3.1.25

(Cont.)

Envelhecer é destapar-nos das camadas de ignorância que nos têm coberto desde que nascemos, como placas geológicas mas com tempos mais breves. Ou dos cobertores de uma noite fria quando o dia nasce.

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 03-01-2025

Não é bem uma questão de «só os imbecis não mudam de opinião». É mais «crescer e aprender». Ou «é muito difícil ser jovem e não ser ignorante». Ou, mais realisticamente: «em jovem eu era um palerma e à medida que fui crescendo fui sendo-o menos. Infelizmente ainda não cheguei ao nível zero da palermice mas lá chegarei. Basta morrer.»

Encontrei o canal Mezzo na televisão doméstica e oiço um programa dedicado ao trio Play Bach, coisa que há coisa de quarenta anos não apreciei. É preciso ser idiota, não é? Talvez não. A minha hipótese é: «Não. Basta ser jovem.» Essa hipótese é facilmente falsificável: milhares de jovens ouviam isto e gostavam e apreciavam conhecedoramente. Ou seja: a minha hipótese muda: «Basta ser ignorante.» A palermice e a ignorância andam sempre de mãos dadas, não é?

É.

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Inovação no glühwein: acrescentei feno-grego e as passas que comprámos na Cafélia. O feno-grego é o resultado de uma intensiva exploração de Lagos à procura de alcaravia. Encontrei os dois num minimercado chamado Go Minimarket, pertencente a senhoras holandesas, sul-africanas e não sei que mais.

Ainda há quem seja contra a presença de estrangeiros em Portugal? Acreditem se quiserem, mas antes do Go fui a três «gourmets» (Google dixit) e as pessoas não sabiam sequer o que era alcaravia. Não sabiam. Nunca tinham ouvido falar. Alcaravia.

Isto transporta-me aos meus anos de chegada a Portugal em dois mil e dois ou três: telefonava aos supermercados de Cascais para saber se tinham ervas frescas - como cebolinho, por exemplo. Acreditem se quiserem. Hoje não telefono. Ainda me lembro da reacção àqueles telefonemas. Visito-os e constato in persona a reacção. «Alcaravia? O que é?»

Lá encontrei. Go minimarket. Goed so, jonger. Dank u wel.

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Resumindo: duas rodelas de laranja, dois paus de canela, cardamomo, cravinho, açúcar mascavado, feno-grego, passas, alcaravia. Aquecer devagar. Devagar. No momento de servir acrescentar rum barato. Beber. 

Pensar na inabalável associação do calor e da sorte. Senti-la. Até à medula. Beber de novo. Repetir. Parar de pensar. Até à medula.

In Sónia?

Lá estás tu com a mania dos anglicismos. Não, não se chama Sónia.

Yin e Yang?

O belo e o feio, Deus e o Diabo, a ganância e a generosidade, o amor e o ódio... Os chineses têm razão quando representam o mundo aos pares interligados e perdem-na quando os pintam de preto e branco. A cor dominante da realidade é o cinzento, em todas as matizes possíveis. 

De vez em quando lá aparecem uns pingos de cor a alegrar o cinzento, é certo, mas isso são contas de outras metáforas.

Antares

Leio cada vez menos e mais dificilmente, por razões psicossomáticas. Isto é, psíquicas e somáticas. É por isso um prazer ler Antares, de Clara Pinto Correia, mesmo que ao ritmo de um caracol a atravessar um ringue de patinagem no gelo. Acabo de passar pela mais bela descrição de uma cena de amor que me foi dada ler por um autor português.

Pena é o trabalho de edição, que deixa passar uma virgulação anárquica e outros pecadilhos menores. 

A este ritmo espero terminar em dois mil e cem, o que me parece adequado para uma auto-exegese desta amplidão. E beleza.

2.1.25

Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-01-2025

Construir casas quentes e mantê-las aquecidas requer energia anímica. Tanta quanto aquela que se estuda nos manuais de termodinâmica. Requer também um Estado menos predador - ou, na sua ausência, um povo que se revolte contra os impostos com que o albardam. Não temos nem um nem outro. Aceitamos como fatalismo o que não passa de resignação, outra palavra para cobardia. Inevitavelmente, penso naquela revolucionária alemã que a seguir ao vinte e cinco de Abril veio para Portugal acompanhar a gloriosa revolução. Pouco tempo depois foi-se embora. "Um povo que não consegue ter pressão na água do duche nunca será revolucionário" terá a senhora explicado, cheia de bom-senso. Suspeito que  regressou à sua terra antes do Inverno: depois, teria certamente acrescentado à pressão da água nas torneiras a incapacidade de se aquecer devidamente. Felizmente temos baratos e bons os vinhos e as aguardentes.

