31.8.15

Diário de Bordos - Porto, 31-08-2015

 Adormeci e fui parar a Famalicão. Pelo menos cheguei directamente a S. Bento, uma hora e meia depois do previsto e onze euros mais caro do que o que poderia ter pago. Outra vantagem: prefiro um comboio em movimento a uma esplanada, ainda que seja ao lado da estação, bonita a luz do fim do dia, agradável a temperatura, bom o vinho verde e linda a empregada (uma - soube-o mais tarde - lituaniana alta, magra, loira e sorridente. Conjunto que raramente falha numa mulher).

O restaurante chama-se Tapabento. Já foi uma tasca; agora não é (mas tem uma à esquerda e outra à direita). Parece bom. Na mesa atrás de mim está um casal francês que vive na Guadeloupe e um senhor inglês agora residente na Tailândia (não sou curioso e sou surdo, mas a esplanada é pequena e o senhor francês fala alto). Todos deliciados com as tapas que comem.

Não percebo por que raio de carga de água chamam tapas aos petiscos, mas enfim.

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Belíssima imagem do Porto, de resto. Mudou muito e em tudo menos no essencial.

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Aveiro também mudou, mas estive pouco tempo lá. gostei de ver os canais arrumados, limpos, cheios de moliceiros a passear turistas.

Salvo dois ou três sítios nada me indicou que já ali vivi um ano. Em 1981 ou 82 é certo:terá havido vida no passado?

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A viagem de Évora a Aveiro faz-se num instante: cinco horas, dois jornais, uma sesta e um lanche medíocre na estação do Oriente.

Não há estação no Universo mais feia e menos prática do que aquela. Talvez seja bonita por fora; fotogénica. Mas o interior é um pesadelo cinzento, opressor. Parece uma teia de aranha desenhada por um aprendiz de Piranesi.

Apesar disso e enquanto como o pior lanche da minha vida ocorre-me que devia escrever um manual sobre a sorte. Ou talvez sobre a inconsciência: só uma ou outra conseguiriam explicar porque me sinto tão feliz, apesar de não ter um tostão.

E não sou daqueles que pensam que o dinheiro não faz a felicidade; faz. Não a compra, o que é diferente.

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Pergunto a mim mesmo se as pessoas que pensam que a saúde é um direito natural e deve ser gratuita trabalham de borla para os médicos, enfermeiros e respectivos auxiliares, hospitais, centros de saúde farmacêuticas e todos os fornecedores de tudo o que a medicina envolve.

Banalidades de base

Fala-se muito na banalidade do mal e no mal da banalidade; menos na banalidade do bem e no bem da banalidade. Os quais todavia são pelo menos tão frequentes como os primeiros.

Cada vez gosto mais da banalidade e a ela aspiro como uma nuvem que se derreia em chuva. A vida um largo rio tranquilo entre duas margens banais, esmagadoras de tão banais.

30.8.15

Voltas, Évora

Évora é uma cidade circular. Literal, não metaforicamente. Gosto de cidades circulares, de saber que para ir de onde estou para onde quero ir ou vou no sentido dos ponteiros do relógio ou no sentido contrário (sentido directo, para quem se interesse por estas coisas. Aquele chama-se sentido retrógrado, um bocadinho contraditoriamente).

Claro que se pode também cortar a direito, traçar uma diagonal, mas dada a configuração das ruas essa opção é quase sempre mais demorada do que ir à volta.

A qual volta tem uma vantagem adicional: se se a completar regressa-se a onde se estava a última vez que aqui se esteve.

Idade

A partir de certa idade querer ir para a cama com uma senhora é uma consequência e não mais uma causa.

Chama-se a essa idade a idade certa.

29.8.15

Diário de Bordos - Lisboa, 29-08-2015

Vou comprar os jornais, beber um café e comer um croquete à Versailles. O ar está fresco, limpo, a rua vazia. É pela manhã cedo que se amam as cidades e as mulheres.

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Namoridos: ouvi ontem pela primeira vez esta expressão, mistura de namorado e marido. Deve haver poucas palavras que dêem tanta vontade de casar como esta.

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Planeamento de longo prazo: sei o que vou fazer e onde vou estar nos próximos dois meses.

28.8.15

Bom melhor óptimo

Ia escrever "Já tive as melhores e as piores mulheres do mundo" e depois descobri que não é verdade. Só tive as melhores.

Aquelas que eu pensava serem as piores eram simplesmente outras das muitas formas do bom.

Santuário portátil, sacrário: Tabernáculo


Este bar vai abrir em breve e quando abrir será, não tenham a menor dúvida, o melhor de Lisboa (não conto, claro, o Procópio na categoria "Bares de Lisboa" porque primeiro o Procópio não é um bar, é uma casa; e Segundo não é de Lisboa é doutra galáxia que por acaso aterrou em Lisboa. O Procópio é a melhor casa do Universo e não se pode portanto comparar a outros estabelecimentos aparentemente semelhantes).

Fica na Rua de S. Paulo, pertence ao meu irmão Hernâni e eu estou chateadíssimo por não poder estar cá quando ele inaugurar aquilo.

PS - Tem rum. Varadero 7 anos.

Tele-turis-fotos: Summertime blues






25.8.15

Jim

- Só consigo apaixonar-me por uma mulher que me obrigue a escrever - Jim fez uma pausa, sorveu o whisky como se aquilo o enjoasse (aquilo podendo ser o whisky ou o que acabara de dizer) e olhou para mim. Parecia que se perguntava de onde me conhecia. - Não! Por uma que me faça escarrar as palavras, cuspi-las, que mas arranque como dentes, sem anestesia.

Jim é meu tripulante há dois anos. É um escocês alto, ruivo e atormentado. Nunca o vi bêbedo no mar nem sóbrio em terra. A miúda a quem ele se referia é uma italiana bonita, professora de literatura inglesa na universidade local. Encontrámo-la anteontem num concerto ao ar livre, uma dessas organizações nas quais as câmaras municipais gastam dinheiro que não têm para fazer os munícipes esquecer a maneira como o dinheiro deles é dilapidado (isto dito o concerto foi óptimo, música clássica árabe tocada por um grupo grande de músicos, todos eles bons).

