31.3.15

Diário de Bordos - S. Paulo, S. Paulo, Brasil, 31-03-2015

O voo de Miami para S. Paulo dura sete horas e meia, das quais quatro passadas a sobrevoar território brasileiro.

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O Besson foi uma escolha errada: li-o em menos de um dia.

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"Shipowner's incurable optimist". A expressão vem de um artigo do Economist sobre o preço dos fretes do granel sólido.

É um optimismo que conheço muito bem. Tal como não se deve pedir a um "optimista incurável" que seja por exemplo gestor de empresas, ou agente de seguros, não se pode ser armador - seja qual for o tamanho do bote - e pessimista. Ou marinheiro.

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Tenho uma casa com uma namorada dentro. Já não posso passar a tarde num café e beber a vida enquanto ela desfila à minha frente.

Não fico a tarde mas fico um bocadinho dela. O suficiente para ver as ruas arborizadas do bairro onde estou, ladeadas por casas de um piso ou dois do meio das quais irrompe por vezes um prédio com quinze ou vinte; as abomináveis cadeiras e mesas de plástico encarnado, publicidade a uma marca de cerveja. São assim em todo o lado, a cor deve ir bem com o amarelo da cerveja; os passeios largos, de cimento, muito mais limpos do que os de Salvador ou S. Luís; a senhora alcoólica a quem o empregado do boteco não serve álcool, mas permite que fique sentada à mesa. "Se ela bebe depois fica por aí caída e não é bom nem para o comércio nem para a senhora", explica-me o empregado.

Ao contrário de muita gente - incluindo brasileiros - aquilo de que mais gosto no Brasil é das pessoas.

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Ainda não vi S. Paulo: vi a Livraria Cultura, a Avenida Paulista, o bairro onde vivo; e ontem dei um longo passeio a pé até ao centro comercial onde fui trocar dinheiro e, numa rua ao lado, beber caipirinhas. A livraria tem uma secção bastante decente de livros franceses, e nela estava o Livre des Fuites, de le Clézio. Hesitei em comprá-lo. Não conseguirei deixá-lo em lado nenhum.Mas ainda só o li duas vezes ou três e... enfim, não sei.

«Laure, c’est ici, j’ai trouvé. Je crois que je ne fuirai plus jamais. J’ai semé mes ennemis, définitivement. Al Capone, Custer, Mangin, Mac Namara, Attila, Pizarro, De Soto, Bonaparte, tu sais, tous mes ennemis. Et puis Chevrolet, Panhard, Ford, Alfa Roméo. Tous ceux qui voulaient ma peau. Ils ont perdu ma trace, je crois. C’est un miracle. Et le général Beau, le colonel Bon, le maréchal Vrai. L’amiral Mal. Le chef de bataillon Dieu, le capitaine Satan. Tous, qui me traquaient. Avec leurs uniformes. Avec leurs sabres. Tous mes ennemis à lunettes noires, avec leurs cravates à raies e leurs cheveux peignés. Et les femmes Rimmel, Mascarat, Jarretelles. Celles qui me guettaient du fond des pages glacées de magazines, avec leurs corps aiguisés, avec leurs seins, avec leurs jambes en forme de lances. Celles qui avaient des yeux d’acier, des cils noirs, et des lèvres couleur de corail. Elles qui me tendaient leurs pièges méprisants, et qui riaient de me voir trébucher. Les femmes Amour, les femmes Douce, Belle. Jamais elles ne viendront jusqu’ici. Leurs yeux ne supporteraient pas la lumière intense qui explose partout. Leurs oreilles ne supporteraient pas le silence. Leurs cheveux d’or ne supporteraient pas la poussière. Je suis libre, presque libre.
...
»

"Je voudrais que plus rien ne soit différent de moi, qu'il n'y ait plus jamais d'éloignement".

"Ceux qui sont immobiles sur la terre errante: les voyageurs.
Ceux qui fuient sur la terre immobile: les sédentaires.
Mais ceux qui fuient sur la terre errante, et ceux qui sont immobiles sur la terre immobile: comment les appeler?
"

J.M.G. Le Clézio, in Le Livre des Fuites, ed. Gallimard

(Ceux qui fuient sur la terre errante: je propose de les appeler "marins").

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Fui ver um espectáculo de Z., o irmão de L., músico bastante conhecido no Brasil (e em Portugal, de resto). Tenho sorte: não preciso de mentir para dizer que gostei da música dele. (E da cozinha, e da pessoa e da família).

Tenho sorte.

S. Paulo vai juntar-se à lista das minhas terras: Lisboa, Genève, Mértola, Marigot (enfim, St. Martin  toda), Palma de Mallorca.

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"Não és homem para te agarrar a uma mulher". diz-me uma senhora que me conhece bem, demasiado bem.

Sou, minha querida. Sou. Sobretudo se essa mulher vier com uma vida, uma cidade, um futuro. E puser ordem nos meus passados.

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Dia 14 regresso a Bocas del Toro, a caminho de Gibraltar. Vou levar um ketch de 57'.

Tenho sorte.

26.3.15

Diário de Bordos - Aeroporto Princesa Juliana, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 26-03-2015

Digo obrigado à Paula, do Sous-Marin, à Olivia do Lagoonies, ao Craig da Little Crew House. Já o fiz, e faço de novo. E direi sempre. Foi graças a eles, que não me conheciam de lado nenhum que sobrevivi os primeiros tempos em St. Martin. E ao J., também, claro. E ao C., da empresa de sonhos que me ficou a dever aquilo que para mim é uma pipa de massa (a qual será paga, tenho a certeza) mas que me deu muito, muito mais do que o dinheiro que já recebi e vou receber.

Digo obrigado a tudo, na verdade: cheguei um, saio outro. Se isto não define vida não sei o que a pode definir.

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Mais uma passagem por aquele execrável aeroporto. Desta vez fico lá pouco tempo, felizmente. Se se concretizarem os dois trabalhos que tenho mais ou menos alinhados - mas ainda não confirmados, tenho de me repetir isto cem vezes cada vez que penso neles - a relação horas de avião / dias de mar, agora completamente desequilibrada vai alterar-se no bom sentido.

Esta época foi a da inversão de tendência. Porque não há-de continuar?

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"Vida, sou eu de novo. Desculpa chatear-te. Tens uns anitos para mim?".

25.3.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 25-03-2015

Comprei um livro. Pode parecer estúpido, ou pelo menos incompreensível. A fotografia da capa não chega para a coisa se tornar racional:


O título é fabuloso, a capa linda de morrer e Besson... bem é Besson e eu estou cheio de vontade de aprender a escrever e mais vale ler muito para aprender um bocadinho e já agora o muito deve incluir os franceses todos, ou pelo menos os Bessons todos e os que escrevem como ele.

Mas faltam duas coisas na fotografia: uma é a textura do papel. Outra são os contos, de que hoje li duas ou três páginas no Sous-Marin, mesmo ao ao lado da livraria.

Enquanto comprava o livro jurei que amanhã envio os livros que arrasto na mochila verde para casa. De qualquer forma preciso da mochila, o saco de Bequia está quase a deixar de ser novo.

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Amanhã voo para S. Paulo. Vou descobrir um Brasil que não conheço e uma vida de que já me tinha esquecido. 

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A empresa de sonho para a qual trabalhei não me pagou metade do que devia ter pago. Agora é oficial: está com dificuldades de pagamento. É a segunda maior empresa de charter do mundo.

"- Fiz uma pequena fortuna com barcos à vela.
- A sério? Como conseguiste?
- Comecei com uma grande fortuna."

24.3.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 24-03-2015

O aeroporto de Miami não é, obviamente, o pior do mundo; tão pouco será o pior dos Estados Unidos, não sei. Não os conheço todos. Mas é de certeza o pior de todos os que conheço, seja onde for, categorias grandes e frequentes. O ar condicionado está sempre regulado para uma temperatura glacial; o wifi não é gratuito; as cadeiras são uma merda e além disso têm braços para que as pessoas não se possam deitar; e é feio, o que não arranja nada. E é caro (todos são, eu sei. Mas uma merda destas não devia ser).

Tive de lá passar a noite, pela segunda vez. Da primeira ainda encontrei uma plataforma de madeira que lá estava por causa de umas obras, surpreendentemente limpa. Ou pelo menos pouco suja. Desta nem isso: dormi em cima de uma estrutura de azulejo fria e duro como o raio que a parta, e já foi uma sorte encontrar aquilo: com excepção do chão era o único lugar onde me podia estender ao comprido. Dormi pouco, mal e porcamente, claro. E enregelado.

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A gata Nala está entregue. Agora falta-me esperar que S. me reembolse uma parte das despesas que tive com isto para encerrar definitivamente a história.

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St. Martin. Comi de mais, e daqui a bocadinho terei bebido de mais, se Deus quiser. Passo a vida a dizer às pessoas (como se fosse preciso) que não tenho casa. É verdade: não tenho uma casa. É mentira: tenho muitas. Uma em St. Martin, à qual acabo de regressar; uma em Lisboa; outra em S. Luís. Tenho tantas que não me lembro sequer de onde são. Palma. Falmouth Harbour. Le Marin. Panamá. Mértola ainda não, mas aposto que em breve será.