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Dias de televisão, frio e discussões inter sororibus. Felizmente, tudo isto compensado com um saldo bastante positivo por excelentes vinhos, lautas refeições e acolhedoras aguardentes  num cenário digno do Charme Discreto da Burguesia.

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Lagos - almoço na Adega da Marina, cheia como sempre. Este "restaurante" é um mistério: como é que uma cantina com capacidade para acolher os espectadores de um "derby" (aspas porque é irónico) consegue fazer comida tão boa?

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O T. está com um cancro na próstata e eu fiquei devastado um bom par de horas. Depois aterrou em mim a noção de que os tratamentos evoluíram e aquele casal é capaz de enfrentar isso e muito mais.

E ainda há quem seja contra o optimismo. De devastado passei a simplesmente preocupado e assim ficarei até ver. É o meu melhor e mais antigo amigo.

Chegámos a uma idade em que temos de nos ver mais vezes, é o que é.

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Viemos passar uns dias a Lagos, a L. e eu. É sempre com um indescritível prazer que revejo esta cidade. Para completar o ramalhete só me falta um par de boas notícias. Enquanto não chegam, vou trabalhar para fazer outras.

30.12.24

Casamento

O casamento é um acto social mas ao contrário: é uma despedida. É os noivos a dizer à sociedade que a trocam por um novo domus. "A partir de agora já não somos só vossos. Somos um do outro e da família que aí vem."

28.12.24

Taxonomia das Luas

A única visão mais bonita do que uma lua cheia no céu são duas luas cheias entre ti e o tecto.

Esboço de uma teoria das relações afectivas

Os três ingredientes fundamentais de uma relação amorosa são o amor (ou amizade), a paciência e a surdez, quanto mais não seja parcial. São como as três bolas de um malabarista principiante.  A perenidade da relação depende de quanto tempo levam duas das bolas a cair.

27.12.24

Foz, nascente

Não percebo de casas. Não percebo nada de coisas sólidas, com tijolos, janelas, portas e telhados. Tão pouco me peças para marcar datas num calendário: o tempo é demasiado sólido. 

Fala-me de ventos e mar, correntes e barras, de agendas feitas de água. Fala-me de peles, de cabelos, de olhares, da solidão,  esse "pecado capital" (CPC, tão lindamente). Fala-me de amor, a mais fugitiva das coisas sólidas. Fala-me da fugaz e falaz felicidade, como um tremor de terra. Fala-me de tudo, de placas tectónicas, de vulcões, tsunamis, do vento nas palmeiras, da areia que no deserto cobre os trilhos.

Fala-me de ti, desse teu sorriso que ilumina o mais negro dos passados, o mais luminoso dos futuros.

Fala-me das fluidas formas do amor, cristalizadas em ti. Fala-me das fluidas formas da vida, que nascem e desaguam em ti, foz e nascente.

26.12.24

Diário de Bordos - Comboio Lisboa Viana do Castelo, Portugal, 26-12-2024

Mais uma viagem na CP, comboios de Portugal para quem não sabe. Desta vez a revisora recusou-me o acréscimo para primeira classe e infelizmente ouviu-me comentar o facto com o  senhor do bar (estava num sítio aonde eu não a podia ver e saiu de lá a dizer - cito verbatim - que eu não sabia o que ela "tinha entre as pernas". A questão sendo que até agora os revisores sempre o fizeram e uma mulher não.)

Respondi-lhe que ela tinha razão,  mas na verdade eu não queria saber e resigno-me a viajar no bar, de resto mais confortável do que a primeira classe.

E mais barato, claro.

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É fácil suportar melhor a loucura do que a estupidez. As coisas só se complicam quando as duas se misturam.

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A minha Coluer vai carregada como se de um sem abrigo se tratasse. Um dia terei uma bicicleta de carga e nela passearei os netos. Por agora: sacos de supermercado e esta ideia de que sou um sem abrigo com mais sorte do que muitos com abrigo.

Coisa que de resto este Natal demonstrou à saciedade. 

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Leio Antares, de Clara Pinto Correia. Não é exactamente uma autobiografia; tão pouco é uma auto-hagiografia; não sei como qualificar a coisa. Sei que está bem escrito, apesar de precisar de um bom trabalho de edição. Que ao lê-la me parece ouvi-la (é um elogio) e que a revisora do comboio aparenta ter-se esquecido da nossa inicial troca de palavras. Um casal tem o som do telefone demasiado alto e eu respondo com Mingus e Dolphy. Estou na mesa grande do bar e ninguém se senta ao meu lado. O casal reagiu positivamente à minha insinuação e desligou a música. Faço o mesmo, lamentando que a dupla Mingus & Dolphy não sejo do seu (deles) agrado.

