26.3.25
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 26-03-2025
Como toda a gente que faz o que eu faço, viajo muito de avião; como toda a gente que tem a família num país diferente daquele - ou daqueles - aonde vive e trabalha. Passo a vida em aviões e desenvolvi uma razoável aversão a tudo oq ue está com eles relacionado, logo desde a porta dos aeroportos. Durante muitos anos arranjava-me para chegar à última da hora, muitas vezes só não perdendo o bicho devido a correrias insensatas, a ultrapassagens em filas. Cheguei a telefonar para um check in, em Londres, a pedir-lhes para não o fechar que estava a caminho. A senhora ficou tão siderada que esperou por mim. Se bem me lembro, o avião não saiu atrasado e se saiu foi pouco. Esse tempo acabou. Agora é muito mais frequente chegar demasiado cedo ao aeroporto, como hoje. Ainda por cima, estando de maré baixa não posso beneficiar dos magníficos produtos a preços magníficos que o aeroporto de Genebra propõe aos passageiros com tempo - e dinheiro, claro. De maneira faço aquilo que faço sempre, qualquer que esteja o estado da maré: observo os companheiros de (para mim) infortúnio, tento identificar as línguas que oiço (cada vez menos...) e escrevo meia dúzia de linhas de disparates, sempre alivia a pressão.
Ir ao supermercado aqui é uma dupla dor d'alma: os produtos "bio" (aspas porque cito) invadiram tudo. Como se os preços não fossem suficientemente dementes com os não-bio.
24.3.25
Incapacidade
Sou livre por absoluta incapacidade de o não ser e isso paga-se caro. É um handicapp, um defeito de fabrico.
23.3.25
Adormecer, a ponte do sono nascente
Para adormecer, F. põe-se de sentinela numa das extremidades da ponte que o liga à noite. É por ela que o sono chega. A vigília é sui generis: consiste em relaxar todos os músculos do corpo, um a um. Tarefa a que F. se dedica com a aplicação que põe em tudo o que faz. Começa por fechar os olhos, deitar-se de lado, cruzar os braços e pôr as mãos nos ombros - a direita no esquerdo e a esquerda no direito - encolher as pernas, bem dobradas, como se quisesse levar os joelhos ao queixo, respirar fundo durante pelo menos um minuto e depois distender-se lenta mas completamente. O sono chega pela tal ponte - a ponte do sono nascente, como ele lhe chama - umas vezes ruidosamente, outras muito de mansinho.
Os obstáculos ao avanço do sono são dois: palavras e números. Nunca andam juntos, deo gratias. E não atacam todo as noites. Só algumas, aquelas em que a ponte fica mais longa.
(Cont.)
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 23-03-2025
A primeira surpresa do dia foi no autocarro para o salão do livro: ia cheio a deitar por fora. Domingo, nove da manhã. A segunda foi já no salão propriamente dito: no bengaleiro não paguei nada, porque "sou escritor" (aspas porque me cito). Ou seja: poupei nove francos, pouco mais de a nesma coisa em euros. Ainda há quem diga que ser escritor não compensa financeiramente.
Do salão não guardo muitas recordações: meia dúzia de cartões de visita, uma reunião amanhã (para as fotografias). Não incluo nesta ausência, nesta dúvida, nesta ambivalência os momentos que passei com a minha filha, inapagáveis manifestações da alquimia genética.
Nem o facto de me ter deixado enganar por um vendedor e ter comprado um livro que é uma merda - si tant est qu'il y a des bouquins merdiques, chose que je sais très bien n'existe pas. É simplesmente um livro de que não gosto. Tenho uma desculpa: fala do Burundi e do Ruanda; duas: o vendedor era de uma eficácia redoutable; três: a L. também o queria. Combinámos que o leria e lho passaria. Comecei a folheá-lo no autocarro de volta para casa e lamentei imediata e amargamente a compra. O que me pôs perante um dilema paterno-interessante: dou-lhe aquela porra ou empresto-lha, somente? Opto por emprestar-lha, somente. Por um lado não dou coisas de que não gosto e por outro pode ser que dali saque qualquer informação interessante.
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Hoje à noite há fondue de queijo. Vem cá a G. Já bebi um kirsch, para ir preparando o estômago.
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Amanhã: reunião na Vent des Routes, ver se querem vender as caixas de fotografias.
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Agora; sesta, ver se estes passeios interiores me servem para alguma coisa.
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(Cont.)
22.3.25
Sistemas
F. procurava palavras como um gato ratos e elas fugiam-lhe como ratos do gato. Às tantas imaginou uma linha que não o era porque tinha três dimensões, enrodilhada sobre si própria. Apesar de ser caótica imprimiu-lhe um movimento turbilionário e esperou. As palavras, curiosas como são, começaram a entrar, mas devagar. F. pensou que lhes devia alterar a viscosidade a fim de aumentar a fluidez daquele circuito. Contudo, a força centrífuga atirava-as para as paredes do túnel e o débito do sistema era baixo. Um pouco de vibração fazia visivelmente falta. Como, porém, introduzir vibração num dispositivo giratório? Como vencer a força giroscópica? F. decidiu parar o movimento giratório, introduzir pedras mais leves no tubo, agitá-lo caótica e aleatóriamente ("para qualquer coisa um pleonasmo servirá", pensou).
