27.3.14

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 27-03-2014

Os dois ramos da árvore de que falava ontem caíram hoje. Deixei de trabalhar para o A.F. e o H.S. deixou de trabalhar para mim.

Todos sabemos o que é uma vitória de Pirro. Falta agora encontrar o conceito de derrota de Pirro: uma derrota com sabor a libertação.

Não é propriamente o primeiro dia do resto da minha vida, mas é um grande dia na minha nova vida.

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A maldade faz mal a outrém para beneficiar com isso. A estupidez faz mal a outrém e não beneficia com isso. A idiotia faz mal a outrém e com isso faz mal a si própria.

26.3.14

Diário de Bordos - Bocas Town, Bocas del Toro, Panamá, 26-03-2014

Não é que as aparências iludam; é que são o contrário da realidade, o exacto oposto. Visto de fora tudo parece calmo: venho para Bocas de manhã; passo muito tempo nos cyber cafés - o computador de bordo insiste em não funcionar -, falo ao telefone de vez em quando.

Não há melhor sintoma de tempestade do que esta calma de olho de furacão.

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Se fizesse uma árvore dos meus dias teria dois ramos principais - Artie e HS -; e cada um deles dividir-se-ia em não sei quantos ramos mais pequenos; e estes em raminhos. E nenhum parece dar flores; ou folhas, vá. De cada um deles só caem pedras do tamanho de cocos e com o peso do basalto.

Não faço a árvore: as raízes estariam secas como se estivesse em pleno Sahara e não numa das regiões mais pluviosas do mundo e induziria as pessoas em erro.

Há árvores no Sahara, não há? Poucas, eu sei; e espinhosas e pequenas. Mas há.

Há vida em todo o lado, mesmo num skipper e armador em Bocas del Toro cuja vida parece uma montanha russa gerida por um russo bêbedo num tapete rolante.

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O Panamá sendo o Panamá sei que a reparação do fuel do Artie vai levar tempo; eu sendo eu sei que desta vez não serei roubado. Já é qualquer coisa - pelo menos aprendi a lidar com o país. Não tarda começo a gostar dele.

Enfim, duvido. Impossível gostar de um país do qual não se gosta nem das mulheres nem da comida. As paisagens não as substituem. Nada as substitui.

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Há contudo uma coisa que devo reconhecer, e reconheço com tristeza: é muito mais apaixonante resolver problemas quando não há dinheiro.

Se esses problemas não forem, claro, uma horrível dor de dentes.

25.3.14

Experiência, vida

Já apanhei bebedeiras em mais portos do que aqueles em que tu estiveste sóbrio; já amei mais mulheres do que aquelas que te deixaram.

Estive sóbrio em mais sítios do que aqueles onde tu estiveste bêbedo; e ja fui deixado por mais mulheres do que quantas te amaram.

24.3.14

FN - II

A FN é um partido repugnante. Tao repugnante como qualquer partido comunista ou de extrema-esquerda. Que a repugnância colectiva se concentre à direita e esqueça a esquerda é para mim a melhor demonstraçao do poder das palavras.

A FN, a esquerda, factos e opinioes

A FN ganha eleiçoes em França e a esquerda comove-se. Confesso que nao percebo porquê. A base sociológica da FN é PCF. Isto nao é uma opiniao, é um facto. A FN partilha praticamente ponto por ponto o programa económico da extrema-esquerda - comparem-se o programa de Melenchon e da FN para as legislativas e ver-se-á que têm mais em comum do que a separá-los. E, finalmente, o racismo: é uma questao de palavras, só. Uns mostram-no para ganhar votos, outros escondem-no com o mesmo objectivo. Mas o racismo é igual. (Isto é uma opiniao, nao é um facto.)

(Com um pedido de desculpa pela da falta de tis. O teclado nao é inclusivo e que o desenhou nao pensou nas minorias lusófonas.)

23.3.14

Folga - II

Dei um dia de folga à realidade. Talvez ela devesse ser educada e retribuir.

Folga

O fim de um dia de folga. Acaba bem, melhor do que começou. Deve ser para isso que servem os dias de folga.

22.3.14

Hopper, Glass. Noite

Encontrei finalmente a música para estas noites: Philipp Glass. É isso: um quadro de Hopper com música de Glass.

Jantar improvisado - guisado de frango

Desta vez marinei o frango em rum. E sal, alho, tomate, sumo de lima, paprika, pimenta e orégãos.

Depois refoguei duas cebolas em lume vivo, juntei o frango, deixei-os aquecer juntos, juntei a marinada e voltei ao modo cozinha lenta.

A certa altura acrescentei água e fui comprar vinho - um passeio agradável pela selva (enfim, numa estrada que passa pela selva). Apanhei boleia, mas demorei mais do que se tivesse ido a pé.

Quando voltei pus as batatas, um ou dois copos de vinho depois as ervilhas e de repente estava a comer.

Precisa de um bocadinho mais de especiarias, mas a base é boa.

Injustiça, analogias

Cozinhar sem especiarias é como fazer amor com uma mulher sem mamas.

Isto é uma grande injustiça, claro. Já fiz amor com muitas mulheres que têm seios pequenos (tempo de ser educado) e foi muito bom, tão bom quanto... enfim, não entremos em pormenores.

É só mais uma prova de que tenho um leque limitado de analogias, nada mais. E de que não tenho especiarias a bordo.

Pôr-do-sol, Hopper

Um pôr-do-solo hopperiano. Em câmara lenta. As duas luzes da estação de combustível, brancas e potentes, de néon fazem contraponto ao alaranjado do céu. Agora percebo porque gosto tanto destes fins de dia. Hopper é o meu pintor favorito. E a câmara lenta a minha imagem.

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 22-03-2014

Por vezes penso que o Artie é como aquelas namoradas que já não amamos mas que mantemos por pena, ou por falta de coragem.

É preciso começar por dizer: o que aconteceu não é propriamente uma surpresa. O barco está parado há muito tempo, tanques de gasóleo cheios. Fungos e bactérias têm ali comida para se desenvolver, reproduzir, crescer, gozar e entupir todos os filtros que encontram pelo caminho.

A primeira vez que o motor parou foi duas horas e meia depois de termos saído. Troquei o filtro do motor, e fui limpar a outra extremidade da linha de alimentação. A segunda vez fui directamente à bomba; à terceira voltei para trás. Não havia maneira de chegar a lado nenhum e a verdade é que pensei que não fosse só o fuel, talvez houvesse alguma coisa mais.

Aparentemente não há: é mesmo só o gasóleo. Agora vai ser preciso filtrar o diesel todo, limpar os tanques, limpar a linha de alimentação, trocar os filtros. É pouco provável que os injectores estejam entupidos - o último filtro é de dois mícrons e como dizia hoje um colega e amigo brasileiro, "por ali não passa nem pensamento" -.

Maldito mar. Faz pagar caro a felicidade que dá. E mais caro ainda o que de nós revela.

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Há muitos anos reatei com uma rapariga com quem tinha rompido; ela desfazia-se em lágrimas na Avenida da Liberdade, implorava-me que voltasse e eu tive pena dela.

Mas não era só pena, havia algo mais; levei anos a identificar o que era. Anos depois descobri: não se pode não amar quem nos ama daquela maneira.

