31.3.23

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 31-03-2023 / Cont.

Para dizer a verdade, a exposição não foi a única coisa que me trouxe a Carouge. Às sete e meia da tarde havia um concerto no templo. Estava um bocadinho desconfiado: Mozart, Schubert e Schönberg. Mas fui (era convidado, de qualquer forma. Teria sido mal-educado não ir), o que só prova que todos devemos agradecer à boa educação e à capacidade de vencer a desconfiança. O concerto foi absolutamente sublime. Aviv String Quartet, para quem estiver interessado. De todas as minhas imperfeições, a mais imperfeita, aquela com a qual mais me custa viver é esta incapacidade total para a música. Soube recentemente que isso tem um nome: amusia. 

De todas as formas do silêncio, a música é a mais bela. Invejo aos músicos esta capacidade de comunicarem entre si, unidos por aquela parte da música que não se ouve - ou pelo menos un amúsico não ouve. O mais parecido que conheço e vivi (há tanto tempo...) são as manobras numa embarcação de regata com uma tripulação treinada. Não há uma palavra. O táctico ou o navegador dizem «Cambadela (por exemplo) em três comprimentos»; «dois»; «um»; «cambar» e a tripulação une-se pelos olhares dois a dois porque cada tipo à proa tem um par atrás do mastro e a manobra arranca, executa-se e termina sem mais uma palavra. Obviamente, há uma diferença de complexidade e de duração entre uma peça de música e uma manobra, mas são estas que me deixam entrever a felicidade que leio nos olhares dos intérpretes - sobretudo quando, como hoje, estamos na primeira fila, a dois metros mal medidos do grupo.

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Os posts deste blogue parecem-me uma espécie de tsunami: começam pequeninos ao longe, mal se vêem porque estão perdidos numa esquina esconsa de sinapses e depois vão crescendo, crescendo até rebentarem na praia (são tsunamis pequenos, graças a Deus). O «turbilhão» foi assim: veio de lá de trás, sei lá quando, começou a tomar forma no autocarro do aeroporto para casa da S. - paradoxalmente por causa da suavidade das ruas, passa-se três quartos de hora num autocarro e não há um solavanco e pus-me a comparar com uma viagem no velhinho quarenta e cinco em Lisboa, ou no vinte e sete (vade retro)... Bom, pouco importa. Deixemos a suavidade para outras ondas.

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Depois do concerto fomos jantar a um restaurante italiano ali perto. Comi um spaghetti com algas espirulinas e ouriços do mar que estava simplesmente de cair para o lado. Não menciono o vinho e a sobremesa para não pôr os meus simpáticos leitores a correr para a praia mais próxima à espreita de uma gigante, uma onda avassaladora. 

(E depois, há que lembrarmo-nos: um turbilhão traz e leva para trás. Não tarda estarei feliz por me ir embora.)

Diário de Bordos - Genebra, Suíça, 31-03-2023

Genebra é um turbilhão que roda em torno de um eixo e leva para um lado os ventos do passado enquanto do outro traz os do futuro. Estou na Plage, um café que abriu enquanto eu trabalhava no Marchand. Nenhuma ou muito poucas das pessoas que está aqui era nascida em 1985, útimo ano em que trabalhei ali ao lado. Vim a Carouge porque quero organizar uma exposição das fotografias de Genebra e fui falar a uma espécie de galeria que fica no sítio onde há mais de vinte anos organizei a minha primeira exposição (vendi uma fotografia. Pergunto-me se não ganharei mais fazendo postais). A senhora ficou de me dar uma resposta, sinal seguro de que terei de continuar a procurar. Domingo vou estar com o L., que até herdar a fortuna do pai era fotógrafo aqui e dos bons. Talvez me dê algumas dicas.

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O eixo deste turbilhão é a S. Ou melhor, a amizade que nos liga. A analogia do vinho que melhora com a idade não é correcta: um vinho velho continua vinho. O que nos une agora não é o amor que nos uniu. É diferente. É amizade e é em torno desta que tudo roda, como num ciclone: forças centrífugas, forças centrípetas, ventos que nos afastam do centro ou para ele nos levam.

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O café está desagradável, barulhento e com uma música que não me agrada. A esta hora a idade média da clientela subiu ligeiramente, apesar de continuar largamente inferior aos quarenta. Há uma idade para tudo e a minha, para este tipo de sítios, já passou. (A empregada é linda, mas pronto, isso faz parte das coisas que nunca mudarão em Genebra.)

30.3.23

Fraquezas

O cabelo negro tapa-lhe metade da face, o meio-olhar que fica é meio de esguelha, o corpo está muito ligeiramente inclinado para a direita. Olha directamente para a máquina, que está um pouco à sua esquerda. Isto é, olha de frente para quem está a ver a fotografia. Do pescoço pende um crucifixo que conduz o olhar directamente para o seio direito. Deste os olhos vão para o esquerdo e dali baixam para o resto do corpo, mas esse movimento é interrompido pelos braços, pelas mãos juntas em cima do umbigo (aproximadamente.  O modelo está vestido. A imaginação trabalha tanto como os olhos). A camisola de lä, verde, as mangas arregaçadas, os seios firmes, pontiagudos, duros,  acentuam-lhe a energia que se adivinha naquele corpo, naquela mente. Tento decifrar a imagem, claramente de amador. A tensão vem toda do modelo, que desafia o fotógrafo e por arrasto quem a vê, apesar de o cenário ser banal, turístico. 

