1.12.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 30-11-2025 / II

A situação da senhora complicou-se bastante durante o dia e acabei por ter de lhe dar um anti-emético. Instruções do Cross - Antilles Guyane que tive de chamar, Allahu Aqbar, continuam a fazer um trabalho sublime. Injectável, claro, é o único que tenho a bordo. Depois da injecção dada, N. diz-me "you did a great job". O cumprimento encheu-me mais de alívio do que de orgulho. Se não é a primeira injecção que dou na vida é a segunda e disto tenho sérias dúvidas. Valeu-me lembrar-me ainda das aulas de medicina e primeiros socorros da então ENIDH (hoje acrescentaram-lhe um S, para fazer daquilo uma escola superior). A senhora dorme, sob a supervisão da irmã e do cunhado, a quem dei instruções para a acordarem uma vez por hora e trocar com ela algumas palavras para avaliar a sua reactividade.

Agora há que gerir o tema do médico à chegada. Tudo menos que me ponham de quarentena não sei quantos dias ou semanas em Rodney Bay. É pouco provável mas não é impossível. 

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São momentos como este, ou quando estamos num squall ou numa tempestade, ou quando temos de nos encavalitar no galope de um mastro a vinte metros de altura com força seis, ou quando temos de resolver um problema qualquer no mar que justificam o salário que ganhamos. 

Os outros, os dias a saltar de fundeadouro para restaurante de luxo pago pelos clientes também; só que a razão é menos aparente: isto é tudo óptimo até alguma coisa correr mal. Por isso me irrito quando aceito um trabalho com um salário baixo, como é este, que aceitei por causa do Panamá e agora estou em negociações com a empresa para ficar por estas bandas. Vamos ver.

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Como, de resto, só amanhã veremos se geri isto tudo correctamente ou não. O mundo da navegação é um mundo lento, como se ao espaço da relatividade, para definir o tempo, tivesse de se juntar o mar. Há sempre um amanhã e até ele chegar o hoje não se percebe bem. Só no fim da regata ou no fim da viagem saberás se a tua opção de hoje foi a correcta. Amanhã. 

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Amanhã? Amanhã chegamos a Rodney Bay. Depois? Logo se vê. Vamos para o Marin, isso é de certeza. A questão é saber quando. O que vai depender dos senhores da imigração em St. Lucia. Cujo humor vai depender de uma série de outras coisas. Ou seja: prever o futuro nesta actividade é como ir a um desses charlatães que prevêem o futiuro numa bola de cristal. Partida.

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PS - isto hoje vai para o ar quase sem correção. O dia começou às três da manhã e são agora onze da noite. Se ninguém me acordar antes, às seis estarei de novo a pé. E ainda há quem pense que ganhamos muito.

30.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 30-11-2025

Uma das senhoras etíopes está doente há uns dias. Como não se queixava muito pensei que era enjoo, perguntei-lhe se queria comrimidos para o dito, respondeu que não e pronto, a coisa ficou por aí. Hoje ia entrar de quarto às três da manhã e vejo-a sair da casa de banho num estado de meter medo a um médico legista. Entretanto o cunhado e a irmã também acordaram e ee volta-se para mim e diz: talvez seja preciso chamar um médico quando chegarmos. Estávamos então a quase trezentas milhas de St. Lucia e a minha vontade de esperar dia e meio ou mais não era, por assim dizer, muita. Perguntei-lhe se os comprimidos que lhe tinha dado na véspera tinham tido algum efeito. O primeiro Buscopan sim, o segundo não - ou melhor, piorou. A senhora não tem febre, fala quase ininteligivelmente, transpirava abundantemente e eu começo a ver a vida andar a ré a toda a força. Perguntei-lhes se conheciam algum médico etíope que se pudesse chamar por Whatsapp, a resposta foi sim. Pouco depois liguei a um amigo americano que vive na Suíça e confirmou a terapia proposta pela médica etíope: água com açúcar e um bocadinho de sal. Provavelmente a senhora está com uma gastroenterite e, acrescentou, isso «é muito contagioso». 

Espero que não. A sê-lo, já a teríamos todos apanhado. De maneira é isto: motorsailing para Rodney Bay Marina. ETA amanhã às três ou quatro da tarde. Entretanto a senhora está mais calma, dorme no salão, vai bebendo regularmente água com açúcar e um bocadinho de sal e eu prometo que nunca mais vou dizer que não a um Starlink a bordo.