Estava ao pé de nós; Jim convidou-a para beber um copo quando aquilo acabou. Anuíu. Fomos a um bar ali ao lado, um antigo clube desportivo que agora compõe a vasta panóplia de bares da praça, recentemente reabilitada.

Nunca nestes dois anos vi Jim envolver-se afectivamente com quem quer que seja. Normalmente arranja uma mulher que leva para bordo e fode vigorosa e competentemente (há coisas que num monocasco de cinquenta pés não se podem ignorar). No dia da largada, quando começa o processo de desengrossamento já esqueceu o nome da senhora.

- Percebes? - O monólogo continua. - Cada vez me chateia mais ir para a cama com uma mulher só por ir.
- A sério? Não se nota, Jim - o sarcasmo passa-lhe ao lado. Fala consigo próprio, como se escolhesse os dentes que amanhã vai pôr no papel.
- Não são os olhos. Não são os lábios - faz uma pausa. - Não são as mamas. Quero dizer, não são as mamas - (Paola tinha um belíssimo conjunto delas. Percebi claramente a hesitação de Jim). - É tudo. Tudo. A pele.

Jim escreve bem. Já por mais de uma vez tive de lhe dizer que o Livro de Bordo não é o suporte adequado para escrita criativa e implorar-lhe que escreva num caderno que deixo ao lado com esse fim. Escreve claramente, tanto descreve as pessoas que encontramos como um amanhecer no mar de uma forma límpida, escorreita, sem floreados. Nunca me pareceu que precisasse de alguém para o forçar a escrever.

Ontem perguntou-me se podia convidar Paola para jantar. Disse-lhe que sim, desde que não fizesse haggis (é inútil. Gosta tão pouco daquilo como eu). Não bebeu uma gota de álcool o dia todo. O jantar correu bem. Fez um lombo de porco com tapenade, um dos meus pratos favoritos. Bebeu pouco. Paola é uma companhia adorável, Sabe conversar; quando não está de acordo com qualquer coisa mantém o seu ponto de vista e defende-o com firmeza mas sem agressividade. É bonita. Veste-se bem, com gosto e sem ostentação.

Percebi que em breve terei de começar a procurar outro tripulante e vim dormir para um hotel. Convivo bem com o barulho do sexo, mas não suporto o do amor.

Silke

Ela ia descer do comboio no Entroncamento e desafiei-a a vir até Lisboa. Disse que sim, passámos o resto do trajecto a falar não sei de quê e mal chegámos fomos para minha casa para o meu quarto para a minha cama e fizemos amor a noite toda, um amor selvagem, não violento mas feroz, impetuoso, bravo como se fôssemos dois soldados de regresso da guerra como se estivéssemos a lutar e não a amar como se estivéssemos possuídos e não a possuir, como se adivinhássemos que uma vez passada aquela noite nunca mais nos veríamos e quiséssemos exorcizar tal desgraça.

Saí de manhã cedo, ainda ela estava a dormir. Deixei-lhe um bilhete: "Podes ficar até quando quiseres. Beijo. Pedro" e fui-me embora, nessa altura tinha um barco em Belém, peguei nele e naveguei para Oeste. Passei os Açores, voltei para trás, pouco antes de chegar a Lisboa virei para Norte até quase ao meio da Biscaia, voltei para trás porque já não tinha comida a bordo. Parei em La Coruña, comprei mantimentos, embebedei-me e quando acordei estava no mar outra vez, para Sul. Atraquei em Belém quase três semanas depois de ter largado. Foi assim que descobri que sou um idiota, certeza essa que me tem acompanhado desde então.

Ela não deixara resposta para além do nome, por baixo do meu: Silke.

Conselho: princípes

Um conselho às inúmeras senhoras que encontro por esse mundo fora à espera de um princípe encantado: um princípe desencantado é muito melhor.

24.8.15

Almoço improvisado - Miscelânea de chouriços com legumes

Comecei por fritar os diferentes chouriços num bocadinho de azeite; na gordura que daí resultou refoguei cebola, pimento e rabanetes, por esta ordem - uns cortados às rodelas finas, os outros cortados em bocados nem grandes nem pequenos.

Uma vez fritos chouriços, cebola, pimento e rabanetes fiz o mesmoa duas beringelas cortadas em fatias. As quais foram fazer companhia aos colegas numa panela, mais quatro ou cinco tomates pequenos devidamente cortados e descaroçoados.

Juntei água, coentros secos, orégãos, tomilho (faltou louro, não teria perdido nada. Muito antes pelo contrário) e deixei cozer um bocadinho.

Resultou um almoço agradável, veranil, cujos restos serão comidos amanhã frios porque quase faz alembrar uma ratatouille. Quase.

Fragmento

"Dieu a été généreux avec moi: ce qu'il ne m'a pas donné en fric m'a restitué en bonheur. Je sors gagnant."

Palavras, redescoberta, vida

De repente redescobri as palavras. Penso que percebem o que quero dizer: é como estar muito tempo debaixo de água, vem-se à superfície e inspira-se como se a atmosfera toda entrasse em nós e fica-se bêbedo de ar.

Sou um rapaz temperado, detesto os excessos excepto aqueles de que gosto demasiado para fingir que sou temperado mas os outros, sem os quais posso passar, dispenso-os facilmente.

É por isso que gosto de redescobrir as palavras assim tão subitamente, em excesso e não me importo nada de as perder outra vez. Aquele momento à tona de água em que a vida entra em nós e nós somos a vida e a ausência de palavras se esvai em segundos dura uma vida.

