31.1.18

Promessa

Prometo amar-te como se escrevesse um poema sem fim.

30.1.18

Palavra, sonho

Eugénio de Andrade tem um poema que começa de uma forma linda: "por que palavra começar, por que desordem?"

De uma vida pode perguntar-se "por que palavra terminar, por que sonho?"

Vida, um resumo

Nasci ontem, vivi hoje de manhã e agora que a tarde acaba, suave e lenta, pergunto-me "que fazer de outra noite?"

Amor, francês

O meu francês adquiriu um bocadinho de sotaque e perdeu alguns termos e muita elasticidade. Um pouco como dizer "a minha amada adquiriu alguns cabelos brancos e algumas rugas e perdeu um bocadinho da juventude que tinha quando a conheci".

Em qualquer dos casos posso dizer: o meu amor cresceu.

Parenthèse

La parenthèse s'est réouverte et je puis finalement te dire à nouveau que je t'aime. C'est inutile, je sais; mais dis-moi: a-t-il servi à quelque chose de te dire "je t'aime" quand je t'aimais comme je t'aime aujourd'hui à nouveau?

La question est évidemment rhétorique. Ça a servi à beaucoup plus que quelque chose.

Mais pas à ce qu'aujourd'hui je puisse te dire "je t'aime".

29.1.18

Inverno

A única vantagem do Inverno é que as pessoas andam mais bem vestidas.

(Não é a única. Há outra, mas desaparece rapidamente: sair de casa e apanhar ar frio estimulante no rosto. Mas depois chega às mãos e estraga tudo).

Diário de Bordos - Lisboa, 29-01-2018

Esta Lisboa asséptica fode-me o juízo, como uma mulher inteligente se chateia com um gajo que a toma por estúpida.

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Pequeno aviso à navegação, em resposta a uma simpática pergunta que há pouco me foi feita: o Don Vivo não é um blog de opinião; é um blog de disparates. Ou então de opiniões disparatadas. Talvez mesmo um blog de disparates opiniosos.

Enfim, as opiniões estão neste blog como natas numa Carbonara: são boas separadas mas juntas estragam tudo.

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Em Lisboa há uma por assim dizer taberna medieval onde eu vim depois de uma tarde de trabalho árduo. Perguntei ao jovem se podia pôr os Carmina Burana e antes de lhe poder precisar que queria a versão de Clemencic ele perguntou-me "isso é de Bizet, não é?"

Depois de um curto diálogo do qual passo os pormenores corrigiu, dizendo que tinha confundido com "a Aida, a ópera".

"Je me promène dans ce monde comme une putain dans un monde sans trottoirs".

A citacão saiu-me da memória. A correcta é assim. "Je vadrouille à travers les jours comme une putain dans un monde sans trottoirs".

A mesma coisa

- Sacana do inferno não há maneira de acabar!
- Não é inferno, estúpido. É Inverno.

28.1.18

O lado esquerdo do sino

O QI é isso mesmo: um quociente, uma média. Se pegássemos em cem pessoas, atribuíssemos a cada uma delas um valor numérico que representasse a sua inteligência e adicionássemos esses valores obteríamos - diz a teoria - um resultado igual ou muito próximo de dez mil.

Se fizéssemos uma distribuição de cada um desses valores em torno do valor de cem e os uníssemos por uma linha teríamos uma curva em forma de sino (ou uma distribuição Gaussiana, se bem me lembro; mas isso são territórios demasiado longínquos para a minha memória).

Ou seja: há - insisto, teoricamente - tantos indivíduos com um QI de cento e vinte como de oitenta, cento e trinta como setenta e por aí fora.

Muitas pessoas contestam esta teoria e eu tendo, finalmente, a concordar com elas: um diálogo aleatório no FB com um desconhecido é o melhor argumento deste cepticismo.

As probabilidades de o desconhecido se situar no lado esquerdo do sino são altíssimas, contrariamente àquilo que sempre pensei.

O pior é que não lhes basta ser estúpidos; sentem-se na obrigação de ser agressivos e insultuosos. Qualquer dia deixo o FB, ver se o sino reforça um pouco o seu lado direito.

