31.5.15

Matryoshkas

Há tempos dentro do tempo. É isso que o torna tão atraente, tão sedutor.

30.5.15

Tempos tempo

Prefiro o passado e o futuro. O presente é uma fábrica de cansaços e um manancial de expectativas. Dúvidas. Um candeeiro a petróleo que oscila como se tivesse vida - tem: o mar por baixo e o vento por cima -. Um navio encalhado num paraíso tropical - já alguém ouviu falar de um paraíso polar? - Sibelius massacrado por Gould. Ressuscitado - cada nota com um pingo de chuva -. Uma mulher a quem se diz adeus antes de se ter dito olá, estranha assimetria a acrescentar à diacronia da noite. O rum é Flor de Caña, tem a cor e o sabor da luz.

Uma nuvem cheia de chuva passou mas fica porque Gould continua às voltas com Sibelius, uma nota de cada vez. O candeeiro a petróleo não pára de abanar, completamente fora de ritmo. É preciso dar sentido ao tempo, como se fosse possível dar ordem ao vento.

Penso em mitos. Que seria da humanidade sem eles? Human kind can not bear too much reality. Penso nos tempos do tempo: muito mais do que a soma dos meus passados sou a soma dos meus futuros. A diferença entre o passado e o futuro é que um é uma prisão e o outro também. Les prisons se suivent mais ne se ressemblent pas. L'on saute de prison en prison avec la joie du Prisonnier qui aurait réussi à s'échapper pour tomber dans la prison d'à côté. Ao contrário do que se poderia pensar a felicidade não está entre as prisões, mas nelas.

Nas assincronias: num candeeiro que se abandona sem ritmo. Ou melhor: a um ritmo que não se vê, só ele sente. Os tempos do tempo: dois corpos deitados lado a lado. Dois passados, dois futuros, por mais que se pretenda o contrário. Duas prisões. Duas felicidades. Um tempo, muitos tempos.

(Para a ACR, maestra ex-tempi).

Mais uma reedição - Mundo flutuante

Viva a preguiça.

Poemas no mundo flutuante

Que me perdoem as feministas e os talibans da língua, mas uma mulher condutora de eléctricos é uma wattmanWattwoman seria, quando muito, uma personagem de Beckett.

Não é por aqui, eu sei, que devia ter começado a história. Assim não faz sentido. Eu vinha para casa no 15.

Melhor assim. Eu vinha para casa no 15. A wattman (uma jovem bonita, de longos cabelos pretos e sorriso claro) anunciou uma paragem. E logo a seguir, sem qualquer transição, começou a dizer Wasteland:

"April is the cruelest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.
Winter kept us warm, covering
Earth in forgetful snow, feeding
A little life with dried tubers.
Summer surprised us, coming over the Starnbergersee
With a shower of rain; we stopped in the colonnade
And went on in sunlight, into the Hofgarten,
And drank coffee, and talked for an hour.
Bin gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.&
And when we were children, staying at the arch-duke's,
My cousin's, he took me out on a sled,
And I was frightened. He said, Marie,
Marie, hold on tight. And down we went.
In the mountains, there you feel free.
I read, much of the night, and go south in winter.


A maioria dos passageiros reconheceu-o imediatamente; claro. Estávamos todos siderados: a senhora dizia o poema num inglês primoroso, oxoniano, de cor. "Winter kept us warm", por exemplo; saiu perfeito. Podíamos ver o inverno do qual acabamos de sair (um bocadinho aos soluços, reconheça-se) e pensar "sim, estamos quentes".

Quando chegou a "I read, much of the night, and go south in winter" foi a apoteose. Levantámo-nos todos, batemos palmas calorosamente, e continuámos:

"What are the roots that clutch, what branches grow
Out of this stony rubbish? Son of man,
You cannot say, or guess, for you know only
A heap of broken images, where the sun beats,
And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief,
And the dry stone no sound of water.


Foi muito bonito; a jovem senhora conduzia e dizia o poema ao mesmo tempo. Nós estávamos embalados: de pé, agarrados uns aos outros, declamávamos ao ritmo dos carris e dos abanões do eléctrico (que são, devo dizer, um dos seus grandes encantos) braços pelos ombros uns dos outros; "Who is the third who walks always beside you?" e olhávamo-nos para saber quem eram os terceiros.

Não havia terceiros. Nunca ninguém enganou ninguém naquele veículo. Celebraram-se vários casamentos entre Alcântara e a Praça da Figueira (enfim, dois; a verdade é mais pequena quando usamos números em vez de adjectivos, vá lá saber-se porquê) e nenhum divórcio. C'est dire.

Quando chegámos à Praça de Figueira desci e fui cumprimentar os pedintes, toxicómanos,skaters e prostitutas que por lá passam os tempos livres (ou ocupados, neste último caso, que esperar por um cliente também é trabalho, diga-se o que se disser). Nada disto teria importância se fosse frequente. Mas não é. Raramente apanho wattmen ou condutores de autocarro que conhecem Eliot. O mais das vezes ficam-se por Ary dos Santos, Natália Correia ou mesmo Manuel Alegre, não desfazendo.

Wasteland num dia de sol como hoje, com os passageiros numa inacreditável comunhão espiritual foi um dos grandes momentos da minha vida. Por isso não fui para casa e acabei a festejar no bar da Lourdes. Não sei se conhecem. É um bar do mundo flutuante, no primeiro andar de um edifício que agora é uma catedral mas antigamente era uma cervejaria, ou uma tipografia, ou assim. Confundo muito as coisas, coitado de mim. Por exemplo: confundo-te com um tall ship, e contudo sei que não passas de uma chata. Já com a Lourdes é ao contrário: parece uma chata e é um tall ship.

Bom, isto tudo para dizer que hoje comprei umas bocas-de-leão, pujantes, lindas, virginais (não sei porque as acho "virginais". Acho que gosto do som). Foram-me aconselhadas por uma senhora por quem não estive apaixonado nem dois meses, ou três. Deviam mudar-lhes o nome para "bocas-de-leoa", mas reconheço que isso é apenas porque gosto de leoas, sempre gostei, desde pequenino - coisas da mãe, de certeza; e porque cada vez que olho para elas tenho vontade de lhe voltar (refiro-me à senhora, naturalmente; não à mãe) para os braços, ou as garras, ou os dentes, ou os olhos, ou o sorriso, ou o humor, ou a pele. Não sei. Não sei nada, nunca. Nunca mais saberei nada. Mau.

Enfim. Já alguma vez apanharam um piloto de cacilheiros que recitasse um poema de Miguel Serras Pereira que é assim:

"Para fazer pairar
ao longe e ao alto
um tremular de mastros
na solidão do olhar

e para rasgar no corpo
a seara antiga
onde o tempo amou
e me deitará contigo

é que escutei na sombra
a vibração sem voz
da tua voz nas ondas
onde ecoa a morte
" ?

Há um ou dois, só, e não é muito fácil ter a sorte de atravessar com eles o Tejo. Logo a seguir há outro poema,

"O navio é o mar a bordo de quem nasce
a bordo de quem morre o mar é o navio

Jamais os dois navios porém se reconhecem
Olhe-os quem morre ou nasce

ou só o mar ainda
de que outros insistentes olhos de ninguém?
"

Há outros, mas os pilotos dos cacilheiros não os conhecem todos, sobretudo se estiver um dia de verão e a embarcação estiver cheia de suecas a caminho da Caparica. Tudo o que flutua é um mundo, mas o mundo não flutua. E as suecas tendem a fazer-nos esquecer a poesia; a nós e aos pilotos de cacilheiros, claro. Já quanto ao peso do mundo não sei se têm influência.

Depois é isto. Olho em volta e só oiço música. Escuto, e só vejo o mundo. Estendo a mão e ninguém a colhe. Regresso a Thomas (de onde nunca devia ter saído, há tanto tempo):

"Here in this spring, stars float along the void;
Here in this ornamental winter
Down pelts the naked weather;
This summer buries a spring bird.
...
"

Ou

"...
Seaports by a drunken shore
Have their thirsty sailors hide him
...
"

Dylan sabia o que é uma costa bêbeda, ou um marinheiro sedento. Eu não. Sei de ti, um pouco. Tomara não saiba mais. Sei de muitas outras. Sei de momentos que nos mudam o rumo (como se tivéssemos um rumo. Enfim. Isso é outra história). Sei de vidas que mudam por causa de um momento. É verdade. Sei de momentos que perduram uma vida (tenho dois desses, entre muitos outros). Sei de momentos que explicam uma vida. Sei de vidas que procuram momentos.

Sei de eléctricos onde se ouve Eliot; de cacilheiros de onde se vê o mundo; de pessoas com quem se reconstrói o universo; pouco mais.

(Para a Mariana e o Lourenço, como se. Com um beijo e dois abraços).

Misturas

Ausência de sono, Sibelius por Gould, rum Flor de Caña e chuva.

Diário de Bordos - Isla San andrés, Colômbia, 30-05-2015 / II

Voltaram os dias cinzentos, nebulados, chuvosos (mais ou menos: comparado com Bocas isto é um deserto). É forçoso e intrigante reconhecer que são os mais interessantes, os mais atraentes, mais complexos. As cores ganham outra vida, mais intensa; e está menos calor. As matizes são mais variadas e visíveis.

San Andrés cidade não é bonita; sem praia tem pouco de interessante, excepto claro para quem se interesse por roupa, perfumes e marcas: Lacoste, Tommy Hilfiger, Hugo Boss; ou, na electrónica, Canon, Sony, Samsung, LG.

De roupa não sei, percebo pouco. A electrónica não é interessante: nem boas máquinas fotográficas nem bons computadores. Há écrans gigantes, máquinas fotográficas básicas e pouco mais. E electrodomésticos,  montes deles. Não sei como as pessoas os levam: frigoríficos, máquinas de lavar, congeladores.

Todas as lojas têm as mesmas coisas. Imagino que queiram fazer concorrência a Colón, mas estão muito longe. Colón também, de resto.

........
A rapariga é gorda e está vestida de cor de rosa - um vestido cai-cai e uma tiara com flores de plástico, pequenas, no cabelo -; o rapaz é alto, magro e musculado. Estão sentados na mesa ao lado da minha.

Cada um olha para o seu telefone. Ele tem o cotovelo na mesa e olha para cima; ela tem-no ao nível das mamas e olha para baixo.

