26.3.23

Irritações lexicais

Que estranho fenómeno levará gente inteligente a dizer "a minha pessoa" em vez de eu ou mim? O uso absurdo e abundante de "o mesmo" ou "a mesma" suscita a mesma dúvida. "A porta está avariada. É favor fechar a mesma." Porque não "é favor fechá-la"?

Deve ter a ver com o número de sílabas. Quantas mais, mais culto o orador se sente.

Bárbara, completa.

Ontem fui à livraria Poesia Incompleta ver os quadros da Bárbara Assis Pacheco. A livraria é muito mais do que o nome: é uma excelente e completíssima livraria especializada em poesia e merece todas as visitas que se lhe possam fazer.

A exposição poderia chamar-se «Bárbara a sonhar com leões». Infelizmente, este título tem por trás aquela carga sardónica da expressão «sonhar com ladrões» (de onde provem, de resto) e é pena: os sonhos são bons, poderosos, evocadores e dão-nos vontade de os comprar todos. Leões, piscinas e personagens femininas pintados nas cores plenas que é o estilo da pintora. Os meus conhecimentos teóricos de pintura são bastante reduzidos e não poderia dizer, mesmo que o quisesse, em que linhagem aquela obra se inscreve. Verdade seja dita, é-me indiferente: este é um daqueles casos em que «gostar muitíssimo» é insuficiente. Peca por defeito. Há várias coisas que me levam a gostar ou a não gostar de um quadro. A maestria técnica é uma delas. A história que conta outra. E a que não conta, a que está para lá do espectro visível. Creio que já aqui falei da exposição Bicharadona, em Montijo e do choque que senti ao entrar: no primeiro repente, a pintura da Bárbara parece infantil. Depois começa-se a olhar e vê-se que é tudo menos isso. É sofisticada, subtil e tem - como tudo o que é bom - vários níveis de leitura. Acorrei à Poesia Incompleta - a Bárbara não podia ter escolhido melhor lugar para expor estas obras, que são tudo menos incompletas. Como a livraria, de resto.

24.3.23

Combustível, insónia

Três e meia da manhã. A insónia entrou garbosamente pela noite dentro, como a proa de um cruzador a navegar a toda a força em mar chão. Mas agora o navio vai atracar. Falta de combustível? Talvez: o dia já foi remoído e  queimado.

Eu só sei dançar sozinho - Reedição

Por vezes toca-me à campaínha às três da manhã, ou quatro - a qualquer hora. Abro e nem "boa noite" oiço. "Ela abafou-me outra vez", explica. "Ela", eu sei, é a tristeza, a solidão. "Desce sobre mim como um cobertor, como o cobertor de quando a minha avó me aconchegava na cama e de repente o frio desaparecia, percebes? Abafa-me, aconchega-me; parece que se faz noite, apesar de já ser noite". Digo-lhe para entrar, preparo-lhe um gin tonic (com duas ou três gotas de bitter Angostura) e deixo-a falar. Uma vez perguntei-lhe "Desce como um abutre?" e ela respondeu "Não, que horror, se fosse um abutre eu estaria morta e não estou". 
    "Percorro a cidade, de noite, para saber aonde pertenço [where do I belong to, tinha feito a escola primária nas freiras inglesas de Belém e a Universidade em Londres]. Hoje fui ao Santiago Alquimista, conheces?" Acenei uma vaga negativa. "O espaço é muito bonito, mas está povoado de meninos de coro que se fingem artistas. Prefiro o contrário". "Depois fui ao Maxime". "Esse conheço", encorajei-a. "Menos meninos de coro, menos artistas. Um nojo: tudo sujo, o chão peganhento, montes de homens. Não era sítio para uma mulher sozinha". Alexandra dificilmente entrava na categoria "mulher sozinha". Era muito pequenina, magra, morena como se tivesse saído ontem do Rif - mas quando se deslocava parecia ter um exército com ela. Não por ser agressiva, mas porque enchia o espaço todo. "Enfim, uma merda. Acabei numa boîte cabo-verdiana. Sabes, dançar música africana não é difícil. Basta não te veres a dançar. É por isso que não gosto de tango: eles não dançam, olham-se." 
    São seis da manhã, Alexandra está deitada no sofá da sala com o copo de gin na mão; reclina-se regularmente para o beber. Não gosto de boîtes cabo-verdianas: aquela música dança-se sempre a dois e eu só sei dançar sozinho. Há poucos povos africanos que dançam sistematicamente a dois; e mesmo assim poucas músicas. No Zaire isso acontecia, por vezes. Uma vez tive uma namorada muito bonita, jovem, que todas as noites tentava ensinar-me a dançar na boîte de um maricas que tinha a música aos berros e onde íamos regularmente. Eu dizia-lhe, "Tsombé, eu não sei dançar a dois"; e ela respondia-me "Mas sabes fazer amor. Porque não consegues dançar?" "Porque se calhar faço amor sozinho". "Não sejas idiota". Como a minha hóspede, Tsombé era parca na fala, mas não hesitava muito na escolha de palavras. Alexandra continua deitada no sofá. Não me importo de a acolher, seja a que horas for: fala pouco, não me critica os silêncios - provavelmente até os agradece. Às vezes fazemos amor; mais frequentemente não: acabar na cama com ela faz-me pensar na Tsombé e em como é bom fazer amor quando se ama ou é amado (a reciprocidade não é essencial. Basta um amar, ou deixar-se amar). Com Alexandra a única reciprocidade é a do desejo; ela diz-me "fode-me, mas não vás mais longe do que a pele, porque para lá não há nada". Tsombé não era assim: sentava-se em cima de mim, apontava para o umbigo e dizia: "até aqui". 
    Alexandra acaba por adormecer. Fico na sala a olhar para ela. Daqui a pouco irei buscar um cobertor para a tapar. Eu só sei dançar sozinho

