3.1.25
(Cont.)
Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 03-01-2025
Não é bem uma questão de «só os imbecis não mudam de opinião». É mais «crescer e aprender». Ou «é muito difícil ser jovem e não ser ignorante». Ou, mais realisticamente: «em jovem eu era um palerma e à medida que fui crescendo fui sendo-o menos. Infelizmente ainda não cheguei ao nível zero da palermice mas lá chegarei. Basta morrer.»
Encontrei o canal Mezzo na televisão doméstica e oiço um programa dedicado ao trio Play Bach, coisa que há coisa de quarenta anos não apreciei. É preciso ser idiota, não é? Talvez não. A minha hipótese é: «Não. Basta ser jovem.» Essa hipótese é facilmente falsificável: milhares de jovens ouviam isto e gostavam e apreciavam conhecedoramente. Ou seja: a minha hipótese muda: «Basta ser ignorante.» A palermice e a ignorância andam sempre de mãos dadas, não é?
É.
Lá encontrei. Go minimarket. Goed so, jonger. Dank u wel.
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Resumindo: duas rodelas de laranja, dois paus de canela, cardamomo, cravinho, açúcar mascavado, feno-grego, passas, alcaravia. Aquecer devagar. Devagar. No momento de servir acrescentar rum barato. Beber.
Pensar na inabalável associação do calor e da sorte. Senti-la. Até à medula. Beber de novo. Repetir. Parar de pensar. Até à medula.
Yin e Yang?
O belo e o feio, Deus e o Diabo, a ganância e a generosidade, o amor e o ódio... Os chineses têm razão quando representam o mundo aos pares interligados e perdem-na quando os pintam de preto e branco. A cor dominante da realidade é o cinzento, em todas as matizes possíveis.
De vez em quando lá aparecem uns pingos de cor a alegrar o cinzento, é certo, mas isso são contas de outras metáforas.
Antares
Leio cada vez menos e mais dificilmente, por razões psicossomáticas. Isto é, psíquicas e somáticas. É por isso um prazer ler Antares, de Clara Pinto Correia, mesmo que ao ritmo de um caracol a atravessar um ringue de patinagem no gelo. Acabo de passar pela mais bela descrição de uma cena de amor que me foi dada ler por um autor português.
Pena é o trabalho de edição, que deixa passar uma virgulação anárquica e outros pecadilhos menores.
A este ritmo espero terminar em dois mil e cem, o que me parece adequado para uma auto-exegese desta amplidão. E beleza.
2.1.25
Diário de Bordos - Lagos, Algarve, Portugal, 02-01-2025
30.12.24
Casamento
O casamento é um acto social mas ao contrário: é uma despedida. É os noivos a dizer à sociedade que a trocam por um novo domus. "A partir de agora já não somos só vossos. Somos um do outro e da família que aí vem."
28.12.24
Taxonomia das Luas
A única visão mais bonita do que uma lua cheia no céu são duas luas cheias entre ti e o tecto.
Esboço de uma teoria das relações afectivas
Os três ingredientes fundamentais de uma relação amorosa são o amor (ou amizade), a paciência e a surdez, quanto mais não seja parcial. São como as três bolas de um malabarista principiante. A perenidade da relação depende de quanto tempo levam duas das bolas a cair.
27.12.24
Foz, nascente
Não percebo de casas. Não percebo nada de coisas sólidas, com tijolos, janelas, portas e telhados. Tão pouco me peças para marcar datas num calendário: o tempo é demasiado sólido.
Fala-me de ventos e mar, correntes e barras, de agendas feitas de água. Fala-me de peles, de cabelos, de olhares, da solidão, esse "pecado capital" (CPC, tão lindamente). Fala-me de amor, a mais fugitiva das coisas sólidas. Fala-me da fugaz e falaz felicidade, como um tremor de terra. Fala-me de tudo, de placas tectónicas, de vulcões, tsunamis, do vento nas palmeiras, da areia que no deserto cobre os trilhos.
Fala-me de ti, desse teu sorriso que ilumina o mais negro dos passados, o mais luminoso dos futuros.
Fala-me das fluidas formas do amor, cristalizadas em ti. Fala-me das fluidas formas da vida, que nascem e desaguam em ti, foz e nascente.
26.12.24
Diário de Bordos - Comboio Lisboa Viana do Castelo, Portugal, 26-12-2024
Mais uma viagem na CP, comboios de Portugal para quem não sabe. Desta vez a revisora recusou-me o acréscimo para primeira classe e infelizmente ouviu-me comentar o facto com o senhor do bar (estava num sítio aonde eu não a podia ver e saiu de lá a dizer - cito verbatim - que eu não sabia o que ela "tinha entre as pernas". A questão sendo que até agora os revisores sempre o fizeram e uma mulher não.)