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Os preconceitos ou vêm comprazo de validade ou resvalam para a estupidez. Digo eu, que sou bastante ambivalente com as minhas ideias preconcebidas: agarro-me a elas com unhas e dentes e troco-as por outras mal se me apresenta uma razão suficientemente forte para justificar a troca. Hoje, foi a vez do «Não!» ao Starlink. Verdade seja dita: já há algum tempo andava a pensar nisso. Afinal, sempre tivemos meios de comunicação a bordo, desde as bandeiras do Código Internacional de Sinais até aos rádios de ondas curtas. O VHF mantém-se, mas aqui não serviria de muito.  Seja como for: vê-los a trocar mensagens com a médica etíope e poder falar com o D. que está em Lausanne compensam largamente o que me aborrece estar tão dependente do FB mesmo no mar. A culpa é minha e não do Elon Musk, a quem estou infinitamente grato.

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Outra lição: refrescar os meus conhecimentos de primeiros socorros. Não me passou pela cabeça que aquilo poderia ser uma gastroenterite - é, quase de certeza - e estava completamente às aranhas. Tive alguns bons reflexos - a primeira coisa com a qual me preocupei foi a desidratação, por exemplo -, dei-lhe Buscopan (infelizmente a senhora é sensível aos efeitos secundários e tive de parar) mas aborrece-me ter feito isso um pouco por reflexo, às apalpadelas (salvo seja, claro).

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Mais uma lição: a gestão criteriosa que fiz do combustível permite-me ir agora a quase duas mil - e quando passar o que tenho nos jerrycans para os tanques espero poder subir um bocadinho. 

29.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 28-11-2025

Dormi como há muito tempo não dormia e quando acordei fui lá fora ver aonde param as modas. A noite está linda, enluarada, sem sinais de squalls, com o vento pouco abaixo dos vinte,  a velocidade entre os seis e os oito, o bote no rumo, as baterias em ordem - vou precisar de as carregar mas só daqui a um bocado, quando já estiver de quarto. Até lá, deixa ir que vai bem.

Comecei por pensar "que merda de dia a acabar tão bem" e apercebi-me logo de que estava enganado. O dia foi porreiro: conseguimos evitar todos os aguaceiros (não que tivéssemos tido muito mérito nisso...), andámos bem, fizemos meia dúzia de horas de motor e fizemos jus ao que pensei a cada um que nos passava ao lado: estamos na avenida da boa-sorte.

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A continuar assim, não toco nos duzentos e sessenta litros* de gasóleo que ainda tenho nos jerrycans, provando uma vez mais a minha tese segundo a qual "navega-se com o combustível dos tanques".

Isto dito, vem-me à memória a travessia deste Maio, cuja quantidade absurda de bidons me permitiu cortar quase a direito até à Horta e arrumo a tese debaixo do tapete com um acrescento: "quando se pode".

(* - O D. usou vinte litros porque precisou de substituir o balde que se perdeu e improvisou com um jerrycan cortado so meio.)

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De modo daqui a três quartos de hora entro de quarto e inauguro o antepenúltimo dia da viagem. Cujo fim é vem vindo: estou cansado.

E preciso de uma cerveja. Lembram-se: "uma cerveja, um duche e uma mulher, por esta ordem, se faz favor"? Dos dois últimos não sinto muito a falta, graças ao dessalinizador e à idade, que tanta serenidade me trouxe. Mas de uma cerveja a sério... ah! Daria por ela reino e meio. Estas cervejas sem álcool são intragáveis e ainda fazem pior. Dão vontade do produto real.

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Esta história da ausência de cerveja comprovou outra coisa que já sabia: a minha ausência de inveja é estrutural. Não me incomoda nada ver a P. e o J. beberem uma lata ou duas, às refeições e fora delas. Não estão abrangidos pela lei seca - "a menos que exagerem", o que não foi o caso - e embarcaram uma quantidade correcta. Creio que o stock lhes acabou hoje.

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Afinal vou passar no Marin mais tempo do que pensava. Deo gratias.

