26.3.25

Solidão, solidões

Não gosto nada da solidão mas aprecio muito estar só.

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 26-03-2025

Como toda a gente que faz o que eu faço, viajo muito de avião; como toda a gente que tem a família num país diferente daquele - ou daqueles - aonde vive e trabalha. Passo a vida em aviões e desenvolvi uma razoável aversão a tudo oq ue está com eles relacionado, logo desde a porta dos aeroportos. Durante muitos anos arranjava-me para chegar à última da hora, muitas vezes só não perdendo o bicho devido a correrias insensatas, a ultrapassagens em filas. Cheguei a telefonar para um check in, em Londres, a pedir-lhes para não o fechar que estava a caminho. A senhora ficou tão siderada que esperou por mim. Se bem me lembro, o avião não saiu atrasado e se saiu foi pouco. Esse tempo acabou. Agora é muito mais frequente chegar demasiado cedo ao aeroporto, como hoje. Ainda por cima, estando de maré baixa não posso beneficiar dos magníficos produtos a preços magníficos que o aeroporto de Genebra propõe aos passageiros com tempo - e dinheiro, claro. De maneira faço aquilo que faço sempre, qualquer que esteja o estado da maré: observo os companheiros de (para mim) infortúnio, tento identificar as línguas que oiço (cada vez menos...) e escrevo meia dúzia de linhas de disparates, sempre alivia a pressão. 

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Saio de Genebra como sempre: meio melancólico, meio feliz, meio indeciso sobre qual dos dois estados preferir. S. estando a maior parte do tempo fora em trabalho passo muito tempo sozinho, o que é uma benção; dou longos passeios por estas ruas simultaneamente conhecidas e novas; vejo amigos (poucos, mas dos mais queridos); faço fondue de queijo, um ritual que nem no Verão dispenso (isto discute-se. S. nem sempre está de acordo...); e agora - desde que os tenho - mormente, vejo os netos. Insuficientemente porque não moram em Genebra, mas vejo-os e estou com eles. São uma espécie de extensão do prazo de pagamento de uma dívida e tento aproveitá-la ao máximo.

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No salão do livro contactei uma revista de viagens que paga os artigos. Se pagar a tradução vale a pena; se não pagar, não vale. Ou então recomeço a escrever directamente em francês, perspectiva que não me atrai muito porque esta língua é tão bonita quanto maldita de ecrever.

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Ir ao supermercado aqui é uma dupla dor d'alma: os produtos "bio" (aspas porque cito) invadiram tudo. Como se os preços não fossem suficientemente dementes com os não-bio.

24.3.25

Incapacidade

Sou livre por absoluta incapacidade de o não ser e isso paga-se caro. É um handicapp, um defeito de fabrico.

23.3.25

Adormecer, a ponte do sono nascente

Para adormecer, F. põe-se de sentinela numa das extremidades da ponte que o liga à noite. É por ela que o sono chega. A vigília é sui generis: consiste em relaxar todos os músculos do corpo, um a um. Tarefa a que F. se dedica com a aplicação que põe em tudo o que faz. Começa por fechar os olhos, deitar-se de lado, cruzar os braços e pôr as mãos nos ombros - a direita no esquerdo e a esquerda no direito - encolher as pernas, bem dobradas, como se quisesse levar os joelhos ao queixo, respirar fundo durante pelo menos um minuto e depois distender-se lenta mas completamente. O sono chega pela tal ponte - a ponte do sono nascente, como ele lhe chama - umas vezes ruidosamente, outras muito de mansinho. 

Os obstáculos ao avanço do sono são dois: palavras e números. Nunca andam juntos, deo gratias. E não atacam todo as noites. Só algumas, aquelas em que a ponte fica mais longa.

(Cont.)

