31.3.24

Derrotas, vitórias, empates

A melhor medida da envergadura de um homem é a dimensão dos erros que carrega. Mais do que as vitórias, tão leves.

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Prefiro uma derrota a mil empates.

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Uma vitória não passa de uma derrota adiada.

Culpa, responsabilidade

Sem o conceito de culpa pode viver-se. Sem o de responsabilidade não. 

30.3.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-03-2024

«Vastas emoções e pensamentos imperfeitos» é o título de um romance de Rubem Fonseca. A maioria dos meus leitores conhecê-lo-á: o livro é uma maravilha. Quem não conheça que se despache: ler por ler, antes o Rubem do que eu.

Tudo isto porque esse título seria o ideal para cada uma das minhas chegadas a Palma. Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Desta vez, poderia ser até vastíssimas emoções: fui ver a procissão do Santísimo Cristo de la Sangre, a estátua religiosa mais venerada de Palma. A procissão é enorme, dura toda a noite (vim-me embora mal passaram os primeiros participantes). As ruas estavam pejadas de gente e a gravitas, a beleza daquilo eram impressionantes. Comovente, mesmo para um ateu como eu. É inútil elaborar muito: não é difícil perceber que a fé é uma coisa e a estética, os sentimentos, a razão, a emoção outras, diferentes. Como a história, de resto: é pouco provável que me tivesse comovido às lágrimas com uma cerimónia voodoo, por exemplo, como aconteceu com esta.

O objectivo primário, contudo, foi fazer fotografias. Não ficaram grande coisa: esqueci-me de levar o flash, puxei a sensibilidade a oito mil ASA e claro, estão cheias de grão. Ficam para memória e para a net.

Como sempre, fiz a minha procissão palmitana: Fidel, Xisco, Myniones, François, Misse en Place – a Daniela já não está lá, mas as miúdas que a substituíram são giras e simpáticas e o lugar continua a merecer lugar de destaque. Voltei à Vermutería San Jaime e comecei a frequentar o Corb Mari com mais frequência e com menos complexo de culpa. Creio que a chegada da Brigitta (a mulher do Pepe) provocou mudanças de uma escala tectónica naquilo (ou nisto, é aonde escrevo agora).

O problema é que passadas as emoções chegam os pensamentos e esses estão longe de ser tão perfeitos. Fico feliz com a ideia de que vou passar o Verão aqui, sem dúvida. Mais do que isso, não sei. Isto é, não sei se ficaria feliz, porque sei de certeza que não passarei o Inverno em Palma.

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Falemos do tempo: badanal atrás de badanal. Continuo a gostar de dormir com vinte quilos de cobertores em cima. Apreciei bastante o frio quando cheguei. Agora estou menos seguro.

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Falemos de bicicletas: a BH Glasgow é decididamente a melhor bicicleta em que me foi dado deslocar-me. Nela, pedalar e flutuar tornam-se sinónimos. Possa esta felicidade durar para sempre. (Já passo imenso tempo a pensar como vou levá-la para Portugal...)

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Falemos do «meu» P.: ... ... ...

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Falemos de navegar: se me apanho a sair da Martinica não acredito; a chegar a St. Martin, ainda menos; a largar de St. Martin? Miragem. Chegar a Ponta Delgada? Milagre. Atracar em Lisboa: será que Deus existe?

Não percebo de onde me vem esta necessidade de ir para as «partes aquosas» do planeta  mas não tenciono perder muito tempo com o tema. As coisas são como são e eu como sou. (Ainda percebo menos porque lhe resisto tanto, mas isso é outra história.)

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Falemos de Portugal: como é que um país tão bom de se viver pode ter coisas tão horríveis de viver? Como e que um povo tão bom, hospitaleiro, aberto pode ser tão cobarde, tão pequenino, tão invejoso? Como fazer, para beneficiar só daquilo que é bom e não contactar com o que é mau (sem ser rico e estrangeiro, claro)? Como explicar a um português que as decisões não se devem empurrar com a barriga até deixarmos de ser nós a tomá-las e sim elas a tomar-se a si próprias?

29.3.24

Os pés na água

Raramente vou à praia, como sabes.

Porém, quando vou ando pela orla do mar, por aquela linha de espuma que a água desenha na areia. Imagino-te comigo e pergunto-me: qual de nós dois vai com os pés na água?

Amar, amar-te e outras confusões

De qualquer forma, mais vale amar alguém e não ser correspondido do que não amar ninguém. Amar pode ser um verbo intransitivo. "Eu amo" não precisa de um hífen e de um pronome, por muito que estes o melhorem. Amo-te - dito ou ouvido - é provavelmente o verbo mais bonito de todas as línguas do planeta. Logo a seguir vem "eu amo". Poder-se-ia talvez dizer que é egoísmo. Ou cegueira. Ou ingenuidade. Nada disso.

Eu amo é a essência do amor. Amo-te é a sua concretização e para pessoas primárias e básicas como eu, preferível. Prefiro ouvir ou dizer amo-te a dizer amo, só. Ainda há a possibilidade, naturalmente, de ouvir amo-o, mas essa não é para aqui agora chamada.

Ou seja, voltando ao princípio: amo-te, amo, não amo e não te amo, por ordem decrescente. Ou descrente, se preferirem. Amar é acreditar. Talvez seja esse o fundamento do amor: acreditar. Amar-te é acreditar en mim, na minha capacidade de te fazer feliz. Quero o teu bem, seja comigo seja sem mim. É aqui que amo-te e amo se sobrepõem, como o céu e o mar. 

Está confuso, eu sei.

28.3.24

O que eu pensava

Devíamos confrontar regularmente "o que eu pensava" com a realidade. É uma constante fonte de alegria e de conhecimento. Por exemplo: eu pensava que a vermutería San Jaime era um buraco para turistas, com os habituais vermutes de merda a preços de bitcoins. Este meu preconceito baseava-se simplesmente na sua localização: passeig de Mallorca, uma das áreas turísticas desta adorável cidade. Justamente, é preciso dizê-lo, mas não agora. Deixemos esses pormenores para outro dia.

Pois não é nada disso. Isto é: está cheio de turistas, claro. Mas tem excelentes vermutes - a lista não é enorme mas foi seleccionada com gosto - a preços mais do que acessíveis, mesmo para um pobre e solitário marinheiro longe de casa.

Nunca consegui perceber porque é que "o que eu pensava" está mais vezes errado do que certo mas é assim. Raramente sai a ganhar no embate com a realidade. Ainda bem.

Poder-se-ia talvez pensar que é maçadora, esta coisa de "o que eu pensava" sair a perder quando comparado a "aquilo que é". Mas já viram as alternativas? Há duas, apenas: 

a) Deixar de pensar;
b) Deixar de trazer a realidade à baila.

Qualquer delas triste e  castradora, não é? 

A minha lista de waterholes de Palma teve hoje uma aquisição de peso, que ali ficará até prova em contrário.