Talvez o mar me ame, no fundo. E talvez me deixe, um dia.

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É sábado. Não há nada que possa fazer. Fui à praia e agora vou cozinhar um bom jantar. A única maneira de lidar com o inelutável é não lutar.

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Morreu Fernando Ribeiro e Castro. Lidei pouco com ele, meia dúzia de vezes se tanto. Poucas mortes me arrancam uma praga como a que gritei quando o soube. Há pessoas que nos marcam desde a primeira vez, pessoas que portam a bondade como outros vestem um fato de marca. Não percebo nada de roupa, nem de fatos de marca. Mas percebo de pessoas; e de bondade. É a única classe à qual sou sensível.

19.3.14

Diário de Bordos - Bocas Town, Bocas del Toro, Panamá, 19-03-2014

Acabo de chegar das provas de mar. À parte duas ou três pequenas fugas, facilmente resolvíveis tudo parece em ordem e largamos amanhã, com um atraso considerável sobre o que estava previsto e um avanço ainda maior sobre o que poderia ter acontecido.

É a última etapa de um dos anos mais difíceis da minha vida. Acaba tão dificilmente como começou; mas devo reconhecer que acaba melhor. Prefiro não ter dinheiro, uma dor de dentes - que de resto quase desaparaceu, provavelmente graças à água oxigenada com que tenho lavado os dentes a conselho da assistente do dentista - ou ter recomeçado a fumar à horrorosa depressão com a qual passei este tempo todo, esta eternidade, este inferno.

Não largo nas condições ideais, mas o barco é sólido e eu ainda sei navegar sem GPS, se for preciso. E sem motor, idem. Na verdade é pouco provável que os dois computadores dêem o berro, se bem o de backup seja uma porcaria. Já do motor tenho mais dúvidas, mas agora não há como tirá-las e vai assim. E de qualquer forma sem motor não há GPS que me valha, nem VHF, de maneira mais vale não pensar muito nisso e resolver o problema quando ele chegar.

A previsão de tempo é boa - devo ter um bocadinho de vento para atravessar o Miskitos, mas prefiro isso a ir a motor -; e daí para cima vai ser uma bolina folgada ou um largo.Com um pouco de sorte daqui a oito nove dias estarei em Havana a beber um Mojito. Ou dois porque tenho de beber um pela Leonor.

De Cuba para as Bahamas é um salto, que talvez consiga fazer sozinho. E destas para São Luís outro, se tudo correr bem e o avião não desaparecer.

É pouco? É. Mas é o que há.

17.3.14

Confissões, viver, morrer

É quase meia noite, não há sopro de vento, oiço o Egberto Gismonti (ou outro qualquer) bebo vinho tinto (ou rum, já não sei bem) e pergunto-me se gostar desta vida é tão anormal como quase sempre penso que é.

Não é, claro. A incerteza é mais rica do que a certeza, por muito chata que seja, por muitos impellers que se partam, por muitas retretes que precisem de bombas novas ou de pescoços de cavalo nos tubos de evacuação. Custa-me muito perder tudo e todos os que perdi por causa da minha vida; mas custar-me-ia muito mais não a viver.

Talvez viver seja perder; e ganhar uma espécie de morte adiada, incompreendida por quem morre.

16.3.14

Pintar, viver

Não sei que te diga, mulher, e por isso não digo nada. Que queres que te diga? Que pensas que devo dizer? Tenho um frango ao lume, sempre é mais rápido do que o outro, que tinha javalis e tenho música boa para ouvir e uma lua cheia para admirar e uma noite para sonhar e mil mares por navegar e sei lá, com um pouco de sorte talvez ainda tenha mil mulheres por conhecer, se bem duvide muito. Sei ser engatado mas não sei engatar, falta-me o jeito e o palavrio e isto sem palavras não há cama para ninguém, não é?

É. E sem sentido de humor não há pila para ninguém e sem sei lá o quê não há nada para ninguém e sem seja o que for não háo há seja o que for para ninguém. De maneira encontrar o que nos une é muito mais difícil do que encontrar o que nos separa, isso encontramos logo.

Que se lixe. Quedemo-nos pela ausência de palavras, são elas que estão na origem de tudo, o Courbet enganou-se. Mas faz-vos sentir tão importantes, não é, aquele quadro? Faz, eu sei. A Origem do Mundo e outras balelas numa pentelheira (como já não se usam, que pena). E nada mais, nem uma palavra.

Que sorte, que inspiração teve o Courbet quando pintou aquilo, não? Não. A inspiração foi quando lhe deu o título.

Eu não sei pintar e ainda menos falar. Mas lá vou vivendo, que dizer mais? Que posso dizer mais? Nada, minha querida. Nada.

Jantar improvisado - frango marinado em vinho tinto

Vim para bordo. Apetece-me cozinhar. Estou a fazer um frango em vinho tinto. Cozinhar sem especiarias é como ouvir música num instrumento com um registo limitado: pode ser bom, mas falta qualquer coisa.

Neste caso, tenho paprika, orégãos e pimenta. Compensei a falta de coisas com cebola, alho e um bocadinho de tomate. A ver como sai. Na verdade é um ensaio para amanhã: o M. vem cá jantar e gostaria de lhe fazer um bom jantar, um jantar como os que tínhamos em Shelter Bay. Agora com a S. e o M. no lugar da N. e do D.

A coisa coze, eu bebo um rum enquanto espero que a coisa coza, a lua vai alta e cheia, muito bonita e redonda. De baixo vem um bom cheiro, do computador a Dança das Cabeças, que há tanto tempo não ouvia.

A coisa parece bem, mas precisa de cozer um bom bocado ainda.

Está como a noite, como certas dores, alguns amores e meia dúzia de livros: já começaram há muito tempo mas ainda têm de esperar para acabar. Têm de ferver e refinar, apurar e chegar à essência.

Ainda não sei como vai ficar o frango. Sei que o pus a marinar em vinho tinto com muita cebola e alho, pimenta, paprika e orégãos; que depois o tirei da marinada, o fritei em azeite com dois alhos e o repus na marinada a cozer; que cheira bem e já tive de acrescentar um pouco de água.

Noutra panela o resto do frango marina nestas coisas todas mai-lo azeite onde fritei o anterior (não tenho espaço no frigoríco, tenho de recorrer a métodos artesanais de conservação).

Noutra panela coze feijão com couve - vou pôr-lhe arroz daqui a pouco.

Depois conto.


Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 16-03-2014

Um domingo de trabalho chega ao fim. Foi bom: fez-me esquecer que estou aqui parado mais três ou quatro dias, se tudo correr excepcionalmente bem; e pelo menos agora tenho em forma definitiva uma coisa que tinha feito provisória; foi mau: não estou a conseguir transformar as manifestações de interesse (muitas) em confirmações (zero).

Resta-me ir tomar um duche, pensar na metade boa do dia e no que devo fazer para transformar a má em boa. As margaritas do Ben no Palmar Tent Lodge têm, entre muitas outras, a grande virtude de ser um grande filtro. E barato, muito mais barato do que um curso de marketing online, ou coisa equiparada.

Talvez não tenham é o mesmo resultado, mas isso é outra história.

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A minha encantadora tripulação aceitou com sabedoria e um sorriso a demora. A verdade é que estamos todos, literalmente, no mesmo barco. De nada serve bater com o pé no chão ou insultar o fdp do impeller. A solução é procurar um impeller rapidamente, e já agora a junta e os parafusos, que estão todos lixados.

