31.5.23

Autocarro, caos

Pois, é assim. Já to disse, mas tu não acreditaste. Às vezes vejo-as passar todas, sentadas num autocarro, muito sossegadinhas. Mas não estão sentadas por ordem cronológica; não se percebe bem a ordem, se tanto é que há alguma. E o condutor do autocarro ou está bebedo ou é maluco. Ou então não sabe conduzir aquele autocarro, é o mais provável.  Algumas querem descer e ele não pára, outras não querem subir e ele quase as obriga, empurra-as, diz-lhes: "sente-se e ponha o cinto de segurança. A viagem vai ser agitada." Umas são mais bonitas, outras mais inteligentes, algumas nem uma coisa nem outra. As vezes estala um conflito, mas dura pouco. Nunca ganham as mesmas. Algumas reclamam: dizem que embarcaram para uma viagem curta - ou longa - e acabaram por ficar mais tempo - ou menos - do que inicialmente pretendiam. É uma confusão, uma enorme confusão, um caos.

O pior é que a viagem ainda não acabou.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 31-05-2023

Regresso a «casa». As aspas são injustas: o P. é de novo a minha casa. A hora da partida aproxima-se, estou impaciente por levá-lo para outras paragens, os dias arrastam-se com saltos de obstáculos atrás de saltos de obstáculos. Uma coisa é certa: os obstáculos estão cada vez mais pequenos. Pouco a pouco, como um cavalinho bem ensinado, vou-os ultrapassando. O bote não vai sair daqui como eu queria que saísse mas vai sair. E vais trabalhar, mula teimosa. Garanto-te que vais.

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Escrevo no Divino e penso que vivo Palma como se fosse daqui: os meus sítios, os meus trajectos, as minhas simpatias e correspondentes antipatias. Até a vontade de me ir embora faz de mim um palmitano de gema: há algum sítio onde tenha vivido de onde não tenha querido ir-me embora?

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Encontro-me com A. para lhe pagar o trabalho do envio pelo correio do registo polaco. Foi a primeira vez que entrou num edifício dos correios, a primeira vez que enviou uma carta - e logo registada. Não sabia preencher um envelope (como não é muito desenrascada, disse-lhe para pedir à senhora dos correios que o preenchesse ela. Não sei se o fez se não, mas caso tenha seguido o meu conselho imagino a surpresa da funcionária). Poucas coisas me sinalizaram com tanto impacto o que é a mudança. O correio, bolas. O correio. Um envelope. Uma carta. Uma carta registada. Tudo primeiras vezes.

Ainda não digeri completamente esta história. Não que lhe atribua significados místicos de fim dos tempos. Não sou pessimista como o C. e não vejo nisto mais do que um sinal de que as pessoas deixaram de escrever cartas, coisa que já sabia. Mas é como ver fotografias da torre Eiffel e um dia vê-la ao vivo: Ceci n'est pas une pipe, é a sua imagem. Isto não é «as pessoas deixaram de escrever cartas». É: «como é que se preenche um envelope?» «O que é uma carta registada?»

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Andam para aí uns mini-Torquemadas a esvaziar pneus de carros grandes. Acreditam que há uma «urgência climática» e que os SUV são a causa da desgraça, ou uma das causas. O Homem não mudou, C. A desgraça de hoje é a de ontem e a de anteontem. Houve um pequeno período de luz entre as duas guerras e a seguir à Segunda, mas foi uma excepção. Um raio de luz, um só, que durou pouco tempo.

Enfim, o suficiente para criar ilusões.

Verbos, coincidências

O verbo é pequeno e começa logo com a primeira letra do alfabeto, para nos deixar bem claro que está nele o início de tudo. Na primeira pessoa do indicativo junta-se-lhe um hífen e um pronome, para indicar que sozinho vale pouco. A inicial é a mesma do teu nome, mas isso é coincidência, não é?

30.5.23

Diário de Bordos - Lisboa, 30-05-2023

Regresso à minha morada de sempre: Avenida da Liberdade, nº 1. Sou de novo um SDF (sem domicílio fixo, no francês do original). De todas as mudanças que fiz na vida - foram muitas, mais do que sei contar - esta é uma das mais dolorosas. A estupidez dói-me, seja ela de pessoas ou de situações.

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Entre o último passo da mudança - deixar as chaves no café - e o regresso a Palma, reunião com o curador da exposição. Editor, curador... Se alguém um dia me dissesse que um dia teria direito a isso tudo eu não acreditaria. É compreensível: ainda hoje tenho dificuldade em acreditar, apesar de já ir no segundo editor.

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Os problemas com o "meu" P. vão-se resolvendo passo a minúsculo passo. Não vai ser fácil - não esperava que fosse, nunca esperei. Não deixa, contudo, de ser surpreendente que aos sessenta e cinco anos de idade e aos não sei quantos de experiência ainda seja capaz de receber pedregulhos na cabeça como o que recebi há umas semanas e sobreviver. Sinto-me como aquelas lagartixas dos desenhos animados que estão debaixo de uma pedra que as esmaga e cujo rabo ainda mexe.

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O ombro direito manifesta-se de novo, violento e invasivo. Desta vez teve pelo menos a gentileza de esperar quase uma semana, entre as injecções e as primeiras dores. Encorajador: pode ser que da próxima eu tenha quase duas semanas de paz.

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"Quer informar o senhor Costa?" É assim que o funcionário de um dos bares do aeroporto de Lisboa me pergunta se quero factura. Levou um Não! e uma gorja daquelas à americana. Já antes levara uma pelo sentido de humor  - fui pedir-lhe um saca-rolhas para abrir a meia garrafa que trouxe do Pau de Canela e fartei-me de rir - mas quando ao humor se junta um sentido político refinado não há dúvidas: gorja com ele.

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Meia hora no café do aeroporto. Quatro pedintes. Para os amantes da igualdade: dois homens e duas mulheres.

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Cheguei demasiado cedo so aeroporto, outra vez. Desta por razões compreensíveis, legítimas e até aceitáveis. O que leva a já ter visto várias mulheres do mesmo modelo: loiras (artificiais), baixinhas, mama- e rabalhudas. A mistura é demasiado sensual para serem outra coisa senão portuguesas. Já não sei quem disse "portuguesa, de tão mulher" e essa é uma opinião que partilho de todo o coração. 

Há uma feminilidade nas mulheres portuguesas  que não tem rival, excepto nas venezuelanas e nas colombianas. Mas nestas essa sensualidade é voluntária, procurada. Nas falsas louras portuguesas que vejo passar nada há de elaborado. A sensualidade é natural, primária como um dia de chuva na floresta tropical (rain forest, para quem tenha dúvidas). Não tem nada a ver com a beleza, mas enfim. O DV, coitado, não é um consultório de estética libidinosa.

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Pedido: se alguém um dia me surpreender outra vez a dizer mal do aeroporto de Madrid, duas palavras mágicas: Marselha e Terminal-dois-do-aeroporto-de-Lisboa. Obrigado. 

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Isto tudo dito, tenho uma reclamação a fazer à Vueling: os voos Lisboa Palma estão cada vez mais cheios e nem todas as passageiras são do modelo supra-referido.

28.5.23

Diário de Bordos - Lisboa, 28-05-2023

Vim à Feira do Livro para desanuviar. Comprei o livro do Alberto Gonçalves e vim lê-lo para as esplanadas no topo do parque. À minha frente Lisboa entorna-se no Tejo, como se escorresse pelo relvado. A sujidade no chão faz-me sentir na Nova Iorque que leio com delícia e espanto: nunca estive em Nova Iorque, nas sei que é aquilo que vou sentir quando lá for. Também o meu amor pela América teve intermediários - os livros primeiro,  os filmes e as músicas depois - também eu tive a sensação, em S. Francisco e não em Nova Iorque de que chegara demasiado tarde mas que mais valia isso a não ter estado lá. Não posso dizer que o meu amor pela América acabou. Não acabou. Mudou de natureza.

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Ou eu ou o Blogger estamos a ageniar e em consequência disso o mundo - ou pelo menos a diminuta parte dele que lê o DV - perdeu um magnífico arrazoado sobre a nobreza do trabalho de empregado de mesa, um trabalho nobre quando feito profissional e dignamente, como era o caso de um senhor da Versailles que parecia o arquétipo do empregado de mesa. Já não o vejo lá há algum tempo e esse senhor foi agora substituído na minha afeição por um outro, africano. Não consigo reproduzir o esplendor do texto e por isso deixo aqui um simples e modesto apontamento. Afinal, não é todos os dias que vou duas vezes no mesmo dia àquela pastelaria (a segunda para ouvir dizer "a cozinha está fechada") e por isso acabei num italiano da Duque d'Ávila aonde normalmente não entraria, normalmente significando aqui "em condições normais". 

O italiano não é grande espingarda mas é correcto, cumpre a sua função e é mil vezes menos deprimente do que o Galeto. Não sendo difícil - até um barraco de kebabs é mais alegre do que aquele buraco labiríntico e escuro - é de assinalar. Consegui portanto pré-ler os livros que comprei na Feira e vir para casa mais ou menos satisfeito. O que nas circunstâncias actuais é obra.

