26.11.23

Dispersas anteriores

Escrevo-te com a caneta de madeira de oliveira que comprei na Rambla, já não sei quando. É a maior, a mais barata e uma das que mais gosto, de entre todas as que tenho. O aparo escorrega quase sozinho pelo papel Clairefontaine, a caneta é grande e pesada - curiosa, esta minha atracção pelos objectos grandes e pesados, não é? Aplicava-se aos sextantes e aplica-se ainda às mulheres e a certas partes da sua anatomia, não aqui nomeadas por pudor -; só tem um defeito: a ponteira é demasiado fina. Por isso mudo para a Kaweco, essa sim, de longe a minha favorita. Parece uma caneta de guerra e apesar de parecer pequena aumenta muito quando se lhe põe a tampa por cima. É a que tem o aparo maior, desliza bem e faz-me pensar em ti mais do que qualquer das outras. A de madeira é demasiado rústica e as Parker demasiado urbanas, inapropriadas para textos hesitantes, rustres, desajeitados, quase orais como os meus. 

A Kaweco desliza isenta de atrito, generosa com a tinta, como eu gostaria que a minha vida fosse: fluida. (Não sei se conseguiria viver uma vida assim, mas isso são contas de outra vida.)

Também tu és uma mulher de guerra, não és? És. E de geometria variável, apesar de essa geometria não ser visível a olho nu.

(...)

Não sei que nome dar a esta mistura de Lisboa, jazz (o puto do piano é bom que se farta), a senhora loira com um lenço encarnado a atar-lhe os cabelos, cerveja e rum. Não sei. A mulher está de costas mas adivinho-a parecida contigo e talvez isso chegue para me fazer feliz. Penso: "poderia ter namorado com ela", mas não me levanto para confirmar essa hipótese. Basta-me intuí-la parecida contigo e saber que sim, de certa forma nós namorámos, apesar de "namoro" ser um bocadinho exagerado, não ser absolutamente correcto, estar à côté de la plaque.

.........
Uma sociedade moderna, decente, vivável é uma colecção de "uns" e não um gigantesco colectivo de "uns" fundidos uns nos outros como os braços do polvo.

........
O senhor à minha frente, neste café de bairro no qual me sentei após uma longa busca concentra-se na sequência de crimes da CMTV.

Os outros cafés são todos "speciality coffee", "fusion food", "gourmet" mai-la a whore que os pariu e os preços que vão avec. Este café é genuinamente português, tal como o senhor velhote que se interessa pela análise cuidadosa e sociológica da televisão. 

Vejo-lhe as costas, o chapéu amarrotado, o casaco puído, a cabeça a apontar para o ecrã e penso que temos solidões diferentes e provavelmente inconciliáveis, apesar de o fornecedor de café e mesas ser o mesmo.

Nos sítios pelos quais passei até chegar a este não havia pessoas sozinhas.

Queimada Galega

Por causa de uma troca no Facebook entre dois Eduardos lembrei-me disto. 

A Queimada era a bebida de cerimónia do ALTAIR, o arrastão a bordo do qual andei à pescada e ao peixe-espada na Namíbia. Raramente dizíamos o esconjuro todo, mas sempre o achei bastante bonito.

(O post vem da Vida Borealis.)

Queimada Galega, sabe como se prepara?

O pote
O recipiente é importante, quanto mais não seja para contribuir para a teatralidade do momento. Escolha um recipiente de barro ou de metal que resista à queima do bagaço no seu interior… quanto mais tosco melhor!

O bagaço
O bagaço é fundamental, é a sua queima que vai originar o licor final da Queimada Galega. Escolha um bagaço de qualidade, feito a partir de mosto das uvas e sobretudo… forte.

O açúcar
Deve ser amarelo, em quantidades generosas, adiciona-se ao bagaço. 200 gramas por cada litro.

Os citrinos
Podem ser limões ou laranjas, devem ser frescos, partidos em quatro partes e adicionados à mistura de bagaço e açúcar.

Os grãos de café
Quando todos os ingredientes estiverem juntos no pote, basta adicionar alguns grãos de café não moídos.

Depois de todos os ingredientes no pote, chegou o momento de incendiar o bagaço, a mistura deverá arder durante vários minutos por forma a queimar o álcool, caramelizar e misturar os sabores. Mexer a poção com frequência é fundamental… bem como recitar o esconjuro com toda a convicção.

Tradições que ecoam do passado
Ninguém sabe ao certo qual a origem do ritual da Queimada Galega, sabe-se que é uma tradição centenária ou mesmo milenar dos povos da Galiza e Norte de Portugal. Há quem ligue o ritual ao dia dos mortos e quem estabeleça relações entre a Queimada Galega e algumas tradições Celtas.