Tento abafar a música do Beer Station com a da Ana, mas não funciona. Vou para bordo jantar.

........
"Sôbolos rios que vão
Por Babylonia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião,
E quanto nella passei.
Alli o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E tudo bem comparado,
Babylonia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.

..."

"On n'avance pas vers la connaissance. On change de dogmes, c'est tout."

Curioso como a incapacidade de aderir a dogmas é vista por muita gente como estupidez.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 30-05-2015

Don Silvério atirou-se finalmente ao pau de bujarrona: já tem forma. A continuar assim quarta ou quinta está pronto. Aquilo que eu temia vai acontecer: vou ficar aqui parado à espera da coisa mais fácil de reparar: o braço hidráulico do leme.

E Lisboa aqui ao lado: duzentas milhas e oito ou nove horas de avião.

........
Estive em Jacksonville em Março, creio. Há dois meses. É um triste sinal dos tempos ver que os meus sapatos Old Navy já precisam de ser substituídos. Se navegasse como deve ser durariam muito mais tempo, claro.

Seja como for desta vez vou comprar sapatos mais caros. A gama dos vinte dólares dura pouco, por muito que navegue. Fica quase nova num instante. San Andrés é um duty free: a escolha é vasta, os sapatos estão expostos nas montras e posso antever uma compra rápida. Mais uma semana e estou pronto. Felizmente não preciso de mais nada. Andar por essas porcarias de lojas à procura de roupa teria sido um sacrifício demasiado grande.

........
Lei Serpa da manutenção marítima: o que não gastar hoje em manutenção gasta a triplicar em reparações. É uma lei que precisa de algum tratamento popperiano, como todas. Mas aposto que a sofrer alguma alteração será para cima, não para baixo.

........
Sábado. Estou em San Andrés há três semanas.

Reedição - O cerco

No Burundi não tinha Diário de Bordos. Não hava sequer blogs, ainda. E se houvesse não teria tempo para escrever: foi dos períodos da minha vida em que mais trabalhei.

Mais tarde escrevi algumas dos episódios que mais me marcaram. Hoje reencontrei este, porque oiço as Suites Inglesas e porque falo com uma senhora bonita e porque me lembro deste dia de uma forma que nunca mais esquecerei.

Aqui fica mais uma reedição, a melhor arma da preguiça, e da memória [ligeiramente editado, como sempre]:

O Cerco

A felicidade, suspeito, é como as bruxas: não sabemos bem o que é, mas lá que ela existe, existe. Já fui feliz, muitas vezes – mas muitas menos quantas fui infeliz, e durante menos tempo, suponho –.

No Burundi vislumbrei a felicidade, ou pelo menos uma das suas formas: era aquilo que me perseguia quando eu, desrespeitando um pouco as normas de segurança seguia a cem à hora no meu 4 x 4, as Suites Inglesas do Bach e o ar condicionado no máximo. A pista era larga, bastante larga, e aquela zona estava mais ou menos deserta. Estava a tratar de uma distribuição no sul do país e tinha, como de costume, deixado o meu condutor em casa: não há pior condutor de 4 x 4 que um chauffeur africano; exceptuando, claro, os etíopes. Mas esses são uma excepção, não a norma. E a verdade é que não gostava de andar pelo mato com um Tutsi que dizia, quando eu lhe perguntava se trazia os documentos: "o meu passaporte é o meu nariz!".

A ideia era fechar um programa que se arrastava havia anos para nos podermos concentrar no Norte, onde estavam as verdadeiras urgências – e onde não estava a felicidade: a primeira vez que vi um campo de refugiados chorei; e ainda hoje, anos passados, não consigo deixar de me emocionar quando penso naquelas filas e filas ininterruptas de barracas de dez metros quadrados, cobertas com os plásticos de cujo envio para os campos eu era responsável –. Quando vemos uma família africana, pobre, esfarrapada, num campo de refugiados não podemos imaginar como poderia ela estar pior ainda: face àquela desolação que subia pelo ar com o fumo das inúmeras fogueiras, a ideia que aquela gente tinha fugido de um lugar, a casa deles, onde seria ainda mais miserável não me abandonava. Até onde pode ir a miséria; ou a felicidade?

Como habitualmente, o programa no sul do Burundi não estava a correr tão mal quanto poderia ter corrido nem tão bem quanto planeado: o projecto inicial era fazer uma distribuição “just in time”, fazendo os camiões sair de Buja com a assistência necessária para cada dia. As listas de beneficiários já tinham sido actualizadas: ao todo, vinte e seis mil pessoas, distribuídas por cerca de uma dezena de pontos de distribuição. Eu tinha a assistir-me uma rapariga suíça, uma pessoa extraordinária, dos seus cinquenta anos, bonita e risonha. E corajosa, também.

O Burundi é um país lindo. O norte é montanhoso e o sul é constituído por um planalto que domina a interminável savana e a parte sul do Rift. Era nesse planalto que a distribuição ia ter lugar. Por vezes parava num ponto do qual se via a falha e a savana amarela porque era a época seca; no carro, o Gould mastigava o Bach como pastilha elástica e fazia balões com ele, e a vista seguia a falha até ao fim do mundo, até ao vazio, e eu pensava que era por ali que tinha nascido a humanidade. E perguntava-me porque está África condenada? Porque é que amar África tem de ser como amar uma mulher bonita e infiel, que traz mais dor do que prazer? E porque é África tão bonita, tão infinitamente bonita?

Naquele dia tínhamos combinado com a tropa estar no ponto de distribuição às oito da manhã. Era um dos pontos com mais beneficiários, cerca de três ou quatro mil. O material tinha sido deixado de véspera numa cabana, da qual a Heidi (era o nome dela), e eu o tínhamos tirado quando chegáramos de manhã cedo. As pessoas faziam um grande círculo à nossa volta, enquanto nós arrumávamos as coisas: cobertores, jerrycans, baldes, sementes, etc. A tropa tardava a chegar, mas nós não estávamos assustados: o exército burundês é um dos melhores que conheço em África; se bem o diâmetro do círculo feito pelas pessoas à nossa volta fosse diminuindo aos poucos e poucos, calculei que havia tempo de sobra para os soldados chegarem. Começar a distribuição sem eles seria, de qualquer maneira, uma forma particularmente medonha de suicídio: um jerrycan vale uma fortuna, naqueles países, e ali estavam oitocentos ou novecentos, mais os cobertores, baldes, canecas, sementes, tudo parte de um “goodbye package”, guardado por quatro pessoas.

Já eram quase nove horas. O círculo à nossa volta estava perceptivelmente mais pequeno, e da tropa nem sombra. Disse à Heidi que ela tinha que ir buscar os soldados.
- Vai tu – respondeu ela, - eu não sei onde é o quartel.
- Isso está fora de questão, não te vou deixar aqui sozinha.
- É muito mais lógico ires tu: não só sabes onde é o quartel mas também guias mais depressa do que eu. Despacha-te.

Não valia a pena continuar a discussão. Eu já trabalhava com ela havia alguns dias e sabia que era teimosa; além de que os argumentos eram válidos: uma mulher bonita e loira perdida por aquelas paragens corre alguns riscos. Fui para o carro, tentando aparentar toda a calma deste mundo. O dia estava lindo: o azul do céu combinava-se perfeitamente com o amarelo da savana e o pouco verde que restava em alguma árvores. A mole de gente era cada vez mais compacta. Não havia muito barulho: pouco mais do que um murmúrio, que se perdia no cantar dos pássaros; o que em África é inquietante, porque nunca há silêncio, nunca. Estimei que, àquele ritmo, teria uma hora – se eles não acelerassem agora que o único branco se tinha ido embora e a tropa ainda não chegara.

Não liguei o ar condicionado: queria toda a potência que o Land Cruiser tivesse. Mas pus a cassette do Gould, de resto a única que tinha. A música barroca adapta-se especialmente bem aos caminhos de terra, às picadas. Ainda ontem o verifiquei, na serra de Sintra, com o meu carro: descobri um sítio que, inexoravelmente, me trouxe o sul do Burundi à memória – se bem que a vista fosse sobre Cascais e o mar, não sobre uma falha e a savana. Mas as estradas estavam igualmente cheias de buracos, e a paisagem era linda, e a música de Salieri moldava-se aos altos e baixos do carro. E, como no Burundi, a felicidade perseguia-me, vinha atrás de mim, escondida na nuvem de pó, constituída por uma mistura de beleza, solidão, harmonia.

Talvez o romântico seja melhor para o alcatrão, não sei. Naquele dia acelerei como nunca tinha acelerado; a picada era “chapa ondulada” e a música mal se ouvia. O pó vermelho dava-me a impressão de avançar à frente de um incêndio. E não conseguia deixar de pensar na Heidi e no círculo de beneficiários que se apertava em redor dela. O carro estava coberto de pó e cheio dele: aquela poeira vermelha penetra em tudo quanto é frincha, e o Toyota estava encarnado por fora e por dentro.

E eu cada vez mais ansioso: nunca conseguiria fazer o trajecto de ida e volta numa hora. Poucos meses antes tinha ido ao enterro de um colega, dezanove anos, assassinado porque se pusera à frente de uns atacantes para cobrir uma personalidade (provavelmente um presidente de câmara) que estava em casa dele. Pensara que não o matariam, a ele, funcionário da ONU. Mataram-no com sete balas, e a vítima designada nem uma beliscadura teve. O meu colega morreu de hemorragia: ficou horas a esvair-se em sangue, a saber que ia morrer. Tinha dezanove anos. Será possível, aos dezanove anos, saber-se que se vai morrer? No dia seguinte fui ao aeroporto receber o corpo dele, embrulhado em sacos de plástico, porque onde eles estavam não havia mais nada para o embrulhar. Uma simples transfusão tê-lo-ia salvo, nenhum orgão vital tinha sido atingido. Ia conduzindo, via o círculo a reduzir-se, e imaginava as perguntas do inquérito:
- Porque a deixou lá? Porque não foi ela buscar a tropa? Porque foi um cobarde? Porque fugiu? Porque a deixou lá? Porque fugiu? Porque fugiu? Porque foi um cobarde? Como é, ser cobarde?

