia desenganar-nos-emos. Sim.

Faísca, fogo

Era assim que sonhava contigo, quando sonhava: os cabelos, as mamas, o olhar, as mãos. Dessas partes eras o todo. Não te amar foi um privilégio, uma conquista, uma sorte.

Uma faísca. O fogo, esse, ficou.

(Para a A. I., com um beijo e uma chama.)

9.2.15

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 09-02-2015 - II

Ontem tive de explicar ao A. duas ou três coisas. Por exemplo: agora temos um pequeno problema. Se tu continuares, vamos ter um grande problema. A escolha é tua.

Perguntou-me o que é que eu queria dizer. "Quando tiver que te explicar explico. Por outros meios".

Tudo indica que percebeu sem que eu tivesse de lhe explicar. Não sei. Vamos ver.

Não tenho jeito nenhum para office politics.

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Vou continuar a trabalhar para a onírica empresa que me aceita no seu estranho seio.

Há coisas que o dinheiro não paga.

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 09-02-2015

A descrição do problema é complicada. Envolve três variáveis (a legislação francesa, a prática da empresa e a Banque Postale); a das suas consequências, pelo contrário, é muito simples (apesar de profundamente oximórica): trabalho muito e não tenho um chavo no bolso.

Hoje fui depositar o primeiro cheque em meu nome na minha conta. Devido às particularidades da conta o dinheiro só fica disponível no fim do mês.

Outra parte do meu salário é paga por transferência bancária de uma empresa sedeada na ilha Maurícia.

Não sei quando chega e se a mesma regra dos dezasseis dias úteis para poder movimentar os fundos (no caso os baixos) se lhe aplicam.

Fui dormir a sesta. O sono é a melhor maneira de desatar nós.

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Dia vinte e cinco ou seis vou para a Florida. Uma a duas semanas depois estarei em Antigua.

Algo me diz que o meu regresso a St. Martin é incerto.

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"Não te aborreces?" pergunta-me C., o chefe de base. "Não", respondo. "Estou demasiado cansado". É parcialmente verdade. A outra parte do remédio são os livros: acabei Behind Closed Doors, uma excelente, pormenorizada e competente descrição das relações entre Stalin, Churchiĺl e Roosevelt; entre ontem e hoje li To Kill a Mocking Bird, livro sublime que acho injusto só agora ter lido.

(Escrevo isto e penso numa das suas frases: "se tirares os adjectivos ficas com os factos").

Estou para sempre enamorado de Scout Finch, a mais gloriosa, terna, encantadora e valente de todas as marias-rapazes da literatura. E não me importaria nada de ter tido Atticus Finch como pai.
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Amar a vida como eu amo é como amar uma mulher feia, ou perturbada. Tem decerto outras qualidades.

5.2.15

Pessoas que encontrei pelo caminho - II: Nike Steiger (Intro)

A série Pessoas que encontrei pelo caminho está injustamente quase vazia.

A Nike tem nela o seu lugar reservado. É uma jovem alemã que conheci em Shelter Bay.

Na verdade é muito mais do que uma jovem alemã: é uma marinheira, e os narinheiros não têm nacionalidade nem idade.

Escrevi um texto para o seu blog. Precisa de duas ou três correcções, mas ficam para depois.

O texto que escrevi é este. Fala mais de mim do que da Nike. Na verdade é um preâmbulo a um longo texto que um dia - cada vez mais próximo - escreverei sobre ela.

4.2.15

Circo, palhaços

Isto dito, não tenho nada contra os palhaços, naturalmente.

Sem eles (mai-los domadores e os trapezistas) não haveria circo.

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 04-02-2015

Ontem dei vinte dólares a um tipo que me prometeu devolver-mos hoje. Eu sabia que ele estava a mentir e de vez em quando gosto de confirmar as minhas intuições. É tão raro ter razão...

Na verdade ter cinco dólares no bolso - a soma com que fiquei depois do meu misantropo gesto - não é muito diferente de ter vinte e cinco. Um dia e meio de comida, talvez.

O que é um dia e meio numa vida?

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Começo a estar cansado de St. Martin. Haverá alguma vacina anti-nomadismo?

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A lua está cheia e sobe a toda a velocidade. Em breve vou para bordo dormir.

Para fazer um haiku agora precisaria de um gato, ou chuva, ou um sentimento. Inesperados, claro.

O cansaço não serve.

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Pouco acima da lua está um planeta. Não sei qual. Talvez Marte ou Júpiter. Por baixo estão núvens. Cumulus, com um bordo dourado (esbranquiçado, neste caso).

Não há chatice que olhar para cima não cure.

3.2.15

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 03-02-2015

Este blues tem um nome. Chama-se blues da árvore seca. Bare pole blues.


Os problemas administrativos e burocráticos - passe a redundância - mudaram de sede (agora estão no banco) e estou de novo à sec de toile.

E cansado: há um mês que trabalho sem folgas. Hoje tirei uma. Duvido desta expressão: tirar o dia. Tirar? A quem? O dia é meu. Não tirei uma folga. Não tirei nada a ninguém. Ofereci-me uma folga. Ou duas: amanhã também não trabalho.

De qualquer forma estou farto de reparar embarcações de recreio. Se não for para o mar morro.

No mar não tenho de me preocupar com assuntos financeiros, administrativos e burocráticos - os três venenos de um homem livre -.

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R. emprestou-me dinheiro, o Lagoonies e o Sous-marin dão-me crédito, a Little Crew House também, vivo num barco cedido pela empresa de sonho para a qual trabalho em regime livre.

Já estive em piores lençóis.

(Estes são os meus argumentos contra o blues da árvore seca, sem resultados infelizmente).

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Ontem paguei o jantar à D. e ao R. apesar de não ter ainda a certeza sobre o que me fizeram à tarde.

Não há falta que mereça a fome como punição.

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Bare pole blues

Ou tenho vento ou tenho velas.

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Fim de tarde no Lagoonies: a luz escoa-se pelo fim do dia, densa como o desejo e terna como uma carícia numa pele vivida.

Gosto de dias que acabam assim, com uma promessa, uma reverência, um abraço.

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Hoje não trabalhei. Que bom! Precisamos de nos afastar do que gostamos.

Ou do que não gostamos: o importante é a distância, não aquilo de que nos distanciamos.

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Bare pole blues

Se há velas não há vento
e se há vento não há velas.

Falta sempre qualquer coisa
para sair da árvore seca.

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Declaração de amor à vida: todos os dias, todo o dia.

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A senhora da Banque Postale que abriu a minha conta faz qualquer bancário português passar por um modelo de virtude e honestidade.

Começou por me mentir descaradamente sobre o montante mínimo a depositar para a abertura; e continuou mentindo-me sobre o tempo que leva.

Suspeito que quer ser promovida.

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Não ter computador e ser obrigado a escrever num telefone portátil é uma chatice, mas tem pelo menos duas vantagens: escrevo menos inanidades e só as que são inevitáveis.