Respondi-lhe que ela tinha razão, mas na verdade eu não queria saber e resigno-me a viajar no bar, de resto mais confortável do que a primeira classe.
E mais barato, claro.
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É fácil suportar melhor a loucura do que a estupidez. As coisas só se complicam quando as duas se misturam.
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A minha Coluer vai carregada como se de um sem abrigo se tratasse. Um dia terei uma bicicleta de carga e nela passearei os netos. Por agora: sacos de supermercado e esta ideia de que sou um sem abrigo com mais sorte do que muitos com abrigo.
Coisa que de resto este Natal demonstrou à saciedade.
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Leio Antares, de Clara Pinto Correia. Não é exactamente uma autobiografia; tão pouco é uma auto-hagiografia; não sei como qualificar a coisa. Sei que está bem escrito, apesar de precisar de um bom trabalho de edição. Que ao lê-la me parece ouvi-la (é um elogio) e que a revisora do comboio aparenta ter-se esquecido da nossa inicial troca de palavras. Um casal tem o som do telefone demasiado alto e eu respondo com Mingus e Dolphy. Estou na mesa grande do bar e ninguém se senta ao meu lado. O casal reagiu positivamente à minha insinuação e desligou a música. Faço o mesmo, lamentando que a dupla Mingus & Dolphy não sejo do seu (deles) agrado.
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Abro o Antares ao acaso e vejo uma frase sobre a solidão, que devia ser um pecado mortal. Toda a sequência é linda de morrer. Só a força é capaz de expor as suas fragilidades.
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Porto - Campanhã. Daqui a uma hora chego a Viana do Castelo, destino intermédio. A vantagem do comboio é que um gajo vai sentado, não faz nada para se mover mas isto mexe-se como um barco e exige o mesmo equilíbrio do que uma bicicleta.
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A natureza não gosta de números ímpares. O meu Pai dizia que não se deve beber uma quantidade ímpar de bebidas. As relações amorosas tão pouco suportam uma terceira participante. (Isto ninguém me ensinou. Aprendi.)
Acima de três a relação deixa de ser amorosa, de qualquer forma.
Isto é: a dois, a relação é amorosa. A três é relação. A mais não é uma coisa nem outra.
25.12.24
A problemática da lavagem da loiça vista pelo prisma da Razão e da música sacra - e da poupança de água doce, acrescento eu agora porque é impossível enfatizar-lhe a importância
Em todas as refeições, por muito formais que sejam, há um pouco de caos. Caos é um termo demasiado forte. Desordem. Incerteza. Dúvida.
Lavar a loiça é a reposição da ordem, do método, a vitória do outro lado da entropia. Lavar a loiça é uma operação com várias etapas e cada uma delas deve ser levada a sério, reflectida, estudada e planeada. Começa-se por arrumar a loiça suja em categorias: talheres, copos, pratos, os utensílios que se usaram e por qualquer razão não foram lavados durante a cozinha. Depois, começa-se a lavagem pelos menos sujos, com excepção dos talheres, que devem ficar para o fim. Por ordem: copos, chávenas, pratos de sobremesa, pratos da sopa, pratos grandes, travessas, panelas, frigideiras. É possível que a meio se tenha de mudar a água do lava-loiças. Normalmente faço-o depois dos pratos grandes, porque é uma bifurcação. Quando o lava-loiças só tem uma bacia: passa-se o que se acabou de lavar por água e põe-se a secar; caso tenha duas bacias: tira-se a que lá está e muda-se-lhe a água. A seguir vem a parte mais suja: panelas, frigideiras, pirex, etc.. A ordem é importante: deve guardar-se a água menos suja para a loiça menos suja. Entretanto mudam-se os restos da comida para recipientes mais pequenos - o espaço no frigorífico é limitado - bebe-se um rum Mount Gay (há Pais Natal compreensivos e amáveis) e continua-se. É preciso secar a loiça e arrumá-la. Dantes costumava deixar a natureza fazer o seu trabalho, mas agora penso que a natureza é uma chata e nunca mais se despacha.
Uma refeição só termina quando toda a loiça está seca e arrumada no seu lugar. Isto poderia ser usado para provar que o mar me está a invadir a terra, mas eu penso que não. É a idade que me entra pela Razão dentro, cada vez mais fundo. A ordem é relaxante, tanto quanto a música sacra da Idade Média, ao som da qual lavar a loiça equivale provavelmente a uma ou mais horas de reflexão sobre o sentido da vida - e é mais eficaz.