Conheço muita gente que tem uma casa em Londres, outra em Nova Iorque, mais uma em Paris e ou Madrid. Casas que custaram milhões, investimentos, arquitectos, a puta que os pariu, coitados. As minhas não custam nada, ou quase. E são muito mais bonitas porque não ficam fechadas quando eu me vou embora: as paredes não são feitas de tijolos. São feitas de olá; que bom é ver-te. Por onde andaste?; claro que tenho um lugar para ti. Não sei aonde, mas vem; sê bem-vindo; hey! Bom ver-te.

E eu respondo. Digo que sim. Como de mais, bebo de mais, vivo de mais. Sinto de mais e apesar disso consigo continuar a sentir, sorte a minha.

23.3.15

Nassau, Bahamas

Já aqui falei do Bahamian. Estava para lá ir almoçar, mas vai ter de ficar para outra vez. em contrapartida posso aconselhar - e faço-o veementemente - um pequeno café chamado Euro-tandoor, na Charlotte Street N. Pertence a uma adorável família indiana e tem - cito - "Fine Indian and European Cuisine". É verdade. Indiana, europeia e jamaicana - comi aqui um dos melhores jerks da minha vida -.

Outra sugestão é o café Spanks, provavelmente a Pastelaria Suíça (salvas todas as proporções, devidas ou indevidas) de Nassau. Fica perto, na Main Street ou coisa que o valha.

Felicidade, cansaços

O único inconveniente da felicidade é ser tão cansativa. Quando um gajo está triste só se preocupa com uma coisa de cada vez - regra geral ele próprio, mas também pode ser sei lá, o trabalho, a solidão ou a cor cinzenta do céu num dia de chuva -.

Quando se é feliz é preciso lidar com tudo ao mesmo tempo: os outros, nós, o passado, o futuro e o presente, o vento e o sol e o mar, a vida, o trabalho e essa solidão que lentamente se afasta, se desvanece como uma nuvem de areia no deserto.

(Para a Margarida, com um beijo; e para a Lúcia, com um número infinito deles).

22.3.15

Diário de Bordos - Nassau, Bahamas, 22-03-2015

Hoje atingi o limite. Ou pelo menos aproximei-me bastante dele. Comecei o dia a andar alguns três ou quatro quilómetros com os sacos - entre os quais, mea culpa, se  encontra ainda a mochila verde com os livros (menos o Bowles, que deixei em Black Point) - mai-la merda da gaiola da gata, a qual não parou de miar o trajecto todo. Fui deixá-la na Bahamas Humane Society, uma organização que apesar do nome só trata de animais.

E estou, depois deste tempo todo a falar de espeluncas, numa verdadeira espelunca. Posso estar enganado, mas creio que desde o Burundi não durmo num sítio tão sujo, tão infecto - e caro -.

Os Bahamianos têm uma perspectiva particular da indústria da hospitalidade. Em Black Point dormi numa casa que tinha ratos mortos (não é uma imagem, é literal: vi pelo menos dois, que pus no caixote de lixo à entrada da casa. "Espalhei veneno para ratos", explicou-me - é verdade que ligeiramente embaraçado - o jovem alcoólico e provavelmente crackómano que me alugou o sítio, pertença de um tio dele que agora vive em Nassau). Além dos ratos os lençóis não tinham sido mudados desde que o legítimo proprietário neles dormiu pela última vez (de certeza há muito tempo e as bactérias estavam por esta altura todas mortas). Impossível usar a casa de banho e a cozinha - era onde estavam os ratos, os quais estavam longe de ser a única sujidade. Tudo isto pela módica e absolutamente não negociável quantia de cinquenta dólares, praticamente cinquenta euros. E a limpeza, se eu a quisesse (queria) era por minha conta. Outros cinquenta.

De manhã mudei, claro. Fui para uma senhora que aluga quartos. Uma espécie de pensão, ou pousada, ou hotel, ou não sei como chamar àquilo. O quarto estava limpo. Cem dólares. O duche não funcionava bem e fui avisar a dona. No dia seguinte de manhã o marido, ou empregado (tão pouco sei) pôs-me um duche e dois alicates na mão.

Mudei o duche, naturalmente - consegui reduzir o preço de cem para setenta e cinco dólares à conta disso-. Nos termos do meu acordo com S. não sou eu que pago o alojamento. Mas sei que ela não tem dinheiro, está nas cordas, e custa-me não participar no esforço que ela está a fazer.

Ou custava, até hoje. Não vou descrever a espelunca onde estou. É pouco entusiasmante como tarefa. Mas lá acabei a limpar o quarto e a casa de banho e a mudar os lençóis - aquilo é um hotel de putas e as bactérias dos últimos hóspedes ainda devem estar vivinhas da costa -.

E depois um gajo que não gosta de animais e não tem dinheiro para mandar cantar um cego pergunta-se por que raio de carga de água está a passar por isto tudo para ajudar uma gaja que gosta deles e não tem dinheiro para mandar cantar um gato, cego ou não. Aquela história de sermos todos tripulantes do mesmo navio, talvez. Não sei.

(S. diz-me que amanhã posso ir dormir de novo à tipografia, na cama de campanha que tresanda a cão. Duvido. Pode ser que a Spring Break esteja mais perto do fim. Apesar de tudo pefiro uma camarata.)

Sei que amanhã é o último dia. Às sete e vinte da tarde aterro em Miami e se tudo correr bem uma hora depois entrego-lhe a gata.

Esta história não contribuiu para aumentar o meu amor por gatos; mas alargou incomensuravelmente o fosso de incompreensão que me separa das pessoas que gostam deles, ou de quaisquer outros animais domésticos.

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Estou contente por deixar este país amanhã. Só há duas maneiras de gostar disto: ser rico ou ter uma embarcação com uma despensa cheia a abarrotar.

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O hotel no qual durmo esta noite é alimentado por dois bares que lhe ficam no rés-do-chão. Espero que as putas - e os maricas, no caso daquele onde estou agora - encontrem clientes depressa. A isolação sonora não é a melhor; e sempre prefiro meia dúzia de gritos no quarto ao lado a esta merda desta música.

HH

"Já me disseram que a gente que nasce e vive ao pé do mar é mais pura. Penso que o mar dá uma qualidade especial à fantasia, ao desejo e à confi­ança. É uma propriedade misteriosa do espírito, e por ela se aprende a nada esperar, a não desesperar de nada. Talvez seja isso a inocência. Talvez só no mar nos seja concedido morrer verdadeiramente, morrer como nenhum homem pode."

Herberto Hélder, Os Passos em Volta.

É o meu livro favorito dele, e este o texto, e esta a passagem.

21.3.15

Diário de Bordos - Staniel Cay, Bahamas, 21-03-2015

Se eu dissesse que vou no segundo rum punch não estaria a mentir. É verdade. Vou  no segundo. Mas não seria a verdade toda. Isto não é bem um rum punch, apesar de estar feito exactamente segundo as minhas instruções: copo de vidro, pouco gelo e seco, muito seco (ou seja, muito rum).

O copo não é um copo, é um balde em ponto pequeno.

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Estou no restaurante Taste & Sea, em Staniel Cay. A razão da demora é simples: o CAPTAIN C. trazia, já quando eu vim de Nassau, um bloco de concreto enorme para descarregar aqui. A coisa é demasiado pesada para ser descarrageda na parte do cais que é de madeira e estamos à espera da maré para a descarregar no cimento. Precisamos da maré cheia.

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Ooops, parece que vamos largar.

Resumo precoce

Numa noite de terça para quarta-feira de Março de 2015 decidi ir para Cuba. Estava em St. Augustine, uma cidade turística do norte da Florida. Tinha de ir de barco, por duas razões: uma, o visto; e duas, o custo.

Saí de St. Augustine para Ft. Lauderdale porque queria parar dois ou três dias num sítio, e St. Augustine aborrecia-me. É uma cidade bonita, turística e cara. O hotel onde estava não era grande coisa. O destino final sendo Key West ou pelo menos uma das Keys e aí encontrar um embarque para Havana.

Março nos Estados Unidos é o mês dos Spring Breaks, uma instituição que desconhecia por completo e cuja ignorância me custou bastante, de todos os pontos de vista. Os hotéis baratos, motéis e hostels estão cheios, as ruas e os meios de transporte invadidos por hordas de estudantes universitários a fazer o que todos os estudantes universitários fazem quando em bandos: beber mais do que devem e foder menos do que dizem.

Passei duas noites em Ft. Lauderdale, depois de uma viagem de comboio agradável apesar de um atraso de duas horas da Amtrak. Passei por sítios bastante bonitos. A Florida é uma permanente mistura de água, terra, árvores e céu e tem paisagens fascinantes, encantadoras no sentido primeiro do termo.