A fotografia tem trinta anos e prende-me no imediato momento em que a vejo: o meu fraco são as mulheres fortes.

29.3.23

A maior parte de mim

"Por que palavra começar, por que desordem?"

A cada chegada a Genebra é o mesmo turbilhão. Depois o remoinho acalma, volta a tranquilidade. Depois, ainda, a vontade de me ir embora. Eu não sou daqui. Daqui é só uma parte de mim, não eu todo. Não sou todo de lado nenhum. Nem ao mar, sequer, pertenço todo. Há sempre uma parte de mim numa parte qualquer do mundo.

Mas de que a maior parte de mim está aqui não pode haver dúvida. O futuro é sempre maior do que o passado e esse futuro tem nome. Chama-se Leonardo, Helena, Tomás. 

Diário de Bordos - Aeroporto do Porto, Portugal, 29-03-2023

Durante muitos anos especializei-me em chegar aos aeroportos à última da hora (e às vezes ligeiramete depois. Felizmente essas foram poucas). A primeira vez na vida que vi a necessidade imperiosa de um telefone portátil foi quando, em Londres a caminho de Heathrow, telefonei para um check in da TAP a pedir para não o fecharem antes de eu chegar. (Em rês etapas: Aeropoprto, TAP, balcão de check in. Tempos gloriosos, esses, em que a fantasia era possível. Hoje também é, claro, não é amanhã a véspera do dia em que ela vai desaparecer. Mas não é a mesma fantasia. É outra, diferente e mais débil, mais pálida, por assim dizer.)

Depois, pouco a pouco, por efeito de um factor qualquer que agora de repente não me ocorre, comecei a chegar a tempo. Daí a chegar cedo de mais foi um passo. De maneira fui assistindo, progressivamente, à subida de preços nos estabelecimentos cafeteiros dos aeroportos. Foram subindo: de caros a muito caros, de muito caros a absurdos, numa encosta bastante íngreme. Hoje atingi o ponto mais alto dessa encosta (para mim. Aposto que não vai parar aqui): quatro euros e trinta cêntimos por um Sumol de Laranja. Quatro vírgula trinta euros. Brinquei com a senhora, a troca de larachas cresceu e a certa altura ela diz-me:
     - Mais valia beber cerveja.
     - Ainda é cedo - respondo.
  - Isso depende da hora a que acordou.

Quem não gosta do Porto não percebe nada de aeroportos.

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Ainda não consigo ler a cem por cento, excepto num ecrã. Seja de telefone, seja do computador. A continuar assim, não tarda estou convertido aos livros electrónicos. Antevejo mal esse futuro.

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Quarenta e cinco minutos (isto hoje só me saem números) do hotel aos filtros de segurança do aeroporto, de metro. Tivesse vindo de táxi e teria demorado um pouco mais de metade por seis ou sete vezes o preço. Da próxima vez venho de bicicleta. Pelo menos poupo nos preços alucinantes do café onde escrevo estas linhas e passo menos tempo à espera da abertura do embarque. Viajar de avião consiste em alternar períodos de espera com chatices - filtros, walk through, Sumol de laranja a preço de ouro em pó. Feizmente aprendi a evitar filas de embarque - tento sistematicamente ser o último a entrar no avião e já desenvolvi ua série de técnicas para isso. Permite-me escolher o lugar, quando o avião não vai cheio a abarrotar e minimizar o tempo de espera dentro da aeronave. O qual está cada vez mais longo, agora que por causa da Covid as revistas das companhias aéreas desapareceram. A certa altura ainda alimentei o sonho de escrever para uma delas, mas como de costume deixei-o passar. 

Não preciso de correr atrás dos sonhos para que eles desapareçam. Basta-me não fazer nada. 

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ADENDA - O voo da TAP vai sair a horas, está quase vazio e como sempre o pessoal de cabine é simpatiquíssimo. E ainda há quem diga mal desta maravilhosa companhia.

Só é pena é sair-nos tão cara.

PPS - Os controladores aéreos em França estão em greve. Surprise, surprise.

28.3.23

Diário de Bordos - Porto, Portugal, 28-03-2023

Breve escala no Porto. Nada a fazer, esta cidade enfeitiçou-me. Está agora onde Lisboa estava há uns anos. Infelizmente o resultado será o mesmo: em breve teremos de ziguezaguear para encontrar restos do que era e evitar os foodie-gourmet-trendy-vegan-modern-style. Mas ainda não está assim e a transformação da cidade cinzenta e chuvosa que conheci para esta cheia de sol, de risos, de gente e de alegria é fulminante. Nos dois sentidos: foi rápida e deixa-nos fulminados.