Definição - envelhecer

Envelhecer é um processo tão simples quanto inevitável que se traduz por:

a) Aprender a resistir à tentação de corrigir todos os males do mundo;

b) Aprender a corrigir os nossos próprios defeitos, deixando os dos outros em paz. Ou melhor: aprender a viver com os nossos defeitos e com os dos outros.

23.3.23

Caça às bruxas, neo-maccarthismo e outros demónios

Com o clima de intolerância que por aí anda, pergunto-me quanto tempo faltará para a caça às bruxas regressar? Ou quando teremos um novo McCarthy, à cata de «inimigos interiores»? Os demónios do bem andam à solta. São os piores.

Alvos colaterais

À longuíssima lista de violências que a Covid me fez devo acrescentar a de hoje: não poder fazer uma viagem  os Estados Unidos com o Alberto Gonçalves. Ainda por cima, esta sobe  directamente ao pódio. 

Claro está que a responsabilidade é minha: não sou vacinado contra a Covid e recuso-me a sê-lo. Não por medo das possíveis consequências mas por princípio, por teimosia, por - neste caso - masoquismo puro. De nada serve atribuir a culpa ao vírus, ao Biden ou à Big Pharma. A escolha é minha.

Mas lá que passei o dia a insultá-los passei.

22.3.23

Lisboa, pó-de-arroz

Lisboa é puta velha, dá-te mais do que te pede: já sacou das gerações anteriores tudo o que podia sacar.

Paradoxalmente, a miudagem que aí vem vai poder dizer o mesmo: Lisboa disfarça-se, cobre-se com camadas e camadas de bâton e pó-de-arroz e engana toda a gente. 

21.3.23

Amor, flechas

Num homem sem amor as palavras são como flechas sem alvo.

Deus, Diabo e alguém que os escolha

Fiquei ateu muito cedo, aos onze ou doze anos. Era ajudante de missa e tudo, mas o vírus da vela - e mais tarde o do mar - substituíram o da fé.  Porém, esse ateísmo tem vindo a evoluir. Antigamente não acreditava na existência do Diabo - sem Deus não há diabo e sem este não há aquele.

Uma pessoa vai crescendo e apercebe-se de que se o diabo não existe, existe alguém que se parece diabolicamente com ele. Já a ausência de Deus permanece. Nem Deus nem alguém divinamente parecido com Ele.

Aqui chegado, é forçoso reconhecer que não há nem um Diabo nem um Deus. Há muitos, tão entranhados um no outro que é impossível distingui-los. Entre Deus e o Diabo venha o homem e escolha.

Pagar para sonhar

Há uns meses dei por mim a sonhar com o que faria se ganhasse uma avalanche de massa e gostei do que vi: uma bicicleta (igual à Coluer mas em carbono), um barco (pedir propostas a VPLP, Hugh Welbourn e Ed Dubois para qualquer coisa monocasco entre setenta e oitenta pés, rápida, confortável e simples). Até pensei, imagine-se em casas e carros - prova provada, como se necessário fosse, de que por muito que se corra a idade corre mais depressa. Consequentemente, segunda-feira comprei um bilhete para o totómilhões, coisa que não fazia há mais de uma dúzia de anos.

Ganhei três euros e noventa e quatro cêntimos, o que representa um prejuízo liquido de um euro e seis cêntimos. Não acredito nas lotarias como método para enriquecer mas pagar cinco euros para ter um sonho bonito parece-me aceitável. 

Enfim, para dizer a verdade uma espécie de Coluer em carbono já me encheria de felicidade e para isso não preciso de um totómilhões. Também não preciso do resto: nem de um setenta pés, nem de um automóvel luxuoso, nem de uma casa minha (posso muito bem arrendar uma).