Coisas de que ninguém fala

Fui à Calzedonia comprar meias (têm uma meias de Verão óptimas,  em "promoção" há duzentos anos, leva-se cinco pares e paga-se quatro, são meias de cano alto, levezinhas, ideais para os dias de aquecimento global que mais tarde ou mais cedo chegarão, com a mencionada "promoção" o par fica a quatro euros, tem é de se levar cinco pares, digo isto para informar os meus leitores, gosto de ser útil, ajudar os outros é a minha vocação, acho que sou assim para contrariar os genes que recebi da familia, não sei, só sei que gosto de ser útil e ajudar os outros, sobretudo se fazem o grande favor de me ler, aprecio-lhes a paciência, a generosidade, a tolerância quase tanto como lhes aprovo o bom gosto). Enfim, cinco pares de meias de cano alto - as únicas que um cavalheiro deve usar, mesmo se como eu não tem o hábito de cruzar a perna, nunca tive, não é de agora, deste terrível emperranço que sinto em todas as juntas - por vinte euros. A empregada, uma jovem senhora de portentosos seios, infelizmente estragados pelas tatuagens que apresentava nos braços e antebraços, as jovens deviam pensar no efeito negativo que as tatuagens têm na concuspicência dos senhores de uma certa idade e asseverado bom gosto perguntou-me se eu queria um saco e eu disse que sim, não ia pôr meias novas directamente no alforge da minha bicicleta ainda que o saiba limpo, é uma questão de princípio. Pois bem: um saco de papel que devido à sua reduzida dimensão mais mereceria ser designado por meio saco custou quinze cêntimos. Quinze cêntimos! Meio saco de papel que se não estivesse dentro de um alforge de bicicleta estaria à vista de toda a gente, a fazer publicidade à marca da qual sou cliente há muitos anos, desde que começou a "promoção", que não passa, está bem de ver, de um incentivo às pessoas a gastarem vinte euros em vez de quatro ou oito, mas enfim. 
O que me revoltaria é a margem que a Calzedonia realiza naquele saco. Felizmente não sou de revoltas e depois penso que na verdade cada par de meias custou vinte euros e quinze cêntimos a dividir por cinco, o que dá quatro euros e três cêntimos por par, dois euros e um cêntimo e meio cada meia, preço esse que inclui as mamas - e a simpatia e a eficácia - da empregada, pelo que ao fim ao cabo não me parece mal. Ou seja: acho muito bem que ninguém fale no preço dos meios sacos de papel. De qualquer forma ali mesmo perto fica a Versailles e pode lá beber-se um mazagran enquanto se faz tempo para o almoço com a família e se pensa no conjunto da manhã até agora, está quase a acabar se bem tecnicamente já tenha acabado, passa do meio-dia.

Tudo informações úteis de que ninguém fala.

26.5.23

Sarro

Há escovas de dentes que eliminam a placa dentária, assegura uma publicidade que acabo de ver. Pergunto-me porque esperam os empresários/criadores/industriais para criar uma escova que elimine o sarro da alma.

Diarreia universal

É como se o universo estivesse de diarreia e tenha decidido esvaziar-se em cima de mim.

25.5.23

Fantasmas

Um gajo sabe que vai para velho quando farmacêuticas e médicas substituem barmaids e intelectuais no seu registo de fantasmas. 

24.5.23

Forma, formosura

"Talvez no fundo seja uma simples questão de aerodinâmica", pensou. Não tenho a forma que a vida requer. "O que não deixa de ser bizarro, repara." Inspirava fundo e prosseguia: "Quem é que olhando para uma baleia vê naquilo formas hidrodinâmicas?" Pausa dramática. Um tempo. "E a verdade é que as tem." Um tempo. "Forma e formosura são coisas diferentes." Olhar a pedir aplausos que não chegavam. Os ouvintes distraíam-se a pensar nas diferenças entre forma e formosura, entre um Jaguer E-type e um cachalote e esqueciam-se de aplaudir.

Jeanne não desanimava. Nada a faria desistir, "nem uma sólida parede de provas em contrário". Andava permanentemente naquela estreita linha que separa a estupidez da teimosia, sem se lembrar de que é preciso pouco para que uma e outra se confundam. Muito pouco: o lento escorregar da estupidez pela rampa da teimosia é suficiente para as tornar indiscerníveis. No caso de Jeanne a rampa da estupidez era larguíssima e nada no universo escapava de lá um dia ir parar. Muito menos a teimosia, que parecia ali ter residência. 


(Cont.)

Banalidades de base que convem não esquecer

"En lo académico, todo lo que se afirme debe apoyarse en un número, no en una palabra."

Nazareth Castellanos, in Neurociencia del cuerpo, Ed. Kairós, 2022

23.5.23

Diário de Bordos, Lisboa, 23-05-2023

Querido diário:

No fundo, só tenho quatro coisas que me arreliam: o P., a R., os olhos e o ombro direito. Não me devo queixar: há quem tenha muitas mais. E se nisto das maçadas o que conta for a qualidade e não a quantidade? Tão pouco me posso queixar: qualquer destas fontes de chatice é poderosa, desestabilizante e cansativa. Sinto-me como um forte dos cowboys assediado por todos os lados por índios ululantes, brandido flechas ardentes e lanças certeiras. Contra eles, os meus escudos são fracos: duas boas críticas ao próximo livro, a certeza de que o meu amor pelo P.  será correspondido, a esperança... Cala-te. A esperança não protege ninguém de nada. Só serve para enganar tolos. Aqui, queremos certezas, nada mais do que certezas. Deixa a esperança para a Santa Casa da Misericórdia, é a especialidade deles.

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O DV é uma obra de ficção. Que vida não o é? Todas são ficcionadas, umas de uma maneira outras de outras.

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Acordar e não ter de se pentear é uma coisa à qual um homem se habitua depressa. No meu caso, representou também um acréscimo de despesa: de uma vez por ano, as minhas idas ao barbeiro passaram a quatro. Felizmente, as barbearias orientais reequilibraram a balança. Não sei como fazem para ganhar dinheiro - a cortar cabelos não é de certeza - mas isso é-me relativamente indiferente. A verdade é que venceram o meu cepticismo por KO.

Benefício colateral: oiço mais vezes " o cabelo curto fica-te bem". Não é que acredite, mas a idade amolece um homem.

21.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-05-2023

Hoje ao almoço (isto é, agora) encomendei uma salada. Se eu quisesse exagerar diria que é a segunda vez. O exagero não funcionaria, porém. Seria demasiado pequeno. Quem quer um exagero pequeno? Eu não. Felizmente a salada estava uma porcaria. Tão cedo não  corro o risco de reincidir. 

Isto dito, gostaria muito que alguém me explicasse como é que se faz para conseguir uma salada de merda. Ou então é ao contrário: como é que se faz para elas ficarem boas? Não tenho resposta a nenhuma das perguntas, falta-me experiência. 

Ainda por cima comi-a numa esplanada, apesar do frio quase glacial (isto sim, é um exagero como devem ser os exageros). Não gosto de comer ao ar livre. Até os neandertais comiam nas grutas, bolas. Mas hoje é domingo e estava com fome, duas coisas cuja relação com a esplanada salta aos olhos. Só não vê quem não quer (sobretudo porque o café tem mesas no interior).

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Na mesa ao lado estão duas senhoras muito amigas uma da outra. Penso que muitos dos meus leitores (e algumas das leitoras) concordarão que às vezes é um desperdício. Neste caso, dois desperdícios. As miúdas são giras e têm cara de quem já aprendeu a falar e - mais importante - a calar-se.

Aprender a falar é sem dúvida um patamar importante no desenvolvimento pessoal; contudo, aprender a calar-se é mais importante. Mais significativo. Mais partilhável, por assim dizer.

As miúdas falam, partilham o prato e, de vez em quando, muito levemente os lábios uma da outra. Eu estou cheio de vontade de partilhar o meu sono com elas, mas a diferença de idades é muito grande.

(Ainda há quem não veja vantagens na idade...)

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Afinal o restaurante não foi mal escolhido. Pelo menos a julgar pela sobremesa - um excelente bolo de laranja e amêndoas - e pelas hierbas secas, sem marca e quase tão boas como as da Pamboleria, para mim agora a referência. Não fosse o frio e sentir-me-ia "no paraíso" (aspas porque ironizo. Paraíso deve ser a segunda palavra que mais oiço no meu trabalho).

Provavelmente aquele é o gosto normal de uma salada César e provavelmente as miúdas estão sentadas de tal maneira que não as vejo bem por vingança de Deus, que não gosta de velhos lúbricos, gordos,  carecas e cansados. E doídos (atenção, o i está acentuado). O Sacana deu-me esta sorte que é trabalhar na única coisa que sou capaz e gosto de fazer e faz-ma pagar com uma avença de mulheres bonitas,  sensuais, manifestamente apaixonadas uma pela outra, inalcançáveis, frio em Maio em Palma e vontade de comer saladas num restaurante.

Não é caro, meu Caro. Pago de boa vontade (desde que não me faças comer outra salada nos próximos vinte anos).

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As pequenas acabaram de comer. Podiam beijar-se um bocadinho menos, que diabo. Estão a adulterar-me a serotonina.

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Hoje o meu Pai faria noventa e sete anos.

20.5.23

Cronicidades

Vivo com uma dor crónica e com uma felicidade crónica. Será possível uma delas acabar e a outra não?

Ancorar e outros palavrões

Tenho com as palavras uma relação difícil, dilemática, antagónica: definem-me mas não definem o mundo. (As palavras e o coito têm em comum o facto de se lhes atribuir mais poder do que o que de facto têm, pensava há dias, muito provavelmente citando alguém sem o saber.)

Contudo, todos os dilemas e todas as complicações desaparecem quando leio pessoas que navegam dizer ancorar em vez de fundear, quarto em vez de camarote, janela em vez de vigia e por aí fora. Com toda a simplicidade: essas pessoas deviam ser proibidas de pôr um pé num portaló (ou num convés, se não houver portaló).