28.11.25

Diário de Bordos, aonde se fala de squalls e outras coisas, 27-11-2025 / II

A navegação nas Caraíbas sofre de duas pragas, desculpem-me a repetição,  já aqui falei disto uma vez há cerca de duzentos anos. Uma é a burocracia,  da qual tive recentemente um cheirinho, mesmo em alto mar, modernité oblige. A outra são os squalls. Em francês: grains. Em espanhol: chubasco ou chaparrón. Em português: creio que a tradução correcta é aguaceiro mas não tenho a certeza. O Deepl e o Google dão-me tempestade, borrasca. Estão errados. Paciência. Um squall é uma mini-tempestade súbita, com um aumento brusco da força e direcção do vento, acompanhada por chuva violenta. Em linguagem simples e corriqueira, um squall é uma merda. Em primeiro lugar porque tem um movimento próprio. O vento que gera pode chegar a fazer noventa graus com o vento sinóptico - o que dá frequentemente origem a cambadelas desastrosas. Em segundo lugar porque é imprevisível: um gajo pensa que ele vai para sul e o sacana muda de direcção com a agilidade de uma gazela perseguida por um leão. Às vezes alinham-se uns a seguir aos outros e fazem uma parede de trovoada, chuva, relâmpagos e raios que pode durar horas ou dias - já me aconteceu por duas vezes, uma entre Grenada e a Martinique  - passei o dia todo com uma dessas paredes a quatro ou cinco milhas por estibordo e só me caíram um ou dois em cima ao fim da tarde, quando ia a entrar em Bequia para descansar, obrigado à regulação francesa que não pemite navegação em solitário mais de uma certa quantidade de horas, não me lembro de quantas. (Isto não se aplica ãs regatas em solitário,  obviamente nem aos trajectos privados). Outra vez foi entre Providência e St. Martin. Três dias com uma assustadora muralha de raios, trovões, squalls e relâmpagos bem mais longe mas muito piores. Felizmente não apanhei nenhum. 

Hoje, agora, um "aguaceiro" (aspas porque duvido) acaba de me passar uma rasia. Só que não consigo perceber se vêm mais ou não. A norte o horizonte está bastante escuro e fechado mas não vejo mais sinais de badanal. Pela proa está assim assim (e muito bonito, com a Lua em Crescente, horizontal, a iluminar desigualmente as nuvens, espalhadas por várias altitudes e o mar, esse sim, uma estrada prateada muito bem delineada).

Ou seja: uma noite de standby, que é a expressão inglesa para uma noite de merdaSem o amantilho não posso rizar - poder posso, mas só depois do fim do último caso - de maneira enrolei a genoa toda, sempre me dá mais margem de manobra e aqui vou, a olhar alternadamente para o céu, para o horizonte e para o telefone aonde escrevo, vestido com o casaco Henri Lloyd que começa a perder a impermeabilidade, tal como as calças que não tarda vão à vida (ou seja, para o lixo, raio de expressão), substituidas por umas Gill compradas em Gibraltar e que ainda não precisei de pôr porque o squall do outro dia veio repentinamente demais e não me deu tempo para as estrear. 

O céu a norte começa a limpar e vou desenrolar a genoa. 

Não vou nada. Vou cantar laudas por ter escapado a um e olhar para a beleza do céu, com as nuvens caoticamente delineadas pela meia Lua que não tarda mais de três quartos de hora se põe e vai deixar a noite sem pingo de luz.

27.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 27-11-2025

Espero a chegada do sono e a das palavras. Vêm frequentemente juntos. Já de vento não vale a pena esperar muito mais: entre quinze e dezoito nós, a fazer um rumo bastante correcto e com tudo a funcionar bem; tudo sendo velas, motores, dessalinizadora e grupo electrogéneo. Chegamos segunda-feira. Só não sei a que horas.

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Nestes barcos, o distinguo entre tripulação e passageiros é fluido. Intuitivamente, sei que somos dois tripulantes - o D. e eu - e seis passageiros- a P., o J. e os quatro etíopes. Destes, três não fazem quartos (o outro tem dois anos) mas tratam do interior. Lavam pratos e passam o aspirador. O D. faz tudo - cozinha (excelentemente), faz quartos e trata de tudo a bordo. Falta-lhe um pouco de qualquer coisa mas compensa bem com a vontade de aprender e a vontade de fazer.  Tem um dente de prata (ou prateado) que lhe dá um aspecto horrível quando abre a boca mas como é voluntarioso e eficaz a coisa passa.