27.1.18

Morte, sorte

Deitado na mesa de autópsia,  insensível à dor mas não ao prazer apercebeu-se de que o médico estava deliciado: a cada golpe via uma ilha nova, uma paisagem inesperada,um nascer do sol no mar, uma garrafa de rum e um prato de limas sumarentas, um par de mamas diferente.

Morrer assim é quase uma obrigação, pensava o autopsiador grato por lhe ter cabido tanta vida em sorte.

Lisboa, nova

Lisboa com a luz de sempre, o rio cheio de velas como nunca, gente feliz por todo o lado.

Resistes a tudo, puta velha: quanto mais as mamas te caem mais afiada tens a língua e gulosa a boca. Tejo e luz não há imbecil na Câmara que tos roubem; com eles podes tu bem. O resto é comigo e contigo, entre nós que ninguém nos ouve: fodo-te as ruas tu fodes-me a vida e eu não sei quem fica a ganhar: se tu, eu ou os dois.

Ganhamos todos. Sobrevivente do maior tremor de terra de sempre não haverias de sobreviver a meia dúzia de turistas e uma de resmungos? Deixa-os falar. Daqui a vinte anos havemos de nos rir os dois, tu mais nova e eu mais velho.

"Oiça um bom conselho, eu lhe dou de graça"

Um bom conselho é ouvir Karen Dalton quando começamos a pensar coisas.

Inverno, frio

Vai frio o inferno, forçoso é reconhecer. Chato, para quem como eu há muito não tem um inteiro, de fio a pavio, daqueles que sabemos onde estão e onde estamos, a meses do fim. O último foi há dois anos, fui buscar um bote a Atenas em Janeiro, mas vinha de St. Martin e ia para Los Angeles, passei por Palma - onde comprei um blusão - Madeira, St. Martin, Panamá e por aí fora. Sabia que aquilo não só ia acabar como se ia transformar muito rapidamente num Verão. A viagem acabou no México, em San José, a oito ou dez dias de Los Angeles. Foi a pior viagem da minha vida, tento não a lembrar muitas vezes.

Este Inverno não está assim tão mau: só há frio, coisa que no fim se formos a ver bem até é próprio de um Inverno.

Talvez no fundo o meu frio venha de outro lado qualquer e não do Inverno.

26.1.18

Verdade

Se não se esquartejar a verdade nunca a conheceremos. É preciso sem anestesia esfolá-la, cortá-la aos pedaços, separar-lhe dos ossos a carne, os tendões, as cartilagens, violá-la sem misericórdia.

A verdade não se entrega à delicadeza: vende cara a pele, sim, à violência. Alimenta-se de sangue, esporra, cuspo, murros nos dentes e pontapés nos tomates. Morde, mente e defende-se com unhas e dentes.

É preciso imaginar um jardim público com um pequeno lago e uma senhora sentada, delicadamente a olhar para os cisnes brancos enquanto folheia uma revista qualquer. De tempos a tempos suspira e lamenta ter esquecido o tricot em casa da filha que hoje foi visitar; não é ali que encontraremos a verdade. É na morgue, que fica do outro lado da cidade.

Por isso anda tão pouca gente atrás dela e é tão fácil reconhecer na rua quem o faz: esfolados vivos, a pele pende-lhes às tiras do corpo ensanguentado como lulas a secar ao sol. Não falam, só gritam ou balbuciam textos de Lautréamont, Rimbaud, Beckett, Hamsun, London, Pessoa, Dostoievski, Cioran, Nietzsche, Pizarnik (para eles os outros não passam de senhoras deitadas na relva a discutir a última moda com mais ou menos talento). Têm a roupa em farrapos e o nariz esborrachado dos sucessivos e imparáveis murros que ao longo dos anos foram levando nas épicas cenas de porrada com a verdade.

O sol deste fim de dia incendeia-lhes as feridas. Em breve será noite. Em breve não dormirão.

25.1.18

Vida de Atanásio Beldade depois do incidente

Um touro pega-se pelos cornos e despreza quem dele foge. Atanásio Beldade, assim chamado pelas garotas da vila onde crescera e vivia aprendeu-o à sua custa: o desprezo de um touro é temível porque é animal potente e orgulhoso, rápido, certeiro, que sabe para onde quer ir e finta tudo o que lhe aparece no caminho. Um homem enfrenta-o, anicha-se-lhe nos cornos, anda para ali aos saltos e reza - literal ou metaforicamente - para que um dos cornos ou os dois não lhe furem a jaqueta mai-la pele e ainda um órgão qualquer que esteja no caminho.