ADENDA: O mesmo se aplica a quem vai para bordo de uma embarcação de mala rígida atrás (e com rodinhas! E enorme!)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-05-2023 / Cont.

Estas alterações climáticas é só arrelias. Hoje devia chover o dia todo e à uma da tarde apareceu uma alteração climática e desde aí nem uma gota de água. Antes pelo contrário: muito sol. Vá lá que o vento previsto se manteve e o frio também. A temperatura não há maneira de passar dos vinte e um vinte e dois graus, o que para esta época do ano aqui é insuportavelmente frio. Estou bastante satisfeito com a decisão de esportular mais de cinquenta paus - e menos de sessenta, apresso-me a esclarecer as mais curiosas - numa camisola da Napapijri. Além de bonita é quente e proporcionou-me um belo diálogo com a senhora que suponho seja a dona daquilo. Foi ela que me vendeu as bermudas todas que tenho e durante o confinamento estavam a metade do preço. É bonita (a senhora), italiana e chama-se Rossella, uma combinação que me a torna irresistível. Confirmou-me que é importante um homem ter bom gosto. Eu tenho. posso é não ter massa ou paciência ou, mais frequentemente, as duas juntas. Porém, com a ajuda eficaz e competente de Rossella lá consegui conciliar a frugalidade e o bom gosto que me caracterizam, juntamente com a falta de paciência para compras em geral e para compras na Zara em particular. A Napapijri é um refúgio, um porto de abrigo e naqueles raros momentos em que preciso de uma peça de roupa é lá que vou em primeiro lugar. Há sempre uma promoção à minha espera. A camisola, por exemplo, estava a metade do preço. Se isto não é uma oportunidade não sei o que é uma oportunidade. Vamos ver é como estará daqui a quinze anos (a camisola, não a Rossella).
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Há dias percebi a razão de me ter sido tão difícil encontrar quem me fosse reparar o frigorífico. Calhou passar à frente da Titan - a melhor empresa para tratar de frigoríficos e ares condicionados, tanto aqui como em St. Martin - e entrei. Estava o Keith, com quem já lidei vai para uns anos. Nem eu me lembrava dele nem ele de mim mas o diálogo estabeleceu-se depressa e foi elucidativo: «Não tenho um único homem disponível. Nem um. As peças que estavam encomendadas há um ano ou dois só começaram a chegar agora e sabes como é». Sei, claro que sei. Esta malta não pode sequer sonhar que o barco não tem ar condicionado ou que um dos quarenta frigoríficos e congeladores não está a funcionar, quanto mais passar um dia lá dentro. «Não tenho um único homem disponível.» As consequências da catastrófica gestão da Covid vão sentir-se durante muito tempo.

O Keith e eu concordámos que comer em restaurantes três vezes por dia é uma violência não só financeira e despedimo-nos. Felizmente a Ferdinautic já lá foi (deu-me péssimas notícias) e a Kohl Air (?) vai na terça ou na quarta, para uma segunda opinião barra orçamento. Não sigo à risca aquela norma das compras segundo a qual se deve ter sempre um número ímpar de propostas - já ter duas foi o cabo dos trabalhos, quanto mais três - mas vou fazendo o que posso e as circunstâncias permitem. É a chamada diferença entre teoria e prática, ou coisa que o valha.

De passagem

Viver aos quinze e vinte anos num sitio e não lhe falar a língua é detestável, sem dúvida. Mas é também um desejo de estar sem estar, de estar de passagem, de ser e não ser de.

Desejo esse que em si não tem nada de errado. Manifesta-se erradamente, é tudo: se estás de passagem não fiques vinte anos. Se ficas, aprende a língua.

(Todos estamos de passagem, eu sei. Em média oitenta anos. E todos aprendemos pelo menos uma língua. )

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-05-2023

Querido diário,

Os factos relevantes de ontem já os conheces. Não vale a pena contar-te o dia com altos e baixos como este mar de vento força nove em que navego. Enfim, exagero, eu sei. Força sete, digamos. Além de que nos factos relevantes é preciso incluir ter conseguido lugar no STP para o P. na data em que o surveyor queria (desculpa, M.: não sei dizer inspector em português). E consegui dar um grande avanço às facturas. E encomendar as tintas que faltam. E isso tudo. Altos e baixos, cavas e cristas de vagas vindas de mares que não controlo. Tudo o que posso fazer é ir governando cuidadosamente, óleo a barlavento, pano nem a mais nem a menos, um olho na proa outra na popa e outro ainda no través, que isto vem de todos os lados.

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Segunda Lisboa, quarta Porto, depois não sei. Só espero que não tenha de ir a Menorca (para poder estar no Grémio Literário segunda às seis e meia da tarde. Isto parece uma invocação, não é? É uma invocação). O carrossel não pára. De todos os inventos da ficção científica, aquele a que mais aspiro é ao «beam me up, Scotty». Acabar com estas viagens... Até das de comboio começo a ficar farto, agora que tento comprar o bilhete para o Porto e não consigo. Ou o site da CP ou eu estamos a fazer asneira. Ou então é o universo a fazer-me sinais.

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A soma de ansiedade com perturbações psiquiátricas tem um resultado que é bastante semelhante a estupidez. Não se consegue falar nem com uma nem com as outras. E ainda há quem acredite na omnipotência da palavra.

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Hoje pela primeira vez na vida admiti, clara, explícita e inequivocamente que demais é demais. Estamos em Maio e já não posso pedalar nas ruas do centro de Palma.

Aos sessenta e cinco anos devem contar-se pelos dedos das mãos (e se calhar dos pés também) a quantidade de vezes que viajei em turismo. Refiro-me a viagens grandes, não a or passar um dia a, sei lá, Annecy,  por exemplo. Igualmente, não sei como classificar - outro exemplo - a viagem de Parnaíba à Martinica. O objectivo era ir procurar trabalho, mas resolvi ir de camionete em vez de ir de avião. Isso conta como turismo? A meu ver sim, apesar de ter sido uma viagem só de ida. Os milhares de pessoas que cruzo nas ruas desta adorável cidade têm bilhetes de ida e volta e não percebem nadado que estão a ver. Não poderiam perceber, mesmo que quisessem.

[Aqui devia entrar um grande paleio sobre o turismo. Os meus leitores que me perdoem. Vou beber vinho tinto e concentrar-me no almoço.]

19.5.23

Da série «Há dias que começam mal»

Dúzia e meia de pré-adolescentes na Cantina, o gordo da voz irritante aos gritos e um barco a ser kärcherizado (?) na Audax. Deve haver piores maneiras de começar um dia, mas no estado em que tenho aquilo que me serve de cérebro nenhuma me ocorre.

18.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-05-2023

A BH Glasgow branca não pára. Está feliz e eu também. Vemos finalmente o comboio sair da estação. Ainda com solavancos mas pequenos e cada vez menos. 

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Venho ao STP. A sensação é a mesma de sempre: sou um tarado sexual a entrar num bordel. Apesar de muitas delas hoje estarem vestidas, coitadas: estamos na fase da pintura e é proibido pintar ao ar livre. Defende-se o ambiente e de caminho o porta-moedas dos fornecedores. Uma tenda destas chega aos cinquenta mil com uma facilidade desconcertante. Ainda por cima (ou por baixo) esconde a este miúdo fascinado pelo fogo as formas das belezas.

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Vou comprar o Gurit. Dar cem paus por uma porra que vou usar uma vez chateia-me. É indecente, mesmo não sendo a massa minha. Mas se fizer o serviço com resina normal o preço será o mesmo. A única diferença é que não vou ficar com uma porra duma pistola a bordo que não serve se não para aquilo. 

Pode sempre servir e talvez a consiga vender.

[ADENDA]

Uma das coisas de que eu gosto neste trabalho não é uma. São duas: a) trabalhar com profissionais; b) ser reconhecido por eles. A empresa que vende o Gurit chama-se BM Composites. Expliquei o que preciso de fazer, o vendedor e eu discutimos alternativas, conversámos um bocado até que chegou à fase dos preços. O produto em si não é muito caro, é o preço habitual para resina epoxy. O que me dói é o preço da pistola para aplicar aquilo. Cem euros por uma porra que se vai utilizar uma vez é «ridículo» (aspas porque cito um dos vendedores, que entretanto se juntou à conversa). A certa altura conto que já tentei comprar uma em segunda mão e digo «Vocês deviam era alugar essas coisas». «Já tentámos. Aliás nem as alugávamos. Emprestávamo-las. Mas ninguém as devolvia e deixámos de fazer isso.»

Salto pormenores. Saí de lá com a resina e a promessa de que o Ricardo pode lá ir buscar a pistola quando chegar à aplicação. É bom. Sobretudo quando se pensa que para os standards locais o meu P. é pouco mais do que um salva-vidas.

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Resultado: segunda vou para Lisboa de coração muito mais leve. A ver se irradio felicidade, como ontem no Jaume, se as injecções tiverem resultados e se a operação ao olho esquerdo correr bem e se conseguir ir à apresentação do livro do Alberto Gonçalves em vez de ir para Menorca. 

Outro resultado: nem a sesta dormi.

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Já não são apenas os copos, as mulheres e o aquecimento global que me abandonam. Agora, a cada esquina dos dias também a paciência se me esvai, deixa-me sozinho sem sequer um copo na mão ou uma mulher a quem me queixar. E cheio de frio, o que não ajuda.

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N. pertence a um tipo de mulher que me atrai ainda antes de começar a falar. Nem sequer posso acrescentar «apesar de falar»: é atraente mesmo quando fala.