Sexta-feira apanhei um autocarro em Florida City, o último de uma longa série que tinha começado em Ft. Lauderdale, para Marathon. Eram oito e meia da noite, o ETA era às dez e meia. Não tinha sítio para dormir nem muitas probabilidades de encontrar um àquela hora. Apesar disso decidi ir. Em último caso dormiria na praia ou apanharia o autocarro de volta para Florida City – hipótese pouco provável, porque Florida City não inspira muita confiança, mas enfim. No autocarro encontrei uma senhora cujo marido estava preso nas Bahamas “por ter excedido o tempo de permanência no país”. Era preciso tentar recuperar o barco o mais depressa possível, pois corria o risco de ser arrestado.

Isto não é a verdade toda: o marido estava preso não só por ter excedido o tempo de permanência, mas também por ter armas não declaradas a bordo. E uma embarcação apanhada a cometer um crime é arrestada, não “corre o risco de ser arrestada”. Mas isso só o vim a saber depois, já em Black Point, o – de resto idílico – lugar onde está o barco (C., para futuras referências).

Dormi na tipografia onde a senhora (S.) trabalha de noite. De dia dá aulas de SUP e kayak numa escola das Keys. Trabalha demais para pagar os custos dos problemas que o marido lhe provoca e alimentar os quatro cães, quatro gatos e nove iguanas com os quais vive a bordo de uma embarcação de vela de trinta e sete pés. É bióloga e, diz-me, “já fui rica”.

S. não tem dinheiro. Nunca mo escondeu. Por isso acordámos que eu iria buscar o barco às Bahamas e o poderia levar para Cuba, em vez de Haiti. Ela não me pagaria mais do que os transportes – chegado a Black Point eu poderia ir para bordo e obviamente o custo de vida baixaria exponencialmente -.

É igualmente óbvio que as coisas nunca se passam exactamente como nós as planeamos, qualquer que seja a área de actividade. Em tudo o que respeita a embarcações de vela ainda é pior. Como se o senhor Murphy fosse velejador e tivesse feito a sua famosa e incontornável lei especificamente para a navegação à vela.

Do lado do barco o objectivo de S. era impedir o arresto. E do lado de R., o marido, era impedir que fosse parar a uma aparentemente infame prisão nas Bahamas chamada Fox Hill. “R. sofreu traumatismos cerebrais quando era criança e tem alguns problemas”, diz-me S.  naquela primeira noite na tipografia, quando falávamos da situação e estudávamos o que fazer. “Tem alguns problemas” é um eufemismo. Compreensível, mas eufemismo. Ou sinédoque. Ou mentira, para os mais realistas. Seja o que for é, para mim, compreensível. Ela não sabia que se me tivesse dito tudo eu a teria ajudado na mesma.

II
Na madrugada de domingo apanhei o ferry de Ft. Lauderdale para Freeport, nas Bahamas. Foi uma viagem sem história, feita na companhia de duas simpáticas, educadas e bonitas jovens que estavam, elas também em Spring break, mas não se associavam aos bandos de selvagens que às sete da manhã já estavam a beber cava, vodka, cerveja e ou cocktails diversos.

Em Freeport passei a tarde num café chamado Sire’s. Nada vi da cidade. Não teria podido, de qualquer forma: estava em constante comunicação com S., seguindo a evolução da situação, que se alterava constantemente. Digo situação, mas devia dizer situações: a do barco e a do marido. Como sempre havia esperanças, recuos, incompreensões, inabilidades.

R. devia ser deportado uma vez paga a multa de dois mil dólares. Essa multa seria paga pela Embaixada Americana, depois de recebida a soma. A primeira tentativa d transferência não funcionou. O barco seria liberto. Depois não. Depois sim. Depois não (finalmente foi confiscado já eu estava em Black Point). R. não podia de modo alguma ir para Fox Hill. Não iria. Acabou lá.
Tudo isto tendo eu uma minúscula quantidade de dinheiro no bolso. Estava suposto chegar, comprar
leite e embarcar.

C. não estava em condições nem de fazer uma viagem de dia. A desordem a bordo era indescritível. O barco tinha sofrido uma busca pela polícia e atribuí-lhe o caos. “Não”, diz-me S. “R. é sempre assim”. Passo alguns pormenores. Explico a S. que preciso de um mínimo de três dias para pôr o barco navegável, explicando-lhe que isto não é negociável. De qualquer forma não foi preciso negociar nada: C. foi confiscado pelo governo das Bahamas.

Digo-lhe também que temos de reacordar os termos da minha ajuda, porque isto está a demorar e a custar muito mais do que o previsto. Estou pronto a ajudar, e ponho o bolso onde ponho a boca. Mas não posso pôr mais do que tenho no bolso, que é pouco (e nem sequer está no bolso, mas isso é outra história).

A recepção em Black Point foi fria. Os “amigos” de R. eram isso mesmo: amigos com aspas. De certa forma é compreensível: R. não é fácil nem agradável, pelo que me contam dele e vi nos jornais e nos relatórios médicos que S. um dia me enviou.

S. é bióloga de formação, mas agora dá aulas de SUP e de kayak e à noite ajuda numa tipografia. Vive num trinta e sete pés com quatro cães, quatro gatos e nove iguanas. É alta e atraente, pela inteligência e – sei-o agora – pelo dinamismo e energia.

É a segunda vez (pelo menos das que sei) que tem de safar R. de enrascadas. A primeira foi muito mais grave do que esta e levou-lhe o dinheiro que tinha. Agora trabalha de dia e de noite.

III
Mencionei há pouco as duas frentes de luta: o barco e R. Falta uma: a gata Nala, essencial para o bem estra psíquico de R. (e, suspeito, de S.)

Inicio agora a viagem de regresso, com a gata numa gaiola enorme. Não sou, nunca fui grande amigo de animais. Limito-me a não lhes querer mal. A ideia de viajar com uma gata numa gaiola está tão longe de mim como a de pôr um extremista muçulmano a gostar de vinho. Não é só o bolso que ponho onde ponho a boca…

Vou fazer a viagem no Captain C. outra vez, para poupar uma noite de hotel. Confesso que não é grande sacrifício. Recuperei o meu camarote, agora um bocadinho menos arranjado do que quando a ele cheguei pela primeira vez. Nala tem comida e água. Vai fora do camarote: hoje acordei com um cheiro a mijo de gato que só não me fez odiar gatos porque me falta paciência para odiar seja o que (ou quem) for.

C. e a sua indescritível desordem ficam. O pavilhão americano, enorme e arvorado no brandal de estibordo por cima do das Bahamas (três erros de uma só vez), este minúsculo, pende triste, como se tivesse vontade de partir ou pelo menos de ter um convés arrumado. O barco fica para o Governo das Bahamas, que o vai pôr a leilão. S. quer recuperá-lo. Diz que é importante para o equilíbrio psíquico do marido. Espero que consiga, se bem duvide bastante que R. possa – ou deva – viver fora de um hospital.

IV
Domingo não poderei fazer grande coisa em Nassau. Segunda-feira vou ao veterinário para o certificado de saúde, vou comprar-lhe um saco para a viagem e apanho o avião para St. Martin. Faço escala em Miami para entregar o bicho e dizer adeus a S., e a Cuba.

Fica para a próxima.

19.3.15

Vidas cruzadas

Demorou dois anos a apaixonar-se por ela, e ela outro tanto a desapaixonar-se dele.

18.3.15

Telefotos - Staniek Cay e Fowl Cay, Bahamas




Telefotos - Nassau, Bahamas





Bahamas (notas)

Ilhas baixinhas, como lenços de terra que alguém tivesse deixado cair por esse mar fora e ali tivessem ficado, um pouco ao acaso, pesados de mais para ser levados pelo vento e demasiado leves para se afundarem.

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É como navegar num aquário.

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Telefotos - Nassau, Bahamas




Saber viver, ruído, decência

É possível que saber viver não seja mais do que saber não aumentar o nível de ruído no sistema. Ou mesmo diminuí-lo.

A ser assim, saber viver é muito semelhante a ser decente: um gajo decente é aquele que mantém o mais baixo possível os níveis de ruído no sistema naturalmente caótico da vida.

Diário de Bordos - Staniel Cay, Bahamas, 18-03-2015

Como dois corpos que se despegam, dois lábios que se separam lentamante o CAPTAIN C afastou-se do cais. A manobra foi perfeita, bela. Não há coisa mais bonita de se ver do que uma manobra bem feita. E não há melhor hora para largar do que esta, a noite toda pela proa.
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Passei uma noite regalada, regalada. Acordo quando nos aproximamos de Staniel Cay. E agora tomo o pequeno almoço no Staniel Cay Yacht Club.

O sítio é lindo de morrer, mas esta fauna de big game fishers, superyachts, respectivas tripulações e guests não é a minha tribo. Por muito boa que a música seja, cuidada a decoração e bom o pequeno-almoço (com a habitual excepção do café, que é uma merda). E o ar condicionado, ubíquo, desnecessário.

Uma espécie de BVI baixinhas, mas com preços ainda mais escandalosos. Há muito tempo que não levava um murro no estômago como o que acabo de levar.
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A viagem do CAPTAIN C torna-se um bocadinho errática. Estávamos para largar às sete da tarde, vir a Staniel Cay e daqui ir para Black Point, onde o S/Y C. e a gata Nala me esperam. Chegaríamos, disseram-me, por volta des trè sou quatro da manhã.