Na Borealis apenas sabemos que funciona para reunir os amigos, viajantes e exploradores, que nos inspira para continuar a aprender sobre as tradições e a origem da nossa cultura.

Antes de beber, levantamos os copos e brindamos à “boa vida Borealis”…

Enquanto arde a poção mágica há que recitar o esconjuro:

Mochos, corujas, sapos e bruxas.
Demónios, trasgos e diabos,
espíritos das enevoadas veigas.
Corvos, píntigas e meigas:
feitiços das mezinheiras.
Podres canhotas furadas,
lar dos vermes e alimárias.
Fogo das Santas Companhas,
mau-olhado, negros feitiços,
cheiro dos mortos, trovões e raios.
Uivar do cão, pregão da morte;
focinho do sátiro e pé do coelho.
Pecadora língua da má mulher
casada com um homem velho.
Averno de Satã e Belzebu,
fogo dos cadáveres ardentes,
corpos mutilados dos indecentes,
peidos dos infernais cus,
mugido do mar embravecido.
Barriga inútil da mulher solteira,
falar dos gatos que andam à janeira,
guedelha porca da cabra mal parida.
Com este fole levantarei
as chamas deste fogo
que assemelha o do Inferno,
e fugirão as bruxas
a cavalo das suas vassoiras,
indo se banhar na praia
das areias gordas.
Ouvi, ouvi! os rugidos
que dão as que não podem
deixar de se queimar na aguardente
ficando assim purificadas.
E quando esta beberagem
baixe pelas nossas goelas,
ficaremos livres dos males
da nossa alma e de feitiço todo.
Forças do ar, terra, mar e fogo,
a vós faço esta chamada:
se é verdade que tendes mais poder
que as humanas pessoas,
aqui e agora, fazei que os espíritos
dos amigos que estão fora
participem connosco desta 
Queimada.

Em galego:

Conxuro tradicional da queimada galega

Mouchos, coruxas, sapos e bruxas;
demos, trasnos e diaños;
espíritos das neboadas veigas,
corvos, píntegas e meigas;
rabo ergueito de gato negro
e todos os feitizos das menciñeiras…

Podres cañotas furadas,
fogar de vermes e alimañas,
lume da Santa Compaña,
mal de ollo, negros meigallos;
cheiro dos mortos, tronos e raios;
fuciño de sátiro e pé de coello;
ladrar de raposo, rabiño de martuxa,
oubeo de can, pregoeiro da morte…

Pecadora língua de mala muller
casada cun home vello;
Averno de Satán e Belcebú,
lume de cadáveres ardentes,
lumes fatuos da noite de San Silvestre,
corpos mutilados dos indecentes,
e peidos dos infernais cus…

Bruar da mar embravecida,
agoiro de naufraxios,
barriga machorra de muller ceibe,
miañar de gatos que andan á xaneira,
guedella porca de cabra mal parida
e cornos retortos de castrón…

Con este cazo
levantarei as chamas deste lume
que se asemella ao do inferno
e as meigas ficarán purificadas
de tódalas súas maldades.
Algunhas fuxirán
a cabalo das súas escobas
para iren se asulagar
no mar de Fisterra.

Ouvide! Escoitade estos ruxidos…!
Son as bruxas que están a purificarse
nestas chamas espiritosas…
E cando este gorentoso brebaxe
baixe polas nosas gorxas,
tamen todos nós quedaremos libres
dos males da nosa alma
e de todo embruxamento.

Forzas do ar, terra, mar e lume!
a vós fago esta chamada:
se é verdade que tendes máis poder
ca humana xente,
limpade de maldades a nosa terra
e facede que aquí e agora
os espiritos dos amigos ausentes
compartan con nós esta queimada.

24.11.23

Apego, desapego e desmemória

Com a idade aprende-se o apego e o desapego, a dar importância àquilo que a tem e a esquecer o que não. 

Infelizmente, esta é muito maior do que aquela. A quantidade de coisas que não merecem ser lembradas é quase igual à das que lamentamos ter vivido. Ou melhor: lamentaríamos, se as recordássemos.

21.11.23

Pântano

Reflicto-me nas águas escuras de um pântano  e pergunto-me: o que te faz feio - o pântano ou o reflexo?

No meu tempo

No meu tempo não havia miúdas giras que gostassem de jazz.

Hoje, o Távola está cheio delas (das giras). E ainda há quem se queixe da modernidade.

20.11.23

Poema de um herói palestiniano

Hoje fui ao Bota ouvir poesia. Como sempre foi muito bom. Declamaram muitos poemas de autores palestinianos. Eu tinha preparado um, mas infelizmente tive de vir-me embora mais cedo e não houve tempo de o ler.