Eu faço o resto, que parece pouco e é muito. Não me posso queixar, pelo menos até agora. Vou batendo na madeira para que isto continue assim. Temos de fazer quase quatrocentos litros de água por dia, carregar baterias meia dúzia de horas - um parque de novecentos a/h de lítio com alternadores e carregador de origem não vai longe - e navegar no inevitável caos que foi a arrumação das provisões: compras feitas pelo escritório, enganos do supermercado nas entregas, confusão com o número de pessoas a bordo de cada barco (somos quatro, três catas e um monocasco). O resultado é que as coisas não foram arrumadas. Foram postas ao calhas e aonde havia lugar. Além disso, temos uma quantidade infinita de algumas coisas e outras estão a acabar.

O meu inabalável optimismo resume tudo bastante bem: tens comida, água, combustível, vento, motores, velas e uma excelente tripulação. Que queres mais? Nada, claro, excepto chegar depressa para dar um abraço ao meu filho T. e beber uma cerveja.

Com álcool, que as sem são pecado mortal.

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PS - não chega bem a quatrocentos litros por dia mas anda lá perto. É aterrador. Cinquenta litros por dia e por pessoa!

Há muito que desisti de formar marinheiros. (E beneficio disso: um duche por dia, loiça lavada com água doce na cozinha ou na máquina de lavar (!), lavagens de roupa quotidianas (eles. Eu vou na segunda e é um pau por uma pedra. Há que manter vivas as tradições familiares). Claro que me irrita passar o dia a ouvir o grupo ou os motores - uso-os alternadamente para carregar as baterias, por razões longas demais para explicar aqui. 

Além disso, tenho um duche à espera.

26.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre Mindelo e St. Lucia, 26-11-2025

Só entrava de quarto às três da manhã, mas às duas o J. veio chamar-me: o alarme das baterias estava a tocar. Ainda não sabe pôr o motor a trabalhar e prefiro de longe que continue sem saber. Mas a coisa apimentou-se porque o spi não parava de bater, impossível estabilizá-lo. Decidi arreá-lo, o D. também estava acordado e pela primeira vez nesta viagem e em muito muito tempo mandei um grito. É raríssimo gritar porque é contraproducente mas desta vez não quis conter-me. Estavam vinte nós de vento, eu agarrado ao spi que já estava dentro da meia, peço ao D. para folgar a adriça e o gajo engana-se e folga um rizo. O spi não vinha para baixo, claro e eu a ver-me dentro de água e lá saiu um berro. O rapaz amuou, coitadinho; fiquei preocupadíssimo. Às seis entrou ele de quarto e pus as coisas em pratos limpos. Diplomaticamente, claro. Nunca é tarde para se aprender as lições que o meu Pai me tentou ensinar anos e anos e eu não ouvia.

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De modo agora vamos sem spi, só com a genoa e cada vez que olho para fora chateio-me. O P. D. dizia, quando me via afinar os panos que se «pode tirar um homem das regatas mas não se pode tirar as regatas de um homem». Não tem nada a ver com regatas, P. Tem a ver com ser marinheiro e não uma pessoa que anda em barcos.

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Isto dito, o dia está lindo, o cancelas aguenta-se, o aprivisionamento - feito pelo pessoal de terra e não por nós em cada barco - revela as suas falhas. Felizmente já só faltam cinco dias para me aprivisionar correctamente em accras, boudin créole e ti'punch.

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O vento vai e vem o vento e é um chato, há que dizer a verdade, mas dentro da chateza tem pelo menos tido a amabilidade de não se ir embora de todo, anda aqui entre os quinze e os vinte, entre NE e E e o cancelas que quer é sopas e descanso lá vai, entre os seis e os oito nós, ora para norte do rumo ora para sul, sem spi que é o que me encanita mais. O ETA segunda-feira é cada vez mais provável, vamos a ver o que faz o senhor Eolo, às vezes tão tolo.

25.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 25-11-2025

Não me lembro rigorosamente nada de onde estava, o que vi ou o que pensei no dia vinte e cinco de Novembro de mil novecentos e setenta e cinco. Tenho uma muito vaga memória de uma conversa com o meu primo P., que era fotógrafo do Diário de Notícias, em que ele me disse ou que ia ou tinha ido para o RALIS fotografar - mas o mais provável é isto ter sido depois. (O P. era um fotógrafo fantástico, aqui fica registado.)