Vejo agora que isso seria impossível. A largada de Nassau foi às nove da noite para estarmos aqui de dia. E agora já não vamos para Black Point directamente: ainda passamos por outro cay qualquer. Não chego a Black Point antes do fim da tarde, está visto.

17.3.15

Diário de Bordos - Nassau, Bahamas, 17-03-2015

A cidade é pequena e, tirando Main Street - inevitavelmente pejada de gente dos cruzeiros e de putos em spring break - bawstante agradável, calma. E cara, bastante cara. Comi no primeiro buraco que encontrei porque estava cheio de fome e claro. Um absurdo.

Agora estou numa casa local, um daqueles restaurantes nos quais um gajo não precisa de comer para ter a certeza de que é bom. Chama-se Bahamian Cookin', fica na Trinity Place e aconselho vivamente os meus leitores, de resto tão tolerantes e generosos, a experimentá-lo.

Afinal logo à noite não vou no Mail Boat, vou num pequeno cargueiro de cabotagem local. É pequenino, vai ser uma viagem deliciosa. estou a gostar de cada minuto desta. Faz-me lembrar a que em 2010 me levou de Parnaíba à Guiana Francesa, mas agora de barco.

(Nada disto teria sido possível sem o apoio logístico e a amizade da M., a quem aqui deixo um beijo e um obrigado do tamanho disto tudo).

(Cont.)

16.3.15

Relatório intermédio

As viagens começam mas não acabam, digo-o muitas vezes. Mas talvez isso seja só no princípio, talvez depois deixem também de começar e se fundam todas numa só, numa espécie de magma de viagens que se entrelaçam, bifurcam, reatam e recomeçam numa cadeia sem fim.

Estou nas Bahamas, num café de Freeport ao qual cheguei pouco passava da uma da tarde e onde ficarei até à meia noite, porque uma hora depois apanho o barco-correio para Nassau. Daí, logo a seguir, vou noutro barco-correio para Black Point, onde chegarei às duas ou três da manhã.

Estou a adiantar-me, a andar  para a frente. É preciso andar para trás, fingir que este é o fim da viagem e reconstituí-la. Hoje é segunda-feira. Dez e dez da noite. Acordei às cinco da manhã em Fort Lauderdale, fui de autocarro até ao terminal do ferry. Comprei o bilhete - obrigaram-me a comprar uma ida e volta, apesar de ter um e-mail a dizer que ia embarcar num veleiro, filhos da puta (ou filha, era uma senhora) -. A caminho do ferry vieram ter comigo duas miúdas novas, pedir-me informações. Disse-lhes que também ia para lá. Vieram comigo. Fizemos a viagem juntos. Eram simpáticas, inteligentes, bonitas. Nada a ver com a escumalha do spring break que às sete da manhã comprava garrafas de cava (o ferry é da Balearia) e às nove mal se tinha de pé.

O tempo passou bem, depressa. As miúdas conversaram, eram educadas; e depois dormiram a viagem toda: tinham passado a noite a viajar de carro.

Cheguei ao hotel Deauville às seis da tarde de domingo, vindo de Marathon. Passei o domingo todo a viajar, a saltar de autocarro para autocarro para comboio para monorail e para mais três ou quatro autocarros. Tudo isto com peso a mais: tenho a mochila verde carregada de livros que não mandei para Lisboa por ser demasiado caro e não deitei fora por não ser capaz.

Em Marathon dormi numa tipografia, numa daquelas camas de campanha dobráveis que tresandava a cão. O dono da empresa, D. é amigo dos animais e fala com e dos cães como se fossem pessoas. Dormui bem, apesar do cheiro, profundamente e de uma vez só.

Dormi naquela tipografia, entre uma máquina antiga e umas estantes ainda mais velhas porque no autocarro - o último de toda aquela cadeia de transportes entre Fort Lauderdale e Marathon - encontrei uma senhora cujo marido está na prisão nas Bahamas por ter excedido o tempo de permanência no país. Queria, mais do que justificadamente, tirar o barco de lá e levá-lo para Haiti para fazer reparações na previsão de ele ser arrestado. Como de resto foi, hoje de manhã. Nem a senhora nem o marido têm dinheiro. Acabámos por acordar que eu lhes levaria o bote para Cuba gratuitamente (excepto os transportes e as dormidas, porque isso eles teriam que pagar de qualquer maneira).

Entretanto, já no ferry (salto para a frente) fiquei a saber que o barco tinha sido arrestado e que o marido da senhora arriscava uma pena de prisão de dois anos na prisão a sério do país, não na da esquadra onde agora se encontra.

Além disso tem de pagar uma multa de dois mil dólares, dinheiro que não tem, nem ele nem a mulher.

A senhora está compreensivelmente desesperada, e o senhor também (sei através dela, nunca falei com o homem nem nunca o vi). Diz-me que é melhor abortar a missão e voltar para trás, porque está aflita a tentar encontrar o dinheiro para a multa e porque o barco vai ser arrestado e porque não sabe o que há-de fazer (isto não me disse. É alemã. Tive de ser eu a deduzi-lo. Não foi um esforço muito grande).

Digo-lhe que não, que tenha calma. De qualquer forma em Fort Lauderdale está tudo cheio. E talvez com um pouco de jeito se consiga tirar daqui o barco, e o marido. O qual sofreu um acidente qualquer cerebral quando era miúdo e se bem não seja atrasado mental ficou com sequelas e não sabe lidar bem com algunas circunstâncias.

Quando cheguei a Freeport não sabia se ia dormir aqui, seguir amanhã de barco-correio para Nassau e na quarta-feira para Georgetown, onde o armador está detido; ou se ia para Black Point no barco correio da uma da manhã.

Passei a tarde toda num café a falar com a senhora por Facebook (e ainda há quem diga mal daquilo), até que às cinco da tarde tomámos aquela que para mim é a decisão mais correcta: vou a Black Point. Se o marido dela tiver sido libertado (amanhã tem uma audiência com um juiz que vai decidir) saio de lá com o barco, e o gato que vive a bordo, de cujo nome não me lembro.

Se o juiz decidir manter o homem preso vou para Georgetown e tento falar com ele, ou com a secretária dele, que já deu a entender claramente que quer dinheiro. Nem R. (o armador) nem S. (a mulher dele, se bem esta numa menor escala) sabem lidar com estas situações. S. fala-me da lei, dos regulamentos, da multa que vai pagar, disto e daquilo. "O que estás a fazer é como analizar um filme porno com as ferramentas de análise do Disney" respondo-lhe a certa altura, exausto.

Ao fim da tarde S. conseguiu encontrar o dinheiro para a multa. Não precisa do meu - não chegaria a tempo e seria insuficiente, mas se pudesse ajudar emprestar-lhe-ia o que me falta receber do salário e ela  pagar-me-ia depois -. Em Cuba a vida não é cara e em Haiti ainda menos, não haveria marina a pagar. Felizmente ela encontrou massa. Depois foi preciso ver como a faríamos chegar ao juiz. Via embaixada americana (cujo sistema informático está, aparentemente, em baixo).

São onze menos dez. Daqui a uma hora vou para o terminal do barco-correio. Com sorte talvez consiga encontrar um canto para dormir. Entre os dois barcos-correios tenho de ir buscar dinheiro à Western Union e não sei se terei tempo. Se não tiver todo este plano vai por água abaixo.

Espero que R. seja libertado amanhã, metido num avião e deportado para os Estados Unidos, que o Juiz esqueça o arresto do barco, totalmente injustificável à luz da legislação habitual: o barco não foi usado para cometer um crime. Não transportava droga, nem imigrantes clandestinos - contra os quais as Bahamas lutam denodadamente, o que explica a severidade das penas de um "crime" que na maioria dos países é tratado com uma multa -, não servia de bordel flutuante, ou casino. Porém se olharmos para isso e pensarmos que o juiz, ou a sua secretária, ou os dois querem dinheiro por baixo da mesa o arresto torna-se claro como a água das baías de Cuba que vejo nas fotografias.

Esta viagem começou no sábado: saí do hotel mais tarde do que previra porque tive de esperar pela roupa. Cheguei a Marathon quase às onze da noite depois de ter encontrado um trabalho, dormi numa tipografia, regressei a Fort Lauderdale, embarquei num ferry, passei a tarde num café a resolver um asunto que entretanto se complicara. E agora espero pelo barco-correio (que, ainda não sabia, está atrasado uma hora pelo menos), sozinho, coberto de picadas de mosquitos na esplanada do café que entretanto fechou.

Esta viagem não começou no sábado. Começou no dia em que aprendi que somos todos parte da mesma tripulação, por mais individualistas que sejamos.  Foi há muitos anos.

Diário de Bordos - Freeport, Bahamas, 16-03-2015

A senhora é bonita. Gorda, mas não para os padrões locais. Ele é gordíssimo, mas pelos mesmos padrões talvez vá para a categoria dos "fortes". Quando muito.

É um casal adúltero, vê-se à légua. Nenhum homem casado olha para a mulher com esta intensidade, esta atenção, quase medo. Ela está mais à vontade. Sabe-se bonita, Não há coisa que dê mais beleza a uma mulher do que saber-se - ou sentir-se - bonita. E desejada, às vezes. Nem todas.