A medicina moderna tem muitos remédios para buracos feitos por cornos de touros. Já para os buracos que fugir à luta provoca e não se vêem  (mas sentem-se) não. A surdez e a cegueira seriam uma solução, pensou Atanásio; mas não encontrou médico que lhe furasse os olhos e os tímpanos.

O mundo de Atanásio é uma linha muito estreita que separa zeros de um lado e uns do outro, sins de nãos, brancos puros e pretos totais. Aqueles passeios largos onde cabe tudo, de zero a um, graduações de cinzentos, não sim mas talvez, tudo ao molho e fé em Deus, pecados veniais, mortais, arrependimento, confissão, on recommence Florence, passeios nos quais um gajo não pode andar a direito sem tropeçar numa dúvida não eram para ele.

Atanásio Beldade regia-se por princípios rígidos e claros: de um lado está o touro; do outro, numa direcção cento e oitenta graus oposta, não está e escolhe-a portanto, virando as costas ao bicho.

Não sabemos se essa opção lhe salvou a vida se não: podia ter enfrentado os aguçados cornos da besta e sobrevivido. Fugindo perdeu-a, isso é garantido. Deixou de ser Anastácio Beldade: passou a ser tratado por A Beldade, até a vida se ria dele, que era feio como os trovões; se antes do episódio a ironia de "Beldade" era  benevolente, depois deixou de o ser. Tornou-se malévola, acintosa, agressiva. A vida não perdoa quem dela foge.

A vida não perdoa quem acredita em linhas rectas e estreitas. Depois do incidente Atanásio foi condenado a vinte anos de incapacidade de sonhar e outros tantos de proibição de dar.

A dádiva é privilégio de quem pode sonhar, de quem conhece os tortuosos caminhos da vida e lhe sabe o fedor, de quem - sobretudo - conhece o medo. Sem medo não há coragem, não há generosidade.

Virar as costas ao medo é recusar a generosidade. Atanásio está condenado a passar o resto da sua vida sem poder dar nem dar-se.

Não há pior castigo do que ser-se privado de medo.

Caravaggio, Gesualdo e os outros

Bonito é o diminutivo de bom? Não quero escrever textos bonitos.

Quero sangue em cada sílaba e sangue não é bonito. Quero sangue. Lágrimas é para maricas.

Diário de Bordos - Lisboa, 25-01-2018

Sessão no Instituto Cervantes. A literatura da raia. Cada vez que me confronto com a cultura espanhola penso que o dia 1 de Dezembro devia ser de luto nacional, não de celebração.

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"Salazar era a versão civilizada de Franco".

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Ouvi uma senhora dizer que para ela (e para muitos escritores da estremadura espanhola) a referência eram Lisboa e a poesia portuguesa, não Madrid e a espanhola; e um senhor, também ele extremeño dizer que sem a poesia de Eugénio de Andrade a dele não existiria ou pelo menos não seria a mesma.

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Ouvi muito mais coisas, em espanhol que é uma língua linda e motivadora. Não há indecisão que resista a duas horas de espanhol bem falado.

23.1.18

Viver, morrer

"I too must have lived, once, out there, and there is no recovering from that." (Samuel Beckett)

Nunca recuperamos de ter vivido. Nem de ter morrido, aliás. São duas experiências muito semelhantes.

Beckett, incertezas

Que fazer, quando uma incontrolável vontade de ler Samuel Beckett nos colhe a meio da noite, como se tivéssemos sido atropelados e não temos os livros connosco e estamos no bar Irreal onde um zimbabweano preto acaba de cantar maravilhosamente e a música de disco agora é um sax que parece Waine Shorter e o ambiente está sublime e já se gastou mais dinheiro do que se devia?

Ler Beckett no computador quando se chegar a casa, suponho. Mas isto é só uma tentativa de resposta, não uma certeza.

Vale? Não

Passamos oitenta anos aqui em baixo, no "vale de...", "entre dois nadas...", acrescente-se o que se quiser. Mas quem nos diz que os nadas estão em cima? É verdade que vivemos entre dois nadas, mas esses nadas são os sopés da montanha, não os cumes.

