22.3.25

O vento, os caminhos

No inverno - e em muitos dias da Primavera e do Outono - a luz de Genebra é muito branca, parece diluída em clara de ovo. Isto deve-se às nuvens altas. Estão sempre por cima da cidade, como se a quisessem proteger de qualquer coisa demasiado violenta, sabe-se lá o quê. Do Sol não é de certeza, estamos a quarenta e seis graus de latitude. Um grau mais do que o meio caminho entre o Equador e o pólo. Quando aqui vivia achava isto desesperante. Agora, que venho cá de passagem, de visita, gosto. Tudo fica suave, arredondado, como se não houvesse ângulos agudos ou arestas na geometria da cidade. As formas e as sombras diluem-se e agora, Primavera, as árvores ainda nuas contrastam com as cores garridas das ubíquas flores. Ando muito a pé, como se fosse um turista e vejo melhor os contrastes, as construções modernas, regra geral feias lado a lado com as antigas, lindas, maciças e imponentes, de janelas enormes para deixar entrar essa tal luz.  Dentro desses apartamentos tudo é suave também, tudo é fluido, regular, ordenado, sem arestas. (Não é, mas isto é literatura e não sociologia, antropologia ou outra logia. É assim que vejo a cidade e lhe oiço a ausência de ruídos). Na verdade agora buzina-se mais do que há vinte anos mas os automóveis eléctricos, as bicicletas e as trotinetas - omnipresentes, como as flores - absorveram a diferença. Não há muita gente nas ruas. Ou trabalham ou estão em casa. Nos cafés só reformados, com a óbvia e natural excepção das ruas perto da universidade. Penso no que a cidade mudou, no que eu mudei e apercebo-me com espanto que essas duas mudanças nos aproximaram em vez de nos afastar.

A ausência de arestas - visíveis - tem efeitos nas pessoas, consequências que por sua vez a causam. Este movimento circular, harmonioso, atraente, quase uma vertigem, é magnético, faz-me sentir como se estivesse a cair no poço da Alice. 

Fui à livraria de viagens. Chama-se Le Vent des Routes. O nome é adequado a um marinheiro que sempre andou com, pelo ou contra o vento.

21.3.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 21-03-2025

O sistema de saúde suiço está doente, praticamente desde pouco depois de o actual modelo ter sido posto em prática. É bastante instrutivo e bem podia ser usado como ilustração daquele velho provérbio segundo o qual de boas intenções está o inferno cheio. Quem quiser ter uma ideia do que se passou e falar francês (ou souber como usar tradutores em linha), pode ir aqui. Resumindo muito: após uma série de referendos e iniciativas populares, projectos e contra-projectos todos recusados pelo «soberano» (designação local para povo), em 1994 a actual lei é aceite, por uma curta maioria (51,8%). Os debates até chegar aqui foram - como sempre, mas mais do que o habitual - acesos e muitos. O povo suiço tem uma saudável desconfiança de tudo o que lhe cheira a poder central e foi preciso toda a habilidade política de uma senhora chamada Ruth Dreifuss, socialista (cela va sans dire) que o projecto passou a rampa (o cerne aqui sendo que o seguro de saúde passaria a ser obrigatório e não voluntário como até ali. Enfim, parcialmente voluntário. O seguro contra acidentes já era obrigatório). Para dourar a pílula, passem-me por favor o galicismo, a senhora Dreifuss imaginou um sistema no qual os seguros teriam duas componentes. Uma, a de base, incluiria um mínimo de prestações, as mais usuais e frequentes. Quem quisesse mais  teria de subscrever uma apólice «complementar» (aspas porque cito). Nos primeiros anos o seguro de «base» aguentou-se como tinha sido lançado; mas dai a um político a ponta de um dedo e em menos de um fósforo ele ter-vos-á comido o braço. E o que os opositores do projecto tinham previsto aconteceu: não se passava um ano que o governo não incluísse mais coisas no seguro de base. E que faziam as companhias de seguros? Aumentavam os prémios, está bem de ver. O que ninguém previu foi o estado catastrófico, monstruoso, a que isto chegou. O seguro de saúde é hoje um dos principais centros de custo para os suíços e é enorme, desmesurado. 