U., pianista

Tenho 28 anos e espero numa cama a jovem senhora que hoje me acolheu. Generosamente, preciso dizê-lo: é bonita e temperamental, pianista bastante conhecida na nossa cidade. Está na casa de banho a desmaquilhar-se. Hoje deu um concerto e em troca recebeu aplausos sem fim. Fui ouvi-la, mas saímos separados, com a promessa de nem sequer olharmos um para o outro se por acaso nos cruzássemos. O risco de isso acontecer era nulo, mas a vontade que eu tenho de aparecer numa fotografia de jornal ao lado dela é ainda mais nula. U. não é casada mas eu sim. Repasso na memória alguns dos momentos do concerto enquanto brinco com o meu pénis erecto. U. não perderá muito tempo até montar-se nele. Quando pela primeira vez nos encontrámos disse-me “deixa os preliminares para depois. Vamos ao que interessa.” “O que interessa” repetir-se-á várias vezes. Quando estivermos ambos exaustos levantar-se-á, irá à casa de banho lavar-se – estou terminantemente proibido de assistir – e aí sim, começarão os preliminares. Sentar-se-á ao piano e improvisará qualquer coisa para mim, ou virá deitar-se e falar-me do concerto, de quanto gosta de me ter dentro dela ou de sentir as minhas mãos nos seus seios. “Hoje o concerto correu bem. Corre sempre, quando te sei na audiência. Só espero que nunca venhas com a tua mulher. Não me importo nada que sejas casado – antes pelo contrário – mas quero tocar só para ti. Não há melhor preliminar. Quando me levanto do piano e vou agradecer os aplausos procuro ver-te e fico molhada até às orelhas. Se ela estiver lá isso não acontece, de certeza.”

27.3.24

Receitas, tampas e uma confissão

Leonor, Laura e Helena são os nomes femininos que prefiro. Se tivesse tido outra filha ter-lhe-ia chamado Laura (a primeira ficou Helena). Já tentei seduzir meia dúzia de Leonores, mas levei sempre tampa. Aposto que suspeitaram do meu verdadeiro motivo. Elas têm faro para estas coisas. Uma vez engatei uma jovem senhora (e bonita, vá lá) porque ela tinha a colecção completa das receitas da Elle, uma revista feminina. Eram receitas maravilhosas. Ainda tenho um monte delas. Mas ficava-me caro e ao fim de uns meses (demasiados) parei de a comprar. Ainda por cima a minha mulher detestava a revista e reclamava cada vez que me via chegar a casa com a Elle, o Expresso, o Economist, a Playboy e o L'Express (por causa do Raymond Aron). Acho que era o Express. Não tenho a certeza. Foi há muito tempo. Depois comecei a pedir as receitas às amigas (da minha mulher) que compravam a Elle e não as queriam.

Há quem coleccione caricas, selos, moedas, automóveis, máquinas fotográficas ou borboletas, sei lá. Eu só acumulava tampas e receitas. A grande diferença entre as duas é que uma tampa, não sendo um objecto, não pode trocar-se, pendurar-se na parede nem - muito menos - mostrar-se aos amigos. Podem, quando muito, arrumar-se na memória por ordem cronológica inversa, as mais recentes a tapar as mais antigas.

Comecei a coleccionar receitas muito depois de ter começado com as rejeições. As primeiras foram as da minha tia Mamé, que era professora de culinária e tinha uma fantástica capacidade para perceber as ratoeiras. Por exemplo, ela não dizia "cozer as batatas" mas sim "cozer as batatas (grandes, inteiras) vinte minutos depois de a água começar a ferver" (isto é só um exemplo, não é verbatim. Aliás até me parece que era mais adepta de cortar as batatas ao meio para não desperdiçar gás). Foi com essas receitas que comecei a cozinhar,  já ia para aí na minha trigésima oitava tampa. Ainda pensei que cozinhar me ajudaria a convencer as miúdas de que não era mau rapaz, mas foi completamente inútil. Só muitos decénios depois comecei a gostar de lavar a loiça. Talvez devesse ter começado por aí e só depois passar ao fogão, numa espécie de descida ao contrário. Ou subida, faz mais sentido. Sobe-se um rio até à nascente. Cozinha-se antes de lavar a loiça. Ir desta para aquela é subir. Ou será descer? Estou baralhado. Deve ser por causa das tampas e das caricas. Ou das receitas. Talvez.

Às vezes acontece-me pensar naquela mulher que me aceitou no seu leito e dele me expulsou poucas semanas depois. As Elle estavam mesmo ao lado da cama e uma vez performadas as funções digamos leitais punha-me a ler as receitas. A rapariga queria carinho e conversa e um dia a fosforecente pomba da clarividência pousou-lhe na cabeça e o meu adultério (era um. A minha mulher já me tinha proibido de comprar a maldita revista) acabou ali. Não foi grave, de qualquer forma ia voltar para casa. E tão pouco foi repentino. Ela teve o cuidado de me explicar o porquê da sua decisão.

Isto das tampas é curioso porque depois penso nas não-tampas, que são incomparavelmente menos mas tinham a óbvia vantagem de me proporcionar outro tipo de beneficios. Porém, nunca mais me saiu na rifa uma coleccionadora de revistas Elle, que tinha de longe as melhores receitas.

(Hesito em confessar aquí que também era grande apreciador da revista Cosmopolitan, por causa de outro tipo de receitas. Não confesso.)

26.3.24

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 26-03-2024

Poderia - e talvez devesse - começar pela temperatura à chegada a Paris: três graus centígrados. Sete horas e meia antes estava a trinta. Ou pela de Barcelona: doze. Da de Palma não me lembro porque na verdade pouco me importava. Estava em casa e toda a gente sabe que quando se abre a porta de casa depois de uma longa ausência o frio e o calor desaparecem e são substituídos por um sentimento a que alguns chamam plenitude, outros amor e outros ainda, mais primários, "até que enfim!"

Porém, seria mais lógico começar por lembrar a tortura que foram essas tais sete horas e meia. Quem não tem inveja dos anões não faz grandes viagens de avião em classe gado. Quem as faz tem, sem precisar de esperar mais de sete horas. Aparece logo.

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O primeiro jantar em Palma foi no Gustar. Vitello tonnato, claro. Quem já não tem mãe tem restaurantes conhecidos. Isto é: restaurantes que conhece e aonde o conhecem.

(De qualquer forma, nunca mais comerei fatias recheadas como as que a minha fazia.)

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Meu P., minha cruz. Continua um estaleiro. Desa vez é preciso substituir a roda de leme por uma cana, como estava originalmente. Passei anos a pedir à M. para me dizer "Não!" cada vez que lhe pedisse para tirar esta roda, que mais parece uma daquelas coisas que os turistas usam em Londres e em Cascais. Agora teve de ser. O que é que o Wilde dizia, sobre a satisfação dos nossos desejos? É o diabo, não é?

É. 

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Deixo o S. D. - um tupperware cum residência secundária - para vir para o P., espécie de embarcação de vela reduzida à sua essência, à sua verdade, nua e simples. Qualquer pessoa que perceba as razões que me levam a preferir este àquele tem admissão imediata no meu círculo íntimo. Ou no Inferno, não é muito diferente: a Verdade, assim mesmo em caixa alta, é sempre mais dura do que o ersatz.

Aliás, é seguramente por isso que a mentira foi inventada.

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Jetlag: lembrar-me de que em Portugal é uma hora menos e não quatro mais.

23.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 23-03-2024

Há um blues muito conhecido que diz "se não fosse a má sorte, não teria sorte nenhuma". Há dias em que preciso de lhe dar outra forma: "se não fosse a boa sorte, não teria sorte nenhuma." Hoje é um desses dias.

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Podia dizer "vendi a grande", mas isso seria um esconjuro e não uma afirmação. A ver se o palhaço do F. faz a transferência amanhã, antes de mais nada. Se houvesse uma e uma só ocasião em que a máxima "só conta quando está lá dentro" se aplicasse, seria esta.

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Sexagésimo séptimo aniversário da S.

Parabéns, miúda. Foi um longo caminho desde oitenta e dois, não foi?

Foi. Tão grande quanto a minha gratidão (que seria ainda maior se lesses isto de vez em quando).


20.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 20-03-2024

«Contente-toi de savoir que tout est mystère :
la création du monde et la tienne,
la destinée du monde et la tienne.
Souris à ces mystères comme à un danger que tu mépriserais.»
Omar Khayyam.