23.8.15

Jantar improvisado - ovos mexidos com cebola, pimento e gengibre

Numa frigideira refoguei cebola salpicada com gengibre raspado fino; acrescentei bastantes coentros picados finos também, que isto ou há moralidade ou se picam todos, e pimento encarnado, se bem essa não seja a minha cor favorita. À falta de pimentos azuis faz-se o que se pode.

Bati os ovos com queijo picado - pena não ter sido queijo da ilha - paprika e os inescapáveis cominhos secos.

Depois baixei (ainda mais) o lume, misturei tudo e fui mexendo devagar até estarem os ovos contentes. Isto é: antes de secarem.

No frigorífico havia um branco redondo que se juntou à festa e foi isso mesmo - uma festa.

Instruções

Não se salta nem de uma embarcação nem de um sonho. Desce-se, como se o sonho estivesse tão próximo da vida como o barco deve estar do cais antes de dele sair.

Saudades

Que saudades tenho de um bom verbo e respectivo pronome reflexo.

Navegar, como se

Vou navegar por essa liberdade fora como se pedalasse as estradas do teu corpo, como se nos navegássemos os dois felizes e livres, como se as estradas e o mar e o vento fôssemos nós, como se um sonho parisse um mundo e o respectivo tempo, como se a vida e o futuro fossem feitos de um olhar e um sorriso. Os teus.

Haver, não haver

De todos os lugares não há um lugar, há muitos. De todos os dias, todas as luzes, horas. De todas as mulheres não há mulheres, hás tu.

Excesso e temperança

Dia lindo: calor mas não demasiado, vento, núvens e sol idem, tráfico e gente em quantidades moderadas.

Só pode fazer a apologia do excesso quem conhece as virtudes da mediania.

Tele-tripulante-foto



O dia começou bem.

(Fotografia de T. Paoli)

Marte, Portugal

As pessoas que querem ir viver para Marte não deviam visitar Portugal: perderiam toda a vontade.

Isto é a versão boa de Marte (ou Júpiter, ou Saturno ou outro lugar qualquer do espaço exterior).

Diário de Bordos - Lisboa, 23-08-2015

Ontem fui navegar. Belém - Cascais - Belém. Não sei quantas vezes fiz este percurso desde que em 1974 cheguei a Lisboa. Centenas, largas centenas: um ano tem 52 semanas. Deduzo todos os anos que não estive cá e acresço as semanas em que o fiz vezes.

Ainda me lembro de quando a linha era um conjunto de povoações separadas umas das outras por manchas de verde. Os edifícios encarnados nas Trafaria ao qual aproávamos no regresso de Cascais desapareceram, as manchas de verde entre as vilas também. A Nortada e a beleza mantém-se. Nem os sacanas dos pescadores mai-las malditas bóias conseguem estragar aquilo.

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Anda tudo ligado e cabe-nos a nós ligar o que não está. Navegar com alguém que sabe o que é um oxímoro, uma nemésis e consegue argumentar correcta e sorridentemente um ponto de vista é melhor do que navegar com alguém cujo conhecimento se limita a navegar - se bem isto já seja muito bom, forçoso é reconhecer.

Navegar é bom, conversar também, uma boa conversa num maravilhoso dia de vela ainda melhor. Como dizia a jovem tripulante, ontem "não trabalhamos numa mina". Não, muito longe disso, graças sejam dadas a quem a elas tem direito.

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Regressei a casa de táxi. Já não apanhava um há tanto tempo que não sabia como fazer. A ideia original era apanhar um autocarro e descer onde ele me deixasse (reminiscências dos dias sem dinheiro em Paris: metia-me num autocarro e fazia o trajecto duas ou três vezes), mas isso é difícil num táxi cujo chauffeur está nervosíssimo por causa do relato do jogo de futebol - quarenta mil pessoas, diz o relator numa das poucas frases cujo sentido percebi. Quarenta mil. Ia acrescentar patetas, mas sei que não é verdade e isso ainda torna a constatação mais dolorosa. Quarenta mil pessoas -.

Acabei por alterar o trajecto duas ou três vezes e num supermercado. Podia ter sido pior.

Cansaço

Nado numa piscina de sono e cansaço. Alambuzo-me de camembert, Syrah, carne de porco e piripiri (tudo isto envolvido em cansaço como uma empada) e surpreendo-me: não é uma fatiga física. Não é sequer uma fatiga urgente: é plácida, inevitável como um dia de sol.

E a felicidade: sólida, tangível. Um paralelipípedo que nada comigo na piscina do sono.

21.8.15

Também é verdade

Também é verdade que as mulheres deviam nascer todas com trinta anos já feitos, para nos poupar esta horrível e longa espera.

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Vou rentabilizar o DV com publicidade. Se alguém tiver produtos compatíveis com o espírito do blog e os quiser promover aproveitando preço promocionais pode ligar para o número 123 456 789.

Alguns exemplos de produtos aceites:

  • Desodorizante para sonhos;
  • Escova de almas;
  • Livro de instruções melancólicas;
  • Borrachas para memórias indeléveis;
  • Pílulas para dourar ambições;
  • Panelas sem fundo;
  • Frigideiras a frio;
  • Colheres sem cabo;
  • Facas sem angústias;
  • Cicatrizantes para feridas invisíveis;
  • Colírio para os olhos da alma.


A lista está longe de ser exaustiva. Se o seu produto não está mencionado é decerto por falha do autor. Não hesite em contactar a direcção.

20.8.15

Desde, para

O que vem de sempre dura para sempre.

Poderes

Há pessoas que atribuem às palavras poderes que elas não têm. Desculpa, por exemplo. Três sílabas que se lançam para o ar, ordenadamente. E depois tudo continua na mesma, como se nada tivesse sido feito.

Ou dito.

Azar

É forçoso reconhecê-lo: os automobilistas são na sua esmagadora maioria pessoas civilizadas, corteses, educadas. Cedem gentilmente passagem aos peões, não usam a buzina se não com fins altruístas, nunca estacionam nos passeios nem nas passagens dedicadas a quem anda a pé, deixam passar os autocarros e outros meios de transporte em comum.