Cheguei de novo a esta conclusão depois de comprar outro bilhete e os meus prejuízos passarem a seis euros e quatro cêntimos. Agora só volto a tentar daqui a uma dúzia de anos. Na verdade, não gosto de pagar para sonhar: posso fazê-lo de borla. Há menos milhões - e menos totós.

20.3.23

Noie, sono: instruções

A maneira correcta de entrar na noite é: com firmeza, determinação e obstinação. Posição fetal: pernas encolhidas até os joelhos tocarem no queixo, mãos apoiadas fortemente nos ombros (a esquerda no direito e a direita no esquerdo, claro), respiração lenta e profunda. 

Basta esperar três horas ou quatro para que o sono chegue.

Venham mais cinco

Nunca liguei a "dias". Dia disto, daquilo, Natal, Páscoa, aniversários... até do meu aniversário cheguei a esquecer-me. O Facebook veio mudar isso tudo. Impossível esquecer-me do meu aniversário ou de que hoje é dia do Pai. Não há quem não poste fotografias do "melhor pai do mundo" ou do "paizão" ou do "pai dos meus [dela] filhos".

Não acredito muito em nada disso. O dia do meu Pai é todos os dias que penso nele e ele já cá não está, são muitos, todos, vai quase para vinte anos. Dia da Mãe ainda são todos, faz menos tempo que foi ter com o tempo e com o marido. Soube recentemente da existência de um dia dos irmãos. E um para os filhos, há? Pouco importa. Todos os dias são dias de alguém que me é querido e em quem penso, todos os dias. 

Isto porque fez há dez dias cinco anos que comecei a trabalhar para o meu P. Uma viagem que era suposta durar uma semana transformou-se numa vida. Esqueci-me de celebrar esse aniversário, mas posso dizer - e digo - venham mais cinco. Obrigado, M., armadora - cliente - amiga com quem partilho os altos e os baixos do trabalho por me aturar estes anos todos, por me ter deixado fazer as asneiras todas que fiz e - sobretudo - por me ter deixado fazer bem tudo o que fiz bem, que foi muito mais do que o que fiz mal. Se em tudo o que faço sempre pus tudo o que sou, no P. tenho tudo o que fui, sou e serei. 

Cinco anos, P. Venham mais cinco. És teimoso e para teimoso, teimoso e meio. És lindo e mais lindo ficarás ainda. Dás-me água pela barba, mas eu sacudi-la-ei, não te preocupes. Ainda temos muitos dias pela proa, muitas chatices e muitas alegrias. Alcandoraste-te, por mérito teu e da M., ao difícil lugar de embarcação da minha vida e dele não sairás, nunca.

15.3.23

Amores, viagens, contrafortes e uma letra

Procuro as traduções portuguesas de butoir e de arc-bouter e não encontro nada de satisfatório na net. O Grande Dicionário Francês/Português Domingos de Azevedo, da Bertrand, edição de um pouco antes de Cristo não é grande coisa mas ajuda. Para butoir dá batente de portão.  Seja de portão, se quiser; mas não é só. Date butoir, por exemplo, é data limite, prazo, em inglês deadline. Para arc-bouter está mais longe: "entesar-se fincando os pés no chão".  Não é nada disso, Domingos. O que tenho em mente é o corpo da --- com os pés bem apoiados na cama, a cabeça na almofada e o resto todo no ar, fazendo um arco perfeito, entesado e musculado sim, mas curvo, Domingos, todo curvo, butoir perfeito para outro corpo entesado, Domingos, mas esse tão pouco tinha os pés no chão,  estavam bem perto dos da --- e o resto estava apoiado nos braços, Domingos, nos braços, só linhas rectas neste, contraste perfeito com as curvas e a curvatura do outro, mas disso não há dicionário que fale, só o da memória talvez, o do devaneio, o do desejo.

Tudo isto começou com date butoir, data limite, prazo final, que é daqui a um mês e daí vai um salto até arc-bouter,  que foi há treze ou catorze anos, as palavras dão saltos redondos como o "o" de arc-bouter, ausente de butoir mas isso é irrelevante. É tão bonito, arc-bouter, era tão bonita, a --- arc-boutée, raide comme un arc-boutant de cathédrale, une prière à deux, Domingos, como eu agora rezo para que a date butoir seja verdade e não mais uma dessas miragens que têm sido a minha companhia, aqueles cabelos loiros espalhados pela almofada como raízes de uma árvore caída na cama, como é que uma simples letra pode ser uma máquina de viajar no tempo, Domingos, tu sabes?