O jantar foi agradabílissimo, na Paillote Cayali. Como não estava sozinho pude comer os meus boudins créoles sem ser obrigado a encomendar um prato. Fui com a tripulação do B. e com o seu hóspede D., um québécois super-simpático (isto é um pleonasmo, eu sei). Durante o jantar falámos de Khayyam - donde as citações acima e abaixo - e chegado a bordo o Youtube propõe-me ouvir Evanthia Reboutsika.

«Au printemps, je vais quelques fois m'asseoir à la lisière d'un champ fleuri.
Lorsqu'une belle jeune fille m'apporte une coupe de vin, je ne pense guère à mon salut.
Si j'avais cette préoccupation, je vaudrais moins qu'un chien.»

Se eu me preocupasse com a minha salvação valeria menos do que um cão, diz Omar num verso que não conhecia. Este verso resume tudo o que há para saber sobre a vida. (O que de resto só prova que eu não sabia nada sobre a vida, até hoje. Até agora, mais precisamente.)

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Três fortíssimas razões para aprender grego: Evanthia Reboutsika, Eleni Karaindros, Cavafy, Angélique Ionatos (às vezes). Talvez fosse conveniente alterar a ordem, mas isso deixo ao cuidado de cada um. Também pode procurar outro nome: Katerina Fontinaki. Deixo essa tarefa para depois. 

Já vais em cinco, pá.

A quantidade de vidas que não vais viver é vertiginosa.

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Tarefa para os próximos três dias: preparar o S. D. para um charter de proprietário. Owner's charter, no original. Há expressões intraduzíveis, mesmo que as palavras existam em português (neste caso. Podia ser francês, espanhol ou inuit, seria a mesma coisa). As palavras têm uma história, uma carga emocional, vêm albardadas como mulas. Charter de proprietário não tem nada a ver com owner's charter, é como comparar um balão daqueles que os miúdos enchem nas festas quando está cheio com outro quando está vazio. Talvez no fundo seja só uma questão de volume. Não, M. M.? Não sei.

Felicidade e puzzles

«Nos tempos em que eu era feliz...» Aonde é que eu já li isto? Não sei. Anda por aí espalhado em todo o lado. Nos tempos em que eu era feliz... Nunca vi «Nos tempos em que eu serei feliz.» As pessoas associam a felicidade mais facilmente ao passado do que ao futuro. Como se tivessem deixado de acreditar na possibilidade de ser felizes um dia. Têm razão em metade: a felicidade do passado pode ser ilusória, simples resultado da memória. Contudo, a esperança não é melhor. Aliás, acho que ainda é pior, induz em erro mais facilmente. De qualquer forma, a felicidade está sobreavaliada. Atribui-se-lhe demasiada importância.

Pelo menos é o que eu penso. Nâo vivo para ser feliz. Vivo para viver, apenas. E viver é uma mistura grande de felicidades diversas, infelicidades, chatices, vitórias e derrotas - grandes ou pequenas. Viver é isto que faço, todos os dias e a mais não aspiro. Verdade seja dita, é uma mistura bastante complexa. Duvido muito que melhorasse com mais ingredientes. Mar, sol, mastros e cascos, rum, cerveja, solidão, trabalho, palavras, planos para o futuro e para o passado - temos de refazer o nosso passado, quotidianamente, tanto quanto o presente (por isso fomos tão felizes antigamente, não e?) - fotografia, luz, formas, sonhos, netos... Não sei. É uma mistura bastante rica, assim como está. O que não significa que seja explosiva, atenção. É rica, só. 

Talvez felicidade seja esta pequena junção das peças do puzzle, pouco a pouco, muito devagar, vê-lo a completar-se, primeiro as bordas e daí para o centro, deixando o céu para o fim. Pelo menos era assim que o meu Pai, grande apreciador deles (comprava-os em na Cornualha, aonde estava meses de standby) nos ensinava. Primeiro as bordas; depois o centro; o céu no fim. Começamos por nos definir, a seguir preenchemo-nos e lá para o fim, o resto. O que é importante é que o puzzle seja grande, difícil e complexo. A felicidade não faz parte da peças.

18.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 18-03-2024

À atenção do mundo: nunca gostei muito de ti. Suportei-te na medida em que tu me suportaste: pouco e na condição de me pôr na alheta rapidamente. É mais fácil ser eu a desaparecer do que tu, não é? É, claro. Para tu desapareceres eu teria de enterrar a cabeça na areia, se possível na caixa do gato. A qual não foi mudada há tanto tempo que já nem ele lá vai. Prefiro ter-te à minha frente. Luta de igual para igual: eu contra o mundo, o mundo contra mim.

Parece uma luta desigual, mas não é. O mundo fragmenta-se em bocadinhos. Já eu enfrento-o inteiro. Para ganhar basta-me escolher o fragmento contra o qual vou lutar hoje. Antes do jantar. Depois será provavelmente outro. Sun Tzu teria decerto aprovado esta estratégia: divide o exército inimigo em pedaços mais pequenos e depois dizima cada uma dessas partes. Se possível depois do jantar, estarás mais propenso à reflexão. 

As guerras ganham-se assim: muita reflexão e o mínimo de acção. 

Podia ser pior

Aviso à navegação: pilotar um bote grosso é como conduzir um automóvel no mesmo estado.

Com uma vantagem: há menos botes grossos. O problema não é estar grosso. É não ter luz.

Enfim, tenho o telefone. Podia ser pior. Também podia não estar grosso. Podia ser muito pior.

Análise de risco

 1 - Variáveis

a) Vim para a dinghy dock mais longe de bordo porque o objectivo era fotografar o mangal;
b) Estou grosso, porque vim ao Boko beber pilas conadas;
c) Está noite e não tenho luz nenhuma, pelo que terei de fazer o trajecto sem luz no bote, coisa que execro.

2 - Conclusões

a) Terei de ir devagar;
b) Terei de me manter alerta;

Assim exposto, parece-me que posso ir para bordo.

Assim imposto, terei de ir para bordo.

O que se pode melhorar

Resultado: venho ao Boko beber Piñas Coladas (pilas conadas, diz uma amiga minha num dos melhores trocadilhos da língua portuguesa). Não é nem a melhor nem a pior piña colada da minha vida. Está algures pelo meio. Sou contra esta mania de procurar «o melhor de». Devemos satisfazermo-nos com o que temos, mesmo que não seja o melhor de, que é muito relativo. Quem quer sair com a mulher mais bonita do mundo? Eu não. Quem quer navegar no barco mais bonito do mundo? Eu sim. Quem quer o melhor cocktail do mundo ? Eu sim, se for um painkiller no Soggy Dollar bar. Eu sim, se for uma Piña Colda no Novo Bar Lisboa, em Palma. Eu sim, se for um Alexander no Procópio ou no Pavilhão Chinês em Lisboa. 

Devemos lutar contra a tentação do «melhor de», excepto se essa tentação se referir a nós próprios. Somos a única coisa que podemos melhorar. Tudo o resto não passa de uma passagem de modelos num filme de Pasolini.

Um viva aos maus feitios

Das coisas curiosas que nos acontecem nesta vida. J. tem uma péssima reputação aqui no burgo. Dele dizem que é competente e sabe o que faz, mas tem um feitio fdp. Hoje veio a bordo instalar o plotter novo. Dizer que foi adorável é insuficiente. Aprendi duas ou três coisas com ele e o plotter foi instalado em menos tempo do que preciso para o escrever. Pergunto-me quantas vezes o mau feitio dos outros não é uma resposta à nossa incapacidade de lidar com o «mau feitio». Devo dizer que esta reputação não é de hoje mas devo igualmente dizer que foi hoje que explodiu.

Ou então: os maus feitios atraem-se.