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Abro o Antares ao acaso e vejo uma frase sobre a solidão, que devia ser um pecado mortal. Toda a sequência é linda de morrer. Só a força é capaz de expor as suas fragilidades.

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Porto - Campanhã. Daqui a uma hora chego a Viana do Castelo, destino intermédio. A vantagem do comboio é que um gajo vai sentado, não faz nada para se mover mas isto mexe-se como um barco e exige o mesmo equilíbrio  do que uma bicicleta. 

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A natureza não gosta de números ímpares. O meu Pai dizia que não se deve beber uma quantidade ímpar de bebidas. As relações amorosas tão pouco suportam uma terceira participante. (Isto ninguém me ensinou. Aprendi.)

Acima de três a relação deixa de ser amorosa, de qualquer forma.

Isto é: a dois, a relação é amorosa. A três é relação. A mais não é uma coisa nem outra.

25.12.24

A problemática da lavagem da loiça vista pelo prisma da Razão e da música sacra - e da poupança de água doce, acrescento eu agora porque é impossível enfatizar-lhe a importância

Em todas as refeições, por muito formais que sejam, há um pouco de caos. Caos é um termo demasiado forte. Desordem. Incerteza. Dúvida.

Lavar a loiça é a reposição da ordem, do método, a vitória do outro lado da entropia. Lavar a loiça é uma operação com várias etapas e cada uma delas deve ser levada a sério, reflectida, estudada e planeada. Começa-se por arrumar a loiça suja em categorias: talheres, copos, pratos, os utensílios que se usaram e por qualquer razão não foram lavados durante a cozinha. Depois, começa-se a lavagem pelos menos sujos, com excepção dos talheres, que devem ficar para o fim. Por ordem: copos, chávenas, pratos de sobremesa, pratos da sopa, pratos grandes, travessas, panelas, frigideiras. É possível que a meio se tenha de mudar a água do lava-loiças. Normalmente faço-o depois dos pratos grandes, porque é uma bifurcação. Quando o lava-loiças só tem uma bacia: passa-se o que se acabou de lavar por água e põe-se a secar; caso tenha duas bacias: tira-se a que lá está e muda-se-lhe a água. A seguir vem a parte mais suja: panelas, frigideiras, pirex, etc.. A ordem é importante: deve guardar-se a água menos suja para a loiça menos suja. Entretanto mudam-se os restos da comida para recipientes mais pequenos - o espaço no frigorífico é limitado - bebe-se um rum Mount Gay (há Pais Natal compreensivos e amáveis) e continua-se. É preciso secar a loiça e arrumá-la. Dantes costumava deixar a natureza fazer o seu trabalho, mas agora penso que a natureza é uma chata e nunca mais se despacha. 

Uma refeição só termina quando toda a loiça está seca e arrumada no seu lugar. Isto poderia ser usado para provar que o mar me está a invadir a terra, mas eu penso que não. É a idade que me entra pela Razão dentro, cada vez mais fundo. A ordem é relaxante, tanto quanto a música sacra da Idade Média, ao som da qual lavar a loiça equivale provavelmente a uma ou mais horas de reflexão sobre o sentido da vida - e é mais eficaz. 

24.12.24

Círculo, vida

Nascemos na família, crescemos e afastamo-nos dela e crescemos mais e voltamos a ela, que entretanto jâ aumentou e nos dá a ver não só o passado - era o que detestávamos - mas o futuro também. 

A vida é um arco de círculo que só quando se fecha nos pode dizer: conseguiste.

Tão leve

Tenho uma tonelada de cobertores em cima de mim e mesmo assim a noite entra-me pela pele adentro e dá-me vontade de me mudar para outra noite, uma noite da qual tu faças parte, uma noite na qual tu estejas e me protejas da noite sem precisar de uma tonelada de cobertores dispostos em camadas geológicas, cronológicas, a começar na manta de retalhos da avó e a acabar no cobertor mais recente de todos, tão recente que não sei sequer de onde vem. Tu és a única noite que merece ser vivida, dormida, pesada e lembrada um dia quando do peso nada restar senão esta memória que agora me percorre a pele e nela me pesa, como se aqui estivesses.

Não estás e de peso só tenho os cobertores e a memória de ti, tão leve.

23.12.24

Verdade ou consequência?

Nunca fui muito de jogos infantis, lamentavelmente. Era péssimo no futebol - nem para guarda-redes me queriam -, no Monopólio era sempre o primeiro a sair. Cedo comecei a preferir os livros  que lia em casa ou na mangueira. Da infância transitei para a adolescência e aos livros juntaram-se o mar e o whisky. De jogos infantis percebo peva.