É de um poeta palestiniano chamado Al-Issa Al-Serba Al-Amar Ben Hamas, cruel e cobardemente assassinado na flor da idade pelas forças genocidárias israelitas quando ia ao hospital al-Shifa buscar munições. É apenas um fragmento encontrado no seu bolso por um camarada de armas que heroicamente conseguiu completar a missão. 

"Hoje vou degolar um bebé israelita
Filho de hititas

Hoje vou violar uma mulher israelita
Puta de hititas

Hoje vou lançar granadas sobre uma cidade israelita
Coio de hititas

Hoje vou matar jovens israelitas
Futuros hititas.

..."

O resto perdeu-se nos escombros do hospital, bombardeado pelos assassinos nazis judeus.

19.11.23

Desconstrução de um almoço dirigida às novas gerações

Ficaria tristíssimo se as novas gerações não aprendessem coisas comigo. Portanto, aqui fica:
a)  As ervilhas congeladas da marca Igloo são uma porcaria com M.  Aparentemente é preciso comprar Baby Ervilhas (?). Estas da Igloo não sabem a nada, nem mesmo a ervilhas congeladas;
b) Ervilhas com ovos escalfados sem um bom naco de toucinho, mesmo que tenha tudo o resto, é como fazer amor com uma mulher jovem: tem tudo mas falta alguma coisa;
c) O vinho Taboadella é uma grande pomada, tão grande que supre os dois pequenos defeitos acima mencionados;
d) Não se pode dar por terminado um almoço se ao café não se seguir uma aguardente, rum, whisky, hierbas (secas) ou licor Bailey's (com whisky misturado).

E agora, silêncio por favor.

17.11.23

Vagabundo do espaço-tempo

O homem vagueia perdido no espaço-tempo. Não sabe para onde vai - quem não sabe de onde vem não sabe para onde vai, é inevitável como a chuva depois do bom tempo ou o calor do corpo da mulher que se ama, mesmo não sendo esse amor retribuído. O que nos dá a direcção do futuro é o passado. Reciprocamente, o futuro reifica o passado. Reconstrói-o, por assim dizer. O espaço-tempo é vasto mas não é infinito - pelo menos o tempo. O espaço discute-se. Ou seja: o homem sabe que a sua divagação tem um limite. A pergunta que lhe ocorre é: que farei, comigo neste espaço? O tempo oferece-se-lhe, pernas abertas. "Vem", diz-lhe. "Perde-te em mim. Alguém te encontrará, se não for eu." Mas o espaço? Que farei deste espaço no qual erro, do qual não passo de uma vírgula encaracolada em ti, aconchegada, abraçada à memória que tenho de ti? O homem perde-se no labirinto que ele próprio construíu. Consola-se: "Pelo menos está bem feito. Fui eu qu o fiz."

Maria Rapaz e outras reflexões

O quiosque de S. Paulo tinha um óptimo vinho a copo. Custava dois euros e chamava-se Maria Rapaz. Andei à procura desse vinho e não encontrei em lado nenhum.

Agora, tem Casal da Azenha a quatro euros. Os ovos verdes continuam excelentes (se bem na minha opinião podiam ter um bocadinho mais de salsa), os pastéis de massa tenra idem (mas não precisam de mais nada, estão óptimos como estão). A questão que se me apresenta é: prefiro o Maria Rapaz a dois euros ou o Casal da Azenha a quatro? Resposta: o Maria, sem sombra de dúvida. O Casal é melhor? É. Não sei. Talvez. O outro jogava num campeonato muito reduzido: era o Maria e o Rapaz. O campeonato do Azenha está muito povoado.

Pergunta subsidiária: aonde vou encontrar vinho tinto Maria Rapaz? (Só o nome vale o preço.)

Mediterrâneo, Calvino e outros vícios

Hoje comprei um livro - há vícios piores, relembro. Chama-se El Sueño de Ulisses e é de um senhor chamado José Enrique Ruiz-Domènec. Foi publicado pela Taurus, que pertence ao grupo Penguin. O subtítulo é: El Mediterráneo, de la guerra de Troya a las pateras.

Logo nas primeiras páginas encontro: "La volontad humana se concreta como la única vía de entender la vida: lo ilustra el famoso gesto de Alejandro ante el nudo gordiano;..."

Sem o Mediterrâneo Calvino teria existido?