Ainda por cima, como é próprio dos políticos, não aprenderam, Agora andam a esbracejar para ver se conseguem baixar o preço das apólices mas em vez de decidirem acabar com a porcaria do seguro-base e deixar cada seguradora decidir o que inclui na apólice, que fazem? Aumentam a franquia mínima. Não reduzem o custo, mas reduzem »a progressão de custos».

Se fossem dar uma volta ao bilhar grande também a reduziriam e muito mais depressa.

Nota bene - a democracia directa tem pelo menos uma vantagem: os suíços têm o que quiserem ter, mesmo que a maioria tenha sido curta. Não houve cá martas temido a impor fosse o que fosse.

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Ontem lá consegui ler qualquer coisa, conjunção feliz de vários factores: estava muito sol, o livro tem as letras grandes e o autor é Umberto Eco. Chama-se Reconnaître le fascisme (na tradução francesa. O Original é Ur-fascismo, creio mas não tenho a certeza).

Eco afirma que o fascismo, contariamente a outras ideologias totalitárias, não tem um corpus teórico específico e criou o conceito de ur-fascismo, uma espécie de englobante com catorze características que, segundo ele, ajudam a reconbecer os traços de fascismo numa ideologia. Para que uma ideologia seja fascista não é preciso que os tenha todos. Basta aliás um qualquer para que o fascismo se possa sedimentar a partir daí. 

Esses catorze pontos são:
- Culto da tradição;
- Conservatismo aliado à rejeição do moderno, dissimulado sob o manto do capitalismo. Rejeita-se o capitalismo e tudo o que se seguiu à revolução francesa, à independência dos Estados Unidos. A «depravação» do mundo moderno começou com o Renascimento;
- O culto da acção pela acção. Os homens não pensam, agem;
- Rejeição do pensamento crítico;
- Rejeição da diversidade;
- Exploração da frustração (sobretudo das classes médias);
- Obsessão com o complot. O fascismo precisa de um inimigo exterior, internacional;
-  Obsessão com a riqueza e a força do «inimigo»;
- A vida é uma guerra permanente. Uma vez vencidos todos os «inimigos» virá um período da paz, uma nova idade de ouro;
- O elitismo. Cada cidadão pertence ao melhor povo do mundo - mas precisa de quem o guie e governe;
- O culto do heroísmo;
- O controle das mulheres. O homem verdadeiro é machista. Um homosexual não é um homem a sério;
- O povo é uma entidade coesa e tem uma vontade comum. Não há lugar para vontades próprias;
- O empobrecimento da língua, que é simplificada e controlada.
(Para escrever esta lista fui aqui.)

Como Umberto Eco diz, estes pontos são partilhados por muitas ideologias ditatoriais e os meus amigos reconhecerão decerto pelo menos uma delas.

O livro foi escrito a partir de um discurso na Universidade de Columbia a 25 de Abril de 1995. Sugiro fortemente a sua leitura. 

Umberto Eco, Reconnaître le fascisme, ed. Grasset, col. Les cahiers rouges, Paris 2024

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Hoje esteve menos frio do que ontem e ontem menos do que anteontem. Amanhã a máxima estará outra vez nos dezassete graus, mas a partir de domingo baixa de novo. A prima vera é instável, coitada. Tem súbitas e enormes variações de humor.

Espera, desnorte e outros diabos

Está desorientado quem não sabe aonde está ou para onde ir; e desnorteado quem não sabe o que fazer. Desocidentado não existe e desolado não é sequer para aqui chamado. Ou seja: certos e seguros só o sul e o ocidente - o que explica, sem dúvida, a velha expressão "vai para oeste, jovem" tão usada no cinema, na música e na má literatura. F. não estava nem desorientado nem desnorteado. Estava desesperado, mas a espera não sendo um ponto cardeal de nada lhe servia tentar encontrar soluções para esse doloroso estado. A menos, claro, que dissolvesse a angústia em água, sempre seria uma solução. F. pensava nisso seriamente.  Estava farto do café, vinho e sumo de  kiwi em que dissolvia os estados de profunda prostração que regularmente o submergiam. "Água", pensou, "é a solução. Resta saber se lisa se gasosa."