Cheguei, finalmente, ao quartel. O capitão explicou-me que não tinham ido porque no quartel só havia um carro, e fora cedido para um enterro “de uma pessoa que morrera e já não tinha o carro dela”. Estavam à minha espera, mas não tinham maneira de contactar comigo. Enchi o Toyota de soldados, tantos quantos cabiam, eles e as kalashes e as granadas e as facas de combate, compridas como espadas pequenas. O Land Cruiser era grande, mas os Tutsis também: o carro parecia rebentar. No regresso não pus música, porque sabia que eles não gostariam, nem ar condicionado, porque ainda precisava de toda a potência do motor. Tentava falar com o capitão, e explicar-lhe a situação, e não pensar no cheiro de mais de uma dúzia de soldados dentro de um carro fechado e não pensar nas granadas e nas kalashnikovs e na Heidi, e nos colegas locais, e na comissão de inquérito e de como me sentiria se lhe tivesse acontecido qualquer coisa, como sobreviveria.

Quando chegámos, o círculo à volta dos meus colegas tinha pouco mais de vinte metros de diâmetro. Os soldados tiveram dificuldade em atravessar aquela massa compacta de gente apesar das coronhadas que distribuíam generosa e violenta, indiscriminadamente. A Heidi sorriu quando me viu. Ainda à coronhada, afastámos as pessoas para noventa ou cem metros e começámos a distribuição.

Continuo sem saber o que é a felicidade, mas sei que a sorte é parte integrante, essencial dela. E ser feliz é quase tão difícil como ganhar à lotaria. O melhor é não desperdiçar esses momentos raros, únicos, valiosos e aceitá-los como o que são: presentes de um deus perverso, capaz de se esconder num país devastado pela guerra, numa picada de terra vermelha, no horror.


Cascais, 05.06.2002

29.5.15

Jantar improvisado - Frango em iogurte de tapioca

O começo é sempre o mesmo: deixar o frango a marinar em limão (ou neste caso lima) e sal; e também neste caso mais do que o habitual: ficou um dia. Continuou sem mudanças; gengibre a confitar, frango a dourar no azeite do gengibre e flambeado com rum.

Foi aqui que a normalidade divergiu: na frigideira do frango e noutro azeite (mas também do gengibre) dourei um montão de salsa picada fininha; à qual a seu tempo juntei o gengibre agora confitado.

Uma vez tudo isto feito, foram todos para a panela, mai-lo jalapeño verde (infelizmente pouquíssimo picante). Cobri tudo com iogurte de tapioca, juntei pimenta, paprika, cominho, um bocadinho de caril e dois ou três cravinhos.

Está a cozer. Vamos ver, como dizia o ceguinho.

Isto tudo acompanhado primeiro pelas Vésperas de Rachmaninov - estou mais ou menos em choque, a minha versão favorita está estragada também -; depois pela Ressurreição de Mahler e agora, enquanto escrevo, por uma banda espectacular que devo, uma vez mais, à Ana Cordeiro Reis.



(Eu devia ter começado por avisar que esta receita suja muita loiça...)

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 29-05-2015

O fornecedor alemão das peças para o braço hidráulico recebeu o dinheiro, graças à ajuda da Nike. Agora trata-se de organizar o transporte, coisa que o senhor simpaticamente declinou fazer: sabe o trabalho e a chatice que são. A primeira escolha é a DHL. Não respondem. A segunda é a UPS. Passo horas a preencher as múltiplas páginas do site para encalhar numa mensagem de erro: "credit card's billing address". A pergunta é fácil de responder - o barco tem um cartão de crédito (que só consigo usar para pagamentos à distância porque o armador se esqueceu do PIN). Infelizmente a página não fornece maneira nenhuma de introduzir o dito endereço. E a UPS tão pouco responde aos mails.

A modernidade infelizmente varia com as áreas geográficas. Na Europa com um telefone resolve-se o assunto. Aqui não: os telefones colombianos tanto da UPS como da DHL ou não funcionam ou não respondem. Há sete horas de diferença com Alemanha, pelo que a partir das oito ou nove da manhã nada a fazer. As chamadas internacionais custam uma fortuna. É assim que o tempo passa: a lutar contra a realidade e as múltiplas representações que dela faço.

.......
Afinal a pergunta simplória de ontem ficou sem resposta: estava com demasiado sono e fui dormir. Ou melhor: para o beliche. Dormir só às duas da manhã. Não me queixo: acabei o Lord of the Flies, um livro que devia ser obrigatório para todos os que põem em dúvida o pessimismo antropológico e as virtudes da civilização e da sociedade organizada.

Tal como o projecto de fazer turismo: fica para depois. Estou outra vez a contar tostões e prefiro contá-los nos sítios que me são familiares. Hoje por exemplo vim beber um rum à Kristhal Delicatessen. Já não têm Zapata 15 Anos, mas propuseram-me outro quase tão bom. O preço é o mesmo. Mas o sítio não é, definitivamente, tão agradável como o Lupita ou o Beer Station. Só tem uma vantagem: a música quase não se ouve.

O ar condicionado e os compressores dos vários frigoríficos cobrem-na por completo.

........

28.5.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 28-05-2015

Para picar o simpatiquíssimo dono do Café de la Plaza tem uma tablita com queijo, azeitonas, jámon disto e daquilo. Interrompo-o ao segundo jámon: queijo e azeitonas, por favor.

"Só tem queijo amarelo e mozzarella". Óptimo, venga.

Nada há a dizer do queijo amarelo. Era amarelo e tinha uma ou duas coisas em comum com queijo: a consistência, o aspecto e, muito muito vagamente o sabor.

Já a respeito da mozzarella tenho uma pergunta: porque não chamar-lhe Gruyère? Ou Brie? Ou queijo da Serra, de Serpa, flamengo, de cabra, ovelha, galinha, Parma, étivard (meu Deus, étivard)? É que tem tanto em comum com a mozzarella como tem com qualquer um dos outros citados.

Porém o momento é tão agradável que não ligo às denominações e como a mozzarella como se fosse queijo, o queijo amarelo como se fosse bom, o vinho como se não fosse medíocre (as azeitonas são esplêndidas) e estivesse em Brighton, Palma de Maiorca, Mértola, Sète, Cascais, Lisboa ou, desculpem a múltipla redundância, num paraíso qualquer.

........
Hoje fui à praia. Não gosto de praia por causa da areia, das mulheres gordas e feias em string e pela complicação logística: toalha, fato de banho, mudar de roupa. um sem fim de chatices.

Mas não sou absolutista nem nos gostos nem nos desgostos; e praia nestas condições acaba por ser agradável: um longo longo mergulho e uma sesta na areia entre duas piñas coladas, um breve moto-táxi e um duche. Água quente e transparente numa praia bonita e a cinco minutos da marina.


Amanhã visto a camisola do turista e vou a sítio chamado San Luis, no sul da ilha. Qase São Luis, não é?, de que tanta falta sinto das pessoas que lá deixei e ainda hoje me povoam o coração. E sempre.

........
Tudo começa sempre da mesma maneira: um homem nu e uma pergunta. Neste caso a pergunta é simples, não tem nada de metafísico: como ficará o frango com iogurte, gengibre, jalapeños verdes e salsa? Comprei montes de curcuma - encontrei o meu supermercado aqui -. Com um bocadinho de sorte vai ficar comestível.

E se não ficar como-o na mesma, portanto a pergunta para além de simplória é desnecessária.


A l'envers


Caravanserai, corpo

Um longo, enorme travelling sonoro; a lua esconde-se atrás da retranca da grande e envolve-a num halo esbranquiçado, estúpido; a música substitui o vento que hoje caiu, finalmente. Para que lado virar-me? Para a música? A lua amanhã estará noutro sítio; como tu, de resto. O vento em breve voltará; menos angustioso, talvez. Tu não. O tempo passa por ti como as caravanas pelo caravanserai. Não voltas: amanhã não serás o que hoje és, o que ontem foste.

É preciso imaginar uma pele. Um vento que a acaricia, centenas de caravanas que por ela passaram, um olhar que lhe fixa um futuro, um ponto no deserto.

"A pátria é um acampamento no deserto".

Não sei. Imagino um deserto, uma pessoa que nele se senta e o vê desfilar. A pessoa está imóvel; é o deserto que se move ao som desta música lunar. Camelos, berberes, tout le tralala. O gajo continua sentado.

Lembra-se de uma lua em crescente numa ilha das Caraíbas e pergunta-se Como pode a música que ouve descrever-lhe a puta da lua? Ou o vento? O resto?

É preciso imaginar um deserto e nele um caravanserai. Pessoas conversam, ouvem música. Talvez um bocadinho de vinho clandestino. Mulheres dançam.

Um homem diz: Prefiro acordar com uma mulher inteligente ao meu lado a acordar com uma bonita. Outro responde: Prefiro o olhar de uma mulher aos seus olhos. O terceiro: A inteligência é a única beleza.

Mariquices. Merdices. O deserto está-se nas tintas para a beleza ou para a inteligência ou para a puta que o pariu. O deserto é a vida e a vida só se interessa pela vida.

A música parece uma tempestade de areia, um squall no mar das Caraíbas, um camelo que se revolta na caravana, uma mulher que te diz sim.

Uma tempestade na calma do deserto. Uma tempestade no meio da calma. Um squall no caravanserai. A beleza onde menos a procuramos.

A imagem é esta: um homem sentado en tailleur porque está no deserto. O deserto move-se perante o homem sentado em tailleur. Avança, recua, esboça um passo de dança, troça do homem sentado. Um corpo, uma pele. Um turbilhão. Homens vestidos de azul; um homem nu sentado à beira do deserto, à beira da vida.

Uma pele e um olhar: a isso se resume um corpo. Num caravanserai, se estiver parado.

27.5.15

Vida, vinho

É mais ou menos isto: um gajo pensa que acabou de jantar e apercebe-se de que bebeu uma garrafa de vinho e ouviu a vida dele contada por uma senhora que não o conhece de lado nenhum.

Enfim, a ordem é a inversa: bebeu a garrafa de vinho porque; não ante.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 27-05-2015

Faço mais um jantar de mistela e apercebo-me de que cada vez gosto mais destas misturas imprevistas, fruto do acaso - de vários acasos -. Cada vez tenho mais vontade de as trabalhar, burilar, afinar.