17.3.24

Inovações na área do marketing

"Eles" dizem que a mínima se fica pelos vinte e quatro mas a minha sensação térmica não passa dos dezanove ou vinte e tenho de me tapar. Vá lá que um lençol chega. Não me imagino com um cobertor por cima.

Por falar em sensação térmica: os media (não sei quais, não aprofundei) anunciam uma sensação térmica hoje no Rio de Janeiro de sessenta graus (tudo isto em Celsius, claro). A temperatura máxima foi de quarenta, coisa longe de ser rara naquela cidade. Os jornalistas - ou alguém por eles - foram buscar a sensação térmica,  porque lhes permite, pensam eles, aumentar a credibilidade e por conseguinte as vendas.

Não quero entrar muito em pormenores, mas para uma sensação térmica divergir em cinquenta por cento da temperatura real, sobretudo positivamente, é preciso que o "sensor" esteja duas horas à torreira do Sol, cheio de cobertores e com um bom anorak, coisa que a maioria das pessoas sensatas evita fazer.

Aqui chegado, ajudado pelo frio percebi tudo. Como toda a gente sabe, o quociente de inteligência é uma média com uma distribuição bastante regular de cada lado da curva. Os "órgãos de comunicação social", contudo, pensam que o lado esquerdo do espectro (o das inteligências inferiores a cem) tem mais gente do que o lado direito. Vai daí, começaram a dirigir as suas publicações para esse segmento do mercado. As vendas começaram a cair e os ditos "órgãos" (aspas porque é irónico, nas duas ocorrências) analisaram, pesquisaram e hey, presto, encontraram a solução. Basta contratar, para redigir as notícias, pessoas que tenham algo em comum com o segmento alvo.

Assim nascem "notícias" (aspas porque é uma piada) como a da sensação térmica de sessenta graus quando o termómetro marca quarenta.

Não tenho a certeza que resulte, pelo menos na imprensa escrita, passe o pleonasmo. Contrariamente a ver televisão, ler jornais é uma actividade tradicionalmente reservada a pessoas do lado direito do espectro. Mas que é uma experiência louvável é. Humana. E é também uma inovação na área do marketing. O bom velho Kottler deve estar a bater palmas. 

Em memória de Nuno Júdice

Em memória de Nuno Júdice, um haiku de Bashô:

"Oh! Anda ver
uma bola de neve
a arder."

16.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 16-03-2024

Ando com a pele sedenta de sol, essa é que é essa e é tanta a sede que não há sol que lhe chegue.

A manhã foi a trabalhar com o T. no bote e no forro do camarote de bombordo. À tarde ia todo lampeiro para o meu encontro com os ioles mas foi tudo anulado. Passo os pormenores porque não me apetece pensar nisso agora. Fiz algumas fotografias jeitosas da praia, mas a frustração, a raiva e o desânimo eram demasiado fortes e acabei por pegar no bote e ir a Sainte-Anne, aonde tomei banho, me enchi de sol e comi um gelado acompanhado por um rum (quando penso que daqui a uma semana estarei no Cláudio nem acredito). No regresso ainda fiz um desvio para ir ver as Salines mas este bote não é feito para isso e voltei para trás. 

As fotografias não ficaram más mas estou demasiado cansado para as escolher. O raio desta operação continua a consumir-me uma energia louca, apesar de estar praticamente convalescido. Mai-lo sol, claro e o trajecto no bote. Vou comer um bokit ao Liv e depois venho para bordo diluir-me nesta mistura de sono, noite e cansaço, mistura essa que me põe a dormir com uma facilidade da qual não chego sequer a aperceber-me.

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O objectivo é entregar o S. D. num brinco e é muito difícil explicar o gozo que me dá a antevisão dele a brilhar de limpo e de arrumado. Deve ser mais ou menos o equivalente do prazer que têm aqueles tipos que lavam os carros todas as semanas. Pu o do marido que leva a mulher à ópera e a imagina toda aprumada, maquilhada e linda.

Ou então é simplesmente brio. Fazer bem ou não fazer - pelo menos como objectivo porque isto da perfeição é só para os outros. A mim não saiu na rifa, essa crápula. O prémio que ganhei não é bem um prémio: é esforçar-me. Há gajos a quem tudo sai sempre bem e à primeira. Os semideuses do outro - devem de resto ser os mesmos do que os meus. Tudo semideuses. Eu não. Tenho de tentar, esforçar-me, apontar para um objectivo que nem sequer é muito ambicioso: fazer bem ou não fazer de todo.

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Mark, o dono ou gerente ou empregado a tempo mais do que completo do Liv é adorável. Está casa é cada vez mais a minha cantina, agora que perdi de todo a vontade e a capacidade de cozinhar. É perto do barco e foge à regra número um dos restaurantes na Martinica: se é mau é caro e se é bom é caríssimo. 

Caldos lexicais e civilização

Talvez a diferença entre a civilização e a falta dela seja puramente lexical. 

Na civilização,  sim é sim, não é não e talvez é talvez. Na sua ausência, tudo é um indefinível caldo de talvez. É preciso saber ler as vírgulas e os espaços entre as palavras; e muitas vezes nem isso é suficiente. 

15.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 15-03-2024

A Joan Armatrading diz que tem sorte porque pode passar por baixo de uma escada. Logo de seguida vem a Sandy Denny perguntar-me quem sabe para onde vai o tempo. Não tarda estará o Paul Simon mai-los diamantes nas solas dos sapatos. 

Não tenho resposta a nenhuma destas questões. Nunca experimentei passar debaixo de uma escada, não vá o diabo tecê-las; não sei para onde vai o tempo - nem quem o fez sabe, quanto mais eu; e não tenho diamantes em lado nenhum, muito menos nas solas dos sapatos. Não percebo nada destas listas do YouTube mas sei uma coisa: mais vale um minuto disto do que meia-hora de Eixo do Mal. Parece que é a duração do programa. Só ouvi talvez minuto e meio até o grilo falante misturar Milei e Ventura. Passo para a música e daí para Paul Simon. 

Há músicos assim, um bocadinho por cima da esfera da música. Começo a nomeá-los e são tantos que me pergunto se não serão esses a esfera da música. Ignoro: não sou musicólogo. A única coisa que sei de música é que alguma dela tem em mim o efeito contrário dos disparates que oiço na televisão quando tenho o azar de por lá passar.

Bom, isto precisa de um bemol. É verdade que por vezes me falta jeito para ouvir um dos intervenientes num programa chamado Guerra Fria. Mas o outro compensa largamente. Também gosto de ouvir o Ricardo Araújo Pereira. E o Ricardo Arroja, embora nunca me lembre de o ir ver.

Será que com esta lista posso obter a nacionalidade portuguesa?

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Oiço barra vejo o Graceland ao vivo. Adoro este disco do princípio ao fim, o fim não sendo aonde o disco termina. É muito depois. Este concerto marca provavelmente o fim do sonho pós-apartheid na África do Sul. A partir dali foi sempre a descer.

O Ocidente é a reserva intelectual do mundo. Intelectual e moral, apresso-me a esclarecer. Talvez devêssemos entabular uma vasta interrogação,  um vasto exame de consciência, como lhe chamam os católicos. Devíamos pôr os mitos de lado, por um momento, chamar os factos e debatê-los e falar deles.

É inevitável, quer queiremos quer não. Quanto mais cedo melhor.

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Um filho de trinta e cinco anos já não é bem um filho mas tão pouco é uma pessoa adulta de per se. É uma espécie de ser híbrido, metade feita por nós e metade feita por ele e um gajo nunca sabe de qual dessas metades deve estar mais orgulhoso.