Há porém um cujo nome creio ser "verdade ou consequência". Pergunto-me se não devia ser obrigatório para quem quer ser político (forma elaborada da infância, aliás).

Um dia, um dia só

Faz assim: pensa num filme. Providence, de que tu tanto gostas, por exempo. Ou A Regra do Jogo. Ou Dersou Uzala, que te surpreendeu como nenhum outro. Ou Annie Hall, Manhattan ou a Rosa do Cairo. Ou centenas de outros. Mistura-os com as peças de teatro que viste, com os livros que leste, com as mulheres que amaste, te amaram ou nem por isso. Pensa numa cidade, numa viagem, pensa no olhar que trocaste com uma desconhecida na rua que atravessaste a correr e por onde não voltarás a passar, numa talhada de melão inesperadamente boa, numa mulher cujo amor te surpreende, ainda hoje.

Pensa nisso tudo e em tudo o que não mencionaste. No frio, no calor, na mão daquela mulher que te acaricia, na próxima navegação, na próxima vida, no próximo puré de batata - dessa vez terá noz moscada ou até macis, tão mais delicado.

Pensa em tudo o que tiveste e compara com tudo o que terás: é nada. Se te faltar um dia, um dia só para viver, esse dia terá tudo o que viveste até ele chegar e mais ainda.

Foste tu

Essa cortina atrás da qual te escondes é transparente, meu caro. Dizes que tem um buraco? Sim, tem. São as palavras. É por elas que espreitas a vida, como as criadas de antigamente encostavam o ouvido à porta ou tentavam ver pelo buraco da fechadura o que faziam os patrões. 

Não viam nada, nem ouviam um décimo do que se passava. Essa vida que tu espreitas e escutas e fodes - ou fodias, quando vias e ouvias - essa vida não passa dos farrapos do que viste, ouviste e fizeste. Dela, restam-te as palavras que acumulaste como outros acumularam dinheiro, louvores ou ilusões. 

Deita-te, meu caro, no frio. Em breve estarás quente, tal como os outros, esses de que falas, estarão frios. Deixa a roda girar. Tens um privilégio: foste tu quem a fez. Não a ouviste nem espreitaste.

Nem é visto nem vê

- Era qualquer coisa àcerca da vida, não era? De como agora está quente e logo a seguir fria e depois não sabes mas sabes que morna não está de certeza, apesar de já o ter estado duas ou três vezes mas que é isso comparado com os milhões de graus kelvin por onde já andaste?

- Sei lá, talvez fosse sobre a vida, sim, se esta se reduzisse a um caril picante, a um guisado de porco ou a um puré de batata que ficou bom apesar da falta de noz moscada, um ingrediente essencial.

- A vida sobrevive bem sem noventa por cento dos ingredientes essenciais.

- A vida, meu caro, sobrevive a tudo, até à morte. Até ao fim de uma garrafa de rum sem outra para a substituir (vade retro). Até ao fim de um amor, vê lá tu. Até ao nascer de outro, a quem dizes: "este é o último. Tu és aquele de quem se dirá: Não houve outro a seguir."

- A vida é um conjunto de ingredientes essenciais ao qual falta os ingredientes e os essenciais e é com essas ausências que a constróis. Um espécie de algodão doce sem açúcar, só com a máquina a rodar no vazio e com um gajo atrás que não se vê.

- Nem vê, quanto mais ser visto.

22.12.24

Diário de Bordos - Lisboa,

Quanto mais uma pessoa sabe de alguma coisa mais pronta está a aceitar que se engana. Curiosamente, esta aceitação estende-se a todas as áreas de conhecimento e não só àquela de que sabe alguma coisa.

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Uma pergunta ao gajo que manda nisto tudo: por que raio de carga de água as más notícias vêm em rajadas de metralhadora e as boas em tiros de caçadeira de um só cano?

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Outra: não reparaste, provavelmente, mas estou velhinho. Até já tenho desconto nos comboios da CP. 

Isto significa que os meus ombros estão cada vez mais estreitos e não mais largos e cada vez suportam menos carga. Por favor pensa nisto quando a tua atenção se voltar para mim (bem sei que é raro, mas quando voltar a acontecer).

Dissonâncias

A modernidade despreza a biologia e tenta relegá-la para o lugar dos dinossauros, esquecendo que ela é o que nos liga à natureza, outro dos seus grandes amores. 

A dissonância não é de hoje: o Homem sempre preferiu os mitos à coerência, o irracional à lógica, a religião à Razão. Estes últimos sempre foram obra de homens, não do Homem.