O resto é conversa.

E, parafraseando um amigo sul-africano, não é com conversa que sairemos daqui.

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Ontem esteve um dia lindo, o equivalente bocatoreño de um dia de S. Guincho, mas hoje voltou ao normal: nublado. Pelo menos choveu muito pouco. Tem chovido pouco, de resto. É um drama, ninguém tem água. Felizmente não preciso de muito gelo na margarita.

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É noite de lua cheia, hoje. Talvez tenhamos sorte: há menos nuvens. Estou uns bons milhares de quilómetros (enfim, poucos. Mas é melhor do que nada) mais perto da lua do que uma pessoa numa latitude mais elevada, pelo que ela me aparece maior, mais cheia, mais sorridente, acolhedora, alegre.

E ajuda a voltar do Palmar Tent Lodge sem lanterna.

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Ontem estava sentado na Casa Verde e via passar as pangas em todas as direcções, umas rápidas outras mais lentas, todas bonitas e nenhuma feia. As esteiras pareciam sorrisos na baía, sorrisos brancos, longos, como se o mar tivesse inúmeros rostos e todos eles sorrissem quando sentem uma panga perto.

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O Artie tem uma vontade própria. Mas já devia saber com quem se meteu. Trouxe-o de San Francisco aqui (enfim, quase. De Shelter Bay veio com o M.) e vou levá-lo de volta ao dono quer ele queira quer não. É um casco em aço, teimoso como uma mula.

Parece um auto-retrato, não é?

15.3.14

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 15-03-2014

A maldição do Artie continua. Afinal não saio amanhã, por causa de um estúpido problema de motor. Estúpido é o termo, não há outro. Se conseguir sair quarta-feira já me darei por feliz.

Que dizer mais?

Uma vez naveguei com um tipo cuja praga favorita era Satanás!, gritado alto e bom som e com o pé a bater no convés com tanta força que parecia levantar voo cada vez que a urrava.

Não bati o pé.

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Vou dormir. Fartei-me de trabalhar hoje, para ter o barco pronto e arrumado. Que se lixe o satanás. E a Marilyn Monroe bem pode ir para casa. O Miskitos Bank não é para depois de amanhã.

Há barcos assim: saem-nos pelas orelhas; parece que têm vida e são habitados por legiões de diabos pequeninos, minúsculos, cada um com a sua área de influência.

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H. M., a dona da carga que levo (enfim não levo eu, mas leva o Artie) para os EUA quando lhe disse que afinal não saio amanhã: "life is too short to worry about all the little shit". Ela sabe do que fala.

14.3.14

Pegões

Não me canso de admirar quem não percebe a ironia; ou leva a sério uma provocação: ou acha que o sarcasmo devia ser banido das conversas. Vivem como se o mundo fosse a recta de Pegões: vão muito depressa mas não chegam a lado nenhum.

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 14-03-2014

Estudo a passagem pelo Miskitos Bank e sinto-me como se Marilyn Monroe estivesse à minha espera num café. Enfim, num sofá.

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Dias como o de hoje não deviam ser mencionados sequer. Com uma excepção: enrabei - peço perdão, mas é o termo - o "capitão de porto" mais corrupto com que jamais lidei. Resta-me esperar que amanhã o homem não se lembre de vir a Red Frog. (Aspas porque se aquilo é um capitão de porto eu sou a mulher do papa).

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O dia foi chato (isto é um understatement); cheguei a bordo e S., a adorável tripulante disse-me que parecia enfastiado. Estava pior do que enfastiado, S., muito pior.

Mas a vossa simpatia e a cabeça da barracuda cozida desenfastiaram-me num instante. Enfastiome devagar, mas no sentido contrário as coisas mudam muito mais depressa, Allah uAqbar.

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De maneira não largo amanhã e não vou para a Carolina do Norte - posso entrar nos Estados Unidos com o ESTA de todos os modos e feitios menos num iate -. Fico-me pelas Bahamas; para muitos seria uma maçada. Para mim é uma porra, uma merda, mais uma das inconsistências que me desiludem, cada vez mais, naquele país.

Largo depois de amanhã. Que é um dia?

Nada, e tudo. Basta fazermos a escolha certa.

12.3.14

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 12-03-2014

Mais um dia na merda. A retrete tinha três problemas, três. Foi preciso montá-la e desmontá-la três vezes. Deito retretes pelos olhos.

Felizmente sai merda e entra paz, e esta é muito mais do que aquela.

Vou cortar a direito pelo Miskitos Bank e fundear à noite; espero que as noites sejam assim sólidas de tão calmas, sem sopro de vento, sem um ruído que não seja feito pelo homem.

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Hoje fui aos correios, pela quinquagésima vez desde que cheguei a Bocas. A D. encomendou um tablet e preciso de o ir buscar - por ela e por mim, pois preciso de cartas e GPS de reserva.

Há dois meses que os correios não recebem encomendas nem cartas. Ao que parece devido à avaria de um veículo automóvel. Imagino as filas, na sexta-feira - se as coisas chegarem, como me disseram, nesse dia -. É pouco provável, penso. Mas por exemplo a bomba chegou hoje, como a B. me disse e eu previ. Optimismo 1 - Realismo 0.

Os realistas - ou pessimistas, como são igualmente conhecidos - perdem sempre, mesmo quando ganham. O mundo deles é um mundo triste, real: as coisas acontecem tal como eles esperam que aconteçam. Nós, os optimistas andamos sempre num estado de perpétuo encanto: as coisas acontecem como esperamos.

Pelo sonho é que vamos, dizia o Sebastião. Pelo e com o sonho, digo eu; de mãos dadas como putos a atravessar uma rua, nós e ele, a cagar no que foi e a pensar no que talvez será.

Enfim, no que será; talvez é uma palavra razoável e os optimistas não gostam de razoabilidades: gostam de certezas e convivem bem com incertezas, o que é diferente e irrazoável.

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Um barco é um pequeno planeta; e o A. F.  um planeta que se quer separar do planeta-mãe. E eu com ele. "Podia ser pior", dizia-me M. ontem. "Podias estar em Shelter Bay, por exemplo". É verdade. Tudo podia ser sempre pior.

Ou melhor. Pode ser-se optimista sem ser parvo.

11.3.14

Coisas, desprazeres

No princípio deste blog havia uma série de posts chamada Os prazeres da vela. Hoje pensei que seria talvez equilibrado criar uma outra chamada Os desprazeres da vela.

Acabo de atravessar o Atlântico com um doente mental, estou parado em Bocas por causa de uma história literalmente de merda (e de gás e de dentes - são várias as histórias de merda).

Mas nada disso chega para fazer uma série chamada os desprazeres da vela.

Quando muito, As coisas são o que são.

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 11-03-2014

Algumas reflexões durante um fim de tarde no Palmar:

- Cheira bem. Cheira a fim. Enfim.

- Gosto de pessoas, de as estudar e compreender. Mas gosto mais de as ver do que de as ouvir. (Talvez seja por isso, apercebo-me agora, que dou mais importância ao que elas fazem do que ao que dizem).

- A paisagem  é linda, mas a poluição sonora das conversas insuportável. (Insuportável é um exagero).