Eu é que tenho azar e só apanho imbecis malcriados e agressivos.

(Esmagadora, literalmente: hoje o senhor automobilista sentiu-se na obrigação de me dizer: "a próxima vez passo-te por cima"; ao que eu não respondi "se faz favor" porque a) não é verdade e b) ele já estava demasiado longe).

Reedição - Escola voodoo de economia, sucursal portuguesa

"Isto não vai acabar bem." Assim acaba um post de João Galamba, no Jugular. É bom augúrio. Se a Jugular School of Economics diz uma coisa, o mais provável é que seja o contrário que se verifique: temos alguns anos de experiência com os governos Sócrates para o saber.

(Além de que dá um certo espanto ver alguém ligado ao PS e que sempre defendeu Sócrates dizer "isto vai acabar mal". É verdade que estava tudo optimamente, ele era TGV, autoestradas, expansão do terminal de contentores de Alcântara, ele era amigos e consultorias e dinheiro pela janela a rodos, e agora é esta malta que vem estragar tudo; mas um mínimo de decoro não faz mal a ninguém).

[Este dá um prazer especial. A prospectiva não é a minha especialidsade].

02.09.11

Reedição - A fé dos convertidos

Vejo que a esquerda reclama - podre de razão, desta vez - com os aumentos de impostos. É bom ver este lado do espectro político preocupado com a capacidade do Estado para gerir os nossos impostos. Esperemos que dure, e quando for a vez de um governo PS (longe vá o agoiro) se oponham com igual veemência à pirataria fiscal.

A continuar assim ainda vai reclamar cortes na despesa.

(02.09.11)

Reedição - A força das coisas

Contigo sou todo e sou muito; sem ti não chego nem a metade e bem pouco sou, quase nada.

(11.09.11)

Diário de Bordos - Lisboa, 20-08-2015

Os franceses têm uma expressão da qual gosto muito: c'est comme pisser dans un violon. É excatamente o que penso dos tratamentos auto-receitados a uma porra de uma dor no joelho que há dois meses não me larga (e agora aumentou, filha da mãe). São como mijar num violino.

Hoje resignei-me e marquei uma consulta no médico. É passar um atestado de incompetência ao corpo, não é?

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Ontem estive perto de um transporte nos Estados Unidos, de Rhode Island ao Texas. Perdi-o por causa do visa. Curioso como esta admiração que tinha pela terra dos bravos se desvanece pouco a pouco. Começou com a absurda regulamentação de tudo e mais alguma coisa - aquilo está transformado numa terra em que o absurdo manda -; e depois veio por aí abaixo, até desaguar em coisas comezinhas como esta.

Lá terei de fazer a merda do visa.

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Médico, visa... Há pessoas que incensam o real. A mim parece uma colecção de merdices. Cheias de força, é certo, Mas merdices.

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Ando a escolher receitas. O DV tem cinquenta e quatro - pelo menos as devidamente etiquetadas -. Não as vou refazer todas, mas vou andar lá perto, o mais perto possível.

Uma viagem gastronómica pelo passado recente (o DV é velho, mas relativamente. Doze anos pouco mais é do que uma vida. Vida e meia, se quiseremos ser precisos).

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Temos visto filmes na televisão, a minha anfitriã e eu. Um por dia, escolhidos por consenso. Mais uma vitória do real: não é tão bom como ir ao cinema, mas é melhor do que não os ver de todo.

Ontem calho a vez a um filme giro, na versão original chamado Copying Beethoven. Interpretação majestática de Ed Harris, na diagonal oposta do cabotino do Day-Lewis (enfim, um cabotino genial, reconheço).

Um bom actor, argumento excelente e actriz gira (e boa, também). É preciso tão pouco, não é? Talento. A sequência da interpretação da Nona (o leitmotiv do filme) é digna de antologia.

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Lisboa destapou-se das núvens e cá está, radiosa e limpa. Pelo menos no céu, que as ruas continuam uma desgraça.

Com graças inesperadas: descobri um restaurante na rua de Arroios chamado Delícia de Arroios. A amostra ainda é demasiado pequena para falar; mas não vai ficar assim por muito tempo.Há muito tempo que não como um pica-pau tão bom, tão eficiente e simpaticamente servido.

19.8.15

Picar, morder

Gosto de mulheres que picam; detesto as que mordem.

18.8.15

Desconfiança

Devemos desconfiar mais do óbvio do que do desconhecido.

17.8.15

Racionalidades

- Então foste despedido? O que é que fizeste? - Perguntam-me.
- Nada.
- Nada? Isso não pode ser. Alguma coisa hás-de ter feito.

É espantoso. Apesar de todas as histórias que ouvem - ou vivem - quotidianamente as pessoas continuem a acreditar que as empresas sáo geridas racionalmente, por máquinas frias e calculistas cujo único objectivo na vida é ganhar dinheiro.

Não são, claro. São geridas por pessoas; a razão ou objectivos límpidos, lineares tais como ganhar dinheiro estão tão presentes como em tudo o mais que as pessoas fazem: muito longe da primeira linha.

As empresas são humanas: só ocasionalmente são racionais.

Memorandum

"Golden rule

After university, Naipaul decided the way he had written undergraduate essays was not “proper writing”. He set himself the task of learning to write all over again, this time using only simple direct statements. “Almost writing ‘the cat sat on the mat’. I almost began like that.” For three years he stayed with those rules. He recently provided a list of seven rules for beginners at the request of an Indian newspaper: (1) write sentences of no more than ten to 12 words; (2) make each sentence a clear statement (a series of clear linked statements makes a paragraph); (3) use short words—average no more than five letters; (4) never use a word you don’t know the meaning of; (5) avoid adjectives except for ones of colour, size and number; (6) use concrete words, avoid abstract ones; (7) practise these rules every day for six months."

16.8.15

Lisboa, núvens

Lisboa tapa-se com um novo lençol de núvens, liso e acetinado. Por baixo a alegria habitual.