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 23-03-2025

A primeira surpresa do dia foi no autocarro para o salão do livro: ia cheio a deitar por fora. Domingo, nove da manhã. A segunda foi já no salão propriamente dito: no bengaleiro não paguei nada, porque "sou escritor" (aspas porque me cito). Ou seja: poupei nove francos, pouco mais de a nesma coisa em euros. Ainda há quem diga que ser escritor não compensa financeiramente. 

Do salão não guardo muitas recordações: meia dúzia de cartões de visita, uma reunião amanhã (para as fotografias). Não incluo nesta ausência, nesta dúvida, nesta ambivalência os momentos que passei com a minha filha, inapagáveis manifestações da alquimia genética. 

Nem o facto de me ter deixado enganar por um vendedor e ter comprado um livro que é uma merda - si tant est qu'il y a des bouquins merdiques, chose que je sais très bien n'existe pas. É simplesmente um livro de que não gosto. Tenho uma desculpa: fala do Burundi e do Ruanda; duas: o vendedor era de uma eficácia redoutable; três: a L. também o queria. Combinámos que o leria e lho passaria. Comecei a folheá-lo no autocarro de volta para casa e lamentei imediata e amargamente a compra. O que me pôs perante um dilema paterno-interessante: dou-lhe aquela porra ou empresto-lha, somente? Opto por emprestar-lha, somente. Por um lado não dou coisas de que não gosto e por outro pode ser que dali saque qualquer informação interessante. 

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Hoje à noite há fondue de queijo. Vem cá a G. Já bebi um kirsch, para ir preparando o estômago. 

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Amanhã: reunião na Vent des Routes, ver se querem vender as caixas de fotografias.

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Agora; sesta, ver se estes passeios  interiores me servem para alguma coisa. 

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(Cont.)

22.3.25

Sistemas

F. procurava palavras como um gato ratos e elas fugiam-lhe como ratos do gato. Às tantas imaginou uma linha que não o era porque tinha três dimensões, enrodilhada sobre si própria. Apesar de ser caótica imprimiu-lhe um movimento turbilionário e esperou. As palavras, curiosas como são, começaram a entrar, mas devagar. F. pensou que lhes devia alterar a viscosidade a fim de aumentar a fluidez daquele circuito. Contudo, a força centrífuga atirava-as para as paredes do túnel e o débito do sistema era baixo. Um pouco de vibração fazia visivelmente falta. Como, porém, introduzir vibração num dispositivo giratório? Como vencer a força giroscópica? F. decidiu parar o movimento giratório, introduzir pedras mais leves no tubo, agitá-lo caótica e aleatóriamente ("para qualquer coisa um pleonasmo servirá", pensou).

Conseguiu. Do outro lado, pouco a pouco, começaram a aparecer vocábulos. Primeiro monossílabos; depois, progressivamente, o número de sílabas comecou a crescer, à medida que o peso das palavras metidas no tubo ia aumentando. 

Baptizou o mecanismo com o nome de Sistema digestivo para palavras, patenteou-o e ganhou uma fortuna. No escritório das patentes o funcionário estava reticente. Coçava a cabeça, que tinha redonda e guedelhuda e perguntava: "mas para que é que isto serve?"

Pacientemente, F. explicou-lhe que servia para produzir a mesma coisa do que o outro sistema digestivo mas com matéria prima diferente. 

Falares, gravatas e outros rigores

Por onde começar a analogia - escolher as palavras como se escolhem as gravatas ou estas como aquelas? Talvez não haja um princípio. Talvez isto esteja tudo ligado, redondo, «inteiro» como dizia o outro e se deva escolher do mesmo modo gravatas, palavras, cafés, livros, vinhos, uma rota - e não continuo a enumeração por pudor. Talvez se possa ir mais longe e escolher os dias, a Lua, o vento com o cuidado e o rigor que se põe na escolha de uma gravata, na elaboração do nó de maneira a que a extremidade fique no sítio certo, o pescoço respire e possa voltar-se (discretamente, muito discretamente) para observar um pormenor que passa fugaz no sentido oposto. Talvez o rigor se aplique tanto ao trabalho que a sorte dá como ao esforço que o azar requer, são de igual intensidade; ou à escolha de uma tecla no piano em detrimento da do lado, à selecção de um olhar em vez de outro - porque o olhar é mais importante do que os olhos que olham e deve escolher-se o olhar de que somos alvo tal como escolhemos o poema que queremos ler, dizer ou ouvir. 