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Das mudanças de status ao longo da vida: durante muito tempo o V. era meu irmão. Hoje, eu sou o irmão do V. Durante ainda mais tempo o T. era meu filho. Hoje sou eu o pai do T. 

Duas sortes. Muito pior é ter sido durante muito tempo filho do comandante Serpa e hoje não haver comandante Serpa. É uma das formas da solidão e a mais inultrapassável de todas. 

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PS - A sequência lógica de Graceland é o African Marketplace, de Dollar Brand (ainda se chamava assim). E tem Carlos Ward no sax.

O que os olhos viram

Quando olha para uma mulher, os olhos de Artur seguem um trajecto independente da sua vontade. É sempre o mesmo: mamas, olhos, pernas. A primeira vez que viu Helena, entre os olhos e as pernas olhou para o anelar da mão esquerda. Apercebeu-se imediatamente da anomalia, mas era tarde para a corrigir. O olhar é como as palavras. Não se pode desolhar aquilo que os olhos viram tal como não se pode desdizer aquilo que a boca pronunciou.

Não tinha aliança.

Daqui, dali e dacolá

Há pouco mais de meia dúzia de anos na Flórida descobri que sou europeu - do Mediterrâneo. Agora, na Martinica descubro que sou português. Terei de viver em Portugal para saber de onde sou?

13.3.24

Da fundamental questão da atracção ou falta dela entre iguais

A estupidez não me grama. Nada há que eu possa fazer a esse respeito, tanto mais que não tento sequer fazer-me apreciado por ela. [Adenda: não tento fazer-me apreciado por ninguém, desde que descobri que nem por mim o sou e essa descoberta já tem quase meia dúzia de dezenas de anos.]

Verdade seja dita: não é só a estupidez. As mulheres bonitas tão pouco me perseguem. Salvo algumas raras excepções, apresso-me a esclarecer. Já me saíram algumas na rifa. Aliás, agora que penso nisso, o mesmo se passa com as feias: não andam propriamente atrás de mim, resposta simétrica à minha atitude para com elas. (Há igualmente excepções, nos dois sentidos.)

Na verdade, passa-se com as mulheres o que se passa com o resto da humanidade: só as inteligentes vêem em mim qualquer coisa que as intriga. Dura pouco tempo, felizmente. Mandam-me passear rapidamente. Uma vez tentei namorar uma miúda burra que nem uma porta, só para ver, mas também não funcionou. Despedi-me dela ao fim de dois dias.

Também fiz várias combinações beleza / inteligência - não se excluem, qualquer idiota o sabe ou devia saber. O que varia são as proporções.

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Resultado ao fim deste longo périplo pela minha vida afectivo-intelectual: estou quase no ponto de partida. Avancei pouco nesta incessante pesquisa pelo sentido da vida que é a minha vai para mais de cinco décadas.

Porquê quase? Porquê pouco? Porque deixei de fora a amizade. Infelizmente nunca tive amigos idiotas, pelo que me é difícil fazer comparações. Mas já tive colegas de trabalho e contactos com pessoas menos dotadas intelectualmente. O que nos deixaria no ponto de partida, não tivesse eu uma pergunta a fazer: como vou explicar isto aos dois neurónios que me restam?

12.3.24

A forma do tempo e o tampo da mesa

As discussões em torno de a Terra ser plana aborrecem-me. Acho-as maçadoras e inúteis. É como discutir se o ar é verde, azul ou transparente. 

Em contrapartida, parece-me interessante discutir a forma do tempo. É esférico ou é plano? Tendo mais para a segunda alternativa. Se fosse uma bola, nós poderíamos percorrê-la sem fim. Ora toda a gente sabe que um dia o tempo acaba para cada um de nós, mesmo se continua para os demais. Isto só se pode explicar com um tempo chato como o tampo de uma mesa: percorrêmo-lo das mais variadas maneiras, cada um com a sua.

Um dia aproximamo-nos demasiado da borda e caímos. Os outros continuam as suas deambulações,  os seus errands, que linda palavra têm os ingleses. Mas para nós o tempo acabou. Caímos da mesa.

11.3.24

Falcatruas

Até amanhã, camaradas. O nosso tempo passou. Era ontem. Hoje a música é outra. Talvez a nossa volte amanhã, quem sabe? É pouco provável. O tempo anda às voltas, é verdade, mas essas voltas não se sobrepôem. Fazem uma espiral. Há quem pense que essa espiral sobe e quem diga o contrário: desce. Eu penso que ora sobe ora desce, como um pêndulo um bocadinho estonteado. Nem a gravidade consegue controlá-lo. O trajecto é uma mistura de gravidade, acaso, amor, dinheiro, ganância, engano, erro, incompetência, sonhos. O acaso é isso tudo posto numa misturadora. Não há maneira de o controlar, por muito que se ponha o peso numa das componentes. São como sabonetes, todas elas: pressionas e ela escapa-se. Já viste o que seria um futuro feito de sonhos? Ou de ganância? De incompetência?

Deixa o futuro em paz, homem. Entretém-te com o passado, finta o presente, chuta à baliza que não sabes aonde está. Talvez a bola a encontre, talvez não. O pêndulo. A espiral. Agarra as palavras como a Chavela Vargas agora faz, parece um guarda-redes a defender uma bola particularmente difícil, agarra-a contra o peito deitado no chão. E no último segundo a bola sai-lhe das mão e entra na baliza. As palavras encontram sempre o seu caminho, por muito bom que seja o guarda-redes. Até amanhã camaradas. O tempo passou. Não nos resta mais do que a memória, essa falcatrua.

Keith, j'arrête?

Faço parte daquele grupo de pessoas que prefere os Sun Bear Concerts ao Köln Concert. De um ponto de vista musical. Porque de um ponto de vista da vida, não é verdade. Isto se considerarmos, como considero, que a memória é a vida e que sem memória não há vida que nos valha. Ouvimos a música que vivemos e esta ambiguidade do verbo é soberba: vivemos no presente e vivemos no passado.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 11-03-2024

A mercearia / libre service Lamon está para a vida no Marin como um salva-vidas para um navio de cruzeiro: serve para tudo, incluindo salvar vidas. É lá que compro os meus cigarros avulso (sessenta cêntimos cada contra cinquenta em Fort-de-France, a vida aqui é mais cara), raramente um gelado, de vez em quando uma garrafa de rum, de vinho ou de cerveja. Hoje comprei uma Adelscott, a cerveja chic do Marchand de Sable quando lá trabalhava. Não a consegui sequer acabar. E ainda há quem pense que no passado tudo era melhor. Hoje - deve ser a primeira Adel que bebo em trinta ou quarenta anos - perguntei-me como raio conseguia não só beber mas apreciar aquilo.

Sentei-me num banco do terminal marítimo a fumar um dos cigarros, beber a cerveja e olhar para o mar, coisa que evito geralmente fazer mais de doze horas por dia.

Há fundamentalmente duas coisas que dificultam muito a minha integração na economia portuguesa. Uma é a filosofia "isto chega". Não vou ao extremo de dizer que só o melhor chega mas penso que só o bom chega. A área de trabalho é o bom, não o assim-assim, o mais ou menos ou o mais barato. Escolhe-se o mais barato do bom, não o mais barato de tudo.

A outra é o "depois se vê". Não gosto do depois. Gosto das regras bem claras e explícitas antes do começo do jogo e não depois.

Por isso gosto tanto do norte do país. Está mais perto de mim e eu dele. Não fosse o tempo...

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A chuva continua. É exasperante. Antigamente pensava ser impermeável. Vinte anos de Suíça fizeram-me ver que não sou.

Gosto das pessoas do norte de Portugal e do clima do Sul.