Não lhes oiço a conversa. Precisaria de prestar atenção, e sou incapaz disso. Lamento, claro: de que falarão? Porquê aqueles gestos dela? (Aposto que está a falar do marido, mas é uma aposta que nunca poderei saber se ganhei ou não).

........
A viagem para Cuba está a transformar-se numa missão. R., o armador corre o risco de ir para a prisão (prisão - prisão, não a esquadra onde está agora) se não pagar uma porra de uma multa para a qual não tem dinheiro; e ter o barco arrestado. S., a mulher, anda à procura de massa. Já lhe disse que posso e quero ajudar. É uma questão de timing.

A ideia de que o homem está na prisão por causa de uma merda destas deixa-me fora de mim. Darei o que tenho para o tirar de lá. A prisão não é lugar para um marinheiro, um gajo que de prisões só conhece a maior e mais eficaz delas todas. A escolheu, até.

.......
R. não é bem um marinheiro. É um tipo que sabe que vai desta para melhor em breve (tem uma doença daquelas incuráveis) e antes de morrer quer dar uma volta ao mundo, ou pelo menos uma volta pelo mundo. Merece mais respeito do que muitos filhos da puta que por aí andam. Enfim, digo isto sem o ter sequer visto, mas aposto que tenho razão. Logo veremos.

........
Primeiro contacto com as Bahamas: um café onde comi conch fritters melhores do que os do Captain Macks em Bequia. E o vinho custa três dólares e cinquenta. E uma luta para safar um gajo que nunca vi da prisão.

O café tem os vidros fumados, ar condicionado (mas não muito frio) e fica à frente de uns enormes tanques de combustível. É o que mais perto estava do aeroporto.

Preciso de fazer uma chamada para a taxista que me trouxe aqui, mas a dona não deve ter pago a conta do telefone. Vai agora carregar o portátil. É simpática, sorridente, produzida e um bocaduinho gorda, só. Não muito. A comida é boa e o vinho barato.

Quem sabe se há mundos para além disto?

Portos de entrada em Cuba, costa N


15.3.15

Um letra, muitas estrelas

Não sei de onde nasceu a ideia dos hostels. Antigamente havia os Albergues de Juventude e um dia alguém se lembrou de actualizar a coisa, mas não sei nada do processo que transformou estes naqueles.

Mas gostaria de saudar o gajo, ou a pessoa, no caso de ser uma senhora, que teve a ideia. Pega-se num quarto básico, muito básico, numa propriedade igualmente básica - admitidamente, a mais das vezes, bem situada. Como fazer dinheiro com isto investindo o menos possível? Há muitas. A mais genial, a meu ver consiste em comprar meia dúzia de beliches baratos, roupa de cama ainda mais barata, pratos e coisas de cozinha em segunda mão e fazer um hostel.

Num segundo um quarto com seis beliches (doze pessoas) vende-se ao dobro do preço de um outro com o triplo da área e o décuplo do investimento. Tudo por causa de uma letra e muitas estrelas a menos.

Diário de Bordos - Fort Lauderdale, Florida, Estados Unidos, 15-03-2015

O trajecto do Hotel Deauville, onde partilhava uma camarata com, entre outros, dois ex-polícias – um Americano reformado (e sem dinheiro, todo o hostel sabe porque o senhor fala muito alto ao telefone) e um porto-riquenho reciclado em chauffeur de camiões - a Marathon demorou quase doze horas, em vez das sete ou oito que eu tinha estimado: engarrafamentos vários e monstruosos em Miami por causa de uma corrida de automóveis e de acidentes na autoestrada (não relacionados), distâncias muito maiores do que me tinham dito (o polícia americano, o tal que conhece muito bem o sistema de transportes local e está teso, situação que me é bastante familiar) e, last but not least, a má qualidade da informação disponível. Planear uma viagem destas em transportes públicos urbanos demora tanto tempo como a viagem em si. Mais vale planeá-la à medida que vai decorrendo. (Hoje o regresso flui linear, tranquilo. Parece que faço isto todos os dias).

A vantagem estando, claro, na velha antinomia tempo / dinheiro. Gastei pouco menos de quinze dólares. Com a Greyhound ter-me-ia custado a viagem cinquenta - e demorado quatro horas. Um cálculo rápido permite ver que com a Greyhound a hora de viagem ter-me-ia saído a doze dólares e meio, contra os um e dez que paguei (os valores são aproximados) - .

E não teria passado por uma daquelas coisas que só acontecem a quem viaja e arrisca fazê-lo sem demasiados planos.

Cheguei a Florida City para apanhar o ultimo autocarro, aquele que me levaria para Marathon, às oito da noite. O autocarro saía às oito e meia. Fui comer qualquer coisa rápida ao McDo vizinho e escolher (a cabeça funciona melhor quando o estômago trabalha) entre correr o risco de ir para Marathon e não encontrar onde dormir ou ficar por Florida City, cidade tão pouco turística quanto é possível ser e onde teria portanto mais probabilidades de encontrar alojamento a um preço razoável.

Acabei por apanhar o autocarro, claro. Alguma coisa havia de aparecer.

Não foi uma coisa. Foi uma senhora que entrou a meio do percurso e se sentou na fila atrás da minha. Por causa da aparência dela perguntei-lhe se estava ligada a barcos à vela. Disse-me que sim e começámos a conversar.

O marido da senhora foi preso nas Bahamas por exceder o tempo de estadia autorizado. É preciso tirar de lá o barco (um double-ender de 32’, quilha corrida, casco de uma polegada de fibra) o mais depressa possível, antes que o Governo das Bahamas decida ficar com ele.

Não havia quartos em lado nenhum. Acabei por dormir numa cama de campanha num canto de uma tipografia onde S. trabalha a tempo parcial. A cama cheirava a cão que tresandava, mas dormi como há muito tempo não dormia.

De modo estou de regresso a Fort Lauderdale, com o dinheiro do bilhete de ferry para Freeport na carteira. Estive nove horas em Marathon, das quais sete a dormir.

S. vive num 37’ fundeado ali perto com quatro cães, quatro gatos e nove iguanas (estas em gaiolas, apresso-me a precisar). É adorável. Passámos a viagem de autocarro a negociar as condições e a conversar e no fim acordámos que eu não receberia nada, mas em contrapartida poderia ir a Cuba em vez de ir directamente para Haiti, seu destino.

Depois de Cuba sou pago à tarifa normal.

Não acredito que lá chegue: quanto a mim o marido vai ser solto amanhã quando a esquadra abrir e quando muito eu ajudá-lo-ei a trazer o barco para a Florida (ela tem algumas dúvidas sobre a ida para Haiti). Mas enfim, o projecto parece-me bom e a história bonita: um marinheiro à solta do mar vai de aventura para um sítio onde não terá onde dormir e no autocarro encontra um job e alojamento, trava conhecimento com duas pessoas adoráveis (S. e D., o dono da tipografia), passa mais de vinte horas em transportes públicos variados para regressar ao ponto de partida (se tiver sorte. Não sei se o Hotel Deauville tem cama disponível). E em consequência disso tudo vai a um país onde nunca esteve buscar uma embarcação que é mais ou menos o oposto absoluto daquela em que estava a trabalhar; no barco virá de passageiro um gato que vive a bordo. Como prémio ganha a possibilidade real de passar três ou quatro dias no mar (coisa de que está muito necessitado), sozinho (excepto no que respeita ao gato), numa embarcação sem motor (foi isso que provocou o atraso de R. e consequente prisão: uma avaria no veio do hélice).

Isto se for para Cuba. Se não for (o que de certa forma preferiria, aborrece-me saber um colega na prisão por estúpidos problemas burocráticos) logo se vê.

………
Pergunto a S. o que faz ela das iguanas que recolhe. “Solta-las?” “Não, a lei da Florida não permite que se soltem iguanas que se recolheram. Mas pouco importa, ou são cegas, ou doentes, ou foram maltratadas…” (Isto dito, o frenesim legislativo do Estado da Florida parece semelhante ao nosso).
“Maltratadas? Como é que se maltrata uma iguana?” Infelizmente a resposta perdeu-se nos meandros da conversa e fiquei sem saber. Mas quando me lembro da rapidez com que os bichos fogem quando alguém se aproxima deles a perplexidade instala-se e não se vai embora.

……..
Engarrafamento monstro em Fort Lauderdale. Tudo conspira para manter baixo o custo horário da minha viagem relâmpago a Marathon.

Em contrapartida o Deauville tem uma cama.

14.3.15

Diário de Bordos - Algures na estrada, Florida, Estados Unidos, 16-03-2015

Em movimento. Pela estrada fora. A caminho. Por vezes penso que a sedentarização foi um erro, um beco sem saída, qualquer coisa que a evolução se encarregará de corrigir, de forma a que a humanidade reencontre o nomadismo,  seu status natural.

O habitat natural do homem é a Terra; toda ela. Não um continente, um país, uma cidade ou mesmo um mar.

A sedentarização foi um acidente. Em breve o nomadismo regressará e o nómada deixará de ser visto como um animal exótico.