- Começo finalmente a perceber quem gosta de praia. Sentado num cadeirão do Palmar, o efeito terapêutico das vagas a rebentar na praia filtradas por três linhas de palmeiras e outras tantas de miúdas giras é insuperável.

- Voltar para bordo com o luar a iluminar o caminho através da selva é uma das coisas que me faz pensar que há vida em terra.

Diário de Bordos - Bocas Town, Bocas del Toro, Panamá, 11-03-2014

Os dentes estão arrumados; agora tenho de tratar do resto.

As pessoas que trabalham em terra num emprego fixo, estável, num ambiente conhecido não podem fazer ideia da quantidade de contigências incontroláveis às quais estamos sujeitos, nós pobres marinheiros solitários e longe de casa.

Encontrei uma bomba no Panamá, no Centro Marino, o meu shipchandler de sempre. Falei com Alexis, o melhor chauffeur de táxi do mundo e arredores; falei com Berta, a senhora que me atendia no Centro Marino; voltei a falar com Alexis e com Berta e assim por diante. Ficou combinado que eu enviava dinheiro ao Alexis por Western Union, ele iria ao Centro Marino buscar a bomba e a levava ao aeroporto.

Parece uma coisa simples, e é.

Mas ontem a Western Union não podia enviar dinheiro porque tinha ultrapassado o seu - dela, agência da Western Union em Bocas - limite. Uso a WU há muitos anos e não sabia que as agências têm um limite para os fundos que podem enviar.

Enfim, entretanto a Berta lembrou-se que contra um pagamento módico o Centro Marino podia tratar do envio da bomba para Bocas. Mais e melhor: eu podia depositar o dinheiro directamente na conta deles, evitando assim o custo do Alexis e o da Western Union.

Resumindo: duzentos e cinquenta telefones depois enviei o dinheiro ao Alexis por WU e o Centro Marino trata do envio.

Em Bocas só há um banco, e não é o do Centro Marino. Agora espero na cidade que o Alexis me confirme que recebeu a massa e pagou a bomba: tenho de ir para bordo arrumar coisas, mudar o óleo do motor, etc.

Não controlamos nem um décimo do nosso ambiente de trabalho; nem um por cento. Nada, praticamente nada. Talvez seja por isso que um marinheiro é um ser fundamentalmente pragmático, que sabe que as coisas são o que são; e que apesar disso tem de mudá-las. Se o vento está de Norte e eu quero ir para Norte tenho a) de aceitar que não posso mudar a direcção do vento e b) de inventar a bolina.

Se tudo correr bem amanhã tenho a bomba em Bocas. Se eu trabalhasse em terra num ambiente controlado apostaria que a bomba não vai chegar amanhã. Mas sou marinheiro: tenho de acreditar que vai chegar.

A alternativa seria ir trabalhar para terra. E isso é pior do que mil imprevistos.

10.3.14

Diário de Bordos - Bocas Town, Bocas del Toro, Panamá, 10-03-2014

Fui ao dentista, mas voltei quase como tinha ido. Quase: uma destartarização ao fim de doze anos é obra. As cáries voltaram como foram. Havia três soluções possíveis. A mais barata eu não quero; a mais cara não posso; a do meio não me seduz. Escolhi a quarta: analgésicos.

Espero que sejam tão fortes como o dentista me disse. Pelo menos no preço acertou: quase três dólares cada um. Quase. Esta viagem está a ser a viagem do quase. As únicas coisas que não são quase sou eu e a minha vontade de largar, que a cada dia cresce como o sol nasce e não se põe como ele se põe.

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Artie está quase pronto. Falta-lhe a bomba da casa de banho, um carregador para o computador e gás. O mais complicado é o carregador. A bordo tenho um de 12V, que lhe mantem a carga mas não o carrega. E sem aquilo não posso sair, de todo. Enfim, posso: ainda me lembro de como se navegava quando não havia GPS. Tal como me lembro de como se navegava quando só havia um balde a bordo - passei a lua-de-mel num barco assim, sem retrete -.

Mas quase que não estou para isso. Suportar uma dor de dentes é mais fácil do que te de me sentar num balde e ter de fazer marcações com a agulha de marcar. Ou quase tão fácil; vamos a ver.

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Entretanto a vida continua. Estar em terra em modo largada faz-me sentir num limbo, numa linha que ninguém vê se não eu, como quando era miúdo e tentava andar em linhas rectas entre pontos o mais distantes possível. A minha "indisciplina" (a expressão não é minha, daí as aspas) a atravessar as ruas vem daí, quiçá.

Ou a atravessar a vida, sei lá. Ninguém vê as linhas ao longo das quais me movo: os pontos estão muito distantes. Mas eu sei onde estão.

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Vou ao Tapas y Más beber rum: combinei com o dentista que experimentava os analgésicos dois ou três dias e depois lhe telefonava para marcar uma nova consulta, se achasse necessário. Tenho de ter a certeza de que os analgésicos funcionam. Ou quase.

9.3.14

Assimetrias

Um gajo desinteressante é um idiota, um chato, um gajo. Uma mulher desinteressante é um desperdício.

8.3.14

Diário de Bordos - Bocas Town, Bocas del Toro, Panamá, 08-03-2014

Hoje a música no Lemongrass estava bastante melhor, apesar de o saxofonista - auto-convidado tardio, de resto; e muito bom - estar perdido de bêbedo e não acertar uma. Acabou por se ir embora e eu por ouvir metade da banda do Lilly's - ao meio dia o guitarrista e à noite o baixo.

A tarde foi magnífica: havia uma festa de beneficência no Palmar, o dia estava lindo, e Bocas - ou Bastimentos, para os preciosistas - maravilhosas.

Tenho de me ir embora depressa: começo a gostar disto.

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Afinal os dentes não estão tão maus como eu pensava e eles me faziam sentir. Em duas sessões - uma na segunda-feira outra na quinta - terei a coisa resolvida. Depois precisarei de fazer uma coroa, mas isso pode esperar por S. Luis, aparentemente. Não sei o que é uma coroa, mas em breve saberei. E a verdade é que com o rum a dor tem diminuído bastante.

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De maneira passo outro fim de dia em Bocas. Não terei decerto a sorte de ontem - uma panga a sete dólares, sete - mas espero não andar lá muito longe. E confirmo que tenho de sair daqui depressa.

Quanto mais depressa melhor: partir sem saudades é mais fácil do que deixar em cada sítio por onde passamos um bocadinho de nós. Que sobrará, um dia?

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Mais uma daquelas noites calmas, sem vento, sem chuva. Vou de novo gostar da viagem na panga, como se fosse a primeira vez - é uma das coisas de que mais gosto aqui, uma daquelas de que não me canso: deslizar a toda a velocidade na baía, ver desfilar as paisagens sempre iguais, lindas, verdes, mágicas; a água transparente por cima dos recifes, a panga meio na água meio no ar, as estrelas que em breve verei do mar.


Dia da Mulher

Minhas queridas: não há um único dia que não seja vosso. Uma única vida.