Acompanho-o com um Malbec passável e com a música fundamental, basilar da Ana Cordeiro Reis, uma senhora portuguesa que vive em no Reino Unido - pormenores pouco interessantes - e faz uma música surpreendente. Pelo menos para mim. Depois de jantar deitei-me no cockpit a fumar um cigarro - o vinho não chega para gerir esta merda toda - e ouvir aquela música desfilar. É um travelling sonoro.

O melhor travelling que conheço no cinema é o do final de Providence, de Alain Resnais. O segundo melhor é a música toda da Ana. Pergunto-me "como cheguei aqui?" "Como comecei a gostar desta música?" Não sei. Talvez um dia; por agora mergulho de cabeça na descoberta. Ou mergulho sem cabeça: ela vem depois, ao contrário do que parece quando se vê alguém mergulhar de uma prancha para o desconhecido.

........
Silvério não começou o pau-de-bujarrona. Aborrece-me pouco: já o esperava. Aborrece-me muito: quero lidar com alguém diferente. Silvério é-o, na aparência e nos modos. À superfície. Não gosto da superfície das pessoas. Isto é: não me interessa. "Embora os meus olhas sejam..." etc.

..........
Se calhar gosto desta música porque retrata a minha vida. Não sei. Só superficialmente começo a aceitar que tenho uma vida. Ou melhor: que isto que vivo é uma vida. Maravilhosa, ainda por cima. Não por ser boa, mas por ser a que quero; por ser livre.

Livre: procuro um sinónimo e não o encontro. Liberdade não tem sinónimos.

26.5.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 26-05-2015

Edgar, o electricista ilusão-de-óptica apareceu hoje e montou o alternador. Combinei com o carpinteiro que começa a fazer o pau-de-bujarrona amanhã, e o teremos feito na segunda. Não teremos, mas não faz mal. Mais vale falhar um objectivo do que não ter objectivos. Dei o primeiro passo para que os seals do braço hidráulico cheguem. O vento caiu um bocadinho e a música no Beer Station não está tão má como de costume. Há bocadinho até Jimi Hendrix passaram. Decidi definitiva e irrevogavelmente que daqui a três semanas estarei em Lisboa. Se não forem três são três e meia. Isto é: não vou parar em Cuba, não vou a Cartagena, não vou a lado nenhum. Vou do Panamá para Lisboa, na TAP porque o voo é directo e terei montes de bagagem. Faltam duzentas milhas para isto tudo acontecer. Duzentas milhas. Nada. Amanhã.

Há dias assim.

........
Ontem comi uma fondue de queijo. Fondue devia ter meia dúzia de quilómetros de aspas, mas não tem: má, mas fondue. A senhora da Kristhal Delicatessen não percebe muito de queijo mas é bonita, simpática e poitrinée, o que não estraga nada. Não tinha kirsch; paliei com vodka. A fondue é daquelas que já vem feita em pacote, mas não é Gerber.  Ela não sabe a marca e eu não quero saber.

Foi uma grande noite. Discutia situacionismo com um imbecil brasileiro, falava com uma amiga portuguesa e bebia mau vinho chileno. Na Kristhal Delicatessen uma taça de mau vinho custa dez mil pesos e uma dose de Zapata 15 anos oito mil. Zapata 15 anos não é o meu rum favorito, mas está longe de ser mau. Infelizmente só o descobri ao fim de dois copos de vinho, mas enfim. Não é decerto a última vez que vou à Kristhal, se bem seja de certeza a última que lá como fondue de queijo.

Gosto destes preços. No Beer Station uma taça de vinho custa dezanove mil pesos e um mojito treze mil. Fartei-me de rir, quando o empregado me disse o preço. O rapaz (é um tipo novo) também. Rimo-nos os dois. De vez em quando eu perguntava outra vez e voltávamos a rir. Agora pergunto sempre o preço do vinho antes de o beber. Rir não é só um remédio, é também uma boa escola de prevenção.

No Lupita custa seis mil e não é mau de todo. É por isso que lá vou. A comida (Tex Mex) é assim assim. Depois há a música e as televisões, claro. O meu favorito é o Beer Station, por causa da praia e do vento.  E dos kitesurfers. Ontem voavam, era lindo.

Às vezes cozinho a bordo, mas são poucas. O pequeno almoço e o almoço, só. À tarde gosto de sair. Ver um gajo sair da água com a máscara de mergulho, o snorkel e uma Gopro à frente; um pai e uma filha a comer alitas: mão direita numa luva de plástico e na esquerda um telefone portátil. Cada um deles olha para o seu telefone, come, troca uma frase e olha para o telefone, faz uma fotografia do que está a comer, troca uma frase e assim por diante. Gosto particularmente do pormenor das luvas de plástico para comer com as mãos.

Nunca experimentei, mas imagino que seja prático. Feio é, de certeza, mas ele há tantas coisas feias por aí que mais uma menos uma pouco importa. Além de que é para ver estas coisas que gosto de sair.

Antes de me ir embora vou dar uma volta à ilha. Se não me engano são vinte e sete quilómetros. Lisboa Cascais. Já tentei comprar uma bicicleta, mas só as há novas. Não a poderia revender.

........
Há dias assim. Agora trata-se de fazer o que se pode para que eles sejam muitos. Ou pelo menos mais do que os outros.

Tele-turis-fotos



Uma fondue de queijo desterritorializada (mais a cair para o surreal) e uma praia igual a todas as praias, excepto algumas.

Spinoza, sempre

§1
"Quando a experiência me ensinou que tudo o que geralmente ocorre na vida trivial é vão e fútil, quando vi que todas as coisas pelas quais eu temia não continham em si nem bem nem mal a não ser até onde o espírito era movido por elas, decidi então indagar se existiria alguma coisa que fosse um verdadeiro bem capaz de se comunicar e pelo qual só, rejeitando tudo o resto, o espírito fosse afectado; ou antes, se haveria alguma coisa através de cuja descoberta e posse, eu fruisse para todo o sempre uma alegria contínua e suprema.


§3
... Na verdade, aquelas coisas que na vida vêm com mais frequência ao espírito, e que os homens, como se pode concluir das suas acções, consideram como bem supremo, reduzem-se a estas três, a saber: riquezas, honra e volúpia. A mente é partilhada a tal ponto por estas três coisas que quase não pode pensar em outro bem.


§12
... Para que isto seja rectamente compreendido, é de notar que o bem e o mal só se dizem de maneira relativa, a tal ponto que uma e a mesma coisa se pode dizer boa e má, segundo os diferentes aspectos (porque é encarada).


§84
Por consequência, nós distinguimos a Ideia Verdadeira das outras percepções e mostramos que as ficções, as ideias falsas e outras têm a sua origem na imaginação, isto é, em algumas sensações fortuitas..."

(Bento de Espinosa, "Tratado sobre a reforma do entendimento", Livros Horizonte, 1971(?), Trad. António Borges Coelho.)

........
Um gajo em puto lê Spinoza. Demasiado puto, talvez. Um gajo não é filósofo, nem sequer intelectual. Sabe ler e já é um pau por uma pedra. Um gajo fica apanhado por aquela ideia de que em si mesmas as coisas não são boas ou más, tudo depende de para onde elas "movem o espírito".

Anos depois esse mesmo gajo tenta falar com pessoas para quem o mal é o mal, e o mal é o dinheiro e o capital e o lucro; e o bem é o bem, ele é os valores, as pessoas, as vidas. Um gajo argumenta que nem todos os valores são bons, nem todas as pessoas; que o dinheiro e o lucro, esse malvado lucro podem ser bons, etc. Chorrilhos. Disparates. Ingenuidades. Banalidades que nem de base são. "Sensações fortuitas".

Que se fodam as banalidades. Prefiro Spinoza. Prefiro a liberdade. Antes excomungado mil vezes que arrebanhado uma.

Bom selvagem mau civilizado

Matem o Rousseau de vez, já que ele não morre.

Desperdício

Tanto vento e eu no porto.

Da cor da terra

Vá, rapariga, esparrama-te por essa cama abaixo. Abre as pernas e deixa cair as mamas uma para cada lado. Não digas nada: digas o que disseres não acredito.

Uma inglesa chamava a isto a crucifixacão. Eu também, às vezes. Outras digo Vamos sacrificar a Vénus, ou a Príapo. Mas isso é só quando me apetece ser pedante, antiquado, chato. Se não digo Vamos foder-nos.

Esparrama-te e ouve o Buena Vista Social Club, bebe um rum, prepara-te.

Isto do desejo é uma coisa complicada, parece um fantasma: está sempre lá e quando o vais procurar desaparece. Como os gatos: nunca respondem quando os chamamos e depois queres estar sozinho aparece-te um, como se não fosse dali.

Acendi a lâmpada a petróleo. Não se vê nada, eu sei, mas o romantismo não é para aqui chamado, descansa. É porque gosto da luz alaranjada, da ideia que aquilo deixa um traço negro se for demasiado forte, da ideia - sobretudo - que é finita. Fica bem com a tua pele, tão clara. Parece que não viste o sol, ou que estás assombrada. Não te preocupes.  Vou dançar-te na pele até a deixar da cor da terra.

25.5.15

Encore un

Allez, on reprend le français. Ca fait longtemps qu'il m'échappe, ce salaud. Il flanchit. Dans mes posts en portugais je parlais des joies de la modernité, éxultation provoquée par une pseudo-fondue au fromage à San Andrés pendant que je discutait le situationisme avec un imbécile et un "écrivain" portugais avec une personne que je respecte.

J'éxultais avec ce mélange: être ici et ailleurs, discuter avec l'inteligence et son absence simultanément, manger une mauvaise fondue et penser à toutes celles que j'ai faites un peu partout.

Penser à la Renaissance et au XIXème, penser à aujourd'hui, à aujourd'hui comme une piscine: il faut y plonger, tête la première, pour oublier, ou se réjouir.

Penser, boire, parler, écrire. Aimer. Vivre.

Hoje

Como acabar bem um dia mau? Mergulhar no hoje.

Modernidade

Estou eufórico. Extáctico. Não acredito. Comi uma fondue de queijo em San Andrés (o Lupita estava fechado). E como se isto não fosse exótico o suficiente discutia situacionismo com um imbecil e falava com uma pessoa que respeito sobre um escrevinhador português.