24.12.24
Círculo, vida
Nascemos na família, crescemos e afastamo-nos dela e crescemos mais e voltamos a ela, que entretanto jâ aumentou e nos dá a ver não só o passado - era o que detestávamos - mas o futuro também.
A vida é um arco de círculo que só quando se fecha nos pode dizer: conseguiste.
Tão leve
23.12.24
Verdade ou consequência?
Um dia, um dia só
Faz assim: pensa num filme. Providence, de que tu tanto gostas, por exempo. Ou A Regra do Jogo. Ou Dersou Uzala, que te surpreendeu como nenhum outro. Ou Annie Hall, Manhattan ou a Rosa do Cairo. Ou centenas de outros. Mistura-os com as peças de teatro que viste, com os livros que leste, com as mulheres que amaste, te amaram ou nem por isso. Pensa numa cidade, numa viagem, pensa no olhar que trocaste com uma desconhecida na rua que atravessaste a correr e por onde não voltarás a passar, numa talhada de melão inesperadamente boa, numa mulher cujo amor te surpreende, ainda hoje.
Pensa nisso tudo e em tudo o que não mencionaste. No frio, no calor, na mão daquela mulher que te acaricia, na próxima navegação, na próxima vida, no próximo puré de batata - dessa vez terá noz moscada ou até macis, tão mais delicado.
Pensa em tudo o que tiveste e compara com tudo o que terás: é nada. Se te faltar um dia, um dia só para viver, esse dia terá tudo o que viveste até ele chegar e mais ainda.
Foste tu
Essa cortina atrás da qual te escondes é transparente, meu caro. Dizes que tem um buraco? Sim, tem. São as palavras. É por elas que espreitas a vida, como as criadas de antigamente encostavam o ouvido à porta ou tentavam ver pelo buraco da fechadura o que faziam os patrões.
Não viam nada, nem ouviam um décimo do que se passava. Essa vida que tu espreitas e escutas e fodes - ou fodias, quando vias e ouvias - essa vida não passa dos farrapos do que viste, ouviste e fizeste. Dela, restam-te as palavras que acumulaste como outros acumularam dinheiro, louvores ou ilusões.
Deita-te, meu caro, no frio. Em breve estarás quente, tal como os outros, esses de que falas, estarão frios. Deixa a roda girar. Tens um privilégio: foste tu quem a fez. Não a ouviste nem espreitaste.
Nem é visto nem vê
- Era qualquer coisa àcerca da vida, não era? De como agora está quente e logo a seguir fria e depois não sabes mas sabes que morna não está de certeza, apesar de já o ter estado duas ou três vezes mas que é isso comparado com os milhões de graus kelvin por onde já andaste?
- Sei lá, talvez fosse sobre a vida, sim, se esta se reduzisse a um caril picante, a um guisado de porco ou a um puré de batata que ficou bom apesar da falta de noz moscada, um ingrediente essencial.
- A vida sobrevive bem sem noventa por cento dos ingredientes essenciais.
- A vida, meu caro, sobrevive a tudo, até à morte. Até ao fim de uma garrafa de rum sem outra para a substituir (vade retro). Até ao fim de um amor, vê lá tu. Até ao nascer de outro, a quem dizes: "este é o último. Tu és aquele de quem se dirá: Não houve outro a seguir."
- A vida é um conjunto de ingredientes essenciais ao qual falta os ingredientes e os essenciais e é com essas ausências que a constróis. Um espécie de algodão doce sem açúcar, só com a máquina a rodar no vazio e com um gajo atrás que não se vê.
- Nem vê, quanto mais ser visto.
22.12.24
Diário de Bordos - Lisboa,
Quanto mais uma pessoa sabe de alguma coisa mais pronta está a aceitar que se engana. Curiosamente, esta aceitação estende-se a todas as áreas de conhecimento e não só àquela de que sabe alguma coisa.
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Uma pergunta ao gajo que manda nisto tudo: por que raio de carga de água as más notícias vêm em rajadas de metralhadora e as boas em tiros de caçadeira de um só cano?
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Outra: não reparaste, provavelmente, mas estou velhinho. Até já tenho desconto nos comboios da CP.
Isto significa que os meus ombros estão cada vez mais estreitos e não mais largos e cada vez suportam menos carga. Por favor pensa nisto quando a tua atenção se voltar para mim (bem sei que é raro, mas quando voltar a acontecer).
Dissonâncias
A modernidade despreza a biologia e tenta relegá-la para o lugar dos dinossauros, esquecendo que ela é o que nos liga à natureza, outro dos seus grandes amores.