7.3.14

Diárrio de Bordos - Bocas Town, Bocas del Toro, Panamá, 07-03-2014

Em Bocas del Toro não há um serviço público de recolha do lixo - ou se há não se dá por ele -. Há tempos, meia dúzia de meses, talvez pouco mais um grupo de estrangeiros - a maioria dos estrangeiros aqui é americana, ceci explicant cela - resolveu montar um serviço de recolha do lixo. Mobilizaram-se pessoas, meios, veículos, tempo, comunidade e a coisa começou a funcionar.

Há duas semanas o carro que faz a recolha dos sacos foi multado por obstrução ao trânsito.

Hoje à frente do cybercafé onde passo uma parte do tempo que passo em Bocas um táxi businava furiosamente. Para perceber a beleza desta história há que saber que em Bocas deve haver um veículo automóvel por cada mil habitantes (exagero, mas pouco) e que as ruas raramente têm carros estacionados.
O taxista buzinava furiosamente porque estavam dois carros parados lado a lado, um em cada sentido da rua e o táxi não tinha espaço para passar.

Um polícia entra no cybercoiso e pergunta às pessoas se o carro estacionado à frente da porta era de uma delas. Um senhor dos seus trinta anos diz que sim, mas que não deve ser ele a tirar o carro porque tinha sido ele a estacionar primeiro, muito antes da carrinha parada no outro lado da rua (por sinal de passageiros, parada à frente do hotel provavelmente para receber passageiros, ou largá-los. Mas isso em rigor é irrelevante).

O polícia pediu-lhe os documentos e ele lá foi tirar o carro.

Pouco depois encontrei o polícia na loja, fiz-lhe um comentário qualquer e ele respondeu-me que havia muita falta de civismo, mas não se podia ser muito duro com as pessoas porque não tinham dinheiro.

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Hoje fui à farmácia comprar a farmácia de bordo para a viagem e aproveitei comprei analgésicos. Amanhã vou ao dentista.

De qualquer forma resolvemos adiar a largada para próximo sábado, por causa da bomba da casa de banho. Há uma em Panamá, agora a questão é pôr lá o dinheiro e cá a bomba; mas isso vai ser fácil de resolver.

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Há notícias más às quais se seguem notícias boas, logo seguidas por outras más e de novo boas. Porém o cômputo geral é largamente positivo; de tal forma que já me estou a perguntar como e quando pagarei por tanta abundância de felicidade.

O mais tarde possível, por favor; e com juros baixos, que a maior parte da conta já está paga e com muito adianto.