Amanhã acordaremos, nus e felizes: tu destapas-te das núvens e eu de ti, cidade.

15.8.15

Definição

Pena de morte é um oxímoro.

(Isto ainda estava nos rascunhos e afinal acabo de ver que já tinha sido publicado. Fica. Faz de conta que é uma reedição. De qualquer forma já reduzi o número de posts para muito menos de nove mil, com os rascunhos que apaguei. Devia era apagar tudo, mas acho pena. Escrever é uma das raríssimas coisas que não faço porque quero [adenda: como de resto se pode facilmente avaliar pelo resultado]).

Biblioteca online - The Picture of Dorian Gray

"Those who are faithful know only the trivial side of love: it is the faithless who know love's tragedies."

"I can stand brute force, but brute reason is quite unbearable. There is something unfair about its use. It is hitting below the intelect."

"Philantropic people loose all sense of humanity. It is their distinguishing characteristic."

"Faithfulness is to the emotional life what consistency is to the life of the intelect - simply a confession of failure."

Oscar Wilde, "The Picture of Dorian Gray"

(Quase directo dos rascunhos)

Noite, verdade

A noite é um ventre.

(De um poema de José Anjos:
"a partir de certa hora
café escuro
noite clara
noite fora"

E de Alice Pinto Coelho:
"– ...A noite é uma lente: aumenta o bonito e o feio")

Beleza (cont.)

Uma vez tive um sonho que continuava de uma noite para a outra, como aqueles filmes a que antigamente se chamava trinta e uma partes. Todas as noites o sonho pegava exactamente onde tinha acabado na noite anterior. Não me lembro dele, mas lembro -me do prazer que tinha quando o sonho recomeçava. Durou uma semana.

Refiro-me sempre ao sonho, no singular. Talvez devesse dizer os sonhos. Não sei.

.........
Penso nisto porque olho para X., a minha ex-mulher. X. não é a inicial do nome dela; é a do diminutivo. Gosto de me referir a ela como X., não se sabe se é singular ou plural.

A maior parte das pessoas pensa que é singular, claro. Só eu e - provavelmente um ou outro dos seus amantes - sabemos que X. é o plural de X. Isto é, que há várias pessoas dentro dela.

Tontice. Todos somos muitos; uma guerra civil, como dizia aquele francês. E com mais facções do que a da Síria. De resto não sei sequer se ela tem amantes. Espero que sim. De vez em quando ainda fazemos amor, mas é mais de vez em quando do que amor.

Quando a conheci, quando nos casámos uns anos depois, quando R., o nosso filho nasceu X. era linda. Era uma mulata muito clarinha, vinte e cinco por cento, dizia ela quando lhe apetecia gozar alguém (felizmente acontecia frequentemente. Tinha um sentido de humor devastador, cáustico que nem a si própria poupava).

Depois começou a ficar feia. Nem sequer engordou. Ficou feia e um chaço, assim quase de repente. Quando o nosso segundo filho R. nasceu já não a podia ver.

X. é uma excelente mãe, inteligente e culta como não conheço outra mulher. Só tem este problema da fealdade: cada vez que olho para ela vejo-a como foi e não como é.

Os miúdos estão crescidos, cada um para seu lado. Bem educados, bons empregos. Obra dela. Eu pouco tratei deles. Demasiado absorvido com o trabalho e com a política (faço parte da assembleia municipal da nossa vila já lá vão cinco mandatos. Toda a gente queria que eu fosse mais longe, "voos mais altos", mas declinei. Não acredito que o poder valha o que custa).

Separei-me de X. há cinco anos, mas ainda penso nela todos os dias e todos os dias tento encontrar-lhe um defeito - para além da fealdade, quero dizer -. Não encontro. Isto é : aquilo que para os outros poderia ser tomado como defeitos para mim não o são. Características, quando muito.

Sinto -me traído. X. enganou-me. Ou ela ou o tempo.

........
Agora estou casado com uma cabra que esconde a maldade de que é feita por trás de uma nuvem de gentileza, choro, pedidos de desculpa, disponibilidade para os outros, a família, os cachorros, tudo. E beleza, muita beleza, uma infinita beleza.

Sinto-me um esterco, incapaz de amar a mulher que outrora amei porque é feia; e de amar uma velhaca e de a desculpar e lhe perdoar tudo porque é bela.

Galambezes e galambices

O programa de ajustamento deste governo ficou muito aquém do que poderia e deveria ter sido; mas está a dar frutos, como seria de esperar. Claro que isto é um problema para os galambas, para os adeptos da espiral recessiva e outras espirais. Como solucioná-lo? Há várias formas; nos tempos mais próximos vamos assistir a alguns contorcionismos interessantes. Uma delas consiste em dizer que a recuparação portuguesa se deve - entre outras - à espanhola.

Que teria o PS dito (ou disse) sobre o programa de ajustamento espanhol?

14.8.15

Combustível

Ando cansado, demasiado cansado. Será que o tanque de tolerância está a acabar?

Prodígios, perseverança

Se incluirmos trinta e quatro rascunhos o DV chega hoje aos nove mil posts. Metade são fotografias, músicas e citações. A outra metade é merda. Ficam nove mil prodígios: posso não ter nada para dizer, mas digo-o com perseverança.

Michelle, I. (Cont)

"Estou de rastos, desfeita, frágil, vulnerável, cansada e por cima disto tudo, zangada." Michelle falava-me num bar do centro de Barcelona. Quem a visse e não ouvisse - o bar inteiro, eu por vezes incluído - pensaria que me estava a dar notícias dos filhos, a contar um episódio particularmente divertido das férias ou a inventar uma história cómica. Michelle - uma rapariga catalã de pai e mãe franceses - tem uma surpreendente e encantadora capacidade de dissociar a expressão do discurso. "Podia anuncia a morte do pai a rir-se", pensei, enquanto tentava ouvi-la. Fala com um sorriso de orelha a orelha mas fala baixo, e quem a conhece sabe que quanto maior for a dissociação entre o discurso e a expressão e quanto mais baixo falar mais triste está. São essas as maneiras de dizer Estou triste, mortalmente triste.