Talvez no fundo a arte seja viver engravatado sem ser engravatado. Sem, sequer, ter uma gravata.

O vento, os caminhos

No inverno - e em muitos dias da Primavera e do Outono - a luz de Genebra é muito branca, parece diluída em clara de ovo. Isto deve-se às nuvens altas. Estão sempre por cima da cidade, como se a quisessem proteger de qualquer coisa demasiado violenta, sabe-se lá o quê. Do Sol não é de certeza, estamos a quarenta e seis graus de latitude. Um grau mais do que o meio caminho entre o Equador e o pólo. Quando aqui vivia achava isto desesperante. Agora, que venho cá de passagem, de visita, gosto. Tudo fica suave, arredondado, como se não houvesse ângulos agudos ou arestas na geometria da cidade. As formas e as sombras diluem-se e agora, Primavera, as árvores ainda nuas contrastam com as cores garridas das ubíquas flores. Ando muito a pé, como se fosse um turista e vejo melhor os contrastes, as construções modernas, regra geral feias lado a lado com as antigas, lindas, maciças e imponentes, de janelas enormes para deixar entrar essa tal luz.  Dentro desses apartamentos tudo é suave também, tudo é fluido, regular, ordenado, sem arestas. (Não é, mas isto é literatura e não sociologia, antropologia ou outra logia. É assim que vejo a cidade e lhe oiço a ausência de ruídos). Na verdade agora buzina-se mais do que há vinte anos mas os automóveis eléctricos, as bicicletas e as trotinetas - omnipresentes, como as flores - absorveram a diferença. Não há muita gente nas ruas. Ou trabalham ou estão em casa. Nos cafés só reformados, com a óbvia e natural excepção das ruas perto da universidade. Penso no que a cidade mudou, no que eu mudei e apercebo-me com espanto que essas duas mudanças nos aproximaram em vez de nos afastar.

A ausência de arestas - visíveis - tem efeitos nas pessoas, consequências que por sua vez a causam. Este movimento circular, harmonioso, atraente, quase uma vertigem, é magnético, faz-me sentir como se estivesse a cair no poço da Alice. 

Fui à livraria de viagens. Chama-se Le Vent des Routes. O nome é adequado a um marinheiro que sempre andou com, pelo ou contra o vento.

21.3.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 21-03-2025

O sistema de saúde suiço está doente, praticamente desde pouco depois de o actual modelo ter sido posto em prática. É bastante instrutivo e bem podia ser usado como ilustração daquele velho provérbio segundo o qual de boas intenções está o inferno cheio. Quem quiser ter uma ideia do que se passou e falar francês (ou souber como usar tradutores em linha), pode ir aqui. Resumindo muito: após uma série de referendos e iniciativas populares, projectos e contra-projectos todos recusados pelo «soberano» (designação local para povo), em 1994 a actual lei é aceite, por uma curta maioria (51,8%). Os debates até chegar aqui foram - como sempre, mas mais do que o habitual - acesos e muitos. O povo suiço tem uma saudável desconfiança de tudo o que lhe cheira a poder central e foi preciso toda a habilidade política de uma senhora chamada Ruth Dreifuss, socialista (cela va sans dire) que o projecto passou a rampa (o cerne aqui sendo que o seguro de saúde passaria a ser obrigatório e não voluntário como até ali. Enfim, parcialmente voluntário. O seguro contra acidentes já era obrigatório). Para dourar a pílula, passem-me por favor o galicismo, a senhora Dreifuss imaginou um sistema no qual os seguros teriam duas componentes. Uma, a de base, incluiria um mínimo de prestações, as mais usuais e frequentes. Quem quisesse mais  teria de subscrever uma apólice «complementar» (aspas porque cito). Nos primeiros anos o seguro de «base» aguentou-se como tinha sido lançado; mas dai a um político a ponta de um dedo e em menos de um fósforo ele ter-vos-á comido o braço. E o que os opositores do projecto tinham previsto aconteceu: não se passava um ano que o governo não incluísse mais coisas no seguro de base. E que faziam as companhias de seguros? Aumentavam os prémios, está bem de ver. O que ninguém previu foi o estado catastrófico, monstruoso, a que isto chegou. O seguro de saúde é hoje um dos principais centros de custo para os suíços e é enorme, desmesurado. 