Dilema esse que não resolveu. O simples facto de ter de fazer uma escolha magoava-o. Passara a viver num café aberto vinte e quatro horas por dia, todos os dias. A cada meia hora consumia uma água, alternadamente com e sem gás. Pagava-as mal chegavam à mesa, para não dar pretextos de expulsão ao dono e aos empregados. Quand dormia, os empregados deixavam-lhe as águas na mesa. Pagava-as quando acordava.

Um dia acordou. Bastar-lhe-ia encontrar um norte e o caminho para lá chegar e deixaria de estar desesperado, apesar de continuar sem saber aonde fica a espera.

Ninguém sabe, excepto o Diabo.

20.3.25

Palavras, actos

"Só as palavras contam. O resto é conversa."

(Ionesco, citado por Umberto Eco in Reconnaître le facisme", ed. Grasset.)

Às vezes. Em geral, entre as palavras e os actos continuo a preferir estes àquelas.

19.3.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 19-03-2025

Ontem... (Não tenho a certeza de que um diário que começa por «ontem» seja de fiar. Não faz mal. Fica.)

Ontem fui passear. Trajecto habitual: casa - mercado de Plainpalais - casa por um caminho diferente. Para ir fui pelos Bastions, para regressar pela Rue de Carouge. É uma rua que salvas as devidas proporções - são muitas - e com um bocadinho de imaginação (grande) podia passar pela Almirante Reis de Genebra. Não é. Falta-lhe muita coisa e tem outras a mais, mas é o que me faz lembrar. Uma Almirante Reis mais pequena, mais limpa e mais civilizada, mas igualmente a ferver de vida. Fui aos Recyclables beber um copo de vinho tinto. Les Recyclables é uma livraria-café que começou por ser uma livraria de livros em segunda mão à qual se juntou um pequeno café. Hoje é um café que até pratos do dia serve com uma livraria ao lado. A livraria não é nada pequena, note-se. Continua a ter uma vastíssima escolha de livros, todos em bom estado e a preços «acessíveis» (aspas porque é irónico. Preços acessíveis em Genebra é o perfeito exemplo de oxímoro, se por acaso alguém precisar). Bebi um copo de vinho, comprei um postal e paguei mais do que teria pago por uma garrafa de qualidade média-baixa no supermercado.

Mas beber vinho em casa tem muito menos piada do que estar sentado num café a ouvir um bom jazz e a escrever um postal, não tem? Tem.

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À noite o L. e o S. vieram jantar. Com o primeiro tenho mantido algum contacto; já o S. não o via há quarenta anos, mais semestre menos semestre. É arquitecto naval. Foi uma soirée boa, a falar de barcos com quem sabe. O L. fez duas Whitbread, o S. tem um clássico de 1918  (em Veneza, que para meu grande espanto é um sítio barato para ter embarcações). Não falámos do passado - só de barcos e das derivas woke (pouco) e bebemos correctamente. Quando anunciaram que se iam embora não os retive. Envelhecer é isto e é bom. S. confirmou sem entrarmos em muitos pormenores o que eu fiz no P., coisa que depois da recente reunião com a dona do barco me alegrou bastante.

(Pequena nota à parte: quando mencionei o P., S. disse imediatamente: «O do Hugh Welbourn?» A pena que eu tenho das mãos em que aquele barco está. Enfim, das mãos não tenho pena nenhuma. Tenho do bote, que não as merece.)

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Falta uma referência ao Lindor, um chocolate da Lindt que continua a ser, para mim,  melhor chocolate de leite de sempre e para sempre; e outra aos TPG, os transportes públivos de Genebra, que tive a sorte de conhecer por dentro por lá ter trabalhado seis meses (no escritório, não nos autocarros). Genebra quis acabar com o excesso de circulação automóvel na cidade e para isso percebeu que tinha de melhorar os transportes públicos. 