Estamos num bar do centro de Barcelona chamado Casa Almirall, um bar bonito, antigo e com excelente música. É sexta-feira, o bar está cheio. Michelle é uma habituée. Bebe muitos Vermutes, servidos na Casa Almirall à moda antiga, com um sifão (que ela não usa - isso não a impede de reclamar quando o barman, que a conhece há anos, não traz e põe ao lado do copo).


Laranja, verde



Diário de Bordos - Lisboa, 14-08-2015

Não sei se homem prevenido vale por dois; mas sei que aguenta por dois, três ou mais.

Hoje fui despedido. Já não trabalho, com grande pena minha, em Alvaiázere. A coisa não aconteceu brusca ou inesperadamente, pelo que me limitei a lamentar o fim de um tão bom interregno verde numa vida em geral azul.

Felizmente há sequelas: os tremoços do restaurante pescada real (ou real pescada, ou pescada do rei, ou rei da pescada - nunca me lembro -) estavam intragáveis - haverá tremoços depois dos da minha tremoceira de Alvaiázere? Duvido -.

O restaurante da pescada e do rei continua com dois problemas graves. Primo a imperial: boa de mais. Nunca consigo beber só uma. Secundo o frango assado. É demasiado bom. Mas enfim, são problemas com os quais consigo viver, apesar de pobre e doente. E podia acrescentar um terceiro: a simpatia do senhor que assa os frangos e "tem um tio que era maquinista nos barcos" e "quer ir ao Panamá e às Caraíbas".

Ou seja: estou em Lisboa.

........
Aborrecido, mas não mais. Por uma insondável razão (ou conjunto delas) suportamos melhor o que confirma as nossas expectativas, por piores que sejam, do que aquilo que nos colhe de surpresa. O homem não gosta de surpresas (e se for alemão não gosta delas nem boas).

Resta-me descansar e escrever, objectivos antinómicos s'il en est.

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A viagem de regresso foi fluida: camionete, comboio e metro sucederam-se num caldo de curiosidade e sono, alternados como camadas de bebinka: passo de uma vida a outra como de um meio de transporte a outro, olhando, dormindo, sonhando, lembrando e imaginando como se se tratasse de mudar de tapete rolante num aeroporto.

Feliz aeroporto!

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O meu contacto com a alta burguesia rural portuguesa foi infelizmente curto e superficial. Tenho pena. Não porque goste particularmente de espécies em vias de extinção mas porque gosto das pessoas, todas.

Pelo menos até as conhecer.

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Encontrei o meu disco rígido externo. Posso de novo ouvir a minha música. Pergunto-me como ficarei quano o perder de vez e não gosto da resposta.

13.8.15

A burocracia dos países exóticos



Coimbra, 12-08-2015

Trocas, celebrações e ensinamentos

"...esta tradição secular teve início numa altura em que grande parte dos terrenos agrícolas da localidade pertenciam ao Mosteiro de Santa Cruz e, desta forma, os chamados "frades Crúzios" deslocavam-se até aos "caseiros" por alturas do Verão, para se abastecerem de legumes, cereais e outros víveres que os mantivessem durante o resto do ano. O povo, em troca, recebia celebrações e ensinamentos religiosos e espirituais."

In Diário de Coimbra, 12-08-2015 (Verbatim).

Não sei se é preciso acrescentar muito mais.

12.8.15

Diário de Bordos - Alvaiázere, Portugal, 12-08-2015

Hoje fui a Coimbra. É uma cidade muito bonita (pelo menos a parte dela que conheci). Comprei um cinto, duas carteiras, dois toalhetes e três garrafas de vinho, cortei o cabelo e bebi uma quantidade razoável de cafés e aguardentes caseiras por menos do que em muitos países teria pago pelas garrafas de vinho ou pelas aguardentes - as quais não seriam caseiras, ainda por cima -. Fiz um amigo - um escultor de madeira - a quem encomendei um porta-chaves em forma de veleiro; e vi aguarelas fantásticas de um senhor que as pinta para poder beber, objectivo nobre e neste caso bastante bem sucedido. Bebe muito e pinta bem.

Fui de turista. Paradoxalmente cada vez gosto mais de o ser. Visitar lugares estranhos, falar com os autóctones por razões que não sejam de trabalho, ouvir as conversas na barbearia - o que eu gostaria de ser um bom escritor para as poder reproduzir - falar de vinhos com o senhor que mos vendeu, sair de um sítio com vontade de lá voltar.

Coimbra é uma cidade que eu aconselho vivamente; e à qual regressarei em breve, para ir buscar o porta-chaves e falar com os amigos que lá fiz.

A sedentarização deve ser isto, não é?

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Em Lisboa uma barbearia escolheu como estratégia de marketing proibir a entrada de senhoras. Confesso que me é relativamente indiferente; se proibissem a entrada a pretos, judeus, coxos ou idiotas teriam decerto mais problemas.

Na barbearia Irmãos, Rua Direita, Coimbra essa estratégia de marketing não funcionaria: as senhoras vão-se embora de moto proprio.

Permitindo assim uma interessantíssima conversa sobre as relações interraciais em Angola durante a guerra colonial (a média de idade da clientela é igual à dos barbeiros: alta. Eu era um dos mais jovens). Podia ter sido em Moçambique ou na Guiné, claro, mas não. Abordou-se, como convém, o tema por vários ângulos - inclusive o do famosíssimo martelo com que naquele tempo se curavam algumas das consequências menos agradáveis das mencionadas relações -. Já não ouvia falar desse martelo há muitos anos. Foi bom saber que não desapareceu do nosso imaginário.

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Quartas-feiras é dia de mercado em Alvaiázere. O céu vai ter de abrir as portas a mais uma pessoa: a senhora que me vendeu as sardinhas já lá tem um lugar reservado.