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Bebi um copo com o D. no Pipa Velha, o meu café-bar-restaurante-petiscaria-tudo favorito desta zona. Não está sempre a abarrotar como o Aduela, não tem aquele aspecto dep-chicos-parigot do Candelabro e ainda menos a pedantice da champagnerie (não me lembro do nome). Dos outros não falo porque não conheço. Há um bar de vinhos onde fui uma vez e gostei bastante mas hoje estava com o Pipa Velha fisgado e ali fiquei.

Depois voltei para "casa", com uma brevíssima paragem para bancas no Tarantino.  Conheci o dono, um "ex-comando". "Ex? Não sou ex-comando. Ainda o sou." Contas rápidas de cabeça levam-me a crer que o senhor tem mais quatro ou cinco anos do que eu. Gosto de pessoas assim: são o que foram porque o que foram é o que são. 

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Como esta minha "casa" aqui: o hotel San Marino. Cada vez que cá venho vislumbro o sentido da palavra hospitalidade e como ela se relaciona com hotel, simpatia e profissionalismo. Se não me engano as "autoridades" (aspas porque é ironia) atribuem-lhe duas estrelas. Eu atribuo vinte, pelo menos vinte.

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Hoje é a minha vez de entrar no sono com o garbo de um porta-aviões e as fintas de um destroyer numa luta anti-submarina.

Amanhã veremos a eficácia desta frota sui generis.

Diário de Bordos - Autocarro Alijó - Porto, Portugal, 28-03-2023

Estou gelado. Desde as mãos até ao futuro tudo é gelo dentro de mim. Do passado nada sei: nem como cheguei aqui, nem de onde vem tanto frio. Impossível prever quando chegará o calor. Impossível prever, de resto. 

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Mais do que saber quem me seduz é preciso saber quem seduz as minhas palavras. Elas sabem, antes de mim, a quem me devo dirigir. Poderia mesmo ir mais longe: são elas que escolhem.

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Na camioneta de Alijó para o Porto. Sentimentos confusos. "Vastas emoções e pensamentos imperfeitos" não é só um título magnífico. É a descrição de uma passagem interior que por acaso é a minha, tantas vezes. Amanhã estarei em Genebra de novo, para um par de semanas. É como parar para meter combustível. Ir a bancas, como diria se estivesse num navio. Ou no meu P., coitado, que tanto precisa de fazer bancas (a expressão vem do inglês bunkers, não tem nada a ver com bancos, se por acaso).

26.3.23

Irritações lexicais

Que estranho fenómeno levará gente inteligente a dizer "a minha pessoa" em vez de eu ou mim? O uso absurdo e abundante de "o mesmo" ou "a mesma" suscita a mesma dúvida. "A porta está avariada. É favor fechar a mesma." Porque não "é favor fechá-la"?

Deve ter a ver com o número de sílabas. Quantas mais, mais culto o orador se sente.

Bárbara, completa.

Ontem fui à livraria Poesia Incompleta ver os quadros da Bárbara Assis Pacheco. A livraria é muito mais do que o nome: é uma excelente e completíssima livraria especializada em poesia e merece todas as visitas que se lhe possam fazer.

A exposição poderia chamar-se «Bárbara a sonhar com leões». Infelizmente, este título tem por trás aquela carga sardónica da expressão «sonhar com ladrões» (de onde provem, de resto) e é pena: os sonhos são bons, poderosos, evocadores e dão-nos vontade de os comprar todos. Leões, piscinas e personagens femininas pintados nas cores plenas que é o estilo da pintora. Os meus conhecimentos teóricos de pintura são bastante reduzidos e não poderia dizer, mesmo que o quisesse, em que linhagem aquela obra se inscreve. Verdade seja dita, é-me indiferente: este é um daqueles casos em que «gostar muitíssimo» é insuficiente. Peca por defeito. Há várias coisas que me levam a gostar ou a não gostar de um quadro. A maestria técnica é uma delas. A história que conta outra. E a que não conta, a que está para lá do espectro visível. Creio que já aqui falei da exposição Bicharadona, em Montijo e do choque que senti ao entrar: no primeiro repente, a pintura da Bárbara parece infantil. Depois começa-se a olhar e vê-se que é tudo menos isso. É sofisticada, subtil e tem - como tudo o que é bom - vários níveis de leitura. Acorrei à Poesia Incompleta - a Bárbara não podia ter escolhido melhor lugar para expor estas obras, que são tudo menos incompletas. Como a livraria, de resto.

23.3.23

Combustível, insónia

Três e meia da manhã. A insónia entrou garbosamente pela noite dentro, como a proa de um cruzador a navegar a toda a força em mar chão. Mas agora o navio vai atracar. Falta de combustível? Talvez: o dia já foi remoído e  queimado.