De maneira vivo o meu vinte e cinco de Novembro de hoje: enviar o spi e tratar de papelada (obrigado Starlink) de manhã, navegação e manobra à tarde - fizemos a primeira cambadela correcta da viagem - e agora dormir. Estamos a andar bem e lá para domingo ou segunda-feira chegamos a St. Lucia. 

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(Cont.)

Método e consequência

Olhar para as ideias como aquilo que são: poliedros. Avaliá-las bem por todos os lados, ver como e até onde reflectem a luz. Escolher uma face e só depois adoptá-la, com um ponto de interrogação no fim. Nunca transformar uma ideia em certeza mas defendê-la como se o fosse. Maltratar as ideias, saber até onde resistem, amassá-las como se delas se fizesse pão. 

Faz e quanto mais tempo resistir mais dura fica.

24.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 24-11-2025

Hoje tivemos o primeiro squall da temporada. Na parte vento foi fraquito, ficou-se pelos vinte e poucos nós; mas na chuva compensou. Há meses que não via chuvas destas. Quem é que precisa de um dessalinizador com uma espécie de Victoria Falls a cair-lhe em cima durante uma hora?

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Esta noite ou amanhã de manhã chegamos a metade da viagem. Em distância. Em tempo espero já ter passado. 

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Um dos meus passageiros é um miúdo de dois anos. Tem-se comportado admiravelmente. Ou, parafraseando a minha querida filha de há trinta anos, «tem desempenhado admiravelmente a sua profissão de miúdo». O original tem mais piada: «Tu fais très mal ton métier de mère", largou ela à mãe - que ainda por cima é psicóloga infantil.

Os etíopes são um povo do caraças, essa é que é essa. 

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O vento voltou. Vinte nós pela alheta de estibordo. Não vamos muito depressa, qu'isto é um camião e o mar está um bocado desencontrado mas pelo menos avançamos.

23.11.25

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 23-11-2025

Hoje partiu-se o amantilho e pescámos um bonito. Por esta ordem. O amantilho não é dramático, é só chato quando for preciso arrear a grande. Já o bonito não se pode dizer que seja o meu peixe favorito. Muito longe disso. Mas enfim, é melhor do que nada. Este é o terceiro.

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Dramático é a porra da falta de vento. Hoje ainda apareceu umas horas, mas já estou a motor outra vez. Vou com os dois, ao diabo a poupança. De qualquer forma à chegada haverá corrente de ar de certeza. Vou lá chegar em Dezembro, tempo dos Christmas Winds e quero despachar-me, estou com saudades do meu filho T., das accras de morue e do boudin créole do mercado, do ti'punch de todo o lado, do bar do hotel l'impératrice e por aí fora.

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Só me resta esperar que não se parta mais nada. E que entre vento. Ontem já era tarde.

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Fiz pão, pela primeira vez no cancelas. Ficou bom, um pouco a cair para o insosso mas nada do outro mundo. Com manteiga da Bretanha nem se notaria.

22.11.25

Aprendizagens

Em Arrecife comprei uma colectânea de correspondência de Cioran que comecei agora a folhear. Dela parto para a minha descoberta do senhor, pelas mãos do M. R e continuo pelos caminhos a que ele me levou: o jazz, o situacionismo, a The Economist e tanto mais. Isto leva-me ao mar e ao J. de C. (a partícula é imprescindível). Depois, alguns anos depois, com a S. aprendi a ser eu.

Posso não ter jeito para muita coisa, mas para escolher com quem aprender tive de certeza.

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St. Lucia, 22-11-2025 / II

Ele há dias assim, dias em que a merda do vento não entra, a porra do motor não se cala, a tripulação não tripula e eu vou por aqui a arrastar-me a cinco nós e a quinze graus do rumo na esperança de amanhãs que cantam, futuros ventosos e outras tretas que tais. Valha-me o D., que está a preparar um puré de batata para comer com os bonitos que apanhámos ontem, são pequenos mas chegam para todos. Sonho com o dia em que possa fazer isto com amigos, verdadeiros amigos, pessoas com quem se possa conversar. Ou melhor: com quem me apeteça conversar. Pessoas como o Nuno ou o Bruno, porra, aonde é que estão vocês quando eu mais preciso? Ou a Ana, há tanta gente por esse mundo com daria tudo para estar aqui agora.