16.11.23

Ciclistas e a vida na alface

Dois ou três dias a pedalar em Lisboa chegam para confirmar o que já todos sabemos: o grande problema do trânsito nesta cidade são as bicicletas e respectivos ciclistas. Nós:

- Passamos com o sinal encarnado e depois ficamos parados no meio do cruzamento, impedindo assim o normal fluxo de viaturas no sentido perpendicular àquele onde nos encontramos, tentando evitar o mais possível a inevitável cara de parvo;

- Estacionamos em segunda fila porque as ruas da cidade são desmesuradamente largas e de qualquer forma "é só um minuto";

- Confundimos as artérias da cidade com uma pista de corridas e andamos por essas ruas fora a velocidades alucinantes, como se fôssemos salvar o pai da forca;

- Estacionamos em cima de passeios e passagens de peões, contribuindo assim para tornar mais animada a vida das pessoas com mobilidade reduzida ou com carrinhos de bébé;

- E, achando tudo isto insuficiente, buzinamos, gritamos, fazemos manguitos e insultamos os outros ciclistas, dando uma agradável animação à vida urbana.

Se cada ciclista trocasse a sua bicicleta por um automóvel a vida na pequena alface seria - sem sombra de dúvida - muito mais agradável. 

15.11.23

Mudar de vida?

A ideia geral é: mudar de vida; a particular é: "Não podes mudar de vida antes de ter a anterior resolvida". Ou seja: vida é parte integrante de resolvida, coisa que basta saber ler para ser imediatamente perceptível ao leitor atento.

Amor, ódio, Lisboa e tiras de choco

A noite cai sobre Lisboa, o sol afunda-se no rio e em mim num destes intermináveis crepúsculos que são os meus dias desde que me conheço: um longo dia ao qual sucede um longo crepúsculo, como se a vida não tivesse mais nada que fazer senão explicar-me o verdadeiro sentido de alternância: o dia e a noite, a maré baixa e a preia-mar, a tira de choco na Ginginha Popular e o copo de vinho branco, o pedal que baixa e o que sobe, o olho esquerdo que não vê e o direito que sim, a Lua que ora cresce ora mingua. Lisboa, no fundo: hoje eu amo-a, amanhã ela detesta-me. 

Vantagens imerecidas

A grande vantagem dos loucos sobre os bêbedos é que a loucura é gratuita.

13.11.23

Labirintos, saídas

Um labirinto é constituído por:
- Paredes, sólidas;
- Corredores, vazios (ou cheios de ar. Porém, para este efeito - o que buscamos hoje - pode distinguir-se vazio e vácuo).

O sólido das paredes delimita o vazio do caminho. É portanto possível imaginar dois tipos de labirinto: o que já está feito quando nele se entra e o que se vai fazendo a cada passo. Esta noção de que caminhar é criar um labirinto - a cada passo que se dá uma parede avança até ficar ligeiramente à frente da pessoa que caminha, condicionando assim o próximo passo. Mas não tanto que o labirintante - chamemos-lhe assim -  não possa mudar de direcção ou entrar num beco sem saída. O caminhante no labirinto que escolheu a opção "Faça você mesmo" engana-se mais vezes do que aquele que escolheu o labirinto já feito: não pode avaliar se o passo que deu o leva mais adiante no labirinto que está por fazer ou se, pelo contrário,  está simplesmente a construir uma senda sem saída. 

A única coisa que os dois labirintos têm em comum é a saída. É a mesma.

12.11.23

Montanhas-russas, vida

A razão pela qual gosto tanto de montanhas-russas é fácil de entender, quando se sabe que não passam de reproduções em miniatura da minha vida.

11.11.23

Manuel Gusmão

À velocidade da luz


Há uma rotação do teu corpo –

Andas pela casa: és um leve rumor sob o silêncio 

um rumor que alumia a sombra silenciosa; 

na sala, o homem quase surdo quase cego 

ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí.

Estás aqui. O intervalo de tempo já começou: 

há uma rotação no teu corpo 

que me exclui do mundo e 

entretanto é feita para mim; atinge-me 

à velocidade da luz.

E eu o homem quase surdo quase cego

sou tomado pelo vento do fogo que me consome 

até ser apenas a última brasa: pequenas ravinas de luz 

o incêndio restante sob a exausta crosta da terra

Estavas, estiveste ali.

O tempo recomeça.

Apareces e desapareces.

Como a luz do farol disparando no céu sobre as casas 

ou como o anúncio luminoso do prédio em frente

que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme. 

Quando voltará?

É como se soubesses

que voltará, sim, e que não, não poderá voltar. 

Quando, e se voltar, serei eu talve

quem já lá não está. Quando 

é quando?

Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar 

à possibilidade dessa forma?

.............

Revolução orbital

Revolução orbital: vai-se a rosa transformando 

na coisa múltipla, amante e amada, na acção 

que assim a faz e nos acidentes mínimos – paisagens, 

estações dos dias e das noites, dos anos da história. 