Para quem não sabe o que é a excelência e quer saber, a solução é simples: faça uma viagem pela cidade utilizando os transportes à disposição: autocarros, eléctricos e barcos. Cereja em cima do bolo: são mais baratos do que em Lisboa, em PPP.

16.3.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 16-03-2025

Hoje ouvi um disco chamado Schubert: The Last Quartets pelo Quatuor Aviv. Como é que de Schubert só conseguia ouvir os Impromptus, tocados pela divina Maria João Pires e não gostava de tudo o resto? A resposta é fácil, claro: os anos servem para nos fazer descobrir o imbecil que em nós vivia. Camadas geológicas de estupidez e ignorância (por muito que se advogue que convém não as misturar, estas duas andam por vezes juntas). Descobrir no sentido de destapar, pôr à vista. Envelhecer é isso e é bom. 

Resta saber, claro, se essas camadas de ignorância não são simplesmente substituídas por outras, que só quando já só os vermes tiverem uma palavra a dizer serão descobertas. "Cuidado com o fígado", diz um. "É puro veneno". "O coração não está melhor", diz outro. "Com o cérebro não há problema", acalma um terceiro. "Está vazio. Não sabe a nada".

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Reflexões agradáveis hoje no trajecto para casa da filha. Começámos por ouvir o disco de Alcides, quanto a mim o melhor disco de música cabo-verdiana de sempre. Mas o dia convidava a outra coisa - o Alcides já vinha de ontem e já fora ouvido pelo menos duas vezes -, a S. tirou este Quatuor Aviv do sítio aonde guarda os CD e eu fiz a substituição. 

Que maravilha! O troço de planície entre Genebra e Gland é bonito - a Suíça é o país mais consistentemente bonito que conheço, não tem lugares feios. Só tem beleza em diversos graus - e o génio de Schubert  encaixa na paisagem, no cinzento do céu, na expectativa da raclette (que excedeu todas as expectativas), na antecipação do prazer de reencontrar a família, hoje com o tempo para nos encontrarmos que ontem nos faltou.

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R. E. enviou-me uma mensagem. Vai precisar de mim em Abril. Vou finalmente conhecer o país basco.

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S. vai estar fora a semana quase toda. Vou contactar dois ou três amigos, fazer tudo o que tenho para fazer - é muito - e passear. 

Por Genebra e por mim.

15.3.25

Diário de Bordos - Nyon, Vaud, Suiça, 15-03-2025

Terceiro aniversário do primeiro neto. A Suíça sendo a Suíça, há vinte adultos e quatro miúdos, incluindo o aniversariante (números aproximativos). Dos vinte adultos três são avôs e o resto está mais ou menos igualmente distribuído. Genebra faz uma vez mais jus à beleza das suas mulheres, a Suíça à ordem e à beleza da tranquilidade. É preciso envelhecer para apreciar este país. 

Tudo isto dito, não consigo impedir-me de pensar que Genebra é um cantão que os suiço-alemães vêem como uma espécie de circo, uma mistura de sul de Itália e norte de África disfarçada com as cores da Confederação. (A festa é no cantão de Vaud, mas é como se fosse em Genebra. Isto é malta exilada das rendas, que em Genebra são dificilmente suportáveis por jovens casais em princípio de vida.)

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E eu, como sempre nestas festas, intimido-me, sento-me num canto com um copo ao lado e o telefone nas mãos. Escrevo e navego pouco, há que aproveitar todas as oportunidades. 

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A minha neta é linda. Posso dizer com orgulho que contribuí duplamente para a beleza feminina da cidade: a actual e a futura.

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Está frio, chove e é Março. 

(A conjuntiva é desnecessária: está frio, chove, é Março.)

14.3.25

Louvor da bicicleta, merken e outros milagres

Coisas que só andando de bicicleta pela cidade podem acontecer: hoje descobri na Almirante Reis, já perto do Areeiro (lado direito de quem sobe, se por acaso) uma loja de produtos argentinos. 