6.3.14

Reedição - Agosto

Uma pessoa senta-se num restaurante. Comer um hamburger, beber uma cerveja. O restaurante é pequeno, familiar, conhecido da pessoa, que lá vai muitas vezes. Na rua, uma procissão ininterrupta de gente lembra-lhe que é verão: turistas, t-shirts, gelados em bocas que se arredondam para os receber, gulosas. Os gelados vêm do Santini: a história passa-se em Cascais. A pessoa está sozinha: “Agosto”, leu recentemente algures, “é o mês das piores solidões”. “Não é verdade”, pensa. "Não há solidões piores que outras. Há solidões que se aguentam sozinhas, e solidões que precisam de outras solidões para se manterem".
Solidões: a repetição da palavra faz-lhe vertigens. A pessoa está sentada. Afinal comeu um spaghetti bolonhesa. O autor (40 anos, magro, cabelo ralo, míope) não sabe o que fazer dela, nem com ela. Homem ou mulher? Que idade? Porque acabou a comer uma coisa diferente da que tinha planeado? Porque olha para o passante como se os conhecesse todos, ou quisesse conhecer? O autor interroga-se.
Na verdade não tem 40 anos, não é míope, não é magro. A pessoa, decide, é uma mulher. Ela sim, tem 40 anos e é magra, mas não muito. Fala com o dono do restaurante, e parece conhecê-lo bem. Combinam um almoço para o dia seguinte? Serão amantes? Conhecidos? Porque estão sozinhos, ambos? Ele chegou de bicicleta quando ela terminava o prato. A senhora tem os olhos vermelhos – o autor só agora se apercebe disso. Esteve a chorar. Tem uns olhos bonitos, azuis-claros, que contrastam com os cabelos negros. O autor pensa que o encarnado do choro fica bem com o azul das pupilas. Tem uma cara redonda, bonita, e tenta disfarçar as lágrimas, a voz que treme, a tristeza: mas a alegria é fingida demais. O dono do restaurante apercebe-se e esboça uma pergunta. Ela não quer, visivelmente, falar. Diz “boa noite!” e vai-se embora, bruscamente. O homem encolhe os ombros e vai para dentro.
Para onde vai ela? Noutro restaurante, numa rua ao lado, uma pessoa, sentada sozinha a uma mesa, olha para ela como ela, há pouco, olhava para os outros. É um homem, está sozinho. Não tem 40 anos. O autor não sabe que fazer de mais uma personagem. Decide deixá-las entregues a si próprias, todas, cada uma para seu lado. A mulher na rua, acompanhada por centenas doutras mulheres, algumas com gelados; o homem no outro restaurante, a comer um prato qualquer, provavelmente indiano; o dono do restaurante onde a história começou está na cozinha, a fornicar a cozinheira, uma ucraniana que, todas as noites, sofre em silêncio, e de pé, os apetites do patrão. "Agosto", ele vai pensando, "não é um mês diferente: é só mais quente, e esta gaja cheira mais a suor e a cebolas e a coentros. Tenho que parar com isto. Tenho que parar com isto". Esforça-se por acabar o mais depressa possível, mas os cheiros, a imobilidade total da mulher, a memória dos olhos encarnados da outra não o ajudam.
Pouco a pouco, o mundo do autor vai-se povoando. É uma maneira como outra qualquer de se sentir menos só, neste mês de Agosto solitário, quente e abafado. Há muitos anos começou uma longa relação neste mesmo dia de Agosto, mas não sabe como escrever sobre ela. “É sem dúvida mais fácil escrever sobre a ausência de relações”, pensou.
Contudo, a mulher decide aceitar o convite mudo do homem que olha para ela sentado na esplanada. Dirige-se a ele, olhando-o com medo, com coragem, com ironia?
- Tem lume? - Pergunta.
- Não.
- Não faz mal. A verdade é que não fumo. Posso sentar-me? – Senta-se sem esperar pela resposta.
-...
- Não diga nada. Não me diga o seu nome, nem a sua idade, nem porque me olhava. Ofereça-me um café, ou um whisky, o que preferir.
Ele não sabe o que há-de dizer. Não a quer ali: “as solidões de Agosto”, lembra-se, “são impenetráveis; ela não tem o direito de irromper assim na minha vida, na minha noite, na minha mesa”. Que faz?
Encomenda um café? Um whisky? Diz-lhe para se ir embora? Na cozinha do outro restaurante, o dono lava o membro no lava-loiça. A mulher sobe as cuecas – limpou o sexo muito rapidamente com um bocado de papel de cozinha – sem olhar para ele, sem uma palavra. “Diz-me qualquer coisa. Insulta-me, bate-me – tudo menos esses olhos que não vejo, essa boca silenciosa, essas pernas que se abrem como se tivessem uma vontade própria e não dependessem de ti”. Mas ela não diz nada.
O dono faz um café, e vai-se embora. A cozinheira prepara-se para fechar a cozinha – já só lhe falta apagar as luzes, o patrão vem sempre no fim, quando tudo está pronto e já só falta ir-se embora. No café ao lado, a mulher bebe um whisky. O homem acha-a bonita, mas decide ir-se embora. Quer ficar sozinho, luta contra o desejo. Ela apercebe-se e diz-lhe que se pode ir embora, se quiser, ou ficar – “desde que não me peça para o amar, ou não diga que me ama”. Vai-se embora.
O autor está sentado num bar na praia. Não sabe se a história que acabou de contar aconteceu há uma hora, um dia ou uma semana - não sabe mesmo se ela aconteceu de todo. Apetece-lhe beber whisky, muito. Um dos seus favoritos é o Dewar's 12 anos, que antigamente se chamava Ne Plus Ultra. Um amigo diz-lhe que não devia mencionar as marcas das bebidas, nem os nomes dos restaurantes onde as suas histórias acontecem. Pessoalmente, não estou de acordo: é como dizer o nome do local, ou a marca do carro, ou mesmo - porque não? - o nome da personagem. Um nome é um destino, e não é por acaso que as personagens desta história ainda não têm nome. Mas o autor hesita. Está sentado num bar, face ao mar, e ouve blues - Howlin' Wolf, supõe.
As personagens desapareceram, todas - umas para casa, outras para outros bares e lugares. "Uma casa", pensa, "não é um lugar: é uma etapa, uma escala, um poiso, um degrau numa escada sem fim, uma tenda no deserto". Como uma mulher: um ventre não é um futuro, é uma sucessão de presentes. Um dia acabam, esses presentes.
Ana foi para casa. O indiano encomendou-lhe um café e levantou-se, com um pedido de desculpas que lhe pareceu insuportável, de tão sincero. Ela queria fazer amor com ele, mas não conseguiu retê-lo. Queria dizer-lhe: "venha para minha casa. Faça-me amor, bem ou mal, deite-me numa cama ou encha-me de água a banheira, leve-me um whisky à cama, entorne-me a garrafa de champanhe no sexo e beba-o, passeie-me as mãos pelos dedos dos pés e a língua pelos sovacos, esfregue-me a cabeça na nuca, passeie-me a ponta do seu membro teso pela pele toda". Mas disse-lhe uma coisa desajeitada, pareceu-lhe, e ele levantou-se e foi-se embora, com um pedido de desculpa límpido, claro, frontal, doloroso.
O dono do restaurante, do outro restaurante, também se foi embora, mas para um bar de putas, pensa o autor. Não tem a certeza: que iria lá fazer, depois de uma foda na mesa da cozinha, por muito limpa que a cozinha esteja? A verdade é que a mulher não se mexe, não mexe um músculo, uma pálpebra, nem o tímpano se mexe, parece-lhe. Ele chega à cozinha, faz-lhe um sinal com os olhos, ela vira-se, baixa as cuecas, ele penetra-a, ele vem-se, ele retira-se, ela limpa-se com um bocado de papel. "Uma puta, pelo menos, finge". O autor concorda e leva-o para um bar de putas.
Falta o indiano. Quem é? Que foi ele fazer, depois de ter deixado Ana na mesa com um whisky e um pedido de desculpas?
Ou seja: neste momento, o autor tem Ana em casa, o dono de um restaurante (cujo nome ainda não inventou) num bar de putas, um indiano à deriva e uma cozinheira ucraniana fodida, literalmente fodida. Senta-se, frente ao mar, e ouve blues, Howlin' Wolf. Pensa no que deve fazer das suas personagens. No que deve fazer da sua vida, talvez; no que deve encomendar a seguir, mais prosaicamente; como dizer à empregada que quer ir para a cama com ela, de tal maneira que lhe dê a ela vontade de dizer que sim; que nome dar ao indiano, e ao dono do primeiro restaurante; pergunta-se se Ana é o nome correcto para aquela personagem; e se a história tem um fim, ou um princípio.
A história tem princípio e fim, claro. Uma história acaba, ao contrário de um corpo, uma casa ou um período de felicidade. Uma vida acaba, também, mas deixa sempre um traço, uma consequência, um epitáfio, quanto mais não seja. A memória.
Ana está em casa. Recomeça a chorar. Não suporta a solidão, não suporta ter enganado Luis, o dono do restaurante, que agora se recusa a ouvi-la, não suporta ter-se oferecido daquela maneira ao indiano e ainda menos suporta ele tê-la recusado. Luis era marinheiro, passava muito tempo fora de casa. Ana costumava mandar-lhe fotografias dela nua, em poses mais ou menos sugestivas. “Para que”, dizia-lhe, “possas comparar as putas que andas a foder com o que tens em casa”. Auto-retratos, explicava-lhe Ana, feitos com a máquina em pose. Mas um dia, no canto de um espelho não era um tripé que segurava a máquina: era Ricardo, um dos amigos de Luis.
Ana era bonita, grande – tudo nela era grande: os olhos, a estatura, a personalidade, o sorriso. Tinha um corpo bem feito, equilibrado, o que é raro em mulheres grandes. Ao ver a fotografia, Luis ficou devastado: como qualquer marinheiro, ele sabia que a mulher o podia enganar; mas nenhum pensa que ela o faz verdadeiramente. Imaginar aquele corpo, no qual se sentia como no mar, nas mãos de um amigo, a oferecer-se-lhe... “Será que ela faz com ele o que faz comigo?” – a pergunta não lhe saía do espírito. A ideia que ele também a enganava – se bem que não fosse verdadeiramente um engano, pois ela “sabia” – ainda contribuía mais para a sua raiva, para o ódio que sentia por ele, pela marinha, pelo ex-amigo. O pior era não conseguir sentir fosse o que fosse contra Ana. Ele queria odiá-la realmente, chegar a casa e bater-lhe, fazer uma cena, barulho, móveis a voar pela casa toda, portas a bater – mas a sua imaginação saltava directamente para a reconciliação, na qual ela lhe pedia perdão, para a carta que Ricardo lhe escreveria a dizer que tinha sido um engano, um erro, uma vez só.
Nada disso aconteceu. Quando chegou dois meses depois a casa estava vazia; Ana tinha-o deixado de vez e estava a viver sozinha; Ricardo encontrara um emprego em Angola, no mato. E ele continuava “o impotente emocional que sempre fui”. Não sentia ódio por ninguém excepto por ele próprio. Não sei bem se os cornos crescem e ficam ad eternum na testa que os viu nascer, ou se, como todas as outras coisas, crescem e se vão embora, um dia, deixando a dita testa pronta para outros. Não sei. A verdade é que Luis deixou o mar, e abriu um restaurante ao qual deu o nome de Blue Marlin, onde come a empregada ucraniana e se detesta por isso. O ódio de Luis por si mesmo é o pilar central da sua personalidade, e ele faz tudo o que pode para o alimentar quotidianamente.

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 06-03-2014

O Electra-san, um sistema elétrico de tratamento de resíduos (do qual de resto gosto bastante, é muito melhor do que tanques de águas negras) estava a cheirar mal há muito tempo. Comecei por lhe fazer um by-pass e mandar os dejectos directamente para o mar; não é o ideal, mas enfim, é pelo menos o habitual. E limpei-o bem, já quase não tem cheiro (o quase deve-se a uma inegável falta de vontade de o abrir). Depois a bomba da retrete parou. Estava bloqueada. Desmontei-a, limpei-a e voltei a montá-la. Hoje a bomba da retrete - a mesma, claro - parou de bombar. Desmontei-a outra vez mas não a montei - preciso de peças. Ou seja, três dias em trabalhos de merda. E agora, por causa de uma merda de um impeller de merda (literalmente) corro o risco de não conseguir largar nem sábado.