Ondula no cérebro a fronteira que as margens da luz 

desenham. E a rosa é uma hélice que vibra 

no ar que a respirar obriga(s): torção dos pulmões, 

do tronco e do sexo, dos nomes e dos vocativos 

que se respondem: como um coração que deflagra 

a rosa faz do ar que te falta a terra de onde nasces 

e o chão sobre que danças. 

Realidade, retórica

Os debates políticos só fazem sentido e são úteis quando tratam da realidade. Isto é, quando a arena é a realidade. Quando o terreno bascula para a retórica e a capacidade argumentativa perdem o interesse.

10.11.23

Invocação do milagre

Um inglês, com a sua mania da perifrase, diria deste ano que agora acaba que foi desafiante. Não foi. Foi uma merda, um horror, um inferno, um calvário. Teve três bons momentos: o nascimento da minha neta, a viagem da Suécia para Cascais e a próxima publicação do meu livro De Passagem (por ordem cronológica, que é quase igual à outra).

E agora vai acabar da pior maneira possível: na ausência de um milagre, vou deixar o meu P. antes de ele estar acabado. Isto em si já é suficientemente doloroso. Saber que está preso por pintelhices só piora as coisas, não as melhora.

Às vezes é preciso acreditar em milagres.

8.11.23

Dois infinitos

Não sei se sou eu que trabalho no mar, se ele em mim. Prefiro esta última hipótese enquanto oiço Hildegarde von Bingen: dois infinitos que se encontram.

Carta aberta

Não se pode dizer que os dias sejam fáceis, bons ou bonitos. Não são. Pode contudo dizer-se - e deve-se - que há escapatórias, momentos exultantes, jubilatórios. Tenho uma série daquilo a que em inglês se chamaria issues - um termo cuja tradução oscila entre problemas, questões, temas. São doze, aos quais atribuí uma classificação baseada em dois parâmetros: a urgência e a importância. Dos doze, seis - metade - está na classe mais elevada. A outra metade está espalhada pelas categorias «inferiores», que vão até cinco. Alguém se enganou na distribuição. Devia ser ao contrário. 

Mas não é e as coisas são como são e não como deviam ser. Nada é como deve ser, aliás. Resta-nos aprender a viver com essas imperfeições. É tudo e é bom. Gosto do pragmatismo da imperfeição, que prefiro ao snobismo do seu contrário. E assim aproveito estes momentos de euforia, por muito passageira e ilusória que seja: um item que desliza da prioridade um para a dois, uma notícia boa e inesperada... Dentadas nas issues, momentos que me permitem - me obrigam - a pensar que sim, há uma saída. Basta querer. Ou esperar, talvez. E essa saída não está só no vitello tonnato do Tomas. Está também naquilo que não controlamos. Detesto a esperança, que faz mais mal do que bem. Mas forçoso é reconhecer que a sua ausência é pior ainda.

E é isto. É bom chegar ao fim do dia com a noção de que ele começou pior.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 08-11-2023

Palma é a cidade perfeita para malabaristas desajeitados, estetas solitários e marinheiros em busca de um porto. 

O desfile de mulher bonitas continua ininterrupto, como se Deus fosse sádico e quisesse atazanar-me o pouco juízo que me resta. O vitello tonnato do Gustar - parte integrante da Gustar Terapia que por sua vez é pilar essencial da Palma Terapia - mantém-se sublime; uma das bolas importantes parece apontar para a boa mão. Palma é isto: uma rede gigante que apanha todas as bolas errantes que o artista com distrofia muscular ou paralisia cerebral manda ao ar. Só me resta escolher a maleita de que sofro: o tratamento está ali à frente, na Rambla, na Plaza Mayor, no Paseig del Born, no Gustar, no Antiquari, no Claudio, em todo o lado. 

Life's a bitch, dizem os americanos. And then you die, respondem os russos. Verdade. Mas é menos bitch e morres mais tarde em Palma. Sobretudo se fores marinheiro e falares aquela língua que só nós entendemos, a língua "hoje estás aqui, amanhã não sabemos". De passagem,  passe a publicidade nada encapotada.

Um snooker e uma paráfrase

Fiz uma lista exaustiva das bolas todas que tenho no ar. Atribuí-lhes prioridades, pesadas por dois parâmetros - a urgência e a importância. São doze bolas, até ver. As prioridades vão de um a cinco. Distribuição:

- Seis com prioridade um;
- Duas com prioridade dois;
- Três com prioridade quatro;
- Uma com prioridade cinco.

Alguém se enganou. Deus, este não é o snooker que eu pedi. Além de que falta o nível três.