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É que ainda por cima não posso queixar-me, cúmulo do desespero: o kalimero que em mim habita não pode manifestar-se por falta de razões. Ausência de perfeição não é sinónimo de desgraça.

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(Continuação)

A Lua apareceu, finalmente, muito branca, do tamanho de umaunha mal cortada. O vento subiu um bocadinho, entra tímidamente,  à socapa. Pelo menos deu para enviar a genoa e parar a máquina. Claro que o rumo se ressentiu. Estou outra vez a quinze graus dele.

É um equilíbrio entre dois parâmetros: o SOG, em português velocidade no fundo e o VMG, velocity made good (näo conheço o equivalente  na nossa língua e agradeço a quem mo ensinar). Velocidade no fundo é fácil: a velocidade à qual eu avanço em relação ao fundo do mar, regra geral diferente da velocidade na água por causa de correntes e outras derivas. O VMG é a velocidade à qual em avanço em relação ao objectivo. Quando a proa coincide com o rumo o VMG é igual ao SOG e eu sou um homem feliz. Não é o caso agora. O meu rumo é duzentos e setenta - Oeste - e o vento é Esnordeste. Ou seja, está-me praticamente na popa. Para aumentar o meu SOG devo orçar, mas não demais porque senão lá vai o VMG pelo cano. Uma embarcação de vela é um bicho esquisito que não navega com o vento na proa mas tão pouco gosta dele pela popa arrazada. Há que pô-lo na alheta, ou seja a cerca de cento e sessenta graus da proa, mais coisa menos grau.

Para explicar isto tudo bem explicado seria necessário introduzir os conceitos de vento real e vento aparente.  Fica para depois, pode ser? Agora tenho uma mini-Lua e meia dúzia de estrelas para ver.

Posso contudo lembrar aos meus generosos e tolerantes leitores que para um marinheiro a distância mais curta entre dois pontos raramente é um linha recta. O que ajuda a explicar muitas coisas.

Diário de Bordos - No mar, entre o Mindelo e St Lucia, 22-11-2025

Não há Lua: a noite está escura como o fundo de uma gruta; não há nuvens: o tecto da gruta está cheio de buracos, milhares deles; não há vento: a perfeição não existe. O problema agora reside em saber quando o terei. Com sorte, domingo. Continuo a pôr sul no meu rumo, doses pequenas,  uma dúzia de graus. A esta velocidade, mais é inútil: quando lá chegar já ele se foi (isto é mentira, eu sei. Daquele tipo "O meu tio da América")... Vejo mais vezes as previsões do que uma freira se benze quando passa à frente de um bordel. Vai para sul, jovem. Vai para sul. Enfim.

A verdade é que são quase quatro da manhã e Orion já está de pernas para o ar. Estou a sul que chegue, ó capataz disto tudo. Sirius está por cma das três marias. O céu começa a limpar-se das estrelas mais fraquinhas, coitadas. Só lhe vejo um pequeno sector, por causa do bimini. Os barcos deviam ser descapotáveis como alguns automóveis. É uma pena ter de me levantar e andar três metros para ver o que se passa a norte. A Polar não deve estar visível. 

Não está e a Ursa Maior vê-se mal. Volto para o meu lugar. Prefiro olhar para este negro absoluto que tenho pela proa, que a luz do telefone torna ainda mais negro. O absoluto não existe.

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Era preciso virar o cinto do avesso mas em Palma o meu sapateiro precisava de uma semana e dez euros. Como é o único cinto que tenho e preciso dele, graças a Deus e ao Trulicity, declinei. Em La Linea o sapateiro que fica à frente da livraria precisava de dois euros e meio e devolvia-mo no dia seguinte. Aceitei.

Quando chegar à Martinique terei de comprar um novo, coisa que me aborrece porque este agora está bom. Bastar-me-ia ter menos dez ou quinze centímetros de tour de taille. Não há sapateiros como os nossos. É o que sabemos fazer: sapateiros, futebolistas e emigrantes. E costureiras, claro, daquelas que ainda sabem virar os colarinhos às camisas. 

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O capataz disto tudo bem podia enviar-me um bocadinho mais de vento em vez de sapateiros que me fodem o cinto. E pôr-me a trabalhar num setenta pés, já agora. 

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Ontem tomei um comprimido para a dor no braço. Passou e não voltou (ainda, claro). O Sul e a química resolvem quase tudo.