A modernidade é a época mais deliciosa que a humanidade jamais viveu. Penso no Renascimento, quando o homem voltou para o centro do mundo; ou no século XIX, o último século em que tudo era possível. Não se comparam a este final de século XX e princípio de XXI.

Nunca a humanidade foi tão acessível, tão presente, tão humana: falha e sublime, fraca e forte, humana e capaz das coisas mais sobre-humanas.

A fondue estava uma merda sem fim, é preciso reconhecer. Mas quem se preocupa com isso? Eu não. Lembro-me de todas as fondues exotéricas que já cozinhei - desde a de um palácio de um descendente de Talleyrand, nos arredores de Paris, para vinte pessoas em Junho até à de Maputo, passando por não sei quantas em barcos, casas, quintas - ...

Que se fodam as fondues. Que se fodam os imbecis, brasileiros ou não.

A modernidade é a coisa mais preciosa que a humanidade jamais inventou.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 25-05-2015

Os mojitos sem açúcar do Beer Station não se comparam, nem de longe, aos do Rana Dorada do Casco Viejo em Panamá. São ligeiramente mais baratos e estão perto do mar, mas nem a beleza da paisagem nem a de preço compensam a diferença de qualidade.

W. está hoje, dezasseis dias depois da chegada, quase como estava: Edgar, o electricista continua a dizer que vem daqui a uma hora e não aparece; Silvério, o carpinteiro diz-me que afinal precisa de mais dinheiro - coisa de que eu já suspeitava, devo dizer, o orçamento incial era realmente barato. mas não deixou de me chatear -; na Alemanha os feriados sucedem-se e parecem-se todos uns com os outros: as juntas para o braço hidráulico ainda lá estão.

Não é verdade: W. não está na mesma. Há cada vez mais ferrugem nos brandais e hoje consegui baldear o convés. Consegui é o termo correcto, não é um exagero. Consegui baldear o convés. Não ficou como eu queria, mas está melhor.

E consegui passar o ferro à popa. Fantástico. Só vitórias.

Se me apanho fora de San Andrés e fora do W. nem acredito.

........
Estou a reagir de mais. Hiper-susceptibilidade, cansaço, chame-se-lhe o que se quiser. Estar preso, por exemplo. Apetece-me meter-me num avião e ir para Cartagena, ouvir música na Plaza Trinidade ou ler na livraria Ábaco...

Em vez disso vou jantar ao Lupita, tex-mex assim assim.

........
Ataquei a italiana demasiado forte e ela percebeu que estou inseguro, fragilizado, impaciente. As mulheres têm um olfacto para estas coisas que nem perdigueiros.

A italiana que se lixe. Não sabe o que perde: um homem vulnerável é uma galáxia.

24.5.15

Post en français

La journée se termine telle qu'elle avait commencé: lentement.

Lentement est le mot qui mieux sied à San Andrés. A tel point qu'aujourd'hui j'avais prévu de me saouler la gueule lentement. Loupé à moitiè: je ne me suis pas saoulé. Mais je ne me suis pas saoulé lentement et c'est donc lentement pas saoul que j'écoute Rão jouer le fado comme si le fado avait été créé pour le sax, comme si j'aimais le fado, comme si la violence du fado pourrait être lente.

Elle ne le peux pas: c'est une violence beaucoup trop primordiale pour pouvoir être lente.

W., mon W. haï et adoré est loin d'être prêt. Cela fait quinze jours que je suis là et je me demande ce qui a été fait ces deux semaines. Mieux ne pas répondre : je risquerais de me saouler très vite le gueule, l'âme et tout ce qui a entre les deux.




Demain j'aurai l'alternateur et une fois ça réglé la transmission: en fait on ne va rien lui faire. D'ici Bocas elle n'a qu'a se tenir si elle le veut; et si elle ne veut pas je m'en fous comme de mon premier biberon.

Le bout-dehors et le hydraulique du safran vont mettre plus de temps.

Je me suis tellement résigné que je ne trouve même plus San Andrés une île chiante. C'est juste l'endroit où je suis.

A l'envers.

Recados

"Meu querido,

Sexo oral sim. Sexo verbal não, por favor."

Tele-turis-fotos San Andrés





Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 24-05-2015 / II

A falha de corrente era na cidade toda. A baldeação ficou para outro dia. Ouvi música nova, em todos os sentidos do termo e fui dormir uma sesta. É difícil engrossar-se devagar se não se dormiu uma boa sesta. Agora estou no Café Café (os nomes dos bares em San Andrés são bastante originais: Café Café, Cocoloco, Aquarium e por aí fora). A música do Beer Station - o que faz os bons mojitos e tem vista para o mar - é abominável e já passei a manhã toda com os auscultadores nos ouvidos. Além disso vai chover e interior por interior este sempre é mais agradável.

As tardes de domingo têm mais complexidade do que um gajo pensa à primeira vista, quando vê ruas vazias, lojas fechadas, famílias a andar tão devagar como o amor delas se foi, ou irá.

........
Viver num barco na marina é como dormir com uma mulher com quem não se pode fazer amor. Devia ter um limite de tempo.

Até no Wreck tenho vontade de ir para o mar. Volto sozinho para Bocas; ao menos isso.

Apologia do inevitável

A liberdade tem um preço? Tem. Mas a falta dela também; muito mais elevado.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 24-05-2015

Hoje é domingo, dia de baldeação e de engrossar-me devagar. Como sempre a realidade encarrega-se de desfazer planos mais depressa do que os alísios levam o fumo de um cigarro: não há energia na marina (ou na cidade, não sei) e sem ela não tenho pressão. Fica para amanhã. Quanto à segunda parte do programa não sei, ainda é muito cedo.

Nene quer - finalmente - usar a sua lancha para me ajudar a passar o ferro à popa. Esperei três dias pelo Adolfo e ontem fizemo-lo mas mal. Tenho de o puxar mais para barlavento. Agora só falta o empregado do Nene. A continuar assim nem quando me for embora tenho o ferro no lugar.

........
Começo o dia a descarregar música de uma compositora portuguesa que descobri ontem. Chama-se Ana Cordeiro Reis (ou Hyeana Fierling Reich, nome que de todo não me seduz) e faz música contemporânea, experimental, "alquímica" como ela lhe chama. É boa música, qualquer que seja o rótulo. Enquanto faço os downloads (uma maratona, para quem como eu não está habituado) converso com ela e oiço as faixas que vão sendo descarregadas.

É uma música paradoxal: leva-me a "passear pelas paisagens interiores" (a expressão é da autora) e faz-me feliz. É uma música telúrica, "abismal", apaziguadora.

Podem ouvir os discos aqui. Ou, melhor ainda, fazer uma procura no Google.

23.5.15

Jantar improvisado - carne picada em óleo de gengibre

Vale a pena contar porque o resultado ficou surpreendentemente bom (não muito mas inesperadamente bom).

Mal cheguei a bordo pus a carne picada a marinar em vinho tinto. Era um remédio materno contra o sabor a carnum, termo que nunca mais ouvi mas tanta falta às vezes faz. Mais tarde juntei uma boa quantidade de pimenta, paprika e cominhos moídos.

Depois cortei gengibre em bocados grandes e pus a fritar com dois dentes de alho e duas folhas de louro. No mesmo azeite (metade azeite metade óleo de girassol) pus a carne em lume muito baixo, a confitar. O gengibre frito foi para a panela de guandu, uma coisa que parece um híbrido de ervilha e lentilha. Fez muito boa figura.

A carne confitou um bom bocado. Tirei o óleo e fiz um flambé com rum (Flor de Caña, um desperdício).

Pensei que ia ficar uma mistela intragável  mas não ficou. Ainda bem.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 23-05-2015

O velho e familiar pára-arranca-pára chegou. Queixo-me, mas pouco: antes era só pára-pára-pára. Os sanadresanos fazem os panamianos passar por trabalhadores aplicados, pontuais, responsáveis, uma espécie de teutões da América Latina. Enfim, estou a ser injusto: o fornecedor alemão também só responde uma vez em três.

O armador quer o barco de novo em Bocas. O rauio do elástico é maior do que eu pensava.

Estou cansado. Os dias são feitos de bocadinhos de cansaço colados por uma boa notícia, um passo em frente, uma tarefa que se aproxima do fim.

Hoje larguei um ferro à popa, mas ficou mal posicionado. Tenho de refazer. É o que dá trabalhar com os braços e não com a cabeça. Ou andar cansado.

O vento continua, mas reconciliei-me com ele. Estou pronto para a nortada.  


22.5.15

Solidão, vergonha

É tão bom estar sozinho que às vezes tenho vergonha de o dizer.

Humildade

São raras as ocasiões nas quais sou contra a lei do mercado - isto é, a ideia singela de que os fornecedores devem adaptar-se aos clientes e não o contrário, coisa que para um socialista parece ser dramático, dilúvico -.

Uma dessas ocasiões é quando estou num bar bonito e bem situado, com bons (ou pelo menos passáveis) Mojitos - nem sempre me aventuro pela Margarita, acho indecente (e arriscado) chumbar um lugar com exigências galácticas logo de início - e a música é péssima. Devia ser obrigatório os bares que eu frequento terem boa música.

Digo isto, claro, com toda a humildade.

21.5.15

Desficções - II

A. sabe que são mentiras. Sabe que sou perfeitamente capaz de viver com alguém uma semana - ou duas - mas que depois preciso de mim, do meu espaço, da minha solidão, do meu tempo, como numa canção ou numa peça de jazz. Sabe que me estou aterradoramente nas tintas para o casamento - isto é, tanto se me dá como se me deu - mas que a ideia de partilhar uma casa a tempo inteiro (tempo? Vida inteira) me assusta mais do que a perspectiva de um ciclone no mar ou uma sessão de dentista. Sabe que bebo quando quero beber, durmo quando quero dormir, leio quando me apetece, que tenho na minha vida quotidiana a regularidade de uma pena num remoinho. Sabe isso tudo e muito mais.

Quer que seja eu a separar-me. É mais cómodo.

Acha que no pote da relação põe mais do que eu.

Quer encostar-me à parede.

(Cont.)

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 21-05-2015

É sempre assim: tudo vai mal - ou pelo menos nada vai bem - e de repente tudo muda, sem pré-aviso, sem água-vai, sem sequer um murmúrio.