A vela faz-me sempre pensar naquela velha piada dos horários de comboios espanhóis: Sale a las diez, llega quando llega. Na vela é Sai quando sair e chega quando chegar.

Enfim, não é só na vela. Com os barcos a motor é a mesma coisa. É o mar, ou antes esta vontade que temos de lá andar e os materiais não são feitos para isto: movimento, água salgada, humidade permanentes. É um ambiente difícil, o mar.

Mas aos homens faz bem. Só aos bichos e aos materiais é que não.

Ontem sonhei que estava em São Luis a comer na tasca da tia Bica. Acordei contente, mas foi sol de pouca dura pois rapidamente me apercebi de que ainda estava no Panamá.

Porra! E nem uma cerveja tenho a bordo.  Pelo menos não tem chovido muito, já é qualquer coisa. E a minha tripulação é adorável.

Estão impacientes, claro; quem não está. Mas seguem à risca o preceito francês: contre mauvaise fortune bon coeur.

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O barbecue ontem correu bem; mas acabou por vir pouca gente e sobrou bastante peixe. Hoje comemo-lo ao almoço, cozido. A barracuda é um peixe delicioso; tem um cheiro um bocadinho forte, é certo. Mas a carne é saborosa, rija. É um predador voraz. Mais vale comer predadores do que presas? Talvez, e não se aplica apenas aos peixes.

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O meu vizinho de vante é um casal turco, relativamente jovem. Bastante simpáticos e bonitos (ela não é só bonita, mas isso é outra história). Conhecem bem Portugal: o barco foi-lhes entregue em Lagos e comissionado (isto cheira-me a anglicismo à milha; se alguém tiver uma sugestão agradeço) pela Sopromar.

O estaleiro é muito bom, ainda não encontrei ninguém que dissesse o contrário (B., o senhor turco, diz que são melhores do que qualquer estaleiro que conhece nos EUA; e eu acredito). Mas também ainda ninguém me disse que os preços são aceitáveis. Ir para a Sopromar parece-me quase um símbolo de distinção, como comprar um Ferrari ou um duplex num arranha-céus de Nova Iorque.

Eu só lá fui duas vezes: a primeira e a última. Mas fiquei com nostalgia de Lagos, do Algarve, de Portugal. B. e a mulher estiveram mês e meio em Portugal; não precisava de tanto. uma semanita em Mértola e outra em Lisboa já me encheriam de felicidade.

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A dor de dentes continua num nível bastante suportável. aposto que só vai piorar quando estiver no mar. A continuar assim qualquer dia sonho que estou em São Luis numa cadeira de dentista.

4.3.14

Diário de bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 04-03-2014

Comprei uma barracuda de alguns seis ou sete quilos. Vou fazê-la amanhã, grelhada (excepto a cabeça, claro, que essa está reservada para mim, my self and eye. Cozida). Convidei metade da marina, ou lá perto, e disse ao Orlando, o índio a quem comprei o bicho que se amanhã tivesse mais peixe mo trouxesse.

Vai ser uma festa gira: uma despedida que simultaneamente lamento e me alegra.

Gostaria de perceber um pouco melhor esta gente, que tanto detesto; gostaria, no fundo, de perceber melhor porque detesto esta gente; talvez deixasse de a detestar. Só não gostamos do que não compreendemos.

Por isso é tão frequente a confusão entre justificar e explicar, na qual os portugueses (mas não só) são exímios.

Não há largada sem nostalgia.

Selva, cidades

Quem fala em selva urbana nunca esteve na selva.

Diário de Bordos - Red Frog Marina, Bocas del Toro, Panamá, 04-03-2014

Em finais de 1976 ou princípios de 1977 cheguei a um porto na Rússia chamado Nakhodka. Fica no Extremo Oriente russo, a cerca de cinquenta quilómetros de Vladivostok. A temperatura era de menos vinte, ou coisa que o valha; o mar estava gelado.

O navio, um graneleiro de trinta mil toneladas, avançava devagar na esteira de um rebocador / quebra-gelos. Por cima do gelo havia uma nuvem de condensação com um metro ou metro e meio de altura. Parecia que navegávamos num palco, ou num mar de algodão. O barulho das máquinas era abafado pelo gelo, pelo frio e pelas camadas de roupa com que me cobria.

A paisagem era branca, toda branca com algumas nódoas castanhas pelo meio - árvores desfolhadas, uma ou outra casa -. Pouco me lembro da cidade - nem da chegada, absorvido com o trabalho e com a vista daquelas colinas quase nuas, brancas, como se alguém estivesse a fazer um rascunho e o tivesse interrompido a meio, esquecido do que ia desenhar - nem da estadia, muito mais longa do que todos esperávamos por causa de um avaria.

Em Nakhodka bebi como nunca tinha bebido antes - ainda bem, era então um jovem de dezanove anos - e nunca mais voltei a beber. Ainda bem, igualmente. Os russos bebem de uma forma delirante, coisa que só me incomodava - enfim, devo reconhecer que não muito - quando voltávamos para bordo por um atalho que atravessava um pequeno bosque e eles saíam de detrás das árvores com garrafas de vodka e nos obrigavam a partilhá-las com eles, aparentemente porque quem não encontra amigos nem para beber é o último dos homens. Tínhamos de beber a mata-cavalos porque à meia-noite a tripulação toda, com a notável excepção do comandante devia estar a bordo sob pena de proibição de desembarque durante o resto da escala e escolhíamos aquele caminho porque já estávamos atrasados. (Tão pouco gostava do execrável costume que nos obrigava a beber de um só trago o que tínhamos no copo quando à mesa alguém dizia Nazdarovia. O truque consistia em ter sempre o copo o mais vazio possível, mas havia sempre um gajo que nos apanhava com ele cheio.)

Deve haver poucos climas mais diferentes do de Nakhodka do que o de onde estou agora, uma cidadezinha turística no oeste do Panamá, onde a cor dominante é o verde e a temperatura raramente passa dos vinte e tais positivos para baixo. E bebo, claro; sempre bebi. Mas bebo moderadamente: uns copos de vinho, outros tantos de rum. Nada das monumentais bebedeiras com que todos os dias, ou quase, me deitava na Rússia.

O que me traz Nakhodka à memória não é o clima, nem o álcool, nem a devastadora paixão que tive por uma jovem e linda senhora que mais tarde me veio ver a Antigua. Trinta e seis anos depois, creio. Há portas que são difíceis de fechar. Felizmente quando se fecham fecham-se para sempre.

Lembro-me de Nahodka porque estou com uma dor de dentes terrível e quase tão devastadora como a paixão. Quando lá cheguei vinha com uma cárie de tal forma dolorosa que fui o único tripulante a desembarcar - com o comandante, claro - para ir ao dentista. Íamos ficar três semanas fundeados (acabaram por ser só dez dias, se bem me lembro) e o dente estava de tal forma que não conseguia sequer respirar. Cada vez que abria a boca no exterior sentia-me como se tivesse um exército de dentistas sádicos a furar-me o molar.