Eu só sei dançar sozinho - Reedição

Por vezes toca-me à campaínha às três da manhã, ou quatro - a qualquer hora. Abro e nem "boa noite" oiço. "Ela abafou-me outra vez", explica. "Ela", eu sei, é a tristeza, a solidão. "Desce sobre mim como um cobertor, como o cobertor de quando a minha avó me aconchegava na cama e de repente o frio desaparecia, percebes? Abafa-me, aconchega-me; parece que se faz noite, apesar de já ser noite". Digo-lhe para entrar, preparo-lhe um gin tonic (com duas ou três gotas de bitter Angostura) e deixo-a falar. Uma vez perguntei-lhe "Desce como um abutre?" e ela respondeu "Não, que horror, se fosse um abutre eu estaria morta e não estou". 
    "Percorro a cidade, de noite, para saber aonde pertenço [where do I belong to, tinha feito a escola primária nas freiras inglesas de Belém e a Universidade em Londres]. Hoje fui ao Santiago Alquimista, conheces?" Acenei uma vaga negativa. "O espaço é muito bonito, mas está povoado de meninos de coro que se fingem artistas. Prefiro o contrário". "Depois fui ao Maxime". "Esse conheço", encorajei-a. "Menos meninos de coro, menos artistas. Um nojo: tudo sujo, o chão peganhento, montes de homens. Não era sítio para uma mulher sozinha". Alexandra dificilmente entrava na categoria "mulher sozinha". Era muito pequenina, magra, morena como se tivesse saído ontem do Rif - mas quando se deslocava parecia ter um exército com ela. Não por ser agressiva, mas porque enchia o espaço todo. "Enfim, uma merda. Acabei numa boîte cabo-verdiana. Sabes, dançar música africana não é difícil. Basta não te veres a dançar. É por isso que não gosto de tango: eles não dançam, olham-se." 
    São seis da manhã, Alexandra está deitada no sofá da sala com o copo de gin na mão; reclina-se regularmente para o beber. Não gosto de boîtes cabo-verdianas: aquela música dança-se sempre a dois e eu só sei dançar sozinho. Há poucos povos africanos que dançam sistematicamente a dois; e mesmo assim poucas músicas. No Zaire isso acontecia, por vezes. Uma vez tive uma namorada muito bonita, jovem, que todas as noites tentava ensinar-me a dançar na boîte de um maricas que tinha a música aos berros e onde íamos regularmente. Eu dizia-lhe, "Tsombé, eu não sei dançar a dois"; e ela respondia-me "Mas sabes fazer amor. Porque não consegues dançar?" "Porque se calhar faço amor sozinho". "Não sejas idiota". Como a minha hóspede, Tsombé era parca na fala, mas não hesitava muito na escolha de palavras. Alexandra continua deitada no sofá. Não me importo de a acolher, seja a que horas for: fala pouco, não me critica os silêncios - provavelmente até os agradece. Às vezes fazemos amor; mais frequentemente não: acabar na cama com ela faz-me pensar na Tsombé e em como é bom fazer amor quando se ama ou é amado (a reciprocidade não é essencial. Basta um amar, ou deixar-se amar). Com Alexandra a única reciprocidade é a do desejo; ela diz-me "fode-me, mas não vás mais longe do que a pele, porque para lá não há nada". Tsombé não era assim: sentava-se em cima de mim, apontava para o umbigo e dizia: "até aqui". 
    Alexandra acaba por adormecer. Fico na sala a olhar para ela. Daqui a pouco irei buscar um cobertor para a tapar. Eu só sei dançar sozinho

Definição - envelhecer

Envelhecer é um processo tão simples quanto inevitável que se traduz por:

a) Aprender a resistir à tentação de corrigir todos os males do mundo;

b) Aprender a corrigir os nossos próprios defeitos, deixando os dos outros em paz. Ou melhor: aprender a viver com os nossos defeitos e com os dos outros.

Caça às bruxas, neo-maccarthismo e outros demónios

Com o clima de intolerância que por aí anda, pergunto-me quanto tempo faltará para a caça às bruxas regressar? Ou quando teremos um novo McCarthy, à cata de «inimigos interiores»? Os demónios do bem andam à solta. São os piores.

22.3.23

Alvos colaterais

À longuíssima lista de violências que a Covid me fez devo acrescentar a de hoje: não poder fazer uma viagem  os Estados Unidos com o Alberto Gonçalves. Ainda por cima, esta sobe  directamente ao pódio. 

Claro está que a responsabilidade é minha: não sou vacinado contra a Covid e recuso-me a sê-lo. Não por medo das possíveis consequências mas por princípio, por teimosia, por - neste caso - masoquismo puro. De nada serve atribuir a culpa ao vírus, ao Biden ou à Big Pharma. A escolha é minha.

Mas lá que passei o dia a insultá-los passei.

21.3.23

Lisboa, pó-de-arroz

Lisboa é puta velha, dá-te mais do que te pede: já sacou das gerações anteriores tudo o que podia sacar.

Paradoxalmente, a miudagem que aí vem vai poder dizer o mesmo: Lisboa disfarça-se, cobre-se com camadas e camadas de bâton e pó-de-arroz e engana toda a gente. 

20.3.23

Amor, flechas

Num homem sem amor as palavras são como flechas sem alvo.

Deus, Diabo e alguém que os escolha

Fiquei ateu muito cedo, aos onze ou doze anos. Era ajudante de missa e tudo, mas o vírus da vela - e mais tarde o do mar - substituíram o da fé.  Porém, esse ateísmo tem vindo a evoluir. Antigamente não acreditava na existência do Diabo - sem Deus não há diabo e sem este não há aquele.