Penso mas não tenho a certeza que tudo começou com a partida dos dois jovens. Arrumei a loja, organizei-me. Ou então foi com o desmontar do pau de bujarrona. Não sei, não quero saber e tenho raiva a quem sabe.

Sei que hoje tudo mudou: tenho água corrente - uma improvisação / adaptação ao modo W., mas que funciona (comprei três metros de mangueira de meia polegada e liguei-a à bomba de água. A outra extremidade vai para um dos garrafões. Amanhã vou comprar um y e posso usar dois garrafões de cada vez. Quarenta litros de água duram bastante tempo); comprei tomadas e fichas e fiz (mandei fazer) um adaptador 110V / 30 A - 110 V / 15 A. Já choveu e funciona. Ou seja: tenho duche a bordo, água no lava-loiças, ventoínhas, os dois frigoríficos a funcionar. Arrumei o grupo: acabou-se o barulho, os enchimentos de tanque, o desperdício.

Isto de manhã. À tarde apareceram-me o electricista (anda a dizer-me que vem "daqui a pouco" desde terça-feira) e o mecânico - que não pôde trabalhar porque o lugar estava ocupado pelo electricista, ó ironia feroz e deliciosa. Seria capaz de apostar o dedo mindinho em como vou ficar aqui retido pela coisa mais fácil de reparar de todas: o braço hidráulico. (Amanhã um vem de manhã e o outro à tarde. Se vierem, claro).

Net, duche, ventoinhas e frigoríficos no máximo (a 12V só tenho um e no mínimo, um bocadinho antes de a água ferver). Em breve saberei o que se passa com a caixa, terei o tacómetro a funcionar, o alternador reparado, o sensor de temperatura da água a sentir, o pau de bujarrona feito - amanhã a madeira chega ao carpinteiro e vamos avaliar quanto tempo vai precisar de secar - e as peças do braço hidráulico a caminho.

A verdadeira felicidade é feita de coisas mais simples - e sobretudo de menos, suponho -; mas esta arrima-se-lhe o suficiente para eu gostar.

Desficções

Voltei para casa pus um disco do Keith Jarrett - mas não o Köln: quero uma coisa que me projecte para o futuro, não o passado - servi-me uma dose tripla de whisky (tripla é uma maneira de dizer. Enchi a caneca) e fui para a varanda pensar.

Uma das vantagens das varandas é que nos dias de vento pensa-se nelas melhor do que numa sala de estar, por muito confortáveis que sejam os sofás e potente o ar condicionado. Questão de vento, suponho: ajuda a pensar (o whisky também, quando não é de mais).

Pensar não é o meu exercício favorito. Um gajo começa a pensar e já sabe que as coisas vão acabar mal, e quanto mais pensa pior elas acabarão. Pelo menos gajos como eu, com deficiências no aparelho pensador.

Sem descrever o que nos rodeia nada se compreende.

Da minha varanda vejo a cidade e ninguém me vê: não tenho prédios à frente ou acima de mim e a quem está mais baixo o parapeito tapa-me. Nem um telescópio super-potente me tornaria visível.

Não tenho um: os outros não me interessam o suficiente para lhes espreitar a intimidade. Destrinçar-me é trabalho suficiente.

Ontem A. disse-me clara e explicitamente que ou nos casamos ou ela se vai embora. Está farta de, cito, "quase relações". Faço-lhe ver que ela tem muito mais dinheiro do que eu, que o casamento seria desequilibrado, que a leveza do nosso namoro é muito mais garantia de perenidade do que o peso de uma instituição; menciono-lhe os inconvenientes da vida a dois, a ausência de solidão provoca mais divórcios do que todas as infidelidades juntas.

Mentiras, tudo.

(Cont.)

20.5.15

Divórcio - I

Tudo começou com dois mojitos sem açúcar, claro e uma hipótese: as senhoras da burguesia são as mais bonitas. Isto é, a burguesia é a classe que mais mulheres bonitas dá ao mundo, o que explica a extinção ou quase extinção das outras duas (para quem não tinha dezoito anos em 1974 a aristocracia e os proletas). A fim de defender a minha hipótese pensei numa marquesa espanhola feia como um macaco (ou macaca) e numa gaja chamada Claudia Cardinale que se casou com um tipo chamado Tancredo numa espécie de coboiada italiana que vi há alguns anos no cinema.

Alguns cinéfilos e literatos apontar-me-ão sem dúvida as mulheres daqueles filmes neo-realistas italianos que também eram muito boas mas toda a gente sabe que elas eram burguesas, só fingiam ser do povo. Até suecas havia, país especialmente desprovido de proletariado e de aristocracia. Pelo menos em parte.

Bom, voltemos ao tema. A ideia é defender a burguesia, classe na minha opinião injustamente vilipendiada. Ele é as mulheres, os restaurantes - um tipo vai a um restaurante operário e é uma merda, tanto quanto os dos outros são caros. Nestes não se pode estar à vontade, naqueles não há quem não o esteja - o que ao fim do dia se torna desagradável, o à vontade dos outros invade bastante -.

É na burguesia que está o futuro - ninguém tem tantos filhos como as burguesas - e o presente - alguém imagina ir para a cama com uma gaja e dizer "querida, passe-me o seu mamilo esquerdo, por favor. O direito já maça"?

Tudo começou assim e depois tudo descarrilou.

A minha Teresa, coitada, fechada no quarto ou num amor qualquer novo - é quase a mesma coisa - disse-me que queria o divórcio. Eu sou um homem respeitável, dono do maior talho da vila (na verdade é uma aldeia, mas as pessoas gostam de pensar que devia ser vila).

Ora vinha eu a pensar neste assunto e vejo um bilhete dela. Isto incomoda-me. Até agora só comunicávamos por energias mentais, telepatia, coisas assim. Ver um bilhete, manifestação física da sua existência desestabiliza-me. Pois bem: estava um bilhete à porta do meu quarto (proíbi-a de sair de casa, mas não de por ela cirandar). "Quero o divórcio", dizia.

Ou "Quero divorciar-me". É possível. Não li bem.

(Cont.)

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 20-05-2015 / II

Sem água corrente, com uma bateria que nem 100 Ah tem, esgotos do lava-loiças e do duche (estes últimos não utilizados, claro) para os fundos - esgoto-os depois com uma bomba agora eléctrica, mas antes manual - encanamentos e circuitos eléctricos à lagardère, tudo feito ao desenrasca e ao isto chega e a cheirar mais a improviso do que uma desgarrada W. parece um barco para quem tem vinte anos.

Tem um mérito: confirmou que quero ter um barco meu. Merda por merda, antes navegar numa que seja minha.

........
Passei o dia a tentar organizar a minha vida a bordo. Não tenho corrente de terra porque o cabo é demasiado curto (os bornes de 110 estão no outro pontão, coisa que miseravelmente não consigo compreender. A maioria das embarcações que aqui vem é americana e neste pontão só há 220; o outro é para lanchas pequenas, foras-de-borda); não tenho água porque não os tanques estão cheios de buracos e mesmo que não estivessem a mangueira é demasiado curta (desta vez é a mangueira; a torneira até nem está muito longe). Encho os garrafões de vinte litros que me custaram uma fortuna em Almirante. Mas a água da marina não é potável; o Adolfo não apareceu como tínhamos combinado, pelo que o ferro à popa fica para amanhã; o electricista tão pouco, mas verdade seja dita não é uma urgência; continuo sem saber de onde vem o problema da caixa e ainda não encomendei as juntas para o braço hidráulico porque o homem do fornecedor americano não respondeu ao e-mail que lhe enviei.

Em contrapartida tenho finalmente net a bordo.

........
A. e P. vão-se embora. Vou lamentá-los: boa companhia, educados e trabalhadores.

Mas que me perdoem: regresso à minha solidão com um inextinguível, inapelável prazer.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 20-05-2015

Lembrava-me do Nene como sendo um tipo porreiro, prestável, simpático. Não é ou já não é. Displicente, desinteressado, negligente, estou-me-nas-tintas; e a marina uma merda.

........
Seria interessante ver as estatísticas de acidentes de motas em San Andrés. Dezenas de milhar de motas com quatro e cinco pessoas de cada vez, idades entre os poucos meses e muitas dezenas de anos; ninguém (com excepção da polícia) usa capacete. Nunca vi um acidente, se bem ontem tenha visto um quase.

........
Estou aqui há onze dias e só hoje consegui encomendar as peças para o braço hidráulico; para a caixa ainda não. Começou com um feriado na Alemanha, depois apareceu a impossibilidade de pagar com cartão de crédito, depois o armador encontrou um fornecedor, depois o fornecedor que não responde... A quantidade de factores que um gajo não controla é assustadora. Os dias, eles passam indiferentes, indistinguíveis, chatos.

Tenho como objectivo sair daqui no fim do mês. É realizável. Vai ser interessante ver de onde virão os atrasos.

19.5.15

Tele-fotos



O pau de bujarrona foi desmontado hoje, duas ou três horas depois de estarmos na marina.

Dez dias para dar o primeiro passo.

18.5.15

Atrás de mim virá...

Nove dias em San Andrés chegam para comprovar que não estava completamente enganado em gostar tanto de Bocas (e de Bastimentos, é importante precisar).

Viver

Não lutar contra a corrente e não se deixar levar por ela.

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 18-05-2015

É preciso reconhecer que tudo estava bem encaminhado: ia para Lisboa de barco, o salário não era grande coisa mas pelo menos deu para uns runs no Panamá e teria trabalho em Portugal logo a seguir.

O W. (que no fundo talvez seja a inicial de Wreck, não sei) decidiu de outra forma. San Andrés é um daqueles sítios em que o tempo parece uma pastilha elástica que estica, estica, estica. Estou aqui há nove dias e praticamente nada foi feito ainda. Continuo com os meus três problemas maiores (leme, transmissão e pau de bujarrona) e uma miríade de pequenos; e não vejo o fim.

Ou vejo, mas longe.

Valem-me pequenas coisas: um jantar que fiz para duas jovens francesas (cf. abaixo), uma história de que me lembrei hoje, hilariante: uma senhora que não fala espanhol a quem alguém disse desmoronar e ela pensou que significava perder o bronzeado, a possibilidade de amanhã ir para a marina.

Pequenas coisas, pequenas esperanças, bocadinhos de cola fraca que mantém pelo menos os cacos juntos.