Como é que uma simples letra consegue acordar-me, tirar-me do sono e do quente, do peso dos cobertores para te ir consultar, já não te abria há tantos anos, Domingos? E voltar atrás, partir de butoir e acabar em arc-boutant, partir de um calvário cujo fim está à vista para uma festa,  uma catedral, um contraforte, um amor? 

Os amores são como as viagens: têm princípio mas não têm fim. E como as catedrais, que têm contrafortes mas não têm limites.

13.3.23

No man's land

Aninho-me em mim. Esta carcaça martirizada (isto é um exagero) acolhe esta mente martirizada (isto é um understatement). Enrolo-me, abraço-me, envelopo-me, aconchego-me. Deixo os lençóis, edredões, cobertores e a noite fazerem o seu trabalho de apaziguamento. O dia apaga-se mais devagar do que o candeeiro. Não há um só interruptor: são muitos e vêm de direcções diferentes. O corpo e a mente aceitam todos os carinhos e lutam denodadamente para afastar dúvidas e angústias. Não buscam certezas. Sentem-se bem naquele no man's land no qual se esbatem os medos e as certezas ainda não apareceram. É por aí que o sono se esgueira. Aí mora a paz. E eu, às vezes.

11.3.23

Loiça, burocracia

Percebo, finalmente, porque gosto tanto de lavar a loiça: vejo o progresso da acção. Começa-se por ordenar a loiça suja, lava-se, passa-se por água, põe-se a escorrer o que é para escorrer, seca-se e arruma-se o que é para secar e arrumar. Deita-se uma vista de olhos à cozinha (fica sempre qualquer coisa para trás) e hey, presto, acabou. A acção teve um princípio, um meio e um fim. Pode passar-se a outra coisa.

Isto é a antítese do que se passa quando se lida com a burocracia portuguesa: é um rio com mais meandros do que um rio africano e com a mesma abordagem ao desaguamento no oceano: há tempo.

Receita, vida

- Doutor, estou doente. Preciso de uma receita médica para viver.

- Viver é muito vago, meu caro. Se quiser, passo-lhe uma receita para um pequeno-almoço, um almoço e um jantar por dia.

- Ora, isso não chega. Viver não é só comer.

- O que é que você quer mais?

- Tanta coisa! Copos com os amigos, livros, teatro, cinema, viagens, conversas com quem discorda de mim e com quem pensa como eu, família, amor, um bom emprego...

- Isso é impossível de pôr numa só receita, tudo ao mesmo tempo. Tem de escolher.

(Cont.)

10.3.23

Diário de Bordos - Lisboa, 10-03-2023

Sexta-feira é o pior dia da semana. Acordo a pensar que o que não aconteceu nos quatro dias precedentes vai acontecer hoje, porque é o último de um ciclo; depois, lembro-me de que se não acontecer, esperam-me dois dias em que nem a esperança de que venha a acontecer há, que um novo ciclo recomeçará a seguir a esses dias vazios. Para quem espera, o fim-de-semana são os dias do desespero e sexta-feira o dia que o antecede. Como estar à beira do poço e saber que se vai cair nele, inexoravelmente. É o último dia que nos pode impedir essa queda. Último dia e queda que se repetem semana a semana.

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A autoflagelação é a pior forma de tortura: só nos podemos culpar a nós próprios. Ou a melhor: só nos podemos culpar a nós próprios. Não sei. Ser-se responsável (e culpado, também) por tudo o que nos acontece é simultaneamente carregar um peso e alijar esse peso. Talvez no fundo seja uma forma aceitável de misantropia. Uma forma humana, por assim dizer. (Como se houvesse uma forma marciana de misantropia...)

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Não há maneira de acabar, este Inverno. Não tem fim à vista. Ao frio e ao gelo seguem-se mais gelo e mais frio. (Este «não tem fim à vista» é mais do que uma expressão: enquanto os meus olhos não estiverem como deve ser nada terá fim à vista. Estou a ser atacado por todos os lados ao mesmo tempo, como se estivesse cercado. Vá lá, pelo menos dos olhos não posso dizer que sou responsável. Ninguém é. Se ao menos Deus existisse...

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E assim fecho o círculo: um dos temas desta manhã foi a existência de Deus. Claro que existe: é uma construção humana e «tudo aquilo em que um homem acredita é uma imagem da verdade», parafraseando Blake, esse grande visionário. O contrário é verdade também: Deus não passa de uma construção humana e como tal não existe autonomamente. É uma parte do homem. É um assunto que me é estranho. Entre a liturgia católica e os ritos voodoo a diferença é de estilo, não de substância. (Por isso tão pouco alinho na fúria anti-Igreja por causa dos abusos: a Igreja não é diferente das outras organizações humanas.)

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Cada vez que vejo a data para o título destes diários de bordos arrepio-me. Já Março vai em quase metade e o P. como estava há seis meses.