Conseguiu. Do outro lado, pouco a pouco, começaram a aparecer vocábulos. Primeiro monossílabos; depois, progressivamente, o número de sílabas comecou a crescer, à medida que o peso das palavras metidas no tubo ia aumentando.
Baptizou o mecanismo com o nome de Sistema digestivo para palavras, patenteou-o e ganhou uma fortuna. No escritório das patentes o funcionário estava reticente. Coçava a cabeça, que tinha redonda e guedelhuda e perguntava: "mas para que é que isto serve?"
Pacientemente, F. explicou-lhe que servia para produzir a mesma coisa do que o outro sistema digestivo mas com matéria prima diferente.
Falares, gravatas e outros rigores
O vento, os caminhos
No inverno - e em muitos dias da Primavera e do Outono - a luz de Genebra é muito branca, parece diluída em clara de ovo. Isto deve-se às nuvens altas. Estão sempre por cima da cidade, como se a quisessem proteger de qualquer coisa demasiado violenta, sabe-se lá o quê. Do Sol não é de certeza, estamos a quarenta e seis graus de latitude. Um grau mais do que o meio caminho entre o Equador e o pólo. Quando aqui vivia achava isto desesperante. Agora, que venho cá de passagem, de visita, gosto. Tudo fica suave, arredondado, como se não houvesse ângulos agudos ou arestas na geometria da cidade. As formas e as sombras diluem-se e agora, Primavera, as árvores ainda nuas contrastam com as cores garridas das ubíquas flores. Ando muito a pé, como se fosse um turista e vejo melhor os contrastes, as construções modernas, regra geral feias lado a lado com as antigas, lindas, maciças e imponentes, de janelas enormes para deixar entrar essa tal luz. Dentro desses apartamentos tudo é suave também, tudo é fluido, regular, ordenado, sem arestas. (Não é, mas isto é literatura e não sociologia, antropologia ou outra logia. É assim que vejo a cidade e lhe oiço a ausência de ruídos). Na verdade agora buzina-se mais do que há vinte anos mas os automóveis eléctricos, as bicicletas e as trotinetas - omnipresentes, como as flores - absorveram a diferença. Não há muita gente nas ruas. Ou trabalham ou estão em casa. Nos cafés só reformados, com a óbvia e natural excepção das ruas perto da universidade. Penso no que a cidade mudou, no que eu mudei e apercebo-me com espanto que essas duas mudanças nos aproximaram em vez de nos afastar.
A ausência de arestas - visíveis - tem efeitos nas pessoas, consequências que por sua vez a causam. Este movimento circular, harmonioso, atraente, quase uma vertigem, é magnético, faz-me sentir como se estivesse a cair no poço da Alice.
Fui à livraria de viagens. Chama-se Le Vent des Routes. O nome é adequado a um marinheiro que sempre andou com, pelo ou contra o vento.
21.3.25
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 21-03-2025
O sistema de saúde suiço está doente, praticamente desde pouco depois de o actual modelo ter sido posto em prática. É bastante instrutivo e bem podia ser usado como ilustração daquele velho provérbio segundo o qual de boas intenções está o inferno cheio. Quem quiser ter uma ideia do que se passou e falar francês (ou souber como usar tradutores em linha), pode ir aqui. Resumindo muito: após uma série de referendos e iniciativas populares, projectos e contra-projectos todos recusados pelo «soberano» (designação local para povo), em 1994 a actual lei é aceite, por uma curta maioria (51,8%). Os debates até chegar aqui foram - como sempre, mas mais do que o habitual - acesos e muitos. O povo suiço tem uma saudável desconfiança de tudo o que lhe cheira a poder central e foi preciso toda a habilidade política de uma senhora chamada Ruth Dreifuss, socialista (cela va sans dire) que o projecto passou a rampa (o cerne aqui sendo que o seguro de saúde passaria a ser obrigatório e não voluntário como até ali. Enfim, parcialmente voluntário. O seguro contra acidentes já era obrigatório). Para dourar a pílula, passem-me por favor o galicismo, a senhora Dreifuss imaginou um sistema no qual os seguros teriam duas componentes. Uma, a de base, incluiria um mínimo de prestações, as mais usuais e frequentes. Quem quisesse mais teria de subscrever uma apólice «complementar» (aspas porque cito). Nos primeiros anos o seguro de «base» aguentou-se como tinha sido lançado; mas dai a um político a ponta de um dedo e em menos de um fósforo ele ter-vos-á comido o braço. E o que os opositores do projecto tinham previsto aconteceu: não se passava um ano que o governo não incluísse mais coisas no seguro de base. E que faziam as companhias de seguros? Aumentavam os prémios, está bem de ver. O que ninguém previu foi o estado catastrófico, monstruoso, a que isto chegou. O seguro de saúde é hoje um dos principais centros de custo para os suíços e é enorme, desmesurado.