Uma pessoa vai crescendo e apercebe-se de que se o diabo não existe, existe alguém que se parece diabolicamente com ele. Já a ausência de Deus permanece. Nem Deus nem alguém divinamente parecido com Ele.

Aqui chegado, é forçoso reconhecer que não há nem um Diabo nem um Deus. Há muitos, tão entranhados um no outro que é impossível distingui-los. Entre Deus e o Diabo venha o homem e escolha.

Pagar para sonhar

Há uns meses dei por mim a sonhar com o que faria se ganhasse uma avalanche de massa e gostei do que vi: uma bicicleta (igual à Coluer mas em carbono), um barco (pedir propostas a VPLP, Hugh Welbourn e Ed Dubois para qualquer coisa monocasco entre setenta e oitenta pés, rápida, confortável e simples). Até pensei, imagine-se em casas e carros - prova provada, como se necessário fosse, de que por muito que se corra a idade corre mais depressa. Consequentemente, segunda-feira comprei um bilhete para o totómilhões, coisa que não fazia há mais de uma dúzia de anos.

Ganhei três euros e noventa e quatro cêntimos, o que representa um prejuízo liquido de um euro e seis cêntimos. Não acredito nas lotarias como método para enriquecer mas pagar cinco euros para ter um sonho bonito parece-me aceitável. 

Enfim, para dizer a verdade uma espécie de Coluer em carbono já me encheria de felicidade e para isso não preciso de um totómilhões. Também não preciso do resto: nem de um setenta pés, nem de um automóvel luxuoso, nem de uma casa minha (posso muito bem arrendar uma).

Cheguei de novo a esta conclusão depois de comprar outro bilhete e os meus prejuízos passarem a seis euros e quatro cêntimos. Agora só volto a tentar daqui a uma dúzia de anos. Na verdade, não gosto de pagar para sonhar: posso fazê-lo de borla. Há menos milhões - e menos totós.

19.3.23

Noie, sono: instruções

A maneira correcta de entrar na noite é: com firmeza, determinação e obstinação. Posição fetal: pernas encolhidas até os joelhos tocarem no queixo, mãos apoiadas fortemente nos ombros (a esquerda no direito e a direita no esquerdo, claro), respiração lenta e profunda. 

Basta esperar três horas ou quatro para que o sono chegue.

Venham mais cinco

Nunca liguei a "dias". Dia disto, daquilo, Natal, Páscoa, aniversários... até do meu aniversário cheguei a esquecer-me. O Facebook veio mudar isso tudo. Impossível esquecer-me do meu aniversário ou de que hoje é dia do Pai. Não há quem não poste fotografias do "melhor pai do mundo" ou do "paizão" ou do "pai dos meus [dela] filhos".

Não acredito muito em nada disso. O dia do meu Pai é todos os dias que penso nele e ele já cá não está, são muitos, todos, vai quase para vinte anos. Dia da Mãe ainda são todos, faz menos tempo que foi ter com o tempo e com o marido. Soube recentemente da existência de um dia dos irmãos. E um para os filhos, há? Pouco importa. Todos os dias são dias de alguém que me é querido e em quem penso, todos os dias. 

Isto porque fez há dez dias cinco anos que comecei a trabalhar para o meu P. Uma viagem que era suposta durar uma semana transformou-se numa vida. Esqueci-me de celebrar esse aniversário, mas posso dizer - e digo - venham mais cinco. Obrigado, M., armadora - cliente - amiga com quem partilho os altos e os baixos do trabalho por me aturar estes anos todos, por me ter deixado fazer as asneiras todas que fiz e - sobretudo - por me ter deixado fazer bem tudo o que fiz bem, que foi muito mais do que o que fiz mal. Se em tudo o que faço sempre pus tudo o que sou, no P. tenho tudo o que fui, sou e serei. 

Cinco anos, P. Venham mais cinco. És teimoso e para teimoso, teimoso e meio. És lindo e mais lindo ficarás ainda. Dás-me água pela barba, mas eu sacudi-la-ei, não te preocupes. Ainda temos muitos dias pela proa, muitas chatices e muitas alegrias. Alcandoraste-te, por mérito teu e da M., ao difícil lugar de embarcação da minha vida e dele não sairás, nunca.

14.3.23

Amores, viagens, contrafortes e uma letra

Procuro as traduções portuguesas de butoir e de arc-bouter e não encontro nada de satisfatório na net. O Grande Dicionário Francês/Português Domingos de Azevedo, da Bertrand, edição de um pouco antes de Cristo não é grande coisa mas ajuda. Para butoir dá batente de portão.  Seja de portão, se quiser; mas não é só. Date butoir, por exemplo, é data limite, prazo, em inglês deadline. Para arc-bouter está mais longe: "entesar-se fincando os pés no chão".  Não é nada disso, Domingos. O que tenho em mente é o corpo da --- com os pés bem apoiados na cama, a cabeça na almofada e o resto todo no ar, fazendo um arco perfeito, entesado e musculado sim, mas curvo, Domingos, todo curvo, butoir perfeito para outro corpo entesado, Domingos, mas esse tão pouco tinha os pés no chão,  estavam bem perto dos da --- e o resto estava apoiado nos braços, Domingos, nos braços, só linhas rectas neste, contraste perfeito com as curvas e a curvatura do outro, mas disso não há dicionário que fale, só o da memória talvez, o do devaneio, o do desejo.