Sim, têm merken

(É uma mistura de especiarias para pratos de carne. Enfim, não.  É um milagre para pratos de carne.)

Diário de Bordos - Avião Lisboa - Genebra, 14-03-2025

O avião é suíço. Está demasiado quente. Não me queixo: antes assim. Aviões, casas, lojas, autocarros, comboios, teatros, cinemas, supermercados, tudo estará sobreaquecido, nestes próximos dias. Também eu, à ideia de ver os meus netos, aqueço de impaciência até ferver. 

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Reunião com M. e advogadas. A presença destas senhoras foi um oásis de racionalidade. M. continua o poço de emoções mal controladas, por muito compreensível que seja a sua raiva. O que não é compreensível é ela não perceber a parte de responsabilidade que lhe toca. Penso na observação que alguém me fez sobre ela: "Ó mãe, quem comeu o chocolate foi o mano, não fui eu." 

Há sempre um mano, para a M. Nunca é ela. Salvam-se os quase sete anos que passei em Palma, com interrupções e muitas vezes dificuldades, mas enfim. Aquela cidade vale isso tudo e muito mais. 

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O voo é curto: pouco mais de duas horas. Sentei-me à janela na esperança de dormir qualquer coisa, mas o raio da reunião não me sai da cabeça. Resisto à tentação de catalogar M. na categoria de "qq coisa" rasca porque sei que aquilo é simplesmente um vulcão de emoções mal controladas. Como é que uma pessoa inteligente - ela é-o - consegue não usar a Razão, deixá-la ser varrida por um tsunami descontrolado? 

Não sei e gostaria de saber, ver se consigo dormir nem que seja um quarto de hora. 

Durante muito tempo pensei que era estratégia. S. disse-me que não, que é assim mesmo, o que se vê é o que é. 
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Não dormirei. Chegamos daqui a vinte minutos. Temperatura: quatro graus. E ainda há quem se queixe do aquecimento excessivo do avião.

ADENDA 
Nada como uma ex-mulher que entre bastas outras coisas estudou e trabalhou e fez investigação em neuropsicologia. O comportamento de M. foi-me explicado em pormenor e mais: descreveu reacções e comportamentos da minha querida ex-armadora (o prefixo está  o sítio certo) que eu nem sequer lhe tinha contado. (Refiro-me à actuação durante a reunião. Da senhora já lhe falei amiúde.)

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A Suíça é um país para velhos. Aproximadamente uma hora depois de as rodas do avião terem tocado a pista estava a casa da S. O trajecto foi fluido como a descida de uma pista de ski bem cedo de manhã, com pouca gente e a neve ainda dura e bem compactada.

12.3.25

Diário de Bordos - Comboio Caminha - Lisboa, Lisboa, 12-03-2025

Talvez seja a sorte do principiante; talvez seja apenas uma sequência de má sorte; talvez seja simplesmente uma sequência de acasos sem sortes nem azares. Talvez não seja sequer acaso e tenha havido instruções superiores: já vou no terceiro revisor seguido que me recusa a transição para a primeira classe. Começa por «Tenho de ir perto da bicicleta» e depois desfiam um colar de razões, como se rezassem o terço - cada um tem as suas, diferentes das do anterior. Resultado: faço a maior parte da viagem no bar, a ocupar indevidamente uma mesa mas com ainda mais espaço e conforto do que na primeira - e igualmente longe da burra, coitada, que ali ficou amarrada com o cadeado. Desde «se acontecer qualquer coisa o senhor tem de estar perto da sua bicicleta» até «se vem aí um chefe sobra para mim» (verbatim), passando por «não há lugares disponíveis em primeira» já ouvi de tudo. . Só o futuro dirá, que o passado é mudo, toda a gente sabe.

Já sobre o atraso do comboio - vem de Valença e chega a Caminha, meia dúzia de metros depois, com mais de cinco minutos de atraso. Chegaremos a Lisboa vinte minutos depois da hora, no mínimo, e meia-hora em média. Ou sobre a ovalização das rodas. Ainda hoje comentava com a L. a desilusão que foi para mim a primeira vez que andei num TGV: vai-se a quase trezentos quilómetros por hora e não se sente a velocidade. Nestes comboios, a partir de cinco quilómetros horários (passe a piada) parece que vamos a trote num cavalo jovem.