Homenagem e confirmação

 « ...I rise to the surface, fortified by my own vulnerability,...». Esta frase é de uma das pessoas por quem eu tenho mais admiração e respeito (é muito raro as duas não andarem juntas). A descoberta da nossa vulnerabilidade é o primeiro passo para se ser um marinheiro - em terra, no mar, num canal ou no topo de uma montanha. Marinheiro é uma pessoa que se sabe vulnerável, o mais vulnerável da cadeia na qual respira e se movimenta. É a essa vulnerabilidade que ele vai buscar a sua força. Um marinheiro senta-se simultaneamente em cada uma das extremidades da vara do equilibrista. É tudo e o seu contrário.

Não tenho seguido atentamente a história da Nike. Sei que vai navegar na Europa, creio que em canais, mas não tenho a certeza. Do que estou seguro, isso sim, é do que lhe disse há muitos anos, pouco depois de a ter conhecido: «you're a sailor, Nike».

Uma lição aprendida

As pessoas são uma das quatro coisas que me interessam (as outras sendo a luz, o mar e as palavras. Esse post é uma das epígrafes do De Passagem). Talvez por desde muito cedo ter sido um leitor sôfrego e omnívoro, capaz de saltar de um livro dos Cinco para um do Sven Hassel. Ou por também desde bastante jovem ter convivido com as mais estranhas personagens, tanto directamente como através das histórias do meu Pai. Com a possível excepção da tropa - e mesmo essa é discutível - não há meio mais propício à exposição pública de idiossincrasias do que um navio. 

Gostar de pessoas é fácil. Difícil é aprender a não as julgar. Isso sim, levou-me muito tempo, muitos anos, vidas, erros, errâncias, encontros, desencontros, surpresas, ilusões e desilusões. Posso porém dizer - e digo-o com orgulho - que é uma lição aprendida.

Disse «molho de brócolos»?

O molho de brócolos é de tal ordem que quando faço uma lista deles falta sempre um ou outro.

6.11.23

Diário de Bordos - Sevilha, Andaluzia, Espanha, 06-11-2023

O bar Iscariotes em Sevilha tem na lista trinta e quatro runs. Não é uma aproximação. Contei-os. Pedi um Flor de Caña 7 anos, que a sete euros é uma das boas relações qualidade-preço. Não têm. Reverto para o Santa Teresa, um pouco contrariado porque esse custa oito e tenho-o no Jaume a um e meio mais barato.

Se eu fosse casado com Palma, Sevilha seria a minha amante. Como não sou, não hesitaria em levar esta cidade ao altar. Sevilha é o que Lisboa devia ser. O que Lisboa poderia ter sido, se Portugal tivesse mais dinheiro e menos turistas. Se... se... Farto de ses. Sevilha é o que eu gostaria que Lisboa fosse e não é só por ter bares com dezenas de runs (na carta).

Amanhã tenho de me levantar às quatro da manhã. Não posso usufruir da Pensão Lisdos nem destas ruas cheias de gente, com lojas que não são de recuerdos (andei à procura da "minha" papelaria. Felizmente não a encontrei. Já tenho canetas que cheguem). Comi um gelado de merda - é nisso que o Claudio transforma todos os gelados que não são dele - perdi-me no caminho para o hotel - espanta-me sempre o que a falta de vontade faz ao sentido de orientação - e agora bebo um Santa Teresa no Iscariotes enquanto a televisão gigante passa imagens da Semana Santa. Iscariotes, Semana Santa, Santa Teresa. A pergunta é: como não pedir outro rum?

Fiz bem. O segundo é ainda maior do que o primeiro. Parece um copo de água, só que em vez de água tem rum. Retiro o que disse sobre o rum no Jaume, aonde as medidas são muito sobriamente desrespeitadas. Este parece um triplo bem servido. Lá está: quer um homem ir deitar-se e tudo se conjuga contra ele.

Claro que podia estar em Cádiz ou em Málaga, em Almeria ou Cartagena, em Denia ou em Sitges. Mas não estou. Estou em Sevilha e hoje é esta a cidade que amo.

.........

Penso na quantidade de defeitos que tenho e pergunto-me se mereço tanta sorte. A resposta é imediata: não. Mas já que a tenho, aproveito-a e usufruo dela. 

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O sacana do puto trocou a Semana Santa por futebol e marimba-se por completo nos meus pedidos para acabar com isto. Tenho de deixar o balcão e ir lá para fora. Quem proibisse a televisão nos bares teria aqui um eleitor, por muito liberal que fosse (o eleitor).

E sim, juro que vou acabar este rum. Ainda está por nascer o barman que me serve mais rum do que o que posso beber.

........

PS - acabei na Cervecería El Patio, outro lugar que sugiro mesmo que reduza drasticamente o tempo de sono. Sevilha é uma daquelas cidades em que vale a pena trocar o sono por (neste caso) vinho tinto.