Sati - Eutanásia

Os indianos tinham uma prática interessantíssima, humaníssima, que consistia em queimar as viúvas, vivas, juntamente com os corpos dos maridos mortos. Independentemente do número de esposas: um homem que tivesse quatro mulheres e morresse - venham mais cinco para a pira funerária.

Os ingleses acabaram com essa prática, com o pretexto paternalista e colonialista de que era desumana e cruel. Os indianos foram burros: se tivessem chamado àquilo eutanásia teria passado sem espinhas e ainda hoje poderiam queimar as senhoras à vontade. 

17.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-05-2023

Isto começou tudo com a hesitação habitual: "aonde é que vou almoçar?" e prosseguiu com a resposta de sempre: ao Mercat de l'Olivar. A que se seguiu a pergunta óbvia: "ok, mas aonde no Olivar?". "Ao Lucca". "Então vai ser preciso ir à Anita para esperar". "Claro. Porque não?" Passo os passos e os pormenores do vivo diálogo interno e vou directamente àquilo a que só se pode chamar "uma história palmitana". A Anita tem um vermute novo. Chama-se Montseta Grifo Reserva. Não vale um Madre nem um Padrón mas anda lá perto; e ganha pelo prazer da descoberta. Já a carbonara do Lucca ganha por ser igual à de sempre: feita com guanciale, sem um pingo de natas, pouco ovo, tagliatelle feitos ali à nossa frente... Quem quer saber o que é uma carbonara deve vir à Botegga Bolognese. Até lá, abster-se de mencionar o termo carbonara é uma obrigação, uma questão de ética. 

A mulher do Lucca faz limoncello. É o que bebo agora. Tudo isto acompanhado por dores lancinantes no ombro direito, numa espécie de batalha pela minha atenção. Adivinhem quem ganhou?

Acerta quem responder: "Tudo isso e um gelado de maracujá no Claudio". Só se consegue perceber porque é que em italiano, francês, inglês ou espanhol o maracujá se chama fruto da paixão depois de ter comido este gelado. Antes disso não passa de uma designação como outra qualquer.

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A resposta ainda está incompleta. É preciso acrescentar: tudo o acima mencionado mais um golaço de hierbas secas da Pamboleria e um Tramadol. Estes últimos já a bordo e mesmo antes da sesta. Agora sim: perante tão desigual luta a dor abandonou o campo de batalha, desistiu e deixou o terreno livre à alegria.

Um dia sem sesta é incompleto, como um carpinteiro a quem alguém tivesse cortado a mão direita e ele devesse aprender a trabalhar com a esquerda.

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A versão longa da história implicaria contar que andava a morrer por um polvo à galega, de que o melhor em Palma é o do Jaume, que está frio e portanto pus o meu casaco de linho branco e por baixo uma espécie de não-sei-quê também branco e bonito, que os restos da alegria do almoço sobreviveram à sesta e se reforçaram com algumas boas notícias (ou acções, se preferirem) da tarde e que portanto assim indumentado - roupa, alegria, bicicleta (branca também) - fui ao Jaume beber um vermute e comer polvo. Esta seria a versão longa. A versão curta: na porta estava um casal a fumar, pedi licença e entrei. Uns dez minutos depois eu estava a comentar com o Jaume a qualidade do vermute Padrón (elevadíssima, como tudo o que sai daquele balcão) e o senhor da porta entra, ouve-me falar com o patrão, de quem ele é também amigo e diz-lhe (referindo-se a mim): «quando o vi entrar comentei com a [não-sei-quantas] Este homem tem cara de homem feliz e agora vejo que também sabe viver.»

Comme quoi um casaco de linho branco por baixo de um panamá e por cima de uma qualquer-coisa branca e uma mão-cheia de boas decisões são coisas irradiantes. 

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Sobretudo as boas decisões, penso. Tenho fnalmente uma data para sair daqui. Acabou o limbo da indecisão. O próximo destino é Blanes, onde em princípio passarei o Verão. Estive lá há pouco mais de quarenta anos e só me lembro da praia, que era de nudistas e onde vi, no meio de toda a gente em pelota, uma família constituída por pai, mãe e (creio que) dois filhos vestidos dos pés à cabeça. Pareciam um bloco de granito pousado no meio do areal, um dólmen no meio de um prado.

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A má notícia do dia foi que é pouco provável que consiga ir à apresentação do livro do Alberto Gonçalves, que é no dia vinte e nove de Maio em Lisboa, no Grémio Literário, para quem isto possa ser de interesse. Para mim é e muito, mas enfim. Vamos ver se o L. mantém a sua decisão de me mandar a Menorca nesse dia, coisa que quanto a mim está tudo menos garantida.

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O Antiquari está a abarrotar e tive de vir para a cave. Poderia ser o lugar ideal para escrever se não fosse o raio do vai e vem permanente das escadas. Muito mija esta gente, bolas. E não sabem subir ou descer sem fazer barulho, parecem elefantes a andar em cima de tambores. (Nota explicativa: elefantes é como os franceses chamam aos terráqueos, precisamente porque não sabem andar sem fazer barulho. Há uma maneira de andar num barco para não incomodar quem está em baixo, coisa naturalmente desconhecida de quem não frequenta embarcações, essa espécie de tambores com velas ou motores.)

16.5.23

Diário de Bordos - Marselha, França, 16-05-2023

Chego ao aeroporto mais de quatro horas antes do voo. Quase cinco, na verdade. Se isto não é o recorde absoluto anda lá perto. Estava farto (já não me posso ouvir dizer a palavra cansado. Hoje fica farto. Amanhã veremos). Nem de ficar num café sentado a beber rum ou vinho tinha vontade. Raio da injecção dissolveu-me as gorduras e com elas foi metade de mim. Visitei duas livrarias: uma pequena chamada L'Odeur du Temps e outra grande, Maupetit. Ia à procura do Sapiens et le Climat, que encontrei na segunda. Agradável surpresa: o livro tem letras grandes e é facilmente legível. 

Já não posso dizer que compro livros que não leio: avancei bem na Neurociencia del cuerpo e este também há-de ir. 

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Consegui finalmente voltar ao El Falafel mas foi uma desilusão. Estupidamente caro para o que é. Os meus amigos judeus que me perdoem: tão cedo não volto lá. Antes o Mas de Lulli, mesmo à frente, que era aonde íamos quando acabávamos tarde e não havia nada aberto nas redondezas. De agradável do almoço retenho apenas a quantidade de clientes de kippa. Numa cidade em que árabes e magrebinos estão em todo o lado uma quipá é uma mudança agradável.

Aborrece-me ter perdido o Point desta semana. Trazia um excelente artigo sobre o anti-semitismo em França. Desmontava muito bem a capa de anti-sionismo com que os anti-semitas tentam dar-se um ar de respeitabilidade.

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Há ventos assim, perturbantes. Nos Alpes dizem que o foehn endoidece. Não sei o que dizem do mistral nestas paragens*. A mim irrita-me, enerva-me, cansa-me. (Verdade seja dita: poucas são as coisas que não me cansam, seja física seja psiquicamente, seja as duas ao mesmo tempo, a maioria.)

* - Não dizem nada de bom.
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[ADENDA]: Certas coisas sendo como as cerejas, o voo - ainda não o disse: é Ryanair. A diferença de preços era avassaladora - está atrasado.

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Saimos com três quartos de hora de atraso, mas há boas notícias: o voo é operado pela Lauda Air, que sempre é melhor do que a do irlandês. Não há nuvens só pretas. 

Prazeres raros

O maior prazer de um optimista é poder demonstrar a um pessimista que ele (pessimista) está enganado.

É tão raro.

15.5.23

Diário de Bordos - Port-Saint-Louis-du-Rhône, Camargue, França, 15-05-2023

Ao contrário do que o C. M. me disse (e eu intuía), Port-Saint-Louis-du-Rhône não é um buraco. É um abismo. Tive sorte no hotel, ao menos isso: pelo mesmo montante que o de Marselha aqui tenho direito a um quarto grande, limpo (não precisei de pedir uma esfregona - que não havia - nem de limpar os pelos da barba do hóspede precedente), bonito e bem arranjado. Cada vez tenho menos disponibilidade para espeluncas. Deve ser da idade, suponho. Ou de outra coisa que não sei nomear. Ou ainda de outra que sei: falta de paciência. Seja o que for: este quarto é bom e o hotel restaurante La Plage é um havre em Port-Saint-Louis-du-Rhône, um abismo de néant e mediocridade (com a possível excepção até agora da Pizzeria de la Tour - aonde, aqui entre nós seja dito, se come melhor do que no restaurante do hotel. O qual, por outro lafo, tem a vantagem de ser mais bonito, coisa de que ando sequioso, estes dias).

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"Vento, tanto vento. / Há só vento no meu país." Bom, isto não é o meu país (apesar de ser a minha língua favorita, mas isso é outra história). Mistral a vinte e cinco, trinta nós. Em terra, este vento cansa-me, irrita-me.  Aliás, quase preferiria tê-lo no mar. Ali estaria de certeza ocupado e talvez preocupado. Em terra só estou chateado.

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O A. foi uma decepção. Não estava à espera de encontrar grande coisa. Está ainda pior. Tenho pena dos senhores, um casal de velhotes canadianos que passou uns anos maravilhosos no barco a navegar pelo Mediterrâneo. Como muitos, pensam que isso valoriza o bote, puseram-no à venda a um preço absurdo, o barco foi para seco, onde está há cinco anos. O resultado está à vista: um barco que começou no mercado a oitenta mil euros não vale mais de dez mil.