Ainda por cima, como é próprio dos políticos, não aprenderam, Agora andam a esbracejar para ver se conseguem baixar o preço das apólices mas em vez de decidirem acabar com a porcaria do seguro-base e deixar cada seguradora decidir o que inclui na apólice, que fazem? Aumentam a franquia mínima. Não reduzem o custo, mas reduzem »a progressão de custos».

Se fossem dar uma volta ao bilhar grande também a reduziriam e muito mais depressa.

Nota bene - a democracia directa tem pelo menos uma vantagem: os suíços têm o que quiserem ter, mesmo que a maioria tenha sido curta. Não houve cá martas temido a impor fosse o que fosse.

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Ontem lá consegui ler qualquer coisa, conjunção feliz de vários factores: estava muito sol, o livro tem as letras grandes e o autor é Umberto Eco. Chama-se Reconnaître le fascisme (na tradução francesa. O Original é Ur-fascismo, creio mas não tenho a certeza).

Eco afirma que o fascismo, contariamente a outras ideologias totalitárias, não tem um corpus teórico específico e criou o conceito de ur-fascismo, uma espécie de englobante com catorze características que, segundo ele, ajudam a reconbecer os traços de fascismo numa ideologia. Para que uma ideologia seja fascista não é preciso que os tenha todos. Basta aliás um qualquer para que o fascismo se possa sedimentar a partir daí. 

Esses catorze pontos são:
- Culto da tradição;
- Conservatismo aliado à rejeição do moderno, dissimulado sob o manto do capitalismo. Rejeita-se o capitalismo e tudo o que se seguiu à revolução francesa, à independência dos Estados Unidos. A «depravação» do mundo moderno começou com o Renascimento;
- O culto da acção pela acção. Os homens não pensam, agem;
- Rejeição do pensamento crítico;
- Rejeição da diversidade;
- Exploração da frustração (sobretudo das classes médias);
- Obsessão com o complot. O fascismo precisa de um inimigo exterior, internacional;
-  Obsessão com a riqueza e a força do «inimigo»;
- A vida é uma guerra permanente. Uma vez vencidos todos os «inimigos» virá um período da paz, uma nova idade de ouro;
- O elitismo. Cada cidadão pertence ao melhor povo do mundo - mas precisa de quem o guie e governe;
- O culto do heroísmo;
- O controle das mulheres. O homem verdadeiro é machista. Um homosexual não é um homem a sério;
- O povo é uma entidade coesa e tem uma vontade comum. Não há lugar para vontades próprias;
- O empobrecimento da língua, que é simplificada e controlada.
(Para escrever esta lista fui aqui.)

Como Umberto Eco diz, estes pontos são partilhados por muitas ideologias ditatoriais e os meus amigos reconhecerão decerto pelo menos uma delas.

O livro foi escrito a partir de um discurso na Universidade de Columbia a 25 de Abril de 1995. Sugiro fortemente a sua leitura. 