Sigo com curiosidade os incidentes, as conversas, os fios que unem os passageiros do autocarro que me leva de Fort Lauderdale para Miami. É um autocarro urbano,  como se a Carris tivesse uma linha para Cascais.

De Jacksonville para St. Augustine foi a mesma coisa: dois autocarros urbanos (que infelizmente não funcionam aos domingos,  mas isso é outra história).

As coisas encadeiam-se umas nas outras como a chuva se segue a um dia de sol e este àquela.

Tenho um destino,  escolhido por mim. Estou a caminho. Está um dia bonito - mas se estivesse feio seria a mesma coisa -.

Cidade, mar, campo, comboio, autocarro, barco, casa, hotel, ontem, hoje, amanhã: tudo fragmentos de um quadro gigantesco do qual sou um dos pintores mas apenas vejo o que está para trás. E a parte da tela que neste momento se desenha perante mim: ruas, casas, uma enorme bandeira americana, um aeroporto,  uma loja de charutos,  centros comerciais, o senhor à minha frente que tem uma cara tão bonita... parece que saiu da Cabana do Pai Tomás, tanta bondade irradia. Já a senhora ao lado dele vem da Color Purple.

Desta vez não serão dois autocarros. Serão muitos mais. Vou chegar tardíssimo a Marathon.

13.3.15

Diário de Bordos - Ft. Lauderdale, Florida, Estados Unidos, 13-03-2015

É difícil gostar-se de um país quando não se tem dinheiro, cartão de crédito, carta de condução e, para compor o ramalhete, o telefone está avariado. Tentar andar nesta terra gastando o menos possível nestas circunstâncias é difícil.

O que não significa que seja impossível, pelo menos no que respeita aos transportes. Já alojamento é outra história; seria necessário adicionar mais uma flor: estamos em período de férias estudantis e tudo o que é alojamento barato está cheio.

Tive sorte com o hostel em Fort Lauderdale - é pequeno, calmo e a única coisa que me impediu de dormir foi a porcaria do ar condicionado (o vizinho de baixo, um polícia reformado do estado de Nova Iorque que vem para aqui por causa do frio e por "conhecer bem os transportes" também não ajudou muito, mas enfim).

A verdade é que hoje me vinguei com uma soberba sesta, escrevi o que tinha de escrever (não está pronto, mas está quase) e descobri que se não tivesse de voltar a St. Martin era muito capaz de me meter num avião para Lisboa e deixar Cuba para outra ocasião.

¡Qué vaya! De hoje a pouco mais de uma semana terei novidades sobre o trabalho em Belize, de maneira mais vale habituar-me às condições difíceis, chegar a Cuba e relaxar.

E visitar, claro, os portos onde o meu Pai carregava açúcar para Londres, cidade onde acabou por conhecer a minha Mãe e enterrar os sonhos tropicais. "Podias ter nascido cubano", dizia-me muitas vezes. "Se a tua Mãe não fosse tão bonita" (esta é uma das continuações possíveis. Variavam. É a minha favorita e é a que fica).

A mistura genética teria sido diferente, mas há uma metade de mim que vai gostar de conhecer um país onde poderia ter nascido. A outra metade vai porque não tem alternativa.

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Fui ao 7-11 comer qualquer coisa (estou definitivamente em modo viagem) com Nelson, um porto-riquenho que está aqui para tirar a carta de pesados. Não fala uma palavra de inglês. Também foi polícia, mas só por causa do pai, que deve ter morrido. É novo, e fala-me da corrupção em Porto Rico. Mais um mito que cai: pensava que o país estava isento dessas latinices.

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Amanhã é dia de viagem. O objectivo é Marathon, que fica já nas Keys e é mais barato - ao que diz Dennys - do que Key West.

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"Coisa é essa de que ninguém se deve espantar, porque nunca ali vimos senão ficarem na maior parte sepultados no mar os que muito labutam no mar, e por isso, amigos meus, o melhor e mais certo é fazer conta da terra e trabalhar na terra, já que Deus foi servido de nos fazer de terra".
(Fernão Mendes Pinto, Peregrinação).

Discordo, mas que é bonito é.

12.3.15

Diário de Bordos - Ft. Lauderdale, Florida, Estados Unidos, 12-03-2015

(Fotografia de Jorge Palhais)

O ponto de vista precisava de ser um bocadinho mais baixo. Porém não me é difícil ver-me chegar aqui num 40 pés a cair de podre e passar um bom par de anos a refazê-lo. Todos temos uma Mértola. A minha, por feliz coincidència, chama-se Mértola.

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De momento estou longe, e não só na geografia. Fort Lauderdale é uma das mecas americanas do yachting, que é o nome inglês de marinha de recreio - ou, como aparentemente agora se deve dizer, náutica de recreio (não sei qual a diferença, não me incomoda particularmente. Ao contrário de outras) -.

Não andei pelas marinas e não vou andar. Quero ir para Cuba e não é nestas que vou encontrar um embarque, é em Key West. Aqui venho parar dois dias, escrever um texto há muito prometido e devido e pôr ordem nas ideias.

Vou a Cuba em peregrinação. Vou a Cuba para fechar mais um caminho no dédalo que a minha vida é.

"Nomadiser, faire face, se perdre, s'accepter, persévérer, se souvenir, danser, jouer, ruser, élucider: l'homme qui parvient à réunir toutes ces qualités a toutes les chances d'avancer, même après d'innombrables erreurs, vers la réponse à la seule question qui vaille: "qu'est-ce que je veux devenir?" (Jacques Attali, Chemins de sagesse - Traité du labyrinthe).

(Este livro devia ser de leitura obrigatória desde a quarta classe, ou o que agora a substitui.)

Tenho a resposta a essa pergunta, finalmente. Há que continuar a fechar portas e abrir novos caminhos - nunca se esgotam.

(Há livros assim. Caem-nos no regaço, na vida como se houvesse um relógio comandado por um génio meticuloso até à obsessão, preciso ao milisegundo, sensato até à falta de imaginação. Chemins de Sagesse é um desses.)

Antes de Mértola há Belize. É preciso navegar para Oeste para chegar a Leste, Sul se queres ir para Norte. "Son identité [du nomade] n'est pas définie par un territoire, il ne peut la retrouver en regardant un paysage, en visitant un cimetière, en parcourant une maison. Ses racines se déploient dans des récits, des chants, des danses, des cérémonies,des techniques..."

........
"Léger, courtois, disponible, solidaire: telles sont les premières qualités du nomade".

........
Não deixa de ser curioso que este livro me tenha aparecido quando trabalho a Peregrinação. Mais um ardil do tal génio que tem o relógio nas mãos.

"Et retrouver celles [les qualités]  des explorateurs de dédales: la persévérance, la lenteur, la malice, la curiosité, la ruse, la souplesse, l'improvisation, la maîtrise de soi..."

........
De Fort Lauderdale ainda só vi a praia, onde dei um longo passeio hoje ao fim da tarde. E pouco mais: o programa é olhar para dentro, para trás, para a frente mas não para os lados. A verdade é que conheço poucas cidades americanas e as que conheço - com a notória excepção de San Francisco - parecem-me todas iguais. (E St. Augustine, mas essa é igual às outras cidades turísticas do planeta).

10.3.15

Diário de Bordos - St. Augustine, Florida, Estados Unidos, 10-03-2015 / II

Fui dar um passeio grande pela cidade - na verdade, procurar o sítio onde amanhã às sete menos um quarto da manhã apanharei o autocarro para Palatka (o nome é um programa só por si) e onde um pouco mais tarde apanharei o comboio para Fort Lauderdale -.

Percorro as cidades quando preciso de encontrar a maneira de sair delas...

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Um bocadinho Disneyland, não muito. Já vi pior, incomensuravelmente. Mas não consigo deixar de comparar ao nosso Algarve. Os americanos, esses incultos, conseguiram deixar uma cidade de 1513 mais ou menos como era. Penso em Lagos, Portimão, Albufeira... Que terão eles mais do que nós?

Mais dinheiro, menos fuçanga.

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Escrevo no local da American Legion, uma associação de veteranos. Não fosse as cadeiras e as mesas não serem de  plástico (mai-la escolha de bebidas) e podia estar em Portugal, numa associação de província.

A semelhança interessa-me muito mais do que a diferença. "Nada do que é humano me é estranho..." Nada do que me é estranho é humano?

Diário de Bordos - St. Augustine, Florida, Estados Unidos, 10-03-2015

É indesmentível que turismo remete para tours, voltas, passeios, andar: máquinas fotográficas, cartas, calor, curiosidade fingida, discussões com o cônjuge e respectivo mau humor à mão. Não alinho nisso. Sou um péssimo turista.

Prefiro de longe sentar-me num bar, ver a vida passar por mim e perguntar-me como seria se aqui (ou ali) vivesse. Provavelmente tão chato aqui como ali ou acolá. Não sei.

Graças à minha amiga M., e seguindo uma sugestão da lindíssima empregada do bar onde me encontro (JP Henley's - a senhora tem um boné e um sorriso como a Sam do They All Laughed, ) tenho um bilhete num comboio da Amtrak até Fort Lauderdale. Já só me fica a faltar andar num Greyhound. mas isso não vai decerto tardar.