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Resultado: três dias perdidos num buraco. E há quem pense que esta vida é um glamour infinito.

(ADENDA: há um Sélection à venda. Amanhã ligo ao proprietário. Pelo menos não terei perdido tudo.)

14.5.23

Diário de Bordos - Port-Saint-Louis-du-Rhône, Camargue, França, 14-05-2023

Não desejo a ninguém que tenha de vir a Port-Saint-Louis-du-Rhône (espero ter finalmente acertado nos hífens). Mas se for obrigado a aqui vir, sugiro-lhe o restaurante Pizzeria de la Tour. Se eu o tivesse visto (o nome, não o restaurante) não teria sequer considerado parar, quanto mais sentar-me. É essa a beleza dos preconceitos quando explodem: provar por A + B que estamos enganados é uma inigualável fonte de alegria. Não comi pizza porque o restaurante tem muito mais propostas, uma das quais "sugestões do dia" (aspas porque cito). Neste caso, gambas num molho qualquer que não retive. Retive, isso sim e reterei por muito tempo o gosto do dito molho, o moelleux do arroz, a delicadeza dos cogumelos que completavam o prato. Penso na daube de ontem, no Le Point que comprei hoje e grito Vive la France! com toda a força do meu silêncio. A revista começa com um artigo de Franz-Olivier Gisbert sobre o anti-semitismo, continua com uma entrevista a uma senhora anti-woke, tem um deliciosamente irónico texto de Patrick Besson e o resto fica para depois.

Hoje à tarde tenho trabalho pós-sesta. Amanhã vou ver o A. Terça-feira vem o surveyor e vou para Palma, aonde o meu P. deu um grande salto em frente. Como sempre, o nó desatou-se de uma vez (ligeiro sorriso sarcástico).

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Viagem pela Camarga, uma região plana e verde como uma mesa de bridge mas cheia de água. É uma zona pantanosa e há há em todo o lado. O olhar divaga até ficar preso nas tão inevitáveis como nojentas eólicas. Ligo a seguir, os pórticos do porto de Fos-sur-mer. Em Lisboa já temos três destes absurdos monstros. Tanta planície enche-me a alma: sou um rapazinho sensivel à verdade, ao absoluto. Mas da alma a paisagem foge-me para a razão  e penso que viver aqui deve ser como viver num cemitério: calma nais plana não há. 

Para viver prefiriria as montanhas do Jura, por exemplo, que são como os Alpes mas menos rugosas, mais arredondadas. Mas perto do mar, se faz favor.

(Cont.)

13.5.23

Diário de Bordos - Marselha, França, 13-05-2023

Desta vez não me apetecia nada vir a Marselha. Enfim, ainda não me apetece, na verdade. Mas a magia opera na mesma. Chegar à estação de Saint-Charles, ir à esplanada ver a catedral (aqui conhecida por Bonne Mère), descer a escadaria, percorrer a Canebière, chegar ao Vieux Port. Desta vez não foi bem assim porque estava a chover e vim de metro, mas a sequência foi essa. Seja no metro seja a pé vê-se bem o catálogo de feições mediterrânicas que Marselha é.

Chego ao hotel, um desses meias estrelas onde fico quando não quero gastar muito dinheiro. É barato (comparativamente) e está super bem situado, mesmo no centro mas numa rua calma - o que não é propriamente uma surpresa pois foi exactamente por isso que o escolhi.

O restaurante judeu (chama-se Falafel) está fechado. Todos os restaurantes judeus de Marselha estão: é sábado. Acabei no Bouchon Provençal por indicação do senhor do Café des Arts, aonde dantes ia beber rum. (Hoje pedi vinho tinto sem sequer me lembrar do pastis. Esta mudança tão radical de hábitos não deixa de ser intrigante.) O tal Bouchon é esplêndido, apesar de não ser precisamente aquilo que eu procurava: uma coisa parecida com o Vin des Rues, na parisiense rue Daguerre do meu coração. Mas isso é difícil de encontrar. É preciso passar muito tempo numa cidade, deambular-lhe as ruas e os passeios. O Vin des Rues fechou, mas vocês vêem onde quero chegar. O Bouchon fica pelo menos um patamar acima do outro na escala de aburguesamento. 

Amanhã vou para Port-Saint-Louis-du-Rhône, verdadeiro objectivo desta viagem. Mas isso fica para amanhã, precisamente.

Hesitar

Hesitar é bom.

"São os capitães demasiado seguros de si que perdem os seus navios." 

(Joshua Slocum.)

11.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 10 / 11-05-2023

No fundo o que está a acontecer é aquilo que eu sabia iria passar-se: encontrar gente para trabalhar Abril e Maio em Palma é como encontrar um venezuelano pontual. Existir existem, mas só nos contos de fadas. Os mais honestos, como a Ferdinautic ou o Ricardo, dizem «Estou num trabalho e quando acabar vou aí» e continuam «Não sei quando vai acabar.» Os outros dizem «Amanhã ao meio-dia estarei aí» e nãos vejo nem amanhã nem ao meio-dia. A excepção a esta regra é a Rigging Point, aonde a Rosa C. agora trabalha. A senhora fala alemão fluentemente e imagino que metade do cérebro lhe veio de lá. Não sei. Sei que o pessoal dela já desmontou o cachimbo e amanhã vai lá (ao meio-dia) para ver a retranca. Aposto que amanhã ao meio-dia estarão lá.

No dia em que vir o primeiro cliente do primeiro charter entrar a bordo compro uma caixa de cava e bebo-a sozinho.

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O mundo é feito de razão e de emoção, ou de razão e de desrazão para quem preferir. É preciso equilíbrio, uma dose certa de cada. Infelizmente as palavras sucedem a esse equilíbrio, não o precedem nem o provocam. Ao princípio não era o verbo, ao princípio era a Razão, depois apareceram os sentimentos e foi do diálogo entre os dois que apareceram as palavras.

Talvez não seja muito exacto como génese, eu sei. Espero que ninguém me pergunte como é que a Razão se manifestava. O edifício metafórico desmoronar-se-ia imediatamente. 

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Comecei finalmente a terapia com analgésicos. Por enquanto «panasêtãmole». A malta que é contra os produtos químicos deve ser novinha.

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Hoje (11/05) Lisboa e sábado Marselha. Nunca tive tão pouca vontade de ir a Marselha, tanto mais que nem sequer é Marselha: é Port Saint Louis-du-Rhône um buraco na foz do Ródano (o que não me habituo a esta palavra...) que serve basicamente de plataforma de intercâmbio entre tráfego fluvial e tráfego marítimo. Nunca lá estive. Fui lá uma vez deixar um bote e meti-me no autocarro para Marselha. Desta vez é provável que tenha de lá ficar dois ou três dias.

Cresci a ver navios e parece-me que vou envelhecer também.

9.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-05-2023

Chego tarde e exausto ao mercado, já a fechar. Um mercado na hora do fecho é como uma mulher bonita depois do amor. A mistura de cansaço e satisfação - a que por vezes se dá o nome de saciedade - é irresistível.

Hoje percebi porque é que andar de bicicleta na cidade é mais repousante do que o automóvel. Os outros carros, bicicletas, peões, motas, scooters, trotinetas, camiões de entregas, patins, semáforos, sentidos proibidos, tão fáceis de evitar quando se pedala mal nos vêem ao volante de um carro saltam-nos para cima com a voracidade de tigres esfomeados, garras de fora e bocarra aberta para nos morder e amolgar o ego e a chapa. Amanhã entrego-o sem um bocadinho de luz traseira. A ver quanto é que o Egidio me vai cobrar por aquilo.

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Encontrei finalmente uma senhora bonita, eficaz e não muito cara para me fazer uma limpeza no P. Quase preciso de óculos escuros lá dentro, de tão brilhante ficou. Sexta começa um dos principais trabalhos que há para fazer e amanhã vou tratar da pintura da retranca, um dos poucos trabalhos de estética que conseguirei fazer. Não fazer os acabamentos como deve ser é como sair à rua com sapatos diferentes mas muito mais enraivecedor.

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Venho à Cantina transferir as fotografias da máquina - o cabo apareceu, provavelmente tão impressionado como eu pela beleza da senhora (jovem senhora) colombiana - e aproveito para beber um rum e um café. A meio misturo Coca-Cola (enfim, Pepsi). Deve ser o segundo beta dos últimos dez anos - não deve haver melhor medida para o cansaço.

Está a passar um jogo de futebol na televisão e como de costume há urros e suspiros. Um dia lerei os livros do Morris e do outro que o D. me sugere cada vez que falo de futebol no FB. É pouco provável que mude de opinião, mas pelo menos ficarei a compreender qualquer coisa.

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Sexta-feira tenho a reunião com o potencial curador. Se um dia alguém me dissesse que um dia teria um curador numa exposição minha responderia de certeza com um olhar trocista e uma observação do tipo «Sim, isso e uma exposição no MoMA». Bem, o curador já tenho e para a exposição a galeria onde ela terá lugar já excede bastante as expectativas. Ainda por cima o plano é lançar o terceiro livro ao mesmo tempo - não é bem dois em um, é tudo em um. O universo em um.

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Continuo a detestar deitar no lixo coisas ainda utilizáveis. Acho que nem nómada como deve ser sou. Suponho que seja o mesmo mecanismo que me leva a nunca deixar de amar as mulheres que já amei.

(Não é: a «culpa» é delas e das qualidades delas, não dos meus defeitos.)