Umberto Eco, Reconnaître le fascisme, ed. Grasset, col. Les cahiers rouges, Paris 2024

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Hoje esteve menos frio do que ontem e ontem menos do que anteontem. Amanhã a máxima estará outra vez nos dezassete graus, mas a partir de domingo baixa de novo. A prima vera é instável, coitada. Tem súbitas e enormes variações de humor.

Espera, desnorte e outros diabos

Está desorientado quem não sabe aonde está ou para onde ir; e desnorteado quem não sabe o que fazer. Desocidentado não existe e desolado não é sequer para aqui chamado. Ou seja: certos e seguros só o sul e o ocidente - o que explica, sem dúvida, a velha expressão "vai para oeste, jovem" tão usada no cinema, na música e na má literatura. F. não estava nem desorientado nem desnorteado. Estava desesperado, mas a espera não sendo um ponto cardeal de nada lhe servia tentar encontrar soluções para esse doloroso estado. A menos, claro, que dissolvesse a angústia em água, sempre seria uma solução. F. pensava nisso seriamente.  Estava farto do café, vinho e sumo de  kiwi em que dissolvia os estados de profunda prostração que regularmente o submergiam. "Água", pensou, "é a solução. Resta saber se lisa se gasosa."

Dilema esse que não resolveu. O simples facto de ter de fazer uma escolha magoava-o. Passara a viver num café aberto vinte e quatro horas por dia, todos os dias. A cada meia hora consumia uma água, alternadamente com e sem gás. Pagava-as mal chegavam à mesa, para não dar pretextos de expulsão ao dono e aos empregados. Quand dormia, os empregados deixavam-lhe as águas na mesa. Pagava-as quando acordava.

Um dia acordou. Bastar-lhe-ia encontrar um norte e o caminho para lá chegar e deixaria de estar desesperado, apesar de continuar sem saber aonde fica a espera.

Ninguém sabe, excepto o Diabo.

20.3.25

Palavras, actos

"Só as palavras contam. O resto é conversa."

(Ionesco, citado por Umberto Eco in Reconnaître le facisme", ed. Grasset.)

Às vezes. Em geral, entre as palavras e os actos continuo a preferir estes àquelas.

19.3.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 19-03-2025

Ontem... (Não tenho a certeza de que um diário que começa por «ontem» seja de fiar. Não faz mal. Fica.)

Ontem fui passear. Trajecto habitual: casa - mercado de Plainpalais - casa por um caminho diferente. Para ir fui pelos Bastions, para regressar pela Rue de Carouge. É uma rua que salvas as devidas proporções - são muitas - e com um bocadinho de imaginação (grande) podia passar pela Almirante Reis de Genebra. Não é. Falta-lhe muita coisa e tem outras a mais, mas é o que me faz lembrar. Uma Almirante Reis mais pequena, mais limpa e mais civilizada, mas igualmente a ferver de vida. Fui aos Recyclables beber um copo de vinho tinto. Les Recyclables é uma livraria-café que começou por ser uma livraria de livros em segunda mão à qual se juntou um pequeno café. Hoje é um café que até pratos do dia serve com uma livraria ao lado. A livraria não é nada pequena, note-se. Continua a ter uma vastíssima escolha de livros, todos em bom estado e a preços «acessíveis» (aspas porque é irónico. Preços acessíveis em Genebra é o perfeito exemplo de oxímoro, se por acaso alguém precisar). Bebi um copo de vinho, comprei um postal e paguei mais do que teria pago por uma garrafa de qualidade média-baixa no supermercado.

Mas beber vinho em casa tem muito menos piada do que estar sentado num café a ouvir um bom jazz e a escrever um postal, não tem? Tem.