O que não me impede de continuar a gostar destes trajectos. Agora, por exemplo, atravessamos um banco de nevoeiro e a paisagem desfila por trás de uma cortina de gaze, como se quisesse fazer-me concentrar no que escrevo e não perder-me em contemplações e pensamentos sobre o meu horror à névoa, o que eu a detesto quando estou no mar, por muitos radares e AIS e olhos que tenha a bordo. Aqui não: é quase confortável, se bem a carruagem do bar não tenha o aquecimento ligado, suponho que por causa de não quererem que as pessoas façam a viagem aqui sentadas com bilhetes de segunda classe...

A verdade é que prefiro cinco horas num comboio ao mesmo tempo num avião, se bem num caso o destino seja Lisboa e no outro pudesse ser, sei lá, talvez Cabo Verde ou Turquia ou outra coisa qualquer. Tenho para mais um ano de viagens e depois farei como o outro: viajarei à volta do meu quarto. Ou à volta do meu apartamento em Vilarelho, abençoado seja, que vai acolher os meus livros, a minha escrivaninha e o meu futuro, tudo junto e por atacado. Ou melhor: atado com os fios do passado.

Como eu costumava dizer: vou pôr o meu passado em ordem. (Duvido, mas isso fica para depois.) 

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Março é mês de aniversários na família (são três) e a minha filha L. decidiu fazer uma festa única. Quis a sorte que eu possa estar presente. Enfim, não: quis a sorte que eu possa sonhar em estar presente. Só logo à tarde o saberei ao certo. Não sou religioso nem crente mas há momentos em que me apetece sê-lo. Quando navego no nevoeiro, por exemplo. Ou quando espero a certeza de poder celebrar estes aniversários todos em Genebra. 

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Saída na Campanhã com quinze minutos de atraso. Talvez a CP devesse actualizar os horários, não? Ou então mudar o nome para SNCF(Pt).

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No Porto mudou o revisor e a sorte voltou. Para além de um bilhete de primeira classe fui recompensado com uma extrema gentileza (extrema mas, é preciso dizê-lo, frequente nestes senhores revisores) e uma explicação para os atrasos nos comboios. Parece que é só na linha do Minho e são devidos a ser via única. Ou seja: tudo volta ao normal. O mundo recompõe-se. Posso deixar o bar e ir para o meu lugar. Posso acreditar que o nevoeiro se levantará em breve. E que a saloiice do «cuidado com o espaço entre o degrau e a plataforma» um dia acabará, juntamente com o «portuguesas e portugueses», como muito razoavelmente mas sem exclusividade pede o MAB hoje no Facebook. É uma expressão que me faz dar saltos a cada vez que a oiço. Antigamente os políticos falavam bem e o povo tentava imitá-los. Agora falam ao nível do povo. Ou melhor: daquela parte do povo que é ignara.

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Lisboa

Vinte e três minutos de atraso. Respirei aliviado: na estação do Oriente pensei que chegaríamos com menos de vinte minutos de atraso, mas vá lá. A CP manteve garbosamente a média (a qual, verdade seja dita, é estimada).

Depois foi o adorável trajecto de Sta. Apolónia até ao Cais do Sodré. Choque de realidade: vou ao quiosque de S. Paulo, dantes um templo da boa e barata comida de rua. Paguei nove euros e noventa cêntimos por um copo de vinho tinto e uma empanada. Nove e noventa, assim discriminados: três e noventa e cinco a empanada - que estava boa até eu lhe ver o preço - e cinco e noventa e cinco por um copo de Papa-Figos, também e mais justamente conhecido por Papa-Tolos.

Sou liberal e aceito isto facilmente de um ponto de vista ideológico. Mas sou também um teso e revolto-me: mais um dos meus antros aos quais não poderei regressar tão cedo. Saudoso Maria Rapaz a dois euros, saudosos ovos verdes a não sei quanto mas pouco. 