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Viver com uma dor crónica é uma experiência interessante. É quase apaixonante ver o muro que a dor interpõe entre nós e o mundo, entre nós e os outros. É como se de repente olhássemos para tudo através de um espelho daqueles que deixa ver e tudo o que se vê nos reenvia a nós próprios. Nunca estamos ausentes da paisagem. Nem de nós, de resto. 

Hoje decidi voltar a tomar analgésicos, ver se me esqueço de que existo.

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Cheguei a bordo. Chove, fui afastar as adriças do mastro e esparramo-me finalmente no cansaço, no silêncio e no tamborilar da chuva. Parece contraditório mas não é. 

Parafraseando

Há mar e mar, há mar e Palma.

As palavras e as coisas

Há alterações climáticas desde que há clima. Contudo, só há "alterações climáticas" desde que essa expressão existe. São coisas diferentes, apesar de serem designadas pelas mesmas palavras.

8.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha 08-05-2023,

O dia foi grande e não cabe nesta noite, na qual me aninho dobrado como um feto num ventre. Consegui finalmente pôr o comboio em movimento e neste momento tenho a retranca à espera do orçamento, tenho um para o lazy bag, o Ricardo a bordo a tratar dos paneiros e, cereja, vou a Port Saint Louis-du-Rhône ver o ANDANTE. Se isto não é um dia não sei o que é um dia.

Outra cereja: a Rosa C. trabalha agora na Rigging Point, com o Dimitri. Rosa é o melhor shipchandler com quem me foi dado trabalhar desde que pela primeira vez entrei numa loja de aprestos marítimos (chandler, para os amigos). Reencontrá-la no activo foi um prazer sem fim - e a certeza de que tudo o que no "meu" P. depende de um rigger vai avançar.

Não sei o que é um dia as sei o que é uma noite: a manobra que fiz na adriça para a afastar do mastro só resultou parcialmente e ainda tenho esse odioso barulho a chatear-me a entrada no sono. Com menor frequência, é certo: um falhanço não precisa de ser total para ser falhanço. Enquanto não vir os panos envergados e o bote pronto a andar não acredito em vitórias.

De maneira no sábado em vez de regressar a Palma voo para Marselha e, com um bocadinho de sorte, de lá para a Sardenha. Talvez. A ver vamos, como dizia o ceguinho. 

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Contra o que é o meu hábito comprei um bilhete de ida e volta para Lisboa. Tenho de deitar o regresso fora porque, como é meu hábito, não comprei seguro de anulação. Das poucas vezes que o fiz e precisei deles não serviram de nada. Hábitos contraditórios... Mesmo asssim, penso que no fim mais barato do que comprar os seguros, que isso sim, é deitar dinheiro ao ar. 

O que eu lamento o desaparecimento dos bilhetes open date.

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Jantar no Bastian Contrari: preço normal para uma qualidade muito acima da norma, como sempre (sempre sendo as três ou quatro vezes que lá fui. Prefiro preços abaixo da norma a qualidade acima dela. Ou então conciliar os dois.

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A minha luta contra o uso de anglicismos pára quando chega à minha profissão. Loja de aprestos marítimos em vez de shipchandler, actividades marítimo-turisticas em vez de charter, (?) em vez de fittings (para os brandais)? Por amor de Deus! Não é só uma questão estética. É como dizer H2O em vez de água ou chamar transformador foto-clorofílico a uma folha de árvore. 

Não é,  M. M.? (A pergunta não é retórica. Gostaria mesmo de ter a tua opinião.)

7.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-05-2023

Mais uma noite "tempranita", mas desta consegui vir ao 7 Machos. Pedi nachos para não ser acusado de imprecisão na comparação. Não é que estes sejam melhores. É que vêm de outro planeta. Devia haver uma lei contra os maus restaurantes. E contra os maus marinheiros, claro. E outra contra os maus escritores, os maus dançarinos, as mulheres feias, contra o excesso de barulho e de gente. Enfim, devia haver leis contra tudo aquilo de que não gostamos. É o que "eles" fazem, não é? Leis contra aquilo de que não gostam. Pois bem, "nós" devíamos ter o mesmo direito.

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Comi os nachos e fiquei cheio e pedi um taco pastora porque são uma delícia e um mezcal especial porque é bom e é para isso que me encho de comprimidos e injecções e o diabo a quatro: para poder viver como quero.

Um dia, se Deus e a carcaça quiserem hei-de vir aqui com o meu neto Leonardo e com a neta cujo nome não sei ainda (gostaria muito que fosse Laura) e ensiná-los-ei a pôr o picante na borda do prato e não em cima da comida e quando disser borda piscarei o olho ao rapaz, coisa de homens e a rapariga não perceberá a alusão e depois de comermos eles irão à vida deles e eu deitar-me, como agora, saciado, comprimido tomado com um gole de hierbas secas para poupar água.

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Estão à procura de pessoal no 7 Machos. Metade das lojas, cafés e restaurantes da cidade está. Neste ainda me disse que se me pagassem em margaritas talvez pensasse duas vezes, mas claro que era piada, nem morto trabalharia num bar assim outra vez, já não tenho idade para nada e muito menos para olhar para a beleza insultuosa das raparigas, insolente como alguém uma vez disse, não fui eu mas é como se fosse.

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Foi um rico jantar, é o que é, a fechar um domingo mediano. Verdade seja dita: um domingo mediano em Palma é melhor do que muitos muito bons em muitos sítios. A Rambla cheia de flores, o cheiro era magnifico e enchia o espaço todo entre os plátanos como se estes fossem muralhas, a  temperatura no ponto certo, a BH a deslizar por ali fora como um patinador em gelo bem duro e eu em cima dela, deixava-me levar como se descobrisse a cidade, guiado pelo cheiro das flores e pela luz matizada da Primavera. 

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Amanhã vai ser a luta de sempre, telefonemas a pedir aos fornecedores para pelo menos virem a bordo - é o equivalente náutico de "só nas bordinhas", suponho, mas estes são sabidos e não se deixam levar - pagar mais uma tranche ao A., falar finalmente com o italiano de Menorca, maldizer a Câmara Municipal de Oeiras que levou mais de um ano para nos dar um papel que nos tinha dado e depois retirou, ligar à Gwen para relançar o projecto do livro sobre as Baleares... Enfim, fazer tudo o que faço e faz disto uma vida, apesar de não parecer, parecer só fragmentos, retalhos, colagens.

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O P. não vai ficar como eu queria que ele ficasse e isso enche-me de uma tristeza inenarrável e que sobretudo não quero antecipar agora.

Dia de tudo o que fiz

É dia da Mãe (ou das Mães, não percebi bem) e a Rambla tem ainda mais floristas do que o costume e estas ainda mais gente e não é sequer uma da tarde, o que significa que é de manhã. Palma-a-Calma está linda e suave ao contrário do que prometiam as previsões meteorológicas.

Nunca liguei a estes dias disto, daquilo ou daqueloutro. Um palerma qualquer num escritório qualquer num sítio qualquer decide que hoje é dia da Mãe, amanhã dia do ouriço-caixeiro e depois de amanhã dia da pescada do Cabo e metade do planeta esquece que todos os dias são dias da Mãe, do pé direito ou da dor de cabeça. Com o Natal é pior ainda, com o Halloween, datas feitas para ajudar o comércio (nada contra, note-se) e fazer a malta converter sentimentos em massa. Prefiro gerir os daqueles que tenho, já que desta tenho pouca. Ainda há dias encontrei o P. M. de B. à porta do clube, falámos do meu Pai e desatei num choro apesar de não ser dia do Pai. Choro sempre, de resto, quando alguém me fala nele e no homem que era (sem adjectivos. O pai de cada um de nós é o melhor homem do mundo e dispensa-os). Ou como quando penso na minha Mãe, que era uma Senhora e teve um fim pacífico e morfinado. Os dias disto e daquilo não passam disso mesmo: dias. O isto e o aquilo dependem de cada um de nós. É como se fizessem um dia da dor crónica. Pata que os pôs, mai-los dias.

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Telefonei (felizmente) para o Ipanema, mas estão cheios até às três e meia da tarde. Acabo a comer uma "paella" no café Roma, um sítio a que talvez achasse piada noutras circunstâncias. Paella leva um quilómetro de aspas: aquilo é "arroz com coisas", aspas porque cito. Passo aqui à frente quase todos os dias, parei uma vez para uma cerveja e hoje para isto. Podia arranjar-se um dia dos restaurantes de merda, não? Ou dois, que ontem já não foi brilhante. E neste tenho o privilégio de ver entrar o N., uma espécie de atrasado mental em cuja casa vivi vários meses. O homem não me cumprimenta, não percebo bem porquê. Proponho a criação de um dia do pobre de espírito com São N. como padroeiro.

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Penso na minha escultura de cera. Que será feito dela? Que será feito do que fiz, de tudo o que fiz?

6.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-05-2023

Está a chegar aquela altura do ano em que Palma-a-Calma deixa de o ser. Por enquanto, ainda só nos fins-de-semana. Em breve será todos os dias. Hoje o dia começou tarde, almocei tarde e para a noite queria só uma coisa leve e rápida. A solução óbvia é o 7 Machos, mas aquilo estava insuportável. Os putos e as miúdas (aqui está um exemplo de palavra que muda de sentido consoante o género) decidiram celebrar as despedidas da vida de solteiro em grandes expedições colectivas e punitivas, barulhentas e ridículas e o 7 Machos é um dos alvos favoritos. Acontece que tenho cada vez menos paciência... ia dizer para grandes grupos, barulho e confusão, mas creio que não preciso de compartimentar a falta de paciência. É abrangente. É para tudo. Acabei por vir ao Xolotl, porque fica perto e quero ir para bordo dormir e se possível sonhar.