Tudo isto começou com date butoir, data limite, prazo final, que é daqui a um mês e daí vai um salto até arc-bouter,  que foi há treze ou catorze anos, as palavras dão saltos redondos como o "o" de arc-bouter, ausente de butoir mas isso é irrelevante. É tão bonito, arc-bouter, era tão bonita, a --- arc-boutée, raide comme un arc-boutant de cathédrale, une prière à deux, Domingos, como eu agora rezo para que a date butoir seja verdade e não mais uma dessas miragens que têm sido a minha companhia, aqueles cabelos loiros espalhados pela almofada como raízes de uma árvore caída na cama, como é que uma simples letra pode ser uma máquina de viajar no tempo, Domingos, tu sabes?

Como é que uma simples letra consegue acordar-me, tirar-me do sono e do quente, do peso dos cobertores para te ir consultar, já não te abria há tantos anos, Domingos? E voltar atrás, partir de butoir e acabar em arc-boutant, partir de um calvário cujo fim está à vista para uma festa,  uma catedral, um contraforte, um amor? 

Os amores são como as viagens: têm princípio mas não têm fim. E como as catedrais, que têm contrafortes mas não têm limites.

12.3.23

No man's land

Aninho-me em mim. Esta carcaça martirizada (isto é um exagero) acolhe esta mente martirizada (isto é um understatement). Enrolo-me, abraço-me, envelopo-me, aconchego-me. Deixo os lençóis, edredões, cobertores e a noite fazerem o seu trabalho de apaziguamento. O dia apaga-se mais devagar do que o candeeiro. Não há um só interruptor: são muitos e vêm de direcções diferentes. O corpo e a mente aceitam todos os carinhos e lutam denodadamente para afastar dúvidas e angústias. Não buscam certezas. Sentem-se bem naquele no man's land no qual se esbatem os medos e as certezas ainda não apareceram. É por aí que o sono se esgueira. Aí mora a paz. E eu, às vezes.

11.3.23

Loiça, burocracia

Percebo, finalmente, porque gosto tanto de lavar a loiça: vejo o progresso da acção. Começa-se por ordenar a loiça suja, lava-se, passa-se por água, põe-se a escorrer o que é para escorrer, seca-se e arruma-se o que é para secar e arrumar. Deita-se uma vista de olhos à cozinha (fica sempre qualquer coisa para trás) e hey, presto, acabou. A acção teve um princípio, um meio e um fim. Pode passar-se a outra coisa.

Isto é a antítese do que se passa quando se lida com a burocracia portuguesa: é um rio com mais meandros do que um rio africano e com a mesma abordagem ao desaguamento no oceano: há tempo.

10.3.23

Receita, vida

- Doutor, estou doente. Preciso de uma receita médica para viver.

- Viver é muito vago, meu caro. Se quiser, passo-lhe uma receita para um pequeno-almoço, um almoço e um jantar por dia.

- Ora, isso não chega. Viver não é só comer.

- O que é que você quer mais?

- Tanta coisa! Copos com os amigos, livros, teatro, cinema, viagens, conversas com quem discorda de mim e com quem pensa como eu, família, amor, um bom emprego...

- Isso é impossível de pôr numa só receita, tudo ao mesmo tempo. Tem de escolher.

(Cont.)

Diário de Bordos - Lisboa, 10-03-2023

Sexta-feira é o pior dia da semana. Acordo a pensar que o que não aconteceu nos quatro dias precedentes vai acontecer hoje, porque é o último de um ciclo; depois, lembro-me de que se não acontecer, esperam-me dois dias em que nem a esperança de que venha a acontecer há, que um novo ciclo recomeçará a seguir a esses dias vazios. Para quem espera, o fim-de-semana são os dias do desespero e sexta-feira o dia que o antecede. Como estar à beira do poço e saber que se vai cair nele, inexoravelmente. É o último dia que nos pode impedir essa queda. Último dia e queda que se repetem semana a semana.

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A autoflagelação é a pior forma de tortura: só nos podemos culpar a nós próprios. Ou a melhor: só nos podemos culpar a nós próprios. Não sei. Ser-se responsável (e culpado, também) por tudo o que nos acontece é simultaneamente carregar um peso e alijar esse peso. Talvez no fundo seja uma forma aceitável de misantropia. Uma forma humana, por assim dizer. (Como se houvesse uma forma marciana de misantropia...)

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Não há maneira de acabar, este Inverno. Não tem fim à vista. Ao frio e ao gelo seguem-se mais gelo e mais frio. (Este «não tem fim à vista» é mais do que uma expressão: enquanto os meus olhos não estiverem como deve ser nada terá fim à vista. Estou a ser atacado por todos os lados ao mesmo tempo, como se estivesse cercado. Vá lá, pelo menos dos olhos não posso dizer que sou responsável. Ninguém é. Se ao menos Deus existisse...