Dois: a tremoceira também.

11.8.15

Tele-turis-fotos, Inverness - Woolverstone / II




Tele-turis-fotos, Inverness - Woolverstone / I





Nomadismo

"Voar é o contrário de viajar" diz Italo Calvino. Detesto voar em qualquer avião que leve mais de dez pessoas, pilotos incluídos. Mas não partilho essa visão idílica, paradisíaca da viagem. O paraíso é onde estamos, não onde estávamos até lá chegar.

Menos do mesmo

Não é propriamente uma questão de estar sempre a voltar ao mesmo. É uma questão de descobrir mais no mesmo.

Diário de Bordos - Alvaiázere. Portugal, 11-08-2015

Regresso a Alvaiázere: vinho branco, peixe cozido e um grande passeio de bicicleta, na desordem. O dia começou com uma sopa de pedra em Almeirim e acaba com Gould a tocar Beethoven. Portugal é isto: uma deliciosa e interminável desordem de coisas boas.

Ou a vida, não sei.

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Não posso viver sem navegar, mas posso viver no campo.

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A Pátria é qualquer sítio onde o tinto seja bom, barato e abundante, o peixe e os enchidos deliciosos, baratos e abundantes, as pessoas simpáticas e hospitaleiras, o clima abençoado e o campo não esteja muito longe da cidade.

Assim de repente só me ocorre um, mas pode ser que haja mais.

Amizades

Numa coisa os "amigos dos animais" devem ser compreendidos: animais a defender animais.

Hierarquias

Na hierarquia dos privilégios fazer aquilo de que se gosta não está, ao contrário do que muita gente pensa no topo. Melhor ainda é não ter de trabalhar.

[Não é ironia. É inveja.]

10.8.15

Diário de Bordos - Aeroporto de Gatwick, Reino Unido, 10-08-2015

Jamie Oliver é um cozinheiro inglês que se tornou famoso por razões que ignoro totalmente. Não estou a ser irónico ou a insinuar seja o que for: desconheço realmente por que raio de carga de água o nome e a fotografia do homem estão em todo o lado. É impossível dar três passos seguidos neste país sem se ver a cara (para mim de parvo) do rapaz.

Há pouco fui comprar uma sandes, criada por ele ou, mais provavelmente, por alguém na empresa dele. Li, como sempre, a lista de ingredientes. Parecia uma lição de química.

Ainda por cima era uma porcaria.

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Mais do que o que aprendemos, a grande vantagem de ler é dar-nos ver a extensão do que ignoramos.

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Outra vez em Gatwick. Desta vez é pouco tempo: um par de horas. Não terei sequer tempo para esgotar a hora e meia de wi-fi gratuito que o aeroporto gratuita e generosamente dispensa.

Em Lisboa é ilimitada. E ainda há quem diga mal de Portugal.

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No país que nos deu a ver Julie Christie, Julie Andrews, Jacqueline Bisset (ámen), Helen Mirren, Charlotte Rampling (re-ámen), Helena Bonham Carter, Dirk Bogarde, Michael Caine, John Gielgud, Anthony Hopkins, Sean Connery e mais uma grande dúzia deles as pessoas são feias de morrer.

"O Império Britânico existiu porque os ingleses queriam melhor comida, melhor clima e mulheres mais bonitas do que as que tinham em casa", alguém disse - mais ou menos, cito de memória -.

Diário de Bordos - Ipswich, Reino Unido, 05 a 10-08-2015

Não é a primeira vez que estou em Ipswich, mas é como se fosse: não me lembro absolutamente nada do lugar, excepto de o ter achado mortalmente aborrecido. Desta vez não terá tempo de me entediar: daqui a pouco estarei no comboio a caminho do aeroporto a caminho de Lisboa a caminho de Alvaiázere.

O transporte correu bem, sem percalços de maior, se excluirmos os provocados pela minha incapacidade de gerir o meu dinheiro. Com a qual, de resto, cada vez lido pior. Começo por achar injusto que esta incompetência se manifeste apenas quando a massa é minha; com a dos outros sou o cuidado e a atenção personificados. Depois acho indecente ser-me cada vez mais difícil de aceitar: a prática devia tornar isto mais fácil, não o contrário.

Enfim, as coisas resolvem-se sempre. Penso em Attali: todos os Ulisses precisam de uma Penélope.

Sem Penélope Ulisses não passaria de um imigrante que se perdeu no caminho de regresso a casa.

Sonho com uma vida chata como o fundo de uma banheira.

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Hoje comparava as ausências de vento e de dinheiro. Têm um efeito comum: este devastador, esmagador, demolidor sentimento de impotência. Porém, a falta de vento aceita-se mais facilmente: não há nada que se possa ou pudesse ter feito para a evitar. A de carcanhol não: só provoca perguntas cujas respostas são na sua maioria desagradáveis.

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Saímos da Escócia com vento, chuva e frio. Passámos a "fronteira" com a Inglaterra e temos sol, calor e uma total ausência de vento. Nunca pensei que um dia olharia para a Inglaterra com carinho pelo seu clima (exceptuando a falta de vento, claro, que é uma seca).

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Amar como o vento, que toca e não fica.

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Uma viagem que começa a um largo (frio e chuvoso, mas um largo) e acaba com uma bolina folgada gloriosa não pode ser senão uma maravilha. Calor, sol, vinte nós de vento, mar chão, leme leve e barco alegre: não é difícil perceber porque um dia assim vale vinte dos outros.

(Ou, acessoriamente, porque se chama folgada a esta bolina).

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Quem é contra o aquecimento global deveria passar uns dias na Escócia. Não precisa de esperar pelo Inverno: o Verão chega perfeitamente.

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Começando no través de estibordo uma série de plataformas de gás (mais de dez, parece uma frota); a bombordo a lua a nascer, cor-de-laranja; céu limpo, mar que parece uma piscina. Vinte milhas pela amura os clarões das diferentes cidades na costa. Menos frio do que ontem. Nem o facto de ir a motor consegue desclassificar esta noite: é magnífica.