É uma merda. Poderia elaborar, mas um restaurante mexicano que nem nachos sabe fazer não merece o tempo que leva a dizer mal dele. (Ao meu lado dois maricas elogiam a comida. Um deles reparou na Kaweco com que comecei a escrever este post e fez-lhe um elogio igualmente rasgado. Há gostos de todas as formas e feitios. A Kaweco é bonita, sim.)

De modo hoje vai ser beliche tempranito. Amanhã é outro dia. O avanço destas quase duas semanas foi mortalmente lento, a promessa de ontem não se concretizou (mas isto sendo o Mediterrâneo a porta não está fechada, está como estava ontem, entreaberta), quinta-feira vou a Lisboa por causa da exposição de fotografia (e não só, mas isso fica para depois), o Ricardo vai poder avançar no interior esses três dias e eu vou poder pensar no meu interior: de quanto tempo precisarei para o remendar?

Solidão, inconveniente

O único inconveniente da solidão é que fica muito cara.

Centrifugar angústias

Declaração de interesses: conheço a Rita Tormenta e somos amigos. 

Não sei quem disse que uma boa fotografia é um fotograma que se salvou de um filme que se perdeu. Ou algo assim: a citação não é nem pretende ser verbatim. Os poemas do primeiro livro da Rita Tormenta (Centrifugar Angústias a 1600 RPM, ed. Mental) fizeram-me pensar nessa máxima, com «poema» no lugar de «fotografia» e «biografia» no lugar de «filme»: os poemas desse livro são pedaços de vida traduzidos em poesia. É fácil imaginar as biografias de que foram parte - se calhar até é só uma - mas fácil não significa simples. São poemas que dizem muito mais do que aquilo que dão a ler, condição sine qua non para a poesia aceder à qualidade de boa (a poesia e não só, na verdade).

De vez em quando aparece uma pequena «escorregadela» - um brasileirismo, uma vírgula fora do lugar - mas não suficientes para estragar o prazer que é ler estes pedacinhos de vida carregados de sensibilidade, de melancolia, de humanismo

O livro é pequeno, tem uma capa bonita e as fotografias de João Gata contribuem em muito para o prazer de o ter entre mãos.

Dúvidas, inquietações

É mentira que o que conta é o futuro. Se fosse verdade, os velhos suicidar-se-iam em massa. O que nos mantem vivos é o passado e o futuro - o daqueles que amamos e dos que amámos. O presente não passa de uma sucessão de dores, inquietações e dúvidas.

5.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-05-2023

Desde que cheguei a Palma - creio que em 2011 - tenho vivido nas redondezas do Mercat de l'Olivar (salvas raras excepções e considerando o RCNP «redondezas»). Para quem não gosta de supermercados o Mercat era o supermercat, o mercado. Durante a pandemia o Mercat foi o meu refúgio, o meu porto de abrigo, pelo menos enquanto se lá podia ir sem ter de usar máscara. E depois também, mas deixemos isso para depois. Ou seja: tenho assistido à sua evolução.

[Entracto. O dilema do conservador é terrível: a mudança não traz nada de bom e a permanência ou é pior ainda ou só perpetua o que é mau.]

Palma tem três mercados principais: um é puramente local / mediterrânico / magrebino (Pere Garau), outro é puramente turístico / desinteressante ( Santa Catalina) e outro é uma mistura dos dois (adivinharam). Neste último, a proporção de maiorquinos e de visitantes, para não utilisar palavrões, tem vindo a mudar. E os preços, claro, acompanham a mudança. Apesar de tudo. continua a ser um dos meus poisos favoritos em Palma e sê-lo-á muito tempo, aposto. A mistura turismo e pandemia é uma Panzerdivision a toda a força, imbatível e o tempo é outra, ainda mais imbatível e ainda mais Panzer. Passemo-lo em revista: o Lucca continua a fazer o melhor tiramisu da galáxia, tem uma grappa de cair para o lado (de prazer, não de intoxicação) e - ele há milagres - ainda tinha guardada a garrafa de limoncello que lhe encomendei o ano passado. É a mulher dele que o faz. O meu léxico de superlativos é insuficiente para o adjectivar, portanto ficamos por aqui. O Cristian está na mesma, o Maños - desde que o Aurélio saiu, na verdade - está pior (demasiadas galinhas sem galo. Os homens e as mulheres são complementares e um sem o outro fica desequilibrado), o Xisco fantástico, como sempre. Feitas as contas, o saldo é bastante positivo. Viva o conservadorismo! 

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Encontrei finalmente uma saída para o impasse em que estava com o P. Já só preciso de encontrar mais meia dúzia delas para os outros impasses, mas isto devagar vai.

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Este fim-de-semana vai chover e resfriar, mas hoje o tempo está lindo e Palma com ele. Deixo aqui uma declaração de amor a esta cidade, assim memso pública e impúdica, gritada do alto do meu teclado. Amo-te, Palma.

4.5.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-05-2023

Pouco a pouco, muito devagar, aterro. Isto de fazer manobras delicadas com mau tempo de todos os lados não é fácil. Por entre as nuvens alguns raios de sol espreitam. É neles que tento concentrar-me, mas esta estratégia tem limites: se não atentarmos aos temporais o mais provável é acabarmos nas pedras à entrada do porto. Estou em pleno acto de malabarismo emocional. Faço um bocadinho de terapia de retalho: hoje comprei uma Kaweco igual à que estupidamente perdi há poucos meses. E um bocadinho de terapia de mim: telefonei ao médico do Porto ver se me pode operar para a semana, ver se ponho o olho esquero a ver, finalmente. Exagero, claro, mas isso faz parte da terapia: pintar tudo negro e depois rodeá-lo com uma cinta de cor, como se estes dias se fossem um quadro de Rothko. Daqui a pouco vou jantar ao Jaume: faz parte da terapia. Tenho sorte: terapias não faltam. E tenho a maior delas todas: esta mistura de paciência e resiliência que me faz safar-me de todos os temporais, sejam eles reais ou... ou... ou o quê - Inventados? Metafóricos, estúpido. Metafóricos. Não é por isso que são menos reais.

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O meu P. avança devagar, ele também. Esta altura do ano é a pior: toda a gente está a preparar os barcos para o Verão e os fornecedores de serviços não têm mãos a medir. Preciso de toda a diplomacia, jeito e capacidade de persuasão para os conseguir ter a bordo. Até agora tive um a sério e meia dúzia de promessas. É como no rugby: quantos se transformarão em pontos? E sobretudo: quando?

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Jantar no Jaume: estava com vontade (não é o termo correcto: necessidade) de comer sobrasada. Sublime, claro. Compra Ferrerico, (como eu, três pancadas no peito) e ensinou-me que, ao contrário do que eu pensava, as dimensões das sobrasadas têm um impacto no sabor, porque quanto maiores são mais tempo levam de cura. A que comi hoje é a dimensão seguinte à sobrasada (não encontro o nome. Amanhã cá estará). [Adenda: Poltrú e afinal não é a categoria seguinte. Amanhã haverá pormenores.]

Dali vou procurar um sítio para beber uma piña colada (a que uma amiga chama pila coñada, no que para mim é o melhor trocadilho do século) e quase sem querer acabo no Lisboa (agora Novo Lisboa). Entrei porque estava vazio, devo dizer e espero lá voltar nas mesmas circunstâncias. O barman chama-se Adriano, é italiano, pensa que ter o povo no governo é um erro porque o roubo é inevitável («se eu lá estivesse e me chegasse um árabe e me dissesse "dou-te um milhão para isto" eu dar-lhe-ia o que ele me pediu, porque nunca tive um milhão na vida» e termina com a frase que me tocou mais: «Eu penso», diz, «que ser socialista é uma doença.» Mencionei-lhe o meu post de ontem e prometi-lhe que voltaria. Ainda por cima, as pilas coñadas estvam excelentes. Há muito tempo que não bebia um cocktail e estes vieram com tripla recompensa. A começar pelo nome do bar, que era uma referência em Palma até o socialismo fazer das suas. Talvez ainda seja, não sei. A verdade é que não gosto muito de Santa Catalina - com a óbvia excepção do Sete Machos - mas este gajo vai fazer-me mudar de opinião.

Descubro com espanto que dizer aquilo que penso da Armengol me traz mais amigos do que animosidades. A mulher está apostada em destruir Palma, mas não o fará sem resistência.

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No bar da Cantina está sentada uma senhora que tem um riso excessivo. É agordalhada e penso que hoje, ao ouvir outra com o mesmo, pensei que as senhoras gordas têm mais tendências para risos excessivos. Pergunto-me se será verdade ou se é coincidência.


(Cont.)

Parvoíce, masoquismo

A diferença entre um masoquista e um parvalhão é que o masoquista paga para ser insultado e o parvalhão paga e é insultado. Parece pequena mas não é.

3.5.23

Socialismo: maldade ou estupidez?

A presidente do governo das Baleares, uma senhora chamada Armengol que além de ser socialista é completamente idiota - é comum, mas relembro aos mais estouvados que correlação não é causalidade - prepara-se para legislar uma limitação às rendas.

Maiorca sofre de um problema semelhante ao português (se bem eu não tenha a certeza de que as causas são as mesmas) e a palerma da senhora (isto é a vitória do feminismo: mulheres iguais aos homens) acha que a solução é limitar as rendas por via legislativa.

O resultado é conhecido e não vale a pena perder-se muito tempo com ele.