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E assim fecho o círculo: um dos temas desta manhã foi a existência de Deus. Claro que existe: é uma construção humana e «tudo aquilo em que um homem acredita é uma imagem da verdade», parafraseando Blake, esse grande visionário. O contrário é verdade também: Deus não passa de uma construção humana e como tal não existe autonomamente. É uma parte do homem. É um assunto que me é estranho. Entre a liturgia católica e os ritos voodoo a diferença é de estilo, não de substância. (Por isso tão pouco alinho na fúria anti-Igreja por causa dos abusos: a Igreja não é diferente das outras organizações humanas.)

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Cada vez que vejo a data para o título destes diários de bordos arrepio-me. Já Março vai em quase metade e o P. como estava há seis meses.

6.3.23

Diário de Bordos - Lisboa, 06-03-2023

Passo muito de raspão por um título do Público segundo o qual uma tartaruga bebé andou à deriva seis mil quilómetros. Não interrompi o zapping frenético para ler a notícia. Tenho algumas dúvidas sobre a adequação do verbo derivar mas a verdade é que estou mais preocupado com a minha "deriva" (aspas porque aqui tenho a certeza de que o verbo não é o adequado) do que com a possível deriva de uma tartaruga bebé. 

(Foi com a corrente do Golfo da Flórida à Irlanda, fui espreitar a notícia.)

Fico contente por ela e gostaria muito que esta surreal corrente burocrática na qual derivo chegasse ao fim, como a da tartaruga bebé, sorte a dela. Pensava que saído das garras da burocracia camarária tudo iria mais depressa, mas não: a burocracia bancária é quase a mesma coisa. A relação doentia, perversa e sádica (ou masoquista, se vista pelo outro lado) que os portugueses mantêm com a burocracia é-me dolorosamente incompreensível. 

No Burundi as agências vinham ao nosso escritório, deixavam um pedido de material, nós preenchíamo-lo e uma semana depois vinham buscá-lo. Um dia perguntei ao Anicet de quanto tempo precisava ele para executar o processo todo, do princípio ao fim. Disse-me que não sabia, nunca o tinha medido. Sentei-me com ele e juntos percorremos o caminho da A a Z: avaliar o pedido, verificar os nossos stocks, enviar aquilo para o armazém. Durou menos de dez minutos.

- Porque é que os fazemos esperar uma semana por uma coisa que nos leva dez minutos a fazer?
- Não sei - respondeu. - Sempre foi assim.
- A partir de agora vai deixar de ser. Em primeiro lugar, vais despachar todos os pedidos que tens pendentes. E o próximo que entrar é feito e entregue imediatamente. É idiota fazer esta malta sair do escritório deles, vir ao nosso, regressar aos seus trabalhos, voltar aqui e ir ao armazém quando isso pode ser feito de uma vez só (Bujumbura não é uma cidade enorme mas as deslocações eram lentas e não totalmente isentas de perigo).

Assim fizemos. Com tanta sorte que o primeiro pedido que entrou depois disto foi trazido por uma jovem que era das mais críticas do ACNUR. A moça era tão bonita quanto sarcástica e quando nos entregou o formulário fez uma observação do género "então agora venho cá para o ano, não é?"

Fi-la sentar, entretive-a com conversa de chacha até o Anicet me fazer sinal de que estava pronto e aí sim, respondi-lhe enquanto lhe dava o papel:

- Não precisas de vir para o ano. O pedido está aceite. Podes ir directamente ao armazém para eles preparem a ordem e coordenar a recolha. - A rapariga não queria aacreditar A notícia espalhou-se depressa pela comunidade da ajuda humanitária. O ACNUR aceitava ou (mais raramente) recusava pedidos de material em dez minutos.

Aposto que se os nossos burocratas soubessem que dá muito mais gozo ser admirado do que desprezado - coisa que ou ignoram ou que aceitam pacificamente - a nossa burocracia minguaria como, aparentemente, a tartaruga bebé.

(O que é que acontece à carapaça quando as tartarugas emagrecem? Ficam largas como sapatos dois tamanhos acima do bom? Caem? Minguam também?)

ADENDA - Meia dúzia ou pouco mais de meses depois tinha o processo todo informatizado. A malta das agências só saía dos seus escritórios para ir ao armazém controlar a carga. Internet no Burundi em 1994. Basta querer (e ter uma equipa que acompanha). Um ano depois de me vir embora uma das antenas V-Sat foi alvo de um atentado - a que estava do lado zairense da fronteira -  e acabou-se a net, mas durante a urgência aquilo funcionou como um relógio suíço. Precisão: basta sermos muitos a querer.

5.3.23

Comboios, sonhos

Esta ideia tonta de a noite ser uma bola, ser redonda, não ter ponta por onde se lhe pegue, nem calor, nem sono,  ontem, hoje... Tem amanhã, vá lá, não se perde tudo. Dia é aquela parte do dia em que não estamos juntos porque vamos trabalhar os dois, ela para um lado eu para outro. Depois chega a noite, ela continua de um lado, eu do outro e a noite arredonda-se, fecha-se num círculo em que nada nem ninguém penetra.