Não sei como compatibilizar isto tudo. Vou deixar o tempo fazer o seu trabalho, que é tomar decisões por nós quando nós não as tomamos a tempo. 

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Acabei por jantar a bordo. O Liv, aonde me preparava para comer um bokit, está fechado às segundas, Fiz um molho de tomate, juntei-lhe pedaços de um resto de frango que tinha no frigorífico, precedi-o de e acompanhei-o com um planteur maison, pus a Pietra Montecorvino no Youtube e ecco, signora, só me falta lavar a loiça.

Conheço muita gente que detesta a tarefa, para mim nobre, de lavar o que ficou da refeição. É um momento de calma e de reflexão, como o sábado antes das eleições com a vantagem de ser depois. Pode reflectir-se sobre o que havia a mais ou a menos, sobre o que nos trouxe aqui, sobre o que nos levará alhures, sobre - até - aonde será esse alhures.

Não se pode dizer que não gosto desta indefinição geográfica. Gosto. Descobrir uma terra é como descobrir uma mulher, com a vantagem de haver mais terras do que mulheres (pelo menos para mim). Só me falta uma coisa: um lugar para os meus livros. Nunca, até hoje, me ocorreu pensar que os livros são - ou podem ser - uma âncora, um ferro em linguagem de mar. Estar fundeado, expressão que um terráqueo traduziria por estar ancorado, para mim vai ser estar livrado. A minha casa será aonde os meus livros estarão. E aonde está a minha língua, também. Nada de interpretações lascivas, por favor.

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À Montecorvine segue-se uma dessas misturas do you tube. Começa bem, com a Eleni Karaindrou, continua igual com o Kevin Ayers, dali passa para a Evanthia Reboutsika. Não há solidão que resista a um fluxo constante de boa música, rum e alísios.

O espelho e as dúvidas

Tenho sessenta e seis anos e tenho andado a leste (e a oeste, a norte e a sul) desde que me conheço. O meu Pai tinha razão quando me acusava de "cultura livresca", de falta de contacto com o mundo real. (Ele tinha sempre ou quase, verdade seja dita.) O Facebook, para além de ter aumentado exponencialmente os meus conhecimentos de futebol recentrou-me os pontos cardeais (há dezasseis anos não sabia quem era o Ronaldo, por exemplo. Hoje sei e até o reconheço nas fotografias). Tenho um pouco menos a sensação de viver num "planeta paralelo" (aspas porque cito a minha filha).

Mas esta sensação é renovada todos os dias. Hoje aprendi, por exemplo, que há vestidos para morenas - e portanto para loiras, ruivas e acastanhadas, suponho.

Este conhecimento veio-me de uma senhora que percebe imenso de roupas e modas. Eu, cujo guarda-roupa de Verão consiste, integral e exclusivamente, em dez pólos brancos da Zara, C&A e - o último que me resta, o que prova que sou um rapazinho poupado - da Walmart e quatro calções azuis da Napapijri (comprados nos saldos, apresso-me a esclarecer) fico banzado. 

Será que é a combinação de cores adequada para o meu cabelo? Para o meu corpo sei que não é, mas isso não é difícil: nem nu me adequo ao meu corpo, quanto mais vestido. O Facebook, além de me ensinar coisas, faz-me pensar. Coisa essa de que não me queixo, claro. Toda a gente sabe que o cérebro, tal como o fígado e os bíceps, é um músculo. Quanto mais trabalham mais se fortalecem.

Devo começar a olhar para o espelho, tarefa enfadonha s'il en est. E de que, entre nós, duvido muito seja capaz.

10.3.24

Deve estar a gozar comigo

Debruço-me por vezes sobre o sorriso das pedras do caminho. Nada de especial: vou a andar e sem querer - sempre sem querer - dou um pontapé numa pedra.

Em resposta, ela provoca-me uma dor muito forte no pé e sorri-me abertamente. 

9.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 09-03-2024

Sou pela simplicidade. É preciso ser simples. Amar coisas simples: um almoço reduzido em St. Anne (La Cour Créole, que aconselho vivamente) passeio de bote com o T., caril de camarão ao jantar, a bordo (tenho caril até à próxima glaciação), cerveja e DV no poço a ver passar o cortejo de luzinhas verdes dos táxis. É sábado e os clientes dos charters não param de chegar. Parece uma procissão. Tenho sorte: no meu pontão só há uma empresa e nem sequer é das maiores. O horroroso barulho dos sacos com rodas nas madeiras - esta gente vei para um barco como se fosse para um hotel - não dura muito. O último grupo que chegou deve ser polaco. Era pelo menos do Leste. Sempre houve muitos aqui, não sei porquê. 

Agora basta deixar o dia acabar, simplesmente (não sei se deva pôr uma vírgula entre acabar e simplesmente.) Vai acabar: lavar a loiça, beber o resto do planteur que comecei antes de comer, pensar que daqui a duas semanas estarei na minha amada Palma, lembrar-me de que posso emigrar de tudo menos da língua. E do mar, objectivos contraditórios: o meu mar recusa-se terminantemente a falar português. 

Há duas coisas que o impedem: a preferência que os portugueses têm pela ignorância, pensando (erradamente, claro) que é mais barata do que o saber; e a que têm pelo que é barato pensando (erradamente) que o barato é mais barato do que o caro. Não é. É muito mais caro.

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Chove de novo. Este ano está insuportável. Apetece mandar o Niño para o inferno dos climato-histéricos explicar-lhes que fascismo é isto: chuva e mais chuva. Vá lá que hoje não choveu durante o dia. E explicar aos ditos histéricos que isto não tem nada a ver com o clime. Tem a ver com a meteorologia. São duas coisas diferentes, se por acaso, como o cu e as calças do velho dito português.

Pergunto-me como vai ser a travessia. Há dois anos foi completamente atípica e não houve El Niño. Este ano posso levar Iridium e Starlink e tudo isso, mas não estou muito para aí voltado. Continuo a pensar que os custos e os inconvenientes não compensam as vantagens.

De como a passagem de táxis com a luzinha verde acesa no tejadilho me traz à memória uma citação de Emile Cioran e alguns pensamentos lúgubres

«Les abouliques, laissant les idées telles quelles, devraient seuls y avoir accès. Quand les affairés s'en emparent, la douce pagaille quotidienne s'organise en tragédie.» No lugar de affairés podemos pôr políticos par souci de clarté e este aforismo - de longe, um dos meus favoritos de Cioran - prova uma vez mais, como se fosse necessário, a justeza de visão, a pontaria do homem.

O curioso disto, claro, é ver que até a noção de entropia varia com o ponto de vista. Para o idiota do ou dos políticos que quiseram acabar com os taxico (e conseguiram, infelizmente. Sobreviveram pouquíssimos e há cada vez menos) esta evolução é neguentrópica. É sinónimo de ordem, de «qualidade» (aspas porque é irónico). Para uma pessoa sensata, a doce desordem do antigamente era mil vezes mais bonita.

Todos nós, suponho, chegamos a uma idade em que sentimos que o mundo que conhecemos, amámos e de certa forma ajudámos a fazer nos aponta, gentilmente, a porta da rua. No seu afã de prolongar a vida a medecina moderna enganou-se de alvo.

8.3.24

Figuras da linguagem - antítese

Os meus dias estão cheios de um imenso vazio de ti.

7.3.24

Felicidade, plenitude e outras formas geométricas

Dois tons de azul e muitos de verde. Quem quer que tenha estudado teoria das cores sabe que estas duas tem uma em comum: o amarelo. Penso imediatamente num triângulo isósceles: verde e azul com o amarelo no vértice. Dentro desse triângulo está o branco dos cumulus

Dentro desse triângulo está a felicidade, da qual ele é parte integrante. A embrulhá-lo estão os alísios, hoje finalmente razoáveis (se bem um bocadinho fortes de mais para o que eu queria fazer logo de manhã, mas isso fica para outro dia). Azul, amarelo, verde, todos eles embalados por doze nós de vento,  mais coisa menos coisa. Os sinais do escaldão do outro dia desvanecem-se e tenho de novo a pele sedenta de sol. Não tenho a certeza de que seja só a pele. 