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À noite o L. e o S. vieram jantar. Com o primeiro tenho mantido algum contacto; já o S. não o via há quarenta anos, mais semestre menos semestre. É arquitecto naval. Foi uma soirée boa, a falar de barcos com quem sabe. O L. fez duas Whitbread, o S. tem um clássico de 1918  (em Veneza, que para meu grande espanto é um sítio barato para ter embarcações). Não falámos do passado - só de barcos e das derivas woke (pouco) e bebemos correctamente. Quando anunciaram que se iam embora não os retive. Envelhecer é isto e é bom. S. confirmou sem entrarmos em muitos pormenores o que eu fiz no P., coisa que depois da recente reunião com a dona do barco me alegrou bastante.

(Pequena nota à parte: quando mencionei o P., S. disse imediatamente: «O do Hugh Welbourn?» A pena que eu tenho das mãos em que aquele barco está. Enfim, das mãos não tenho pena nenhuma. Tenho do bote, que não as merece.)

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Falta uma referência ao Lindor, um chocolate da Lindt que continua a ser, para mim,  melhor chocolate de leite de sempre e para sempre; e outra aos TPG, os transportes públivos de Genebra, que tive a sorte de conhecer por dentro por lá ter trabalhado seis meses (no escritório, não nos autocarros). Genebra quis acabar com o excesso de circulação automóvel na cidade e para isso percebeu que tinha de melhorar os transportes públicos. 

Para quem não sabe o que é a excelência e quer saber, a solução é simples: faça uma viagem pela cidade utilizando os transportes à disposição: autocarros, eléctricos e barcos. Cereja em cima do bolo: são mais baratos do que em Lisboa, em PPP.

16.3.25

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 16-03-2025

Hoje ouvi um disco chamado Schubert: The Last Quartets pelo Quatuor Aviv. Como é que de Schubert só conseguia ouvir os Impromptus, tocados pela divina Maria João Pires e não gostava de tudo o resto? A resposta é fácil, claro: os anos servem para nos fazer descobrir o imbecil que em nós vivia. Camadas geológicas de estupidez e ignorância (por muito que se advogue que convém não as misturar, estas duas andam por vezes juntas). Descobrir no sentido de destapar, pôr à vista. Envelhecer é isso e é bom. 

Resta saber, claro, se essas camadas de ignorância não são simplesmente substituídas por outras, que só quando já só os vermes tiverem uma palavra a dizer serão descobertas. "Cuidado com o fígado", diz um. "É puro veneno". "O coração não está melhor", diz outro. "Com o cérebro não há problema", acalma um terceiro. "Está vazio. Não sabe a nada".

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Reflexões agradáveis hoje no trajecto para casa da filha. Começámos por ouvir o disco de Alcides, quanto a mim o melhor disco de música cabo-verdiana de sempre. Mas o dia convidava a outra coisa - o Alcides já vinha de ontem e já fora ouvido pelo menos duas vezes -, a S. tirou este Quatuor Aviv do sítio aonde guarda os CD e eu fiz a substituição. 

Que maravilha! O troço de planície entre Genebra e Gland é bonito - a Suíça é o país mais consistentemente bonito que conheço, não tem lugares feios. Só tem beleza em diversos graus - e o génio de Schubert  encaixa na paisagem, no cinzento do céu, na expectativa da raclette (que excedeu todas as expectativas), na antecipação do prazer de reencontrar a família, hoje com o tempo para nos encontrarmos que ontem nos faltou.

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R. E. enviou-me uma mensagem. Vai precisar de mim em Abril. Vou finalmente conhecer o país basco.

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S. vai estar fora a semana quase toda. Vou contactar dois ou três amigos, fazer tudo o que tenho para fazer - é muito - e passear. 

Por Genebra e por mim.

15.3.25

Diário de Bordos - Nyon, Vaud, Suiça, 15-03-2025

Terceiro aniversário do primeiro neto. A Suíça sendo a Suíça, há vinte adultos e quatro miúdos, incluindo o aniversariante (números aproximativos). Dos vinte adultos três são avôs e o resto está mais ou menos igualmente distribuído. Genebra faz uma vez mais jus à beleza das suas mulheres, a Suíça à ordem e à beleza da tranquilidade. É preciso envelhecer para apreciar este país. 