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Cheguei às três da manhã e dormi até às dez. Não dormi, morri um bocadinho. Não acordei: ressuscitei.

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A costa inglesa está chei de wind farms, parques eólicos. Feios monstruosos, horrendos (se bem, admito, melhores do que o décimo de uma central térmica que dez mil ventoinhas substituem).

É preciso ser inglês para chamar farm a estes horrores.

4.8.15

Tele-turis-fotos






Diário de Bordos - Inverness, Escócia, Reino Unido, 04-08-2015

Acabámos por encontrar um carro, um Fiat 500, e lá fomos os três turistar. Demos uma volta ao Loch Ness (para além de mim não havia monstro nenhum), parámos em Fort Augustus onde o Caledonian Canal sai do lago e regressámos por uma pequena estrada de montanha. Não vale a pena tecer grandes encómios à beleza do lugar. Seria como chover no molhado: toda a gente sabe que a Escócia é linda. Apetece ajoelhar perante esta força toda, esta beleza austera, quase ríspida, pronta a castigar quem sai da linha.

Já a ideia de que estava a confirmar um preconceito me deixou um bocadinho mais instabilizado. Continuo a preferir infirmá-los. Confirmar o que já se sabe ou espera é menos agradável do que descobrir que estava enganado e devo trocar uma ideia feita por outra, que penso estar mais perto da verdade.

É como acreditar que se estiver no quinto andar estou mais perto do sol, não é? É. Mas apesar disso prefiro substituir preconceitos a confirmá-los, por muito difícil que possa parecer fazer-me mudar de opinião.

Na verdade é: alguns prazeres de vem ser abordados com circunspecção.

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Largo hoje à tarde com a maré. As previsões não são muito boas, mas creio que vamos conseguir passar. O tempo tem estado uma espécie de bebinka meteorológica: calor, frio, calor, frio, sol, chuva, sol, chuva. Calor sendo vinte graus e frio onze ou doze. Já o sol e a chuva são menos distinguíveis, com a soberba excepção da tarde de ontem, ensolarada na sua grande maior parte.

Uma depressão que não sai de onde está, frentes oclusas e outra depressão, mais pequena, a sul da primeira. E ainda há quem diga mal de Portugal.

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Para lutar contra o capitalismo as religiões e as ideologias de esquerda - que no fundo são a mesma coisa - revelaram-se ineficazes. A maioria das pessoas sabe que o capitalismo é bom - ou pelo menos o melhor - e não o troca por nada, a não ser à força e mesmo assim temporariamente.

É por isso que os idiotas agora se voltam para a ecologia, o ambientalismo e essas novas religiões. Idiotas talvez não seja justo: afinal conseguem, como os católicos, comunistas et al., conciliar os seus sonhos de um mundo "melhor" e "diferente" com a ideologia que lhes permite concretizar esses sonhos e mudar o mundo: o capitalismo.

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O L. é um Bénéteau 37. Que prazer estar num barco "normal", depois destes anos a navegar em naufrágios flutuantes. E o que vou buscar a Shelter Bay para St. Martin é um X 50. A maré mudou, não há dúvida.

Inspira-se na minha forma de trocar de preconceitos, é tudo.

3.8.15

Diário de Bordos - Inverness, Escócia, Reino Unido, 03-08-2015

A perspectiva de passar quase onze horas num aeroporto não predispõe ao bom humor, claro. Se esse aeroporto for o de Gatwick não só não predispõe ao bom humor como esvazia o que dele resta. Quase, na verdade: é muito e os truques antigos e conhecidos: percorrer o aeroporto todo (com o saco, o check-in só abre quatro horas antes da descolagem), estudar cuidadosamente os possíveis refúgios para o dia, escolher um deles, gozar com a doce incompetência dos ingleses (e pensar que ela não os impede de ser um grande povo, se bem não o trocasse pelo meu nem por meia dúzia de outros que conheço por esse mundo fora).

Uma vez escolhido o ou os sítios regresso a eles, sento-me no primeiro, percorro a net, penso no que vou fazer - mas penso só, não faço mais do que isso - leio o FB, e os raros mails que me chegam, trabalho um bocadinho, bebo cafés duplos uns atrás dos outros (cafés duplos merecia aspas. Só não as leva porque a partir do segundo descobri que a senhora atrás do balcão é portuguesa e a partir desse momento comecei a ter direito a baldes de café e não mais a chávenas praticamente vazias -) Enfim, mastigo o tempo como se ele fosse um bocado de carne dura.

Depois vou almoçar, sento-me no outro sítio que tinha visto durante a repérage (é mesmo à frente do primeiro) trabalho mais um bocadinho, começo a planear a viagem, chateio-me com a previsão meteorológica (mas pouco: podia ser muito pior).

Enfim, mastigo o tempo e ele deixa de ser carne dura e amanhã só me lembrarei do tempero.

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Escrevi o que precede em Gatwick. O resto perdeu-se, para sorte de quem o leria.

O tempo piorou, claro. Tinha previsto largar hoje à tarde, com a maré; se conseguir largar antes de quarta-feira já ficarei bastante satisfeito. Está frio e chove; sinto-me num inverno algarvio.

Decidimos alugar um automóvel e ir passear. É a coisa mais sensata a fazer. O bote está pronto para a viagem; entre escrever tonterias e ir ver paisagens bonitas prefiro a escolha é fácil.

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Um dos tripulantes não vai ter tempo de fazer a viagem toda. Vou desembarcá-lo a meio. São os dois porreiros. Um cozinheiro reformado e outro engenheiro de telecomunicações.

O cozinheiro não se importa nada que seja eu a cozinhar. Ontem improvisei um frango; hoje vai ser frango outra vez, mas em leite de coco. Não é propriamente uma improvisação.

Sacana do tempo.

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Não há carros. Vamos de camioneta.