........
Jantar improvisado - frango com tamarindo e gengibre em leite de coco

A coisa não correu como eu tinha previsto: fritar primeiro os tamarindos depois o gengibre rapado, usar esse azeite para dourar o frango, cozer o gengibre e o tamarindo e usar a água para cozer o frango.

Mas acabou por não ser mau; precisa simplesmente de um pouco de exploração. Usei leite de coco, a água da cozedura dos frutos, cominhos, muita pimenta e aquilo escapou.

Pelo menos foi o que as jovens disseram.

........
O tablet caiu, mas desta vez não foi à água. Foi para terra, para o chão. Partiu o vidro e continua a funcionar, se bem já não como tablet. Precisa do teclado.

Não sei como interpretar isto: se como prova da superioridade do mar - mata logo - se das vantagens da terra. A ver, quando souber quanto custa a reparação.

........
Estou cansado. Todos os dias acordo sem energia e me deito com cada vez menos. Como não faço grande coisa fisicamente deduzo que o cansaço vem de alhures que não do corpo.

Uma porra, não é?

17.5.15

Cansaço

Um gajo acorda cansado e sabe que qualquer coisa está errada. Deita-se pronto para outro e sabe que nem tudo está perdido.

Falsidades

Se isto fosse verdade eu seria muito inteligente. Como não sou, não é.

  1. Very individualistic
  2. Free thinker/non-conforming/averse to authority
  3. Heightened sensitivity to both external and internal stimulus
  4. Rich inner world (the capacity to be able to generate experiences internally using experience and information synthesized from the outer world).
  5. Heightened sense of perception (to be able to come up with effective practical solutions to problems after discovering the root of the issue).
  6. Intuitive (Being able to almost feel what someone is thinking/feeling and able to almost predict what is going to happen next in any particular situation)
  7. Being able to read very deeply into body language.
  8. Very analytical/observing; being able to point out the nuances in everyday living situations.
  9. Tend to have at least 1 parent or person in their family who are also pretty intelligent.
  10. Thrives on intellectual conversations/complexities (a love for turning the complex into simple and being able to extract the complexity out of what others view as simple).
  11. Likes to learn at a very fast pace and are able to demonstrate mental abilities well beyond one's physical age. 

A bola, o volante e o graus

O futebol e um volante são as duas maneiras mais rápidas de transformar um homem num imbecil. Claro que depois há graus: o clube do imbecil ganha, o carro é potente, o homem é imbecil à partida, juntam-se muitos imbecis.

Infelizmente são todos para pior. Não há forma de atenuar a imbecilidade.

Café Tati

Esta combinação mortal de música má aos berros, ar condicionado e televisões em tudo quanto é canto... Café Tati, onde estás?

É preciso começar

É preciso começar por dizer uma palavra. Pode ser verdade; ou mar, um dos seus sinónimos. Pode ser luz, vento, as ruas pouco paralelas e pouco perpendiculares de San Andrés. Mas não pode ser amor: não é o princípio, é o fim, o objectivo. Não se pode começar por dizer amo-te, por exemplo, por muito que o queiramos um dia dizer. Mas logo não. Demasiado cedo.

Começa por dizer vento. Força cinco, seis, sete todos os dias, todo o dia. Tudo o que é de mais cansa. Começa por dizer solidão, as duas moedas de uma face. Ou luz: cinzenta, monocórdica, chata. Mar, de que tanto precisas para te reencontrar. O mar não é um bom princípio: é tudo e não se começa pelo todo. Começa-se pela parte, uma pequena parte de cada vez, pé leve. Depois vem a febre, a mão ansiosa, febril; mas só depois.

Azul é a cor da vida; tons de azul: o do céu e o do mar, salpicados de branco aqui e ali. O cinzento não é ausência de azul: simples sinal de que foi provisoriamente morar para outro sítio - o teu espírito, por exemplo; o teu olhar quando olhas para dentro -. O teu futuro se para fora.

Começa por dizer vida; alegria; felicidade; riso; espanto perene. Começa por ti.

16.5.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 16-05-2015

O dia está cinzento, todo ele: o vento, os verdes - são muitos - da água, a música do restaurante, que é uma merda. Tento ouvir o Vasco Abranches, mas não chega para abafar o ruído. Na água há dois kitesurfers. São a única cor nesta tarde chata, longa, melancólica.

Os kites voam, saltam, andam a uma velocidade alucinante. Tenho de aprender a andar naquilo. Em S. Luís estive quase, mas acabei por trocar por uma viagem a Lisboa.

Penso num verso do José Anjos que li hoje: "Foste um gesto que ficou na boca, à espera de se fazer palavra. Calei-me.
E ele fugiu por um beijo."

Bonito, não é? Um gesto que quer ser palavra e não é, um beijo que ajuda a fugir... Blake: "He who desires but acts not breeds pestilence". Mas fugir é agir, calar-se também. Isto é, o silêncio pode ser uma forma de acção: ajuda os gestos a fugir, transforma-se em beijos. Gesto quase falado.

O vento está angustioso, diz Don Adolfo, o senhor que nos faz o transporte de panga para a terra. É um senhor. Pontual, educado, sem uma palavra a mais ou a menos. Sem um gesto, talvez.

Não comprei headphones daqueles que abafam o ruído ambiente porque os acho exagerados, histéricos; agora lamento. Devia estar a ouvir o Vasco, a música dele acompanharia bem o cinzento do dia, os saltos dos kites, os versos do José Anjos e esta melancolia que morde por dentro.

Estou cansado, essa é que é essa; malabarista da incerteza. Fazer malabarismos com a incerteza. Blake outra vez:

"1. Man has no Body distinct from his Soul for that call'd Body is a portion of Soul discern'd by the five Senses, the chief inlets of Soul in this age
2. Energy is the only life and is from the Body and Reason is the bound or outward circumference of Energy.
3. Energy is Eternal Delight
"

Energy is eternal delight. And the lack thereof?

Há muita gente na praia. O dia está cinzento mas não frio. Deviam proibir as televisões nos bares. Proíbem tantas coisas, mais uma menos uma nem se notava. Podiam proibir, sei lá, a má música, por exemplo, os gestos inacabados, as palavras vagabundas, desnorteadas, perdidas e incapazes de se escapar por um beijo como se os beijos fossem uma escada de incêndio, uma escada Magirus para a vida. Não são. Sirenes. Fogo. D. H. Lawrence sabia de incêndios. "Be still when you have nothing to say; when genuine passion moves you, say what you've got to say, and say it hot."

Fazer malabarismos com os incêndios. Não ateies incêndios que não podes apagar. Ninguém pode ser leal com outrém se não o for antes consigo próprio.

O sol põe-se; o dia fica menos cinzento. Deve ser porque estou com fome. Deixa o gesto agarrar o beijo; não o deixes fugir. Não deixes nada fugir: o vento não leva, traz.

14.5.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 14-05-2015

O luto da travessia está feito, ou quase. Agora trata-se de olhar para a frente: reparar o pau de bujarrona, o hidráulico do leme e a transmissão; manter a tripulação unida e - sobretudo - a bordo; conhecer San Andrés melhor do que conheço.

Mais uma pequena mudança de planos: afinal o refit não será no México, mas na Guatemala, no Rio Dulce. Nunca lá estive, mas parece óptimo e é uma excelente base para conhecer a América Central.

A ver se se confirma. A ver se este cansaço me deixa.

........
Estamos em San Andrés pelas três grandes razões mencionadas ali em cima e por mais um par delas pequenas. É assustador. Hoje tentei fazer cartões de visita e até isso é complicado.

........
Acordei mais cedo do que o habitual: eram duas e meia da manhã. Força seis ou sete, o pobre do W. urrava, silvava, arfava. Passei mais uma adriça à borda falsa.

Depois fui deitar-me outra vez, mas às seis já estava a arrumar o convés, passar uma forra no snubber (alguém me ajuda?) e fazer ovos estrelados com bacon, que não deve estar longe de ser o melhor pequeno almoço deste mundo e do outro.

.........
A liberdade paga-se. Não são precisas grandes elocubrações sobre os abismos e respectivas atracções, teorias psicológicas de mercearia ou sequer olhares de esguelha e meio-sorrisos entendidos. Aquilo tem tem um preço e caro.

Um gajo não é livre porque quer: é livre porque não pode não o ser. Fatalidade, destino, droga a liberdade. Uma prisão, no fundo. A melhor de todas as prisões, a única suportável, mas uma prisão.

Pensava nisto esta noite, enquanto ouvia os gritos do W. Conversava comigo (só eu o entendo. Os tripulantes não falam barquês, ou marês ou seja que língua for a que as embarcações usam para falar com quem as entende).

Na verdade o W. tem várias formas de conversa. Faz-se ouvir e dá-se a ver: um tanque de água que devia estar vazio e seco e não está - de onde vem a puta da água? - um monitor de baterias cujos dados me fazem pensar que andam por ali drogas alucinogéneas, peyotl do Castaneda ou LSD dos outros todos, um motor que larga óleo como alguns imbecis arrotam depois de jantar.

E gosta de silêncios, o bicho: o braço hidráulico não se ouve, a transmissão tão pouco.

Parece um poço de problemas, mas não é: é um poço de liberdade. Ou não é só, vá lá.

(Isto dito só me apetece tirá-lo da água e deixá-lo em seco até ele me implorar de joelhos que o volte a pôr no seu lugar e me prometer que se portará bem).

........
"But when the melancholy fit shall fall...
...then glut thy sorrow...
...on the rainbow of the salt sand-wave...

Or if thy mistress some rich anger shows...
Emprison her soft hand, and let her rave,
And feed deep, deep upon her peerless eyes."

Keats, Ode à Melancolia.

Duas por uma

Duas boas mamas não valem uma boa cabeça.

Quando muito complementam-na.

13.5.15

Diário de Bordos - Isla San Andrés, Colômbia, 13-05-2015

Reparações pesadas a fazer, peças a encomendar e - inevitavelmente - a esperar, dinheiro a chegar às bochechas... A litania é conhecida. Já nem tento fugir-lhe: escolhi a religião pago as consequências.

Estamos fundeados - o Nene não tem lugar na marina e mesmo que estivesse está demasiado vento para arriscar manobras com um bote de quilha longa, vinte e oito toneladas de deslocamento, hélice e motor sub-dimensionados -. San Andrés é o último lugar do mundo onde faria seja o que for num barco, mais do que mudar o óleo.