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Prova: estava a engraxar os sapatos na rua das Portas de Santo Antão, no Jorge,  que rivaliza em qualidade com o mudo, do outro lado do quarteirão.  Passa um travesti, ou transgénero, ou similar. Bocas a torto e a direito (entretanto tinha-se junto ali uma assembleia de fiéis); passa outro e do meio dos redobrados comentários ressalta um: este também é três pilares.

Vale de lágrimas? Venham para Lisboa, porra.

Beleza, opressão, dinheiro

A única forma aceitável de opressão é a opressão pelas figuras da beleza e a única finalidade do dinheiro é poder ser oprimido quotidianamente por elas.

(Palácio Belmonte, Lisboa).

Exageros

Se eu disser que te amo exagero, se disser que não minto. Entre um e outro venha o diabo e escolha: os dois são mentir, os dois são exagerar.

Alfabeto

O alfabeto é o gajo mais importante da linha?

22.1.18

Pergaminhos

Não conheço ninguém nesta cidade que não seja descendente de um marquês ou conde ou coisa que o valha. Eu sou: o meu Pai é o Marquês de Gargantinha e Ladantice. É um marquês a sério, não é dessa variedade Sem Dinheiro que por aí agora abunda. Já o pai dele era nobre também, não sei se marquês se conde ou talvez duque. O avô  (meu bisavô,  portanto) era carteiro numa pequena cidade de litoral. Não sei como é que a família passou de entregar cartas a dar cartas, por assim dizer. Nem me interessa, sequer. Eu podia ter um título também mas chateei-me com a família toda e mandei-os passear, a eles mai-la massa e os barões. Adaptei um título fictício - Baronete Teso - e sirvo as senhoras e os senhores num bordel chique do Bairro Alto.

Sou muito mal pago, mas tenho cama, mesa e roupa lavada. Escusado será dizer que a parte da cama é preponderante. Não há noite que não tenha um par de miúdas das boas a ajudarem-me a adormecer.

Recentemente tive um pequeno percalço: não tinha dinheiro para comprar remédios (nada de grave, que os meus leitores fiquem tranquilos). Não sabia como fazer, até que me lembrei de perguntar ao gajo da farmácia se lhe podia pagar em putas. O gajo hesitou, pensou que eu estava a mangar com ele mas lá acabou por aceder. O pior foi convencer as miúdas.

Enfim, como sempre tudo acabou por se compor. O farmacêutico fodeu, eu desfodi-me e as mulheres ficaram dispensadas de foder comigo durante uma semana.

Há dias em que prefiro viver num bordel a viver num palácio. O farmacêutico também me prefere aqui, mas as miúdas já me pediram para eu não adoecer outra vez. "Há coisas que o dinheiro não ensina", disse-me uma delas ainda a semana não tinha passado e já de volta à minha cama. "É verdade", continuou a outra do outro lado. "Mais vale um baronete teso com pergaminhos do que um farmacêutico rico com manias".

Cegonhas

Passei uma grande parte da minha vida a treinar cegonhas. Ensiná-las a voar mais alto, mais depressa e com maior capacidade de carga. Queria alugá-las a senhoras cujo desejo fosse ter gémeos. Para os treinos usava garrafas de champanhe trazidas não de Paris mas directamente de Champagne, de Reims. A cada voo mais uma, em menos tempo. A coisa deu um resultadão: as últimas viagens já vinham com uma caixa de Magnum cada uma delas  (já só tinha três. As outras quinze morreram, umas atropeladas por aviões outras deitadas abaixo por caçadores. Duas morreram de cirrose no fígado. Infelizmente não consegui vendê-los para foie gras. Os produtores sabem distinguir os fígados das cegonhas dos de patos e gansos).

O problema é que não encontrei futuras mamãs que acreditassem que os bebés vêm de Paris no bico de uma cegonha. Eu tinha previsto, forçoso é dizê-lo, a enorme vaga de gémeos que estava para vir. Não contei foi com o cepticismo das pessoas em relação a estas verdades do passado.