A ida ao dentista foi uma daqueles acontecimentos que nos marcam, mudam a nossa maneira de ver o mundo - isto é, nós -. Fomos para terra numa pequena lancha quebra-gelos; o agente, cuja alcunha era Boca d'Ouro devido aos inúmeros dentes de ouro que mostrava cada vez que se ria - e eram muitas, essas vezes -, o comandante e eu.

O comandante ficou já não sei onde; eu fui com o agente para o hospital, um edifício enorme, do século XIX, sujo e cheio de gente. Talvez fosse uma das nódoas castanhas que tinha visto à chegada na paisagem. Não sei.

Passámos à frente de uma enorme fila, o agente bateu a uma porta, berrou qualquer coisa lá para dentro, fechou a porta e disse-me num inglês muito mau que tínhamos de esperar "um momento". Efectivamente muito pouco depois saiu da sala uma pessoa e eu entrei no consultório do dentista.

Da dentista. Era uma senhora cujos traços físicos esqueci por completo. Estava em estado de choque: o consultório era uma sala enorme, com manchas de sangue em tudo quanto era sítio: no chão, nas paredes, na cadeira - uma cadeira de barbeiro que lá estava muito provavelmente desde a inauguração do edifício - nas batas da médica e da enfermeira. Por vezes penso que até no tecto havia sangue, mas é pouco provável porque o pé-direito era altíssimo.

A broca devia ser contemporânea da cadeira e da casa: parecia um candeeiro articulado, muito fina, activada por uma correia de couro. Quando a médica a pôs em movimento tudo aquilo vibrava, tremia e ameaçava desintegrar-se dentro da cavidade do meu dente e lá ficar para sempre.

A médica pôs-me um rim - creio que é assim que se chamam aquelas travessas pequenas que nos põem no queixo para cuspir a baba e o sangue - também ele cheio de sangue seco à frente e começou a furar o dente. Enquanto o fazia conversava animadamente com a enfermeira e nem olhava para mim. De vez em quando interrompia a conversa e perguntava-me Dói? - foi a primeira palavra que aprendi em russo: ballit, creio -.

Ao fim de um momento, inevitavelmente, aquilo ballit um monte e eu resolvi que não ficava ali nem mais um minuto. Puxei a mão da senhora, fechei a boca e niet (palavra que só aprendi mais tarde, mas enfim, passe a diacronia); nada. Zero. Nesta boca aquela broca não entrava mais.

A senhora zangou-se, barafustou, gritou e acabou por mandar a enfermeira chamar o Boca d'Oiro. a quem expliquei, no inglês mais simples que consegui arranjar, que gostava, se ele não se importava, de ir a outro dentista. Quis saber porquê, mas eu não lhe contei. Limitei-me a dizer que queria outro dentista. A senhora pôs um penso no dente, disse qualquer coisa ao homem e viemos embora.

Três dias depois o Bocas chega a bordo, chama-me, diz-me que vamos a outro dentista e levou-me exactamente ao mesmo. Não me deu foi a possibilidade de recusar: empurrou-me lá para dentro e sentou-me (não me lembro, mas deve ter sido assim) na cadeira.

Nunca na vida fui tão bem tratado por um dentista. A mulher foi de uma atenção e um desvelo que quase roçava o embaraçoso. Um ano depois estava na África do Sul, tive de ir a um dentista e pedi´lhe para fazer uma radiografia ao dente que tina tratado em Nakhodka. "Excelente trabalho", foi o veredicto.

O facto de o Boca d'Oiro ser o chefe local da KGB deve ter influenciado a senhora, mas isso só o descobri quase à largada.

Tenho ido muito menos frequentemente ao dentista; na verdade não vou a um há doze anos. Agora metade dos meus dentes revoltou-se e já sei que vou ter de ir para o mar com pelo menos dois deles cariados e a doer e mais um a ameaçar. Não me queixo: a culpa é minha. Já por várias vezes tive simultaneamente tempo e dinheiro para ir tratar do campo minado em que a minha boca se transformou nos últimos anos. Agora não tenho nem um nem outro.

Quero ir-me embora quinta-feira. Os dentes podem esperar. Tal como tudo, de resto.

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Hoje é dia de trabalhar no barco, finalmente. Até agora tenho andado a tratar dos periféricos - computador (é onde tenho as cartas e o programa de navegação), venda de coisas desnecessárias, etc. Hoje e amanhã vão ser dias de preparação do bote; amanhã M. vem limpar o fundo, que claro está sujíssimo: com isto aqui parado há tanto tempo não há antifouling que resista.

É bom: já estou em modo largada. É tempo de o A. o ficar também.

Mamas, olhos

Um par de mamas à procura de um par de mãos. A rapariga pouco mais é do que isso. Passou por mim hoje na rua. Procurei-lhe o olhar, mas estava vazio, não tinha nada. "Que linda seria" pensei, "se na cabeça tivesse metade do que lhe caiu para as mamas".

2.3.14

Jantar improvisado - Arroz de Frango

O jantar de ontem foi uma daquelas improvisações que merecem ser registadas, mesmo sabendo que provavelmente nunca a repetirei.

Comecei por marinar os bocados de frango em vinho tinto, sal, alho, um bocadinho de manga e muito gengibre.

Depois fritei-os; quando ficaram bem dourados pu-los na panela com a marinada, que já estava a aquecer e a preparar-se para os receber. Na gordura do frango refoguei uma cebola, que depois foi para a panela.

Cobri com água, pus um bocadinho de vinagre e muita pimenta, duas latas de ervilhas com cenouras e uma de cogumelos. Vinte minutos antes de comer juntei o arroz e ecco, um arroz de frango à Arctic Front.

Para a próxima vez: rum e não vinho, mais manga e paprika (que não tenho a bordo e por isso, só por isso, não usei).

1.3.14

Diário de Bordos - Bocas Town, Bocas del Toro, Panamá, 01-03-2014

Não há, para outrém, ninguém mais perigoso do que um idiota motivado. Já os tesos motivados como eu são uma ameaça apenas para si próprios; e para os mais próximos, vá. Felizmente não tenho próximos dependentes de mim.

Deve haver armadores - o deve é retórico - tão tesos como eu; mais não há com certeza. Mas enfim, é melhor perder do que não tentar; e ter lido Sun Tzu tem pelo menos a vantagem de me fazer compreender porque perco - e dar-me mais satisfação quando ganho (e mais ainda se por milagre ganhar esta) -.

Não que goste particularmente ou acredite em milagres, claro. Simples e inegavelmente porque uma vitória diícil é melhor do que uma fácil (e esta melhor do que uma derrota, mas isso é outra história).

Tenho de lutar em todas as frentes ao mesmo tempo. Graças a deus a metade feminina do meu cérebro é quase tão grande como a outra e não sou estranho às multitarefas. Coisa que de resto não é grande lança em África: quem numa embarcação de vela for pouco flexível e demasiado mono-tarefa depressa enjoa.

Uma parte de mim já aqui esteve; a outra, mais importante sabe-o e sabe que o eu de hoje não é o mesmo do de ontem nem do de há vinte anos. O que mudou? Hoje conheço-me e conheço o inimigo. Para Sun Tzu é uma das condições para se ganhar a batalha. Não é a única; mas é uma das mais importantes.