Mudar um pau de bujarrona é uma porra em qualquer parte do mundo.  Aqui e ao largo é simplesmente uma merda de todo o tamanho. Até na marina (devia levar aspas) o seria.

Não penso muito na merda; dedico mais tempo a pensar como repará-la e como aproveitar o melhor possível desta paragem forçada. E da próxima escala, no México, um país que me encanta e atrai e seduz e me dá vontade de o conhecer todo do princípio ao fim.

Já não atravesso este ano.

........
Tinha um contrato com Hamilton, igualmente conhecido por Bosco, para nos fazer os transportes de e para bordo (não temos dinghy).

Hamilton, ou Bosco, é um rasta e - combinação pouco frequente - alcoólico. Está bêbedo de manhã à noite, todas as manhãs e todas as noites. Hoje despedi-o e contratei Adolfo, um senhor sério e, diz-me, que não bebe álcool. A ilha é pequena, toda a gente no porto sabe que estava a trabalhar com o Bosco.

O trabalho consiste em ir buscar-me a bordo às oito da manhã, levar-me às onze, trazer-nos a todos para terra às cinco e finalmente levar-nos às nove. Adolfo pede quase o dobro do que acordei com Bosco, mas é muito mais barato: pelo menos posso contar com ele.

........
No outro dia quem me trouxe de bordo foi um Rommel. De ariano isto tem pouco ou nada. Pergunto-me se esta ilha, tão anglófona, sofreu de estranhas simpatias.

........
A solidão é a coisa mais volátil que existe: basta termos com quem a partilhar para ela desaparecer.

12.5.15

Gostos opostos

- Gosto de café, mas não de o fazer.
- E eu não gosto do amor, mas de o fazer sim.

Diário de Bordos - Isla de San Andrés, Colombia, 12-05-2015

Ruas limpas, mulheres bonitas e pessoas - homens e mulheres - sorridentes, simpáticas, acolhedoras, comida de rua deliciosa e variada. Não estou no Panamá.

Pois não. Estou de novo na Isla de San Andrés, uma ilha pequena e turística que pertence à Colômbia mas fica ao largo da Nicarágua.

O W., como gentleman que é, não navega para barlavento; e para fazer jus à idade tem alguns problemas: no hidráulico do leme, no motor, nas vigias e agora - culpa parcialmente minha - no pau de bujarrona. E no casco - as vigias do camarote de ré molham um bocadinho. O meu parecia uma piscina.

Pela segunda vez tive de entrar num porto a reboque.

........
"Ninguém vem às ilhas para comer bem", dizia-me há pelo menos três ou quatro vidas um senhor dono de uma empresa de charter para quem trabalhei. As ilhas às quais ele se referia eram as Caraíbas francesas - estávamos em Fort-de-France, nessa altura ainda o Marin não passava de uma aldeia de pescadores, com uma entrada difícil e sem balizagem - agora continua a não ser fácil, pelo menos as primeiras vezes, mas tem balizas -.

Já não é verdade: come-se esplendidamente na Martinique.

Talvez se possa dizer o mesmo de San Andrés, não sei. Ontem fomos jantar ao Miss Celia, o restaurante local, comida sanadresana garantida, para nos despedirmos de C., que tem de voltar ao Canadá pois não pode ou não quer esperar para chegar ao México, onde W. vai ficar.

O restaurante está longe de ser fantástico. Mas o jantar foi agradabilíssimo. Que se lixe a distância, não é?

........
Duas semanas em San Andres???

Preciso de deixar a ideia osmosear-se em mim.

6.5.15

Diário de Bordos - Almirante, Bocas del Toro, Panamá, 06-05'2015

Fiz uma breve pesquisa na net à procura da origem da expressão You can't win, Charlie Brown. Não encontrei. Deve ter sido alguma estadia de Schultz no Panamá.

Largámos de Red Frog Marina e viemos para Almirante fazer bancas (o combustível é muito mais barato aqui do que em Bocas), comprar mantimentos (idem) e sobretudo, buscar a balsa. A ideia inicial era fazer isso tudo e sair ao fim do dia.

Porém no Panamá há uma diferença abismal entre a ideia inicial e o que de facto acontece. O certificado de inspecção chegara. A balsa não.

Passámos a noite no posto de gasóleo e hoje fui buscá-la. Já está a bordo. Bancas feitas e mantimentos quase, só falta o zarpe como potencial fonte de surpresas.

........
A reparação no tanque de água não resultou. Não era bem uma reparação, e aquilo só é um tanque de água porque algumas palavras não mudam consoante a idade ou o estado do que designam. O tanque está muito para lá da fase terminal. Em Kingston vou laminá-lo. Enfim, los. Há dois. O primeiro já estava fora de uso, mas já que faço um faço dois.

........
Almirante, dizem P. e A. que aqui moraram é o Panamá real. Não sei se é. É, vejo-o, sujo e miserável; e é pena, porque o sítio podia ser lindo, com esta água toda por todo o lado e este fundo de montanhas que ora se vêem perfeitamente ora estão envolvidas numa neblina densa, um quase nevoeiro, como se quisesse seduzir-nos - coisa que devo reconhecer no meu caso conseguiu plenamente -.

2.5.15

Diário de Bordos - Isla Bastimentos, Bocas del Toro, Panamá, 02-05-2015

O tema devia ser a largada, claro. Quando largo? Segunda às sete da manhã. Deixou de ser um tema: está à vista.

Antes escrever sobre aquilo que não se vê. É para isso que escrevemos: para podermos falar daquilo que nos faz escrever.

Passe a auto-citação ou (mais provavelmente) a auto-paráfrase.

........
Esqueci-me de que havia um combate de boxe e vim jantar ao ex-Kayukos, agora Island qualquer coisa Club.

As porções são enormes, mas já aprendi a deixar no prato. Ainda há quem diga que a infância passa depressa... foi preciso chegar aos cinquenta e muitos para ser capaz de deixar comida no prato.

Verdade seja dita não é excepcional. Se fosse talvez não deixasse. Contas de outro rosário, maria do.

O restaurante agora é gerido por quatro panamianos que querem imitar os americanos de antes. A história é habitual; espantoso é conseguirem fazer melhor. Isto é: seria muito difícil, quase impossível, fazerem pior. Mas há sempre este preconceito contra as cópias... Mais uma coisa da infância, decerto.

........
Há pouco entraram três ou quatro das crianças austríacas. São seis, três rapazes e três raparigas. A mais velha tem vinte e um anos, o mais novo talvez onze. Vivem sozinhos num cata com nome de herói grego (é apropriado. São todos lindos como deuses). No dia seguinte a ter chegado aqui vi a mãe despedir-se de dois deles com uma dor que me fez sofrer. Na panga disse-lhe "passei a vida a despedir-me dos meus filhos. Sei o que estás a sentir". Não sabia.

Os miúdos estão sozinhos. O pai está na Áustria a trabalhar, a mãe não sei para onde foi. Cada um deles nasceu num país diferente, mas todos têm nomes franceses; Soleil, Lune, Marée e por aí adiante. Não fazem escola nenhuma: passam os dias a surfar e as noites a jogar snooker no ex-Kayukos (hoje não. Preferem ver o combate de boxe). São surpreendentemente bem-educados. Dois dos meus putos tentaram fazer-se às miúdas (é por isso que sei tantas coisas sobre eles) mas não devem ter tido sorte.

Ou azar, vá lá saber-se.

.........
Odeio boxe. Na verdade odeio porrada, qualquer que seja a forma. Já me calharam algumas na rifa. Deve ser das poucas áreas da vida em que ganhei mais do que perdi.

Uma ironia, não é? Ganhei porque dei mais do que me deram; a mim que passo a vida a perder porque dou mais do que recebo.

........
O ambiente está calmo, para uma noite de boxe. O som das televisões está a um nível aceitável e ninguém grita. Comi nachos, bebo vinho tinto e penso na largada. Hoje apareceu um mistério com a água doce.

Ando a tentar encontrar todas as explicações que me permitam largar na segunda. As outras são eliminadas imediatamente. De qualquer forma daqui até à Jamaica (o sabor da semana no que respeita à primeira escala) são seis ou sete dias. Há água que chegue nos garrafões.

Tenho de sair daqui. Começo a gostar demasiado disto e qualquer dia a mais só vai estragar.

(Deve ser a coisas destas que escrever sobre as coisas que não se vêem se refere).

........
Devia ir a Cuba, eu sei. Mas não lá tenho provisões e comprar comida em Bocas até aos Açores custaria uma fortuna. Não participo na caixa de bordo (é uma estreia) e custa-me impor esta despesa aos putos.

Haiti foi eliminado assim que comecei a pesquisar. Há duas semanas houve um assalto violento. Seis ou sete gajos armados contra um casal de setenta e sessenta anos. Os senhores deram-lhes tudo - electrónica, peças sobressalentes, dinghy - e mesmo assim foram amarrados e batidos violentamente.

É por estas e outras semelhantes que não sou absolutamente contra a pena de morte. E muito menos rápida.

........
Sim. Penso que há casos em que a pena de morte é justificada. O do noruguês que matou não sei quantos putos, por exemplo. Quando não há dúvidas sobre o autor e o crime é particularmente nojento. Bater num casal indefeso de setenta anos é asqueroso, claro. Mas aposto que nunca se vai saber sem sombra de dúvida quem foram os filhos da puta.

Enfim, não vou parar em Haiti. Depois, só as Turks ou as Bahamas. Todas demasiado caras. Antes, Cuba ou Jamaica.

Nunca li um autor Jamaicano. É um critério importante, tanto como o preço das provisões ou a direcção do vento.

Ou seja: vou sair das Caraíbas pela Windward Passage. A última vez que nelas entrei vindo de Norte foi pela Mona Passage. Já não faltam muitas para as ter feito todas.

........
O ex-Kayukos está cheio e eu vazio. Isto é, a esvaziar-me da terra e a encher-me de mar. Amanhã a troca vai estar completa, apesar de não ir longe: vamos para em Almirante fazer bancas (o combustível é muito mais barato do que em Bocas) e mantimentos (idem). Mas largamos logo a seguir; se tudo correr bem segunda à noite estou no mar, sem um grão de terra em mim.

Nem nos sapatos.