Ontem lá consegui ler qualquer coisa, conjunção feliz de vários factores: estava muito sol, o livro tem as letras grandes e o autor é Umberto Eco. Chama-se Reconnaître le fascisme (na tradução francesa. O Original é Ur-fascismo, creio mas não tenho a certeza).
- Rejeição do pensamento crítico;
- Exploração da frustração (sobretudo das classes médias);
- Obsessão com a riqueza e a força do «inimigo»;
- O elitismo. Cada cidadão pertence ao melhor povo do mundo - mas precisa de quem o guie e governe;
- O controle das mulheres. O homem verdadeiro é machista. Um homosexual não é um homem a sério;
- O povo é uma entidade coesa e tem uma vontade comum. Não há lugar para vontades próprias;
(Para escrever esta lista fui aqui.)
Como Umberto Eco diz, estes pontos são partilhados por muitas ideologias ditatoriais e os meus amigos reconhecerão decerto pelo menos uma delas.
Hoje esteve menos frio do que ontem e ontem menos do que anteontem. Amanhã a máxima estará outra vez nos dezassete graus, mas a partir de domingo baixa de novo. A prima vera é instável, coitada. Tem súbitas e enormes variações de humor.
Espera, desnorte e outros diabos
Está desorientado quem não sabe aonde está ou para onde ir; e desnorteado quem não sabe o que fazer. Desocidentado não existe e desolado não é sequer para aqui chamado. Ou seja: certos e seguros só o sul e o ocidente - o que explica, sem dúvida, a velha expressão "vai para oeste, jovem" tão usada no cinema, na música e na má literatura. F. não estava nem desorientado nem desnorteado. Estava desesperado, mas a espera não sendo um ponto cardeal de nada lhe servia tentar encontrar soluções para esse doloroso estado. A menos, claro, que dissolvesse a angústia em água, sempre seria uma solução. F. pensava nisso seriamente. Estava farto do café, vinho e sumo de kiwi em que dissolvia os estados de profunda prostração que regularmente o submergiam. "Água", pensou, "é a solução. Resta saber se lisa se gasosa."
Dilema esse que não resolveu. O simples facto de ter de fazer uma escolha magoava-o. Passara a viver num café aberto vinte e quatro horas por dia, todos os dias. A cada meia hora consumia uma água, alternadamente com e sem gás. Pagava-as mal chegavam à mesa, para não dar pretextos de expulsão ao dono e aos empregados. Quand dormia, os empregados deixavam-lhe as águas na mesa. Pagava-as quando acordava.
Um dia acordou. Bastar-lhe-ia encontrar um norte e o caminho para lá chegar e deixaria de estar desesperado, apesar de continuar sem saber aonde fica a espera.
Ninguém sabe, excepto o Diabo.
20.3.25
Palavras, actos
"Só as palavras contam. O resto é conversa."
(Ionesco, citado por Umberto Eco in Reconnaître le facisme", ed. Grasset.)
Às vezes. Em geral, entre as palavras e os actos continuo a preferir estes àquelas.
19.3.25
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 19-03-2025
16.3.25
Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 16-03-2025
15.3.25
Diário de Bordos - Nyon, Vaud, Suiça, 15-03-2025
Terceiro aniversário do primeiro neto. A Suíça sendo a Suíça, há vinte adultos e quatro miúdos, incluindo o aniversariante (números aproximativos). Dos vinte adultos três são avôs e o resto está mais ou menos igualmente distribuído. Genebra faz uma vez mais jus à beleza das suas mulheres, a Suíça à ordem e à beleza da tranquilidade. É preciso envelhecer para apreciar este país.
Tudo isto dito, não consigo impedir-me de pensar que Genebra é um cantão que os suiço-alemães vêem como uma espécie de circo, uma mistura de sul de Itália e norte de África disfarçada com as cores da Confederação. (A festa é no cantão de Vaud, mas é como se fosse em Genebra. Isto é malta exilada das rendas, que em Genebra são dificilmente suportáveis por jovens casais em princípio de vida.)
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E eu, como sempre nestas festas, intimido-me, sento-me num canto com um copo ao lado e o telefone nas mãos. Escrevo e navego pouco, há que aproveitar todas as oportunidades.
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A minha neta é linda. Posso dizer com orgulho que contribuí duplamente para a beleza feminina da cidade: a actual e a futura.
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Está frio, chove e é Março.
(A conjuntiva é desnecessária: está frio, chove, é Março.)
14.3.25
Louvor da bicicleta, merken e outros milagres
Coisas que só andando de bicicleta pela cidade podem acontecer: hoje descobri na Almirante Reis, já perto do Areeiro (lado direito de quem sobe, se por acaso) uma loja de produtos argentinos.
Sim, têm merken.
(É uma mistura de especiarias para pratos de carne. Enfim, não. É um milagre para pratos de carne.)