As questões são outras:

a) A mulher sofre do conhecido síndroma "socialismo científico" e pensa, como qualquer socialista que se preze, esquecendo tudo aquilo que a história e a experiência ensinam, que se pode aplicar às interacções humanas os princípios lineares da física newtoniana? Desconhece o conceito "efeitos perversos" (ou "inesperados", para os mais ingénuos)? Ou,

b) A senhora está a par disso tudo e sabe que medidas populistas, demagógicas, contraproducentes dão, apesar de tudo, alguns votos porque a iliteracia económica é vasta e prefere tentar ganhar umas eleições que sabe - ou adivinha - perdidas à custa de exacerbar um problema já de si grave?

Responda quem sabe. Eu não sei.

Temporais e outros líquidos

Durante os temporais, os marinheiros antigos tinham o hábito - bastante eficaz - de deitar óleo ao mar, a barlavento, para aplacar as vagas.

Eu faço a mesma coisa com rum ou, se estou em Palma, hierbas secas. É igualmente eficaz.

Passado, estética

O Pintxos y Latas mudou de dono e consequentemente de nome.  Agora chama-se bar Azul e está mais ou menos na mesma, com excepção da fachada, que passou a ser azul. Gostava mais da anterior, mas algo me diz que se daqui a dez anos alguém o comprar e pintar a fachada como estava o ano passado não faltarão vozes a dizer "o azul era mais bonito".

O passado tem um talento para a estética de que pouca gente suspeita.

2.5.23

Uma rica viagem

O avião estava sobreaquecido, a cerveja e a lasanha (que a hospedeira se esqueceu de me trazer) mornas, a cadeira tinha a almofada estragada, chegámos com uma hora de atraso e desta vez não acho muita piada a estar na parte alfandegada do aeroporto porque estou exausto. Mas nada disto é o pior.  Nunca, nem no tempo dos emigrantes portugueses e respectivas "máquinas de filmar" vi uma mistura tão grande de mau-gosto, pimbalhada, tatuagens grotescas, mulheres obesas (mais elas do que eles) e foleirice nas mais variadas formas. Isto não é uma empresa, é um dispositivo de espoliação das classes indigentes.

À minha frente na fila para a imigração está um senhor bem vestido, de blazer beige claro, panamá elegante, ar distinto, tanto ele como a mulher. Fico contente por não estar assim (mesmo assumindo que poderia ter um ar distinto, o que é tão provável como uma pedra de gelo sobreviver no Sol): tem o aspecto de quem se enganou no autocarro e foi parar ao bairro errado.

Uma das razões que me fez aceitar esta combinação de voos foi a possibilidade de ter o dia todo em Dublin... Verdade seja dita que disto não me posso queixar muito. O dia só ficou chato a seguir ao almoço no Celt. Até lá foi instrutivo.


Diário de Bordos - Dublin, Irlanda, 02-05-2023

A última tarde em Dublin foi passada a esperar ardentemente a ida para o aeroporto. Sabendo quanto gosto de aeroportos não deixa de ser inquietante. Mas enfim, ajuda pelo menos a perceber porque é que Beckett, Joyce, Wilde e os outros se puseram a cavar daqui, desta amabilidade lhana, honesta - não é sequer como a genebrina, que se vê à légua ser fingida e superficial - destes prédios todos iguais, duma monotonia esmagadora, excepto em alguns quarteirões mais recentes. Fui ao James Joyce Center, que tem muito de James Joyce e pouco de Center, tentei ir ao Museu da Emigração mas a dezoito euros o bilhete de velhinhos aquilo é para velhinhos ricos, tentei ir ao porto mas era longe, fui a um pub que tem um nome engraçado - chama-se Flowing Tide e ao princípio tomei aquilo por Floating Tide - mas acabei no meu bem amado Celt. Sou de amores rápidos: esta foi a segunda vez que fui ao Celt, mas o raio do lugar tem tudo o que faz de um pub um pub adorável. A começar pela luz, que consoante o sítio onde estamos sentados ora põe tudo a preto e branco ora faz ressaltar algumas manchas de cor aqui e ali, como gotas de um cocktail numa toalha branca - ou cinzenta, neste caso. A comida é decente, os preços dementes - o choque que apanhei a primeira vez em Kinsale já se desvanecera nas vagas da memória, claro - a empregada menos simpática do que a de ontem, mas pronto, lá passei um bom bocado (nos dois sentidos do termo bom). Depois fui dar um passeio pelas ruas pedestres do centro - não se distingue particularmente de outras ruas pedestres, excepto eventualmente para um conhecedor de marcas: a única que vi que conheço foi a Marks and Spencer, mas uma loja é uma loja, chame-se Marx ou Groucho. Há uma livraria pouco atraente, ainda parei em mais um pub horrível chamado Parnell, tresandava a peixe frito e tinha luz como um café de província português. 

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De maneira cá estou no aeroporto. Na bagagem emocional levo a apresentação do livro do V. no museu judeu, o jantar de aniversário da sua esplêndida namorada, o Celt e - só isto justificaria a viagem - a visita à The Last Bookshop, um alfarrabista que é o modelo paradigmático de todos os alfarrabistas. Digo paradigmático não só por pedantice mas também para não dizer abençoado ou santificado ou bendito ou algo assim, relacionado com a santidade. Comprei dois livros e hoje a caminho do aeroporto apercebi-me de que só paguei um mas já era tarde para lá voltar, de forma agora tenho uma poderosa razão para regressar a Dublin, mesmo que a culpa do «roubo» involuntário não tenha sido minha (e o montante seja pequeníssimo). Suponho que houve um problema com o sinal da máquina que o jovem senhor usou para processar o pagamento, coisa que de resto não me surpreende absolutamente nada: não deve haver muitos sinais que atravessem aquelas pilhas e pilhas de livros em todo o lado. Vá lá, pelo menos um passou-as. Resta saber se foi a do Joyce ou a do Don de Lillo.

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Fiz poucas fotografias. A luz estava uma merda e de qualquer forma nunca passei da primeira camada da cidade. Não sou daqueles fotógrafos (não sou fotógrafo de todo) que mal chegam a um sítio vêem o ângulo certo, a focal a usar... Já uma vez por aqui escrevi que fotografo como amo e ainda por cima desta vez o wifi da máquina não estava a funcionar bem e e e... Paciência. Haverá mais vezes. Há dois ou três recantos da cidade de que gostei - um deles as imediações do museu judeu, por sinal muito perto da escola onde Beckett estudou, isto ando tudo ligado.

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Oito euros um sumo de laranja e uma barrazita de chocolate. O que eu adoro esperar em aeroportos não tem descrição. Ainda por cima o avião atrasou-se mais de meia-hora. Quando penso que há quem não goste da TAP só me apetece urrar.

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Estou no meio de uma tempestade perfeita, com ventos de todos os lados, mar piramidal, voltas de mar a rebentarem-me no convés (atenção, isto não é uma aula de meteorologia do mau tempo), frentes quentes, frias e oclusas, cristas de altas pressões, aguaceiros, nevões. Tudo ao mesmo tempo, tudo de todos os lados. Não admira que a serenidade de Dublin me tenha saltado tanto aos olhos. Que contraste com o meu tumulto interior. Enfim, tumultos, no plural.

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ADENDA: Afinal o avião está atrasado uma hora e vinte.

1.5.23

Diário de Bordos - Dublin, Irlanda, 01-05-2023

Dublin é uma cidade em paz consigo própria. Inspira harmonia e expira amabilidade. Imagino que ao fim de algum tempo seja mortalmente aborrecida, sobretudo para artistas quando jovens. Para não-artistas velhos é bastante agradável. 

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O sistema de transportes públicos funciona bem: do hotel tenho autocarros para onde tenho ido. O único problema está nos pormenores, um problema habitual para quem tenha vivido na Suíça. É uma dúvida permanente,  esta: se o demónio está nos detalhes, a Suíça é a terra deles ou a terra onde não vivem? Por exemplo: o sistema de informação das paragens a bordo dos autocarros. Aqui já me enganei duas vezes (admitidamente devido à habitual mistura de distracção, negligência e burrice). Em Genebra não consigo enganar-me, por mais que tente: os monitores que indicam as paragens não o permitem, porque discriminam não só a próxima paragem mas também as três ou quatro seguintes (e a quantos minutos estão, um suíço sem um tempo seria como o mar Morto sem sal). Outro exemplo: os solavancos. Contudo destes não vale a pena falar. Não são pormenores. 

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Fui à The Last Bookshop, prometendo a mim mesmo que seria só para fazer duas ou três fotografias e não para comprar livros.

Cumpri metade da promessa.

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Voltemos à questão de há pouco: se o diabo está nos pormenores, a Suíça é um país de diabos ou um país sem eles?

Aceito palpites, achismos e opiniões fundamentadas. (A minha resposta - se a tivesse - seria uma mistura dessas três. Felizmente não tenho, o que remete a pergunta para as categorias "retórica" e "como adormecer esta noite".)

Inveja

Anda por aí muito escritor que escreve mais do que lê. Cada vez que penso nas agonias por que passo a cada vírgula tenho inveja deles.

Pobre sim, miserável não

Pode ser-se pobre, mas não se deve ser miserável. A linha que separa as duas é muito fina e não depende só da conta bancária. Há miseráveis com mais dinheiro do que muitos Senhores pobres. (Senhores vai de caixa alta, para se distinguir.) A pobreza é involuntária - com a possível excepção dos franciscanos, dos místicos indianos e dos marinheiros (e dos artistas, relembra-me a B., adorável artista). Ser-se miserável é uma opção.