Agora, Cascais. Senhora, porque me cascais? (Senhora pode ser substituído ad libitum.)

11.3.25

Diário de Bordos - Declaração de voto - Caminha, Alto Minho, Portugal, 11-03-2025

(Refiro-me à política nas democracias ocidentais. Nas ditaduras, autocracias e cardumes de robalos é diferente e muito pior.)

A política é um mal necessário. Consiste basicamente numa troca: uma pessoa com um ego muito grande, motivações diversas - que podem ir da megalomania ao altruísmo, com vários desvios e desvarios de permeio - promete às pessoas as coisas que ela pensa elas querem ouvir. Em troca, os eleitores elegem-na e esperam que ela cumpra as promessas ou pelo menos parte significativa delas. De vez em quando aparece um político cuja motivação pende mais para o lado do altruísmo, o que é louvável e desejável; não é, contudo, frequente. A megalomania e a vontade de «fazer coisas» são de longe dominantes. A única forma que o eleitorado tem de manter o acordo é ser exigente e não ser ingénuo, resignado ou esperar que da mesa do poder caiam algumas migalhas. Essa exigência, abundante em países como a Alemanha, os países Nórdicos, a Suíça e por aí fora falta em Portugal, o que explica a fraca qualidade da nossa política (fraca se aferirmos pelos resultados. Se o critério for outro a apreciação é diferente). Por isso é preferível julgar quem nos governa pelo que faz a pelo que diz. 

(Ou melhor: pelo que deixa fazer. Deus nos livre de políticos que fazem. Seria como um polícia sinaleiro que descesse do seu pedestal e começasse a conduzir os automóveis que por ali engarrafam. A paralisia não só não se resolveria como ficaria mil vezes pior - como de resto vemos no nosso país.)

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No sábado fui assistir à cerimónia de lançamento da candidatura de uma senhora à presidência da câmara de Caminha. A apresentação seguiu o cânone: discurso de amigos - cultura - mais amigos - video sobre a senhora - discurso da candidata. De entre os amigos ressalto o discurso do alcaide de La Guarda, o menos langue de bois de todos. A cultura foi representada por música tradicional portuguesa tocada ao cavaquinho e à guitarra, o que faz sentido. Jazz, música tradicional irlandesa ou togolesa não seriam adequados. O video foi um slideshow. A candidata sendo fotogénica a coisa passou bem. Chegou finalmente o discurso da senhora. Se há coisa a que resisto mal é a uma boa retórica. Há um elemento emotivo na política, por muito racionais que sejam os olhos com que a olhamos. A forma é um elemento fundamental na constituição dessa emoção. Resultado: decidi que votarei nessa candidata.

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Caminha é uma jovem bonita parada à beira da estrada à espera de uma boleia, mas o único carro em vista está parado por incapacidade do condutor. Penso - ou melhor, acredito - que a candidata cuja apresentação fui ver ontem tem qualidades para conduzir o automóvel e dar boleia à jovem - que de resto não é assim tão jovem, de onde o seu enorme charme. No que pessoalmente me toca, a actual câmara municipal parece uma corrida dos cem metros barreiras com atletas tetraplégicos. Entre estes e a senhora, a escolha é simples, inevitável: uma promessa de competência vale mais do que a paralisia comprovada. 

É claro que o meu voto não fará diferença nenhuma no cômputo geral dos votos. Não é por eu pensar que Caminha precisa de uma marina (e nisso estar envolvido), que a ponte sobre o Coura deve incluir uma passagem para peões e ciclistas (interesse próprio), que esta foz devia estar cheia de velas de miúdos a aprender a navegar ou que explorar lítio na serra de Arga é um disparate (para todos) que isso acontecerá ou não. Esse é o lado emotivo, quase camusiano, da política democrática. Mas, parafraseando alguém que muito admiro: a política sem emoção é uma vergonha, sem Razão uma chatice. 

9.3.25

Definição - Mulher

Mulher: faca de cortar o frio.

Todos os frios.