Enfim, não é bem verdade. Entram as memórias, parece que estão no comboio: umas lêem, outras passeiam-se, às vezes vão ao bar buscar uma bebida ou uma club sandwich, assim em inglês porque é um comboio chique, este da noite. Ou da memória, se preferirem. O comboio é grande, anda devagar. O bar fica numa das extremidades, a que fica do lado do mar.

Nada estraga mais uma noite do que um comboio carregado de lembranças. Até os nomes das estações mudam. 

Se ao menos fossem carregados de sonhos.

"Sophia" e os lugares

Três poetas portugueses mais interessantes do que "Sophia": Ruy Belo, Pedro Tamen, Nuno Júdice.

Notas:

1 - Fernando Pessoa está obviamente em fora-de-jogo de posição;

2 - Os nomes vão sem qualquer ordem, nem sequer alfabética;

3 - Aspas em Sophia porque já enjoa, sem elas;

4 - Hoje ouvi no Panteão uma boa construção de textos da supra-mencionada "Sophia", que só pecou devido à trilha sonora, um bocadinho invasora. A dita construção de textos destinava-se a fazer "uma leitura dos lugares de Sophia" (aspas porque cito) e desempenhou correcta e eficazmente essa função: nem todos os "lugares de Sophia" são frequentáveis.

(ADENDA) 5 - Não menciono Herberto Hélder porque não o conheço tão bem como conheço os outros. Mas acho que é de incluir na lista, mudando o três para quatro.

Um brinde à distância

Nessa longa praia (do teu corpo) deixo-me visitar pelo tempo. "És inevitável", digo-te e tu respondes "como a morte?" e eu continuo como se não te tivesse ouvido "como o mar" "ou seja, como a vida" dizes e neste assim diálogo continuamos os dois como se nos ouvíssemos e nos tocássemos. Como se não nos amássemos, nesta longa praia dos nossos corpos enredados à distância. 

2.3.23

Despertice, ou: coisas que só uma insónia potente nos permite descobrir

Uma senhora chamada Teresa Guilherme, que é ou foi apresentadora de televisão, orgulha-se de saber muito de reality shows. Eu se percebesse pouco que fosse desse tipo de programas não o diria a ninguém. Teria vergonha. Na mesma entrevista, fala de outra senhora de quem ultimamente se tem falado muito, uma apresentadora que encontrou a virgem Maria num sapato. Nunca vi nenhuma delas e se vi foi por tempo insuficiente para me lembrar, mas prefiro marginalmente esta última. Parece-me mais esperta. Ou desperta, não sei.

Essa pele

Essa pele sedosa e branca que tantas vezes toquei e foram tantas e tão poucas, tão poucas, que hoje sinto como se fosse a minha porque já o foi, essa pele, dizia eu aqui calado de lábios colados nela, essa pele.

Vida circular

À economia circular, que me indifere, contraponho a vida circular, a minha. Infelizmente,  ao contrário do par de botas que calço nos dias de chuva ou quando vou para o campo - para alguma coisa há-de ser ir - a carcaça para nada servirá, quando se for desta. Fará fumo e cinzas ou alimentará insectos e bactérias, quando muito. Já das botas talvez alguém faça uma obra de arte, um cinzeiro, umas botas novas, uma casota para lagartixas, que sei eu?

Sei que mais vale circular ainda em vida e fazer desta uma circular, caminho de sonhos e outros corpos, carrinho de ideias, aprendizagens, leituras, "passos em volta", à volta, de volta. Carrossel de cavalos vivos, uns fogosos outros mortiços, carrossel ora avariado ora sobre-acelerado, às vezes cheio de cores outras a preto e branco. És de onde estás mas nunca ficas em de onde és. Circula, vida. Paradas ficam as botas, a albergar lagartos. Tu bebe e deixa-te beber, ama e sê amada, circula e faz-te círculo.

Passa por onde já estiveste mil vezes: a cada uma será a primeira. Começa e acaba: será a última. 

1.3.23

Diário de Bordos - Lisboa, 01-03-2023

Venho pela primeira vez a este bar. Chama-se Cockpit. Sei pelo C. M. F. que tem óptimos pregos, mas isso agora fica para próximos ventos, menos calmos. O bar aqui em baixo é pequeno, acolhedor, bonito, bem decorado. A música é demasiado lounge para o meu gosto - sobretudo vindo do Passevite, onde ela é superlativa - mas é suportável.

De repente ao meu lado rebenta uma conversa sobre futebol e a magia desmorona-se, estilhaça-se. Felizmente dura pouco e a harmonia restabelece-se. Ainda por cima o C. vem cá ter: a envolvente fecha-se.

........

- Está tudo bem ou estás desesperado? - a pergunta resume uma filosofia. Desespero é desespero e tudo o que não é desespero está bem. E ainda falta definir desespero: é quando tens a água pelo lábio inferior, os pés presos na poita, a maré a subir, as mãos amarradas atrás das costas e não podes excitar-te. Algo acontecerá, alguma coisa mudará, alguém aparecerá, o nó que te prende as mãos desatar-se-á, a Lua mudará de direcção e arrastará com ela as águas. 

Sim, R., minha querida: está tudo bem. Não estou desesperado. Estou com água pelo queixo. Está muito longe dos pulmões. Nunca lá chegará, sequer.