Aposto que a felicidade também. 

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Fui a Fort-de-France no carro do T. Pergunto-me como fui capaz de fazer esta estrada todos os dias e respondo-me de seguida: o que tem de ser tem muita força. 

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Em breve terei de lá voltar. A loja que vende uma das coisas de que preciso estava fechada.

Mas almocei no Pain de Sucre, que a cada vez avança na categoria "restos du coeur", fui beber um rum ao Impératrice, aonde o empregado se desculpou. Selámos o acordo com o aperto de mão. Comprei cigarros no Sun & Fish, devo ter apanhado pelo menos duas multas, deixo-me embalar pelos balanços do S. D. e pergunto-me se um triângulo isósceles com nuvens brancas no interior e ventos alísios no exterior não será uma das formas geométricas daquilo a que alguns chamam felicidade e eu também, às vezes.

Se bem plenitude seja igualmente aceitável.

6.3.24

Sono

Tens sorte, dizem-te. És capaz de adormecer no fosso da orquestra enquanto ela ensaia. Respondes distraidamente que sim, é verdade. Adormeces em qualquer sitio, a qualquer hora, qualquer que seja o barulho que te rodeia. Adormeces como os miúdos escorregam pelo corrimão de uma escada.

O que ninguém sabe é quão longa essa escada é. Pode vir de uma mezzanina como ser de um arranha-céus.

5.3.24

Em breve, sempre

Acordo de manhã com o cheiro do café e do bacon misturados ao teu. Penso na sorte que tenho: bacon muito frito, café forte e tu, nua à minha frente quando saio do camarote e chego à cozinha. Talvez haja melhores maneiras de começar um dia. Talvez haja outros homens com esta sorte. Espero que sim, por eles; espero que não, por hoje. E por amanhã,  claro. E por sempre, se bem ninguém saiba hoje o que sempre quer dizer.

Nem ontem se sabe, quanto mais sempre. Hoje sei: tu, o pequeno-almoço, o M. M. que navega leve e solto como se não houvesse outro tempo senão sempre.

Sempre é isto: qualquer coisa que só os dois sabemos,  de manhã no Mediterrâneo, tu a sair de quarto e eu a entrar, a Tramuntana à vista. Lembro-me como se tivesse imaginado e não como se tivesse visto. Em breve o cheiro da terra chegar-te-á à pele desnuda. Em breve nos amaremos no poço como se sempre não existisse. Em breve dir-me-ás:

- Amo-te. Queres mais café?

Ferocidade e outras queixas

Instala-te tranquilamente no fim do dia. Passaste-o a saltar de pedra em pedra como num riacho, não escorregaste uma única vez, a chuva e o vento tiraram-te uma das pedras de debaixo dos pés mas não te preocupaste muito. Mais muitos haverá, dias como este, pedras no riacho. Despedes-te gentilmente da luz, olhas à tua volta. A paisagem é-te familiar: habita-la há quase dois meses. Sentes que a calma esconde turbilhões, sabes-lhes o nome mas não os queres nomear. «Não se acorda o cão que dorme». Os aguaceiros - squall é não só mais bonito mas mais exacto - esperam-te. Sabes-te preparado. Mesmo quase ansioso: tudo é melhor do que estes fins de dia que se esvaem de seixo em seixo, tão redondos na aparência como escorregadios mal lhes pões um pé em cima. Os dias são esta mistura de espera, palavras, trabalho. Todos iguais. Só mudam as proporções. 

Instalas-te tranquilamente numa pequena e calma torrente de palavras. Um riacho, se quiseres. No meio desse riacho há pedras, há pessoas e sonhos e ideias que o atravessam, pé ante pé. Algumas são escorregadias. 

A mais feroz das prisões é não te poderes queixar. 

Transmutação

Não é a primeira vez, longe disso, que tenho este problema: os proprietários ou funcionários de um restaurante "adoptam-me" e começam a servir-me doses desproporcionadas de comida. Ou, neste caso (K., mantenho o anonimato não vá o diabo tecê-las), bebidas. Desde há alguns dias, os meus ti'punch perderam o prefixo. Transmutaram-se em Giant'punch.

Não me queixo, claro, por muito que tenha de esbracejar para acabar o segundo.

4.3.24

Rotina

Por muito apaziguadora que seja a palavra rotina, é forçoso - ou sensato, se preferirem - reconhecer-lhe os limites. Amar, por exemplo, a mulher da tua vida nunca será uma rotina. Se fosse, ou não seria amor ou não seria a mulher da tua vida.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 04-04-2024 / II

A chuva ainda não parou. Limitou-se a abrandar até ser quase imperceptível. Mas deitado no beliche oiço-lhe os pingos. Em miúdo li um livro que contava a vida a bordo de um submarino alemão na segunda grande guerra. Na altura impressionou-me bastante, tanto mais que a maioria dos livros de guerra que lia eram vistos pelo lado dos aliados. Uma das coisas de que me lembro é da descrição do que os marinheiros sentiam quando ouviam o ping de um sonar. Lembro-me sempre dessas páginas quando oiço a chuva assim, escassa, gota a gota, pingo a pingo.

(Claro que não é comparável,  eu sei, escusam de me chamar exagerado ou pé-de-salsa ou coisa que o valha.)

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Mais uma conversa com o puto etíope. Desta vez falei também com a namorada dele, igualmente adorável. É novinha, deve ter pouco mais de vinte anos. Estão verdadeiramente apaixonados, querem casar ou viver juntos (pacser, para quem sabe o que isso é), mas isso implica uma estadia longa na Martinica e sem garantia de sucesso. O que ele quer, obviamente, é evitar que as autoridades o ponham num avião a caminho da Etiópia.

Disse-me que não precisa de um visa para entrar na Dominica. Vai tentar ir para lá.  Acabei por convidá-lo a beber uma cerveja a bordo. Se não conseguir encontrar maneira de o trazer - ou de o fazer apanhar um avião - lembrar-me-ei dele como ainda hoje me lembro do terror dos submarinistas quando ouviam o sonar.

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E ainda há quem acredite na bondade dos Estados.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 04-03-2024

Talvez se deva tomar conta de uma embarcação como se de uma mulher se tratasse. Talvez. Não é garantido: uma mulher pode, se quiser e souber, tratar de si. Uma embarcação não, apesar de ser igualmente complexa. Talvez «tomar conta» não seja a expressão adequada. Devemos tratar de uma embarcação e acarinhar uma mulher? Sim. Não. Sem carinho um barco não vai a lado nenhum, acaba mais dia menos dia num landfill qualquer, enquanto que uma mulher pode sempre encontrar outro homem. Tanto a mulher como o bote precisam de carinho, mas este não sobrevive sem ele e aquela sim, se quiser. E souber, claro.

Uma embarcação tem mistérios - as baterias, por exemplo. A electrónica. A mareação dos panos, trimmar em linguarejar moderno é uma coisa que releva tanto da magia como da sensibilidade e quem diz sensibilidade diz ternura, não é? É. Ver para lá do que está visível.

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Descubro com espanto que estamos não só em dois mil e vinte e quatro mas também em Março. A minha relação com o tempo é da ordem do incompreensível. Incompreensão mútua: nem ele me compreende, nem eu a ele. Não sei se compreender é o verbo correcto. Talvez «aceitar» seja mais adequado. 