E tenho um destino: vou para Cuba, se nada me distrair entretanto.

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Terei de me desfazer dos livros, provavelmente. Mandá-los para Portugal custa o preço de os comprar ou quase.

Que absurdo! E quão difícil vai ser. Acho que tenho de deixar já uma encomenda a uma das minhas livreiras favoritas, a Joana da Little International Bookstore: os livros vêm até mim, como a vida no pub ou a paisagem no comboio.

........
Há muito tempo que ando para ir a Cuba. Agora estou perto, tenho tempo... Seria estúpido esperar pela próxima oportunidade.

Rum, charutos e mulheres, acaba alguém de me dizer. Será? E barcos, também: ficar lá a trabalhar até Belize se confirmar (ou infirmar) parece-me um bom plano.

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Assusta-me voltar a Portugal. Os você (confesso que não sei porque me incomoda tanto. Parece-me uma paneleirice que não merece sequer um alçar de sobrolho, mas enfim), o tempo que parece não existir, a burocracia e respectiva indiferença... Não sei. Gosto de Portugal, mas a perspectiva de ser marciano no meu país assusta-me um bocadinho.

Para quê ser marciano quando posso ser um simples estrangeiro?

9.3.15

Diário de Bordos - St. Augustine, Florida, Estados Unidos, 09-03-2015

Consegui finalmente chegar a St. Augustine. Não parece, mas é obra; e já encontrei uma (provavelmente, a julgar pelo preço) espelunca para dormir (também é obra. Há um encontro de motas na cidade e está tudo cheio). Agora estou num café da beira-mar a beber Mount Gay. Custa oito dólares, mas é quase de certeza a maior porção de rum que alguém alguma vez me serviu num estabelecimento aberto tanto ao público como a tesos. E não me refiro apenas aos Estados Unidos.

A cidade é bonita. A mais antiga do país, ainda conserva os traços da cidade espanhola que já foi. Sinto-me na Andaluzia. Infelizmente é turística de mais para mim e  - isto parece maldição - o encontro de motociclistas (e ou de Harveys) provoca um barulho ensurdecedor.

Mas o calor voltou, o rum é (como Allah) grande e consigo ignorar tudo isso. A decisão de ir por estrada para baixo começa pouco a pouco a consolidar-se. Apetece-me ir à rodoviária e apanhar um Greyhound para qualquer sítio, o primeiro que saia amanhã de manhã.

Fechar os olhos e acabar de ler o Attali, que está cheio de pérolas, acho que uma editora portuguesa devia pegar naquilo e pagar-me para o traduzir, já. (O livro está cheio de coisas que me dizem respeito. Posso lê-lo de olhos fechados).

"Devant l'entrée, bouche d'ombre, le profane, l'ignorant ne voit qu'un tunnel semé de pièges, sans échappée. S'il fait demi-tour il se ferme la porte de la vie. S'il entre, s'il triomphe du vertige, des illusions, de la peur, s'il ne fait pas de noeuds en lui-même, s'il accepte de se servir de qualités très particulières, méprisées aujourd'hui, il découvrira que l'illusion initie, que la peur fortifie, que l'erreur grandit, que le vertige transfigure. ...

Pour ce faire il devra oublier les qualités tant vantés dans la société industrielle: la vitesse, la raison, la logique, la transparence. Et retrouver celles des explorateurs de dédales: la persévérance, la lenteur, la malice, la curiosité, la ruse, la souplesse, l'improvisation, la maîtrise de soi; qualités que les anciens inculquaient à leurs infants par des rites et des danses afin de leur rappeler que, s'ils avaient pu survivre jusque-là, c'est parce qu'ils n'avaient pas oublié leurs origines nomades et les vertus du voyageur."

"De fait, se perdre n'est jamais un échec."

"Pour le nomade, rien n'est jamais perdu, toute erreur peut se racheter. Chacun doit se nourrir d'espoir, tant qu'il est vivant. Il doit persévérer et, pour cela, espérer. «Il se pourrait que l'espoir n'existe que dans le voyage», disait étonnament Christophe Colomb."

"Faire pleinement le voyage de la vie, comme Ulysse; être sourd à toutes le menaces et aux peurs, comme Thésée; affronter la solitude de la souffrance, comme Pénélope: telles sont les manifestations de la vertu de la persévérance - patience, opiniâtreté, détermination."

"Léger, courtois, disponible, solidaire: telles sont les premières qualités du nomade." 

8.3.15

Diário de Bordos - Jacksonville, Flórida, Estados Unidos, 08-03-2015

Não vale sequer a pena falar da música, é como um gajo ir para Marte e queixar-se do frio ou da falta de oxigénio; nem das televisões: idem.

De resto o lugar é indubitavelmente agradável. Chama-se Dos Gatos. Escuro ma non troppo, decoração ecléctica mas equilibrada (tijolos rústicos, tecido urbano, iluminação cuidada), bom ambiente (isto é, as miúdas são giras). Até a música seria bem escolhida, se estivesse mais baixo.

Agora está a passar uma de que o Pedro gostava e passava muitas vezes, quando trabalhávamos no Marchand de Sable. A maioria dos clientes do Dos Gatos ou não era nascida ou era jovem nessa altura. O Pedro escolheu morrer como vivia e isso chateia-me e a verdade é que ainda penso nele muitas vezes, trinta anos depois oiço a porra da música (não me lembro do nome, creio que é de um grupo chamado Van Halen mas não tenho a certeza) e catrapumba, lá me vem o Pedro e a última vez que o vi, num restaurante chamado Castafiore, na Parede; e as vezes todas que os vi antes dessa, os copos e as farras que fizemos juntos.

A loja do teu Pai agora é um banco, Pedro, mas isso já tu o sabes de certeza, tinhas uma irmã e um irmão, não era? Não me lembro dos nomes deles. Só me lembro de ti e da tua estúpida morte e da tua estúpida vida e de quanto gostávamos de ti, a S. e eu. O Dos Gatos é como o bar do Marchand, ficas pelo menos a sabê-lo. Maior e adaptado aos tempos, mas é o mesmo.

Se um dia tiver um bar chamar-lhe-ei Buñuel, não terá música (ou excepcionalmente, baixinha, quase em surdina; ainda mais excepcionalmente ao vivo - um violino, um sax, uma harpa, uma flauta -. Música para ouvir). E terá um limite de idade. Inferior, claro. Talvez lhe chame Cresca e Apareça. (O Pedro nunca cresceu, mas seria admitido, se aparecesse, os caracóis negros revoltos e violentos, sorriso escancarado, histórias de mulheres e milhares de histórias).

........
O caso é semelhante ao do Maistre quando saiu da prisão: queria ir para casa mas os seus passos levaram-no para casa de uma Madame cujo nome não recordo. Eu fui à Western Union buscar dinheiro e queria ir para casa mas os meus pés, tal magnetos dirigidos por um íman inelutável levaram-me ao Candy Apple e respectivo Warres 2003 LBV de novo.

De lá ao Dos Gatos foi um salto e não precisei de íman nenhum.

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Mas isto foi ontem. Hoje fabriquei um dia estúpido como só eu sei fazê-los. Queria ir a St. Augustine e acabei num restaurante libanês de Jacksonville a beber arak e a comer hummus e a ouvir xaropadas - com excepção dos dois Leonard Cohen que passaram, isto deve estar num daqueles programas de mistura profunda, salta de Marianne para Júlio Iglésias (suponho. Era em espanhol) -.

O arak é mais barato do que o vinho. Há coisas cuja lógica me escapa completamente.

Vou gastar mais dinheiro do que queria, claro. Mas pelo menos posso voltar a pé para o hotel, uma espelunca que tem a vantagem de estar perto do centro.

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"Nomadiser reste l'apanage des plus forts parmi les sédentaires. Et la puissance appartient toujours à ceux qui circulent pour vendre ou conquérir, négociants ou guerriers, marins en tous cas."

Jacques Attali, in Chemins de Sagesse. Traité du Labyrinthe. Ed. Fayard, Paris.

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"I spent most of my dough on booze, broads and boats and the rest I wasted."

Elmore Leonard

........
Ontem fui dar um passeio à beira-rio. Arranjadinho, bonito, chato. Nem a nortada gélida conseguia devolver um bocadinho de vida àquilo.

7.3.15

Leituras, citações

"Nomadiser reste l'apanage des plus forts parmi les sédentaires. Et la puissance appartient toujours à ceux qui circulent pour vendre ou conquérir, négociants ou guerriers, marins en tous cas."

Jacques Attali,  in Chemins de sagesse, Fayard, 1996

Telefotos - Jacksonville, 2




Telefotos - Jacksonville





6.3.15

Leituras

Hoje comprei três livros na Chamblin's Bookmine (nunca vi uma livraria tão bem nomeada): uma revista literária local, uma antologia de poemas de Donald Hall (a selecção é feita pelo autor, creio); e o The Sheltering Sky de Bowles que ando para ler há três vidas. Na mochila tenho um Jacques Attali soberbo (Chemins de Sagesse. Traité du labyrinthe) e o Rimbaudemônio do meu amigo Celso, que só agora (tanto tempo depois! Desculpa, Celso) comecei a ler. No quarto do hotel ficaram os dois volumes da Peregrinação, O Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, o Rubay'iat.