Tudo isto dito, não consigo impedir-me de pensar que Genebra é um cantão que os suiço-alemães vêem como uma espécie de circo, uma mistura de sul de Itália e norte de África disfarçada com as cores da Confederação. (A festa é no cantão de Vaud, mas é como se fosse em Genebra. Isto é malta exilada das rendas, que em Genebra são dificilmente suportáveis por jovens casais em princípio de vida.)

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E eu, como sempre nestas festas, intimido-me, sento-me num canto com um copo ao lado e o telefone nas mãos. Escrevo e navego pouco, há que aproveitar todas as oportunidades. 

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A minha neta é linda. Posso dizer com orgulho que contribuí duplamente para a beleza feminina da cidade: a actual e a futura.

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Está frio, chove e é Março. 

(A conjuntiva é desnecessária: está frio, chove, é Março.)

14.3.25

Louvor da bicicleta, merken e outros milagres

Coisas que só andando de bicicleta pela cidade podem acontecer: hoje descobri na Almirante Reis, já perto do Areeiro (lado direito de quem sobe, se por acaso) uma loja de produtos argentinos. 

Sim, têm merken

(É uma mistura de especiarias para pratos de carne. Enfim, não.  É um milagre para pratos de carne.)

Diário de Bordos - Avião Lisboa - Genebra, 14-03-2025

O avião é suíço. Está demasiado quente. Não me queixo: antes assim. Aviões, casas, lojas, autocarros, comboios, teatros, cinemas, supermercados, tudo estará sobreaquecido, nestes próximos dias. Também eu, à ideia de ver os meus netos, aqueço de impaciência até ferver. 

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Reunião com M. e advogadas. A presença destas senhoras foi um oásis de racionalidade. M. continua o poço de emoções mal controladas, por muito compreensível que seja a sua raiva. O que não é compreensível é ela não perceber a parte de responsabilidade que lhe toca. Penso na observação que alguém me fez sobre ela: "Ó mãe, quem comeu o chocolate foi o mano, não fui eu." 

Há sempre um mano, para a M. Nunca é ela. Salvam-se os quase sete anos que passei em Palma, com interrupções e muitas vezes dificuldades, mas enfim. Aquela cidade vale isso tudo e muito mais. 

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O voo é curto: pouco mais de duas horas. Sentei-me à janela na esperança de dormir qualquer coisa, mas o raio da reunião não me sai da cabeça. Resisto à tentação de catalogar M. na categoria de "qq coisa" rasca porque sei que aquilo é simplesmente um vulcão de emoções mal controladas. Como é que uma pessoa inteligente - ela é-o - consegue não usar a Razão, deixá-la ser varrida por um tsunami descontrolado? 

Não sei e gostaria de saber, ver se consigo dormir nem que seja um quarto de hora. 

Durante muito tempo pensei que era estratégia. S. disse-me que não, que é assim mesmo, o que se vê é o que é. 
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Não dormirei. Chegamos daqui a vinte minutos. Temperatura: quatro graus. E ainda há quem se queixe do aquecimento excessivo do avião.

ADENDA 
Nada como uma ex-mulher que entre bastas outras coisas estudou e trabalhou e fez investigação em neuropsicologia. O comportamento de M. foi-me explicado em pormenor e mais: descreveu reacções e comportamentos da minha querida ex-armadora (o prefixo está  o sítio certo) que eu nem sequer lhe tinha contado. (Refiro-me à actuação durante a reunião. Da senhora já lhe falei amiúde.)

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A Suíça é um país para velhos. Aproximadamente uma hora depois de as rodas do avião terem tocado a pista estava a casa da S. O trajecto foi fluido como a descida de uma pista de ski bem cedo de manhã, com pouca gente e a neve ainda dura e bem compactada.