Da relação entre releituras e arrumações

No seguimento de uma agradével conversa no FB a respeito de leituras e livros apercebo-me de que devo absolutamente começar a elencar os livros que leio. Ou melhor: não os que leio mas os que penso que um dia deverei reler.

É fácil: basta encontrar um sítio para arrumar os meus livros.

3.3.24

Diário de Bordos - Sainte-Anne, Martinique, DOM-TOM França, 03-03-2024

Aproveitei o empurrão de um impulso e peguei no bote para vir a Sainte-Anne. A meio caminho ainda pensei puxar até às Salines, mas entrou vento, lembrei-me de que provavelmente à tarde vai chover, o bote não é grande coisa (apesar de ser uma coisa grande) - não é de fundo rígido e para viagens de mais de uma piscina ou que não sejam numa torna-se rapidamente desconfortável - de maneira regressei ao plano original. Sainte-Anne é a estância turística do sul da Martinica. É uma vilazita bonitita e com uma boa vibração, seja lá isso o que for.

Quem não anda em fase de boas vibrações sou eu. A música do bar aonde me refugiei para escrever e beber uma cerveja entra-me pelo sistema e escangalha-mo todo, apesar de a vista ser linda e de a cerveja ser a Lorraine de sempre, cerveja de que gosto bastante, felizmente. O apartamento do T. é aqui. Queixa-se dos turistas - ou melhor, do tipo de turistas, mais français moyen do que devia ser permitido pelas regras do bom gosto, mais beauf do que se creria possível. Há uma estância do Club Med (aonde tentei parar inicialmente, pensando que já estava fora da área mas não, ainda estava no espaço deles e vim-me embora. Não querem dinghies amarrados ao pontão deles e eu tão pouco).

Um grupo de beaufs vem sentar-se à minha frente. A música fica ainda pior. Não sei como se chama este tipo de merda. Merda gigante, talvez. Ou merda sonoro-gigante. «Quel est le sommet du pléonasme? L'expression "un français moyen".» Vá lá, consegui pelo menos que a «responsável» (aspas porque cito, não porque duvide da função da senhora) baixasse o nível de som. O restaurante / bar chama-se La Dunette, tem uma localização privilegiada, como se diz nos anúncios de imobiliário e não me lembro de como é a cozinha. Aqui em Sainte-Anne o meu sítio preferido é a Cour Créole, mas hoje talvez experimente outro. Não sei.

Bom, mas vamos ao que interessa: a dor que me acometeu recentemente não resitiu a um par de paracetamol. Resta-me o incómodo, que também ele se atenua dia a dia. E resta-me esta fartura de tudo, este estar tão farto de tantas coisas que não sei sequer de que estou farto ou porquê. 

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Salvas todas as devidas proporções - são muitas, imensas, vastas - Sainte-Anne faz-me pensar em Colónia San Jordi, aonde espero ir daqui a pouco mais de três semanas, Inch'Allah.

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(Continuação)

Experimentei o La Daurade. Absolutamente recomendável, tanto pelo preço como pela qualidade. Ti'punch a dois e cinquenta. Boudins criolos muito bons (talvez com uma pontinha de canela a mais, mas isso deve ser estudado), frango boucané excelente. 

Depois vim para boredo e não comi mais nada o dia todo.

2.3.24

Do inconveniente de escrever

O único inconveniente de escrever é ter de me reler. É como beber cerveja quente. 

1.3.24

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 01-03-2024

O Google diz que a temperatura exterior é de vinte e seis graus mas eu não acredito. Não passa dos vinte e três. Vinte e cinco talvez no interior, isso sim. Estou com frio, tapo-me com o lençol até ao pescoço, encolho-me bem, todo encostado a mim, depois fico com calor, destapo-me, estendo-me, o ciclo repetir-se-á até adormecer. Tenho uma das vigias aberta, é aquela em que entra menos chuva quando ela vier, sinto a corrente de ar fresco do exterior, a dor de cabeça acompanha todos os movimentos, encostada a mim e parece que não sabe se há-de desaparecer ou aumentar. Tomo mais um paracetamol, não me lembro se é de quinhentos se de mil mas que se lixe, era o último e já deitei fora o blister. Quero que a dor desapareça, que o frio (isto é um exagero. Não é frio, é fresco) se mantenha, que o sono apareça e que amanhã seja um dia bom.

Penso no miúdo, não paro de pensar nele, ainda me lembro de ter entrado ilegalmente em França um bom par de vezes, uma vez foi em Hendaia, saltei a rede que separava as duas áreas na estação, ainda hoje estou para saber como não fui apanhado. Era ágil, então. Doutra vez fui recusado, em Dover, meteram-me no ferry de volta para o Havre, se não estou enganado, com um R encarnado, enorme, numa das páginas do passaporte.

Vou comer um iogurte. Deixei de pensar no puto. O iogurte é delicioso, de lichi, "com bocados" aspas porque cada vez que como um iogurte de frutas penso num senhor a quem chamava meio-maricas, talvez injustamente (não sei para que lado caía a injustiça), tinha uma mercearia em Cascais ao pé da casa de uma rapariga com quem namorava (eu, não o meio-coiso). Uma vez fui lá comprar iogurtes e ele perguntou-me "pedaços ou sabores" e eu não fazia a mais pequena ideia do que quereria ele dizer com aquilo de maneira perguntei-lhe e o homem olhou para mim quase com a mesma cara do gajo da Madeira quando lhe perguntei "quem é o Ronaldo?" Só que menos agressivamente, claro. A verdade é que a coisa com a miúda não correu muito bem e separámo-nos. Amigos mas separados. Nunca mais a vi e tenho pena. Acho que há vinte anos eu era muito estúpido. Ou ainda mais estúpido do que sou hoje, não sei. 

Enfim, há uma coisa que sei: essas asneiras todas contribuíram para fazer de mim um tipo melhor do que era, disso não tenho dúvidas. Só as tenho em relação à estupidez, mas essas são como a dor de cabeça. Acomodam-se em mim como se estivessem no sofá de uma sala com lareira e um cálice de Porto e um bom livro na outra mão. 

Não há paracetamol para algumas dúvidas, pois não?

Vistos

O puto entrou na Martinica de uma maneira completamente ilegal: veio num barco de Cabo Verde, mas como tinha perdido o passaporte no Mindelo o skipper do barco que o trouxe não o declarou à imigração. Agora quer ir comigo para Portugal. Tem a namorada em Paris.

É etíope, adorável, sabe navegar e tem o dinheiro que eu peço para a travessia.

Quem inventou a merda dos vistos e outras limitações às viagens devia ser pendurado pelos tomates e deixado a apodrecer ao sol. 

Liguei para o ex-SEF na Horta e nem pensar em levá-lo comigo nesta situação. "Precisa de um visto Schengen", diz-me o agente M., de resto bastante simpático. 

Não sei o que me revolta mais: se a merda dos regulamentos se eu ter crescido e ganhado juízo. 

Nesta última opção, não é bem revolta. É mais desprezo. Auto-desprezo.

Fiz o que pude para o ajudar. Não lhe tinha ocorrido ainda falar com a embaixada da Etiópia em França. Vai ligar na segunda-feira. Rezo para que consiga resolver a situação e ir ter com a namorada, mesmo sabendo que se for esse o caso irá de certeza de avião e não virá comigo. Pqp os vistos.

Os científicos e os primários

O primeiro prego no caixão do Iluminismo, o bico do sapato que abriu a porta a esta lenta e terrível queda na Fé em substituição da Razão foi a natureza "científica" do socialismo do séc. XIX. Deixou de se poder discutir, porque era "científico".

Quem não se lembra do carácter forçosamente primário do anticomunismo?