Nunca consegui ler os livros todos que tenho. Gosto de lhes tocar, de os folhear, de ler dois ou três parágrafos aqui e ali. Gosto de os levar comigo como uma promessa, ou um peso. Não os leio, mas não os abandono.

Nunca consegui ler todos os livros que tenho, como não amei todas as mulheres que tive.


PS - Não foi na Bookmine, foi na Uptown. Mas podia ter sido.

Diário de Bordos - Jacksonville, Florida, Estados Unidos, 06-03-2015

É pântano, é delta, é água por todo o lado e terra em tudo quanto é água. É uma luz fascinante, vem de baixo, reflectida e filtrada pela água. Quando não se vêem a água ou a terra vêem-se árvores e mais árvores, separadas apenas pela ténue linha de alcatrão na qual nos deslocamos, silenciosamente (o silêncio é como a pele desta paisagem e a música desliza por ele e não fica).

É desta paisagem que me despeço. Cada vez me dou pior com a incompetência e ela comigo.

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Peço uma cerveja no detestável restaurante ao qual vim jantar. A jovem empregada, vestida como se trabalhasse num prostíbulo (é o uniforme, estão todas assim) pede-me a identificação. Pergunto-lhe se está a brincar comigo, diz que não e aponta para um badge que tem ao peito.

Não o vi, mas parece que é norma obrigatória da casa. Tal como as mamas,  suponho. Estão todas numa letra bastante avançada do alfabeto.

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Apanhei uma mocada. Literalmente: fui ao Museum of Contemporary Art, acronimamente MOCA. Não é grande coisa, mas descobri uns retratos de Picasso que não conhecia – “Retratos Imaginários”, feitos aos oitenta e muitos anos em cartão de embalagem, uma criatividade e força e alegria de fazer inveja a muitos artistas sessenta anos mais novos -; uma senhora chamada Tara Donovan, que faz esculturas com palhinhas – sim, palhinhas daquelas que os Americanos põem em tudo quanto é copo – e consegue não ser ser circense. Coisa que não está, infelizmente, ao alcance da maioria dos artistas contemporàneos. Descobri ainda um fotógrafo chamado Paul Graham, um inglês da minha idade que consegue fazer fotografia a partir de fotografia documentária, coisa que é mais difícil do que encontrar um bom vinho do Porto a preços decentes nos Estados Unidos.

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E acabou exactamente agora de me acontecer. A simpática recepcionista do museu aconselhou-me um restaurante. É visivelmente uma coisa da moda onde se come muitíssimo bem e – oh milagre – cujo vinho a copo mais barato é um Warres LBV de 2003. Cinco dólares. É difícil de acreditar, mas é verdade.

Isto é indescriptível, tanto mais que os ovos da entrada (“Deviled Eggs” e a sopa de tomate “Candy Apple Bisque”) estavam ao nível do LBV: saborosos, subtis, complexos e ligeiramente adstringentes.

O almoço vai custar-me uma fortuna. Normal, para um tesouro.

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A sopa de tomate da casa leva Madeira e Boursin.

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Este país limita a velocidade mas não a venda de armas. E avisa as pessoas de que as chávenas de café estão quentes ou, como hoje ouvi, que o comboio está em movimento, não vão elas pensar que estão na CP e o comboio está em greve (o anúncio continua com “agarrem-se, por favor”.  Estas preocupações com a infantilidade das pessoas e com a sua incapacidade para tratar de si próprias não se aplica, claro, às armas).

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Jacksonville é um destino turístico desde 1840, dizem os painéis informativos na margem do rio. O qual já teve mais tráfico de passageiros do que – imagine-se – o Mississipi, continuam.

Não sei. Cada vez que penso que não poderia nunca viver nos Estados Unidos acontecem-me coisas destas. Vou a um museu confirmar a minha ignorância em arte moderna, almoço num restaurante que poderia estar em Paris e descubro uma livraria cum café chamada Chamblin's Bookmine que só por si mereceria uma visita à cidade (não sei se existe desde 1840, não visitei o site. No que me respeita, existe desde e para sempre).

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Não pago impostos mas compro livros e discos numa livraria e bebo Warres LBV num restaurante que decerto os pagam.

Se não pagassem beberia decerto mais vinho e compraria mais discos e livros, mas isso é outra história. Ou lamentos de outro muro.

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E para terminar este dia reconciliador fui passear no Jacksonville Water Taxi. A história é americana, cem por cento: pergunto ao capitão do bote (um cata de quarenta pés com dois fora-de-borda de 150 cavalos cada e capacidade para talvez trinta pessoas) a que horas larga. Responde-me com o amis amplo e bonito e aberto sorriso do mundo "assim que o meu tripulante chegar".

Expliquei-lhe que queria ir ver uma marina, entretanto o tripulante ("mate") chegou, explicou-me que esperariam por mim e de repente apercebi-me de que teria o barco por minha conta. Não desembarcquei em nenhuma das marinas (há très, todas vazias) mas dei a volta toda, à conversa com o mate.

O dia está cinzento, chuvoso e frio. Mas a cidade é tão bonita, vista do rio.

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E o embarcadouro é ao lado do pub onde ontem bebi um Tullamore Dew e hoje bebo Smithwicks à pressão, a mãe de todas as cervejas.

(Suponho que seja por causa da Smithwicks que a Heineken afirma ser "provavelmente a melhor cerveja do mundo". Não quer cair no rídiculo de alguém mencionar a Smithwicks),

Que ela não diz nada, claro. Não precisa. Basta-lhe existir para ocupar os três primeiros lugares do pódio mundial de cervejas.

3.3.15

Soltas mas elaboradas

São quase onze da noite, toda a gente dorme, o rum é uma merda qualquer de Porto Rico, uma ilha da qual tanto gosto e depois faz-me isto; salto de Ahmad Jamal, gosto do ritmo, da energia, da velocidade a Closer (vou à música buscar o ocidente do ocidente e ao rum o sul do sul).

Estou cansado, cheio de feridas em tudo quanto é corpo, não lavei a roupa.

Antes e depois do sol houve nevoeiro, mas o sol durou mais.

Não quero estar em lugar nenhum, com a possível excepção daquele para onde vou.

O supermercado onde fazemos as compras é um supermercado de luxo, "topo de gama" (entre aspas: topo de gama é a expressão mais patética daquela gente patética). Tem tudo de todo o lado menos de Portugal. Minto: tem dois ou três Portos. Se conseguisse estar-me-ia nas tintas para Portugal.

Também me estou nas tintas para os Estados Unidos, note-se. Parece um país sem adultos. "Atenção ao degrau", "A chávena pode estar quente", " Veja onde põe os pés", não faça isto, aquilo ou seja o que for. Que se fodam os avisos mai-los americanos. Precisam que lhes digam que a chávena de café está quente?

O trabalho nunca mais acaba: cada passo que damos para a frente leva a dois para trás. Quero sair daqui.




2.3.15

Fado longe

O Rão não vai saber isto de certeza. Mas numa noite brumosa e fria, numa pequena ilha da Flórida chamada Amelia Island alguém me pediu que passasse uma música da minha cidade natal.

Escolhi Fado Bailado.

Manhã de nevoeiro



)Fotos de James Simmons)

Diário de Bordos - Amelia Island, Florida, Estados Unidos, 02-03-2015

A tripulação ficou completa sexta-feira passada; hoje fez sol e calor, pela primeira vez desde que cheguei; fui ao galope do mastro; estou cansado e morto de fome; e um bocadinho farto destas reparações que não acabam. Chateia-me ter de voltar a St. Martin por causa de uma porcaria de um banco.  Não consigo encontrar trabalho em Portugal. Não sei se vá ao Canadá no verão, como tinha previsto.

Não sei nada, na verdade. Trabalho, bebo rum, janto e vou para a cama. Se isto é uma vida.

É. Da qual gosto apesar de dias como o de hoje em que estou farto e me falta energia para contar tudo o que queria contar, faz sol e calor pela primeira vez numa semana e oiço Something Else e Footprints com um puto de vinte e seis anos enquanto espero pelo jantar e bebo Mount Gay..

Não largamos antes de sábado e se largarmos sábado é uma sorte.

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Ontem fomos descobrir o centro histórico de Fernandine Beach. Fui ao bar mais antigo da Flórida. Abriu em 1903 e nunca fechou, "nem durante a Proibição", esclarece o barman. Depois fomos jantar ao Peppers, um excelente restaurante mexicano. Tão bom que pela primeira vez em muito tempo consegui comer o molho picante: merecia o adjectivo.

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O mastro faz vinte e seis metros de altura, quase um metro no diâmetro maior e a cadeira é uma daquelas antigas, uma prancha de madeira estreita e sem apoio para as costas.

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Tudo é antigo no barco. Parece que voltei aos meus inícios na vela. Só que agora a coisa tem sessenta pés, não tem trinta e seis.

A melancolia é uma farsa, às vezes.

1.3.15

Viver, escrever

De dia trabalho e à noite vivo. É muito difícil escrever nestas circunstàncias.