Nas margens da vida

Decidi fazer uns passadiços nas margens da minha vida mas tive de parar quando cheguei ao presente. Ainda tentei projectá-los um pouco no futuro, mas fui progressivamente obrigado a reduzir a duração dessa projecção. Passou de um ano a seis meses, daí a três, depois a um e agora meço em minutos. Sei que daqui a pouco pousarei o telefone e tentarei adormecer de novo. Não sei sequer se conseguirei.

Os passadiços são inúteis. A vida não se faz a olhar para ela.

5.11.23

Diário de Bordos - Loulé, Algarve, Portugal, 05-11-2023

Tal como é bom comprar de vez em quando coisas na net (uma vez por ano, mais ou menos) para nos lembrarmos de que não se deve comprar coisas na net, é necessário sair de Lisboa de tempos a tempos para nos lembrarmos de que fora da capital a vida está ainda mais perto da idade da pedra lascada. O mínimo que se pode dizer é que Loulé não me encanta. Não fora a simpática e bonita companhia - que foi o que me fez aqui vir, pelo que nem tudo se perdeu. Imagine-se o que teria sido se a senhora fosse um camafeu? - e teria amaldiçoado o dia em que tive a ideia de vir passar um fim-de-semana ao Algarve. Bom, há aqui uma enorme dose de exagero e inexactidão. Este «fora de Lisboa» tem mais buracos do que a Lua crateras. O Porto e Évora, por exemplo. Mértola. Mas enfim, o DV nunca se pretendeu uma obra realista e não é agora que vai mudar de orientação, coitado. Mesmo no Algarve. Já estive duas vezes em Olhão e gostei bastante. Portimão e Lagos. Sagres. Agora quero conhecer mais: Alte, Silves, voltar a Tavira, de que guardo boas recordações. Às vezes penso que conheço melhor França ou a Suíça do que este íman cujos pólos alternam, me atraem e me repulsam à vez. Isto dito, mantenho: em Portugal, o clima do sul e as pessoas do norte.

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Amanhã vou para Sevilha e de lá apanho o avião, terça de manhã, para o «meu» P. de que tantas saudades tenho. Vou na Ryanair, uma companhia na qual só viajo com uma pistola apontada à cabeça. Ou isso ou noventa euros de diferença de preço para o seguinte. Ainda por cima, como reservo os bilhetes na eDreams tenho de passar por um processo grotesco de «verificação de identidade» cujo único objectivo é lembrar-me de que a) não se deve viajar na Ryanair e b) a fazê-lo, comprar os bilhetes directamente à companhia. Não respeito nem uma nem outra, quando a diferença de preço é grande ou uma outra poderosa razão me força a isso. E continuo a comprar os bilhetes na eDreams porque já lhe conheço os atalhos e os penhascos.

........
As duas últimas injecções de Trulicity estão espaçadas de quatro dias apenas, em vez dos sete habituais. Resultado: hoje mal consegui comer e até já bebi uma garrafa (pequena) de água. Espero que esta semana as coisas voltem ao ritmo habitual e possa beber água porque quero e não porque preciso.

Retrato silencioso

Tinha os silêncios admiravelmente arrumados, num grande armário que ocupava a maior parte de uma das paredes do corredor de casa dela. Nunca consegui foi perceber se os tinha catalogados por destinatário se por temas. 

4.11.23

Morte e ressurreição

Ontem morri e quando cheguei ao céu - sou daqueles que vão directamente para o Paraíso, não preciso sequer de passar pelo purgatório - Deus disse-me:
- Desculpa. Estou desolado. Houve uma avaria informática e não consigo abrir-te os portões. Tens de voltar à Terra e quando eu tiver isto reparado chamo-te outra vez. Em troca, para te compensar da maçada, devolvo-te à vida. Vais é acordar no meio do velório, mas espero que não te importes.
- Não me importo nada, meu Deus. Aliás até vou gostar de ver algumas caras. Só espero que a avaria demore pouco tempo a ser reparada, porque estou um bocado farto daquilo lá em baixo.

Ressuscitar em plena igreja de S. Domingos de Rana a meio da tarde, cheia de gente, foi esplêndido. Quem falava era o T., o que é compreensível: é o meu mais antigo amigo. Estava a falar do meu complexo de S. Bernardo, da minha dificuldade em não desrespeitar «a minha palavra», dos problemas todos em que isso me tinha metido, da minha impulsividade. Sei lá, um ror de coisas. Sei que fiquei ali a ouvi-lo imóvel, olhos fechados, mãos cruzadas na barriga. Só me manifestei quando ele acabou: sentei-me e comecei a bater palmas.
- Obrigado, T.! - Sempre falei muito alto (deve ser por isso que fiquei surdo muito cedo) mas desta vez gritei. - Obrigado, T.! 

Ou seja: ao contrário do que sempre pensei, esta diabólica tríade era conhecida de todos. Sempre foi assim. Começava com um impulso, alegremente livre de qualquer forma de análise; continuava com o s. Bernardo, barrilinho ao pescoço, sempre pronto a ajudar alguém; e acabava comigo a aperceber-me da merda aonde estava mas a dizer-me «não podes voltar atrás. Fulano conta contigo.» Era mais ou menos disto que o T. falava e eu ouvi e aplaudi e só me apercebi do clamor da igreja ao fim de um bom bocado. A igreja quase vinha abaixo - esta é outra das características que o T. mencionou: ponham-me um elefante no meio da sala a dançar sapateado e eu não o vejo até o bicho reclamar com a minha indiferença. Tomá-la-ia, se isto acontecesse, por má educação. Não é nada, elefante. É mesmo só distracção.

De maneira voltei à vida, agora sabendo que de um momento para o outro poderia ser chamado lá acima. Infelizmente perdi a vontade toda de regressar. Vista depois da morte, depois de ver a agitação na igreja, as manifestações de alegria (e algumas de aborrecimento, verdade seja dita) a vida pareceu-me muito mais apetecível. Apesar de do paraíso só ter visto os portões, de do clamor na igreja - houve gente que fugiu pensando que eu era um fantasma! - só me ter apercebido ao fim de uns bons segundos (estava a pensar no discurso do T. e a bater palmas, não conseguia ver mais nada), apesar de me lembrar perfeitamente do alívio que senti quando morri (ao contrário do que é costume não vi um filme da minha vida. Só vi o filme das embrulhadas que deixava para trás), apesar de estar chateado com a carcaça (a justo título), apesar disso tudo fiquei contente por voltar à vida.

Claro que regressei cheio de boas intenções, facilitadas pela certeza de que não tardaria nada estaria de novo à frente do portão. A partir de agora pensaria mais em mim, a partir de agora pensaria mais, tout court, a partir de agora reconheceria que as circunstâncias nos podem forçar a mudar o que dissemos. Ou pelo menos a incluir em todos os compromissos a expressão «se tudo estiver como agora». A vida tornou-se-me bastante agradável, a avaria no portão nunca mais era reparada e comecei a pensar que o velho barbudo se tinha esquecido de mim.

Não esquecera nada. Perdi foi o direito de ir para o céu mas o inferno estava sobrelotado e o sacana do Diabo não cedia aos pedidos de Deus para me arranjar um lugar rapidamente.

2.11.23

A beleza das perguntas não-retóricas

As palermices dos media são consequência do zeitgeist, ou será este uma consequência daquelas? Antes da Covid a pergunta seria retórica. Depois não é. 

Dez em doze

Está o ano quase a acabar, faltam dois meses e já dá para fazer uma restrospectiva. Não muito brilhante, infelizmente. Ontem fazia um balanço do ano e não se pode dizer que tenha sido jubilatório. Não foi um grande milésimo, por assim dizer. Teve duas ou três excepções, contudo: a viagem da Suécia para Cascais. Começou em paragens que não conhecia e acabou numa das que me é mais familiar no mundo; a notícia da publicação do meu terceiro livro (juro que a partir do próximo deixo de os contar), juntamente com a crítica do João R., um momento exultante.

Tem porém uma grande vantagem: o que aí vem não poderá ser pior. Isto é, terá de ser melhor. E começando aonde começará será, esse sim, uma celebração do princípio ao fim. Um ofertório. Um Deo gratias, pelo menos nos primeiros cinco meses, que já representa quase metade.

ADENDA: releio este post e vejo que me esqueci do melhor - o nascimento da minha neta - e do pior - o problema com o olho esquerdo. E ainda há quem diga que sou excessivo.

Don Vivo - Edições financeiras, Lda

Quando for grande vou escrever um livro chamado A arte de dilapidar dinheiro com estilo (ou classe, não sei ainda). Vai ser baseado na minha experiência pessoal e vai ter quinze volumes, formato enciclopédia. Infelizmente, só se aplica aos gastos com o meu dinheiro. Com o dos outros não sou capaz de fazer disparates, tenham ou não estilo (o que não implica que não faça burrices, mas isso é outra história. São simplesmente erros, sem classe nenhuma. E são infinitamente menos, tanto em quantidade como em qualidade).

1.11.23

Amar o mar sai caro; ou: o apelo da sedentarização

Só percebo plenamente quanto o mar me rouba quando tiro os meus livros das caixas em que passaram meses (ou anos, às vezes).