Peguei nas cegonhas que sobreviveram e dei uma chaminé a cada uma. Assim podiam fazer os ninhos à vontade. As chaminés estavam à frente do gabinete do ministro do Turismo, que as contratou para fazer fotografias dos ninhos e das crias quando as tivessem. Tornaram-se funcionárias públicas, com aqueles salários de assessor que todos nós conhecemos e ainda davam umas aulas de degustação de champanhes por fora. Ficaram ricas.

Eu fui trabalhar para um jardim zoológico. Comecei nas aves, claro, mas pedi para mudar mal eles (os manda-chuva) tiveram confiança em mim. Fui para os macacos. Fodido por fodido mais vale sê-lo pelos primos. Assim ao menos fica tudo em casa.

Ficava: agora estou reformado. As  cegonhas que treinei chatearam-se da função pública e abriram uma empresa de entregas ao domicílio. Às vezes contratam-me para limpar os armazéns. Pagam-me directamente, sem papéis nem IVA nem mais nada. Vai do bico para o bolso.

Agradecem-me muito, são muito gentis comigo, pagam-me na ponta da unha e ainda deixam uma boa gorjeta. Gosto muito delas. Qualquer dia morro. 

21.1.18

Ambi-valências, sorte

"Amo-te" é uma daquelas palavras tão boa de ouvir como de dizer. Acontece o mesmo com "Este jantar foi óptimo" ou "é bom fazer amor contigo".

Uma sorte estarem tantas vezes associadas.

Eclipse e Tchekov

Há dias assim: um senhora que sabe do que fala cita Tchekov a propósito de um post deste blog e fico a saber que afinal o que tenho tido estes dias é uma virose e não, como eu temia, uma nova forma da Ménière.

Nunca assisti a um eclipse total do sol mas o momento em que ele reaparece não deve ser muito diferente.

Adenda: não sou muito bom em auto-diagnósticos, sejam eles de que ordem forem.

Transformações, esperança

Andava com o casaco e o cachecol que ele lhe oferecera para o sentir perto dela e de repente aquilo transforma-se num casaco de pregos e num garrote. Ficou aterrada, claro: e se lhe acontecesse a mesma coisa com tudo, incluindo as coisas que comprara e há tantos anos usava normalmente? Se de repente o mundo se transformasse no seu contrário?

Quando chegou aqui respirou aliviada e o terror transformou-se em esperança.

Ventos, expostos

Penso "o mau tempo no canal passou" e alguém me responde "vai chamar canal a outro". Só para me lembrar que on n'est pas sortis de l'auberge, como dizem os gajos da terra onde há muitos canais. Bastantes, mesmo. Um dia gostava de os percorrer à séria, começar no norte e acabar no sul, partir para oeste e acabar a leste. Mas isso é um dia; hoje trata-se de deixar para trás o temporal e pensar "ainda não foi desta".

Exagero manifesto: ando armado em maricas pé-de-salsa, só para mudar um pouco. Um gajo farta-se de estar sempre a apanhar porrada e resistir a todas. Até os paredões se fartam e amolecem com o tempo, arranjam curvas para a água se acomodar melhor. "O estranho caso dos paredões judocas" podia ser um bom título. Ou então "Do bom uso da doença", livro de auto-ajuda e receitas de vida. Por exemplo "adoeça e meta-se na cama até desadoecer", mas essa é fácil, é o que todos fazemos todos os dias (se bem alguns saiam antes ou continuem depois, mas devem ser uma minoria). Eu sou mais do género de dizer "doente estava a tua tia e casou-se", excepto em dias como o de hoje; quero dizer o contrário: " a tua tia não se casou por estar doente", por exemplo, "se bem talvez tenha ido até à praia apanhar sol e ver os garotos, ela sempre gostou de putos mais novos do que ela", mas isso é coisa que não se diz nos jantares de família nem nas reuniões do conselho de administração da empresa familiar.

Verdade seja dita que ainda não passou completamente mas é como se: as depressões (as do mar, quero eu dizer meteorológicas) também passam e deixam um mar de merda, piramidal, ainda por cima um gajo tem pouco vento e fica ali a abanar como uma pastilha elástica na boca de um paranóico ou um peixe do qual o aquário se partiu e ficou sem água. Eu também estou assim. Já passou mas. Tudo o que for para além disso é trinta e um de boca, é como o peixe esperar que de repente o aquário se vai reconstituir e em breve tudo será como dantes.

Não será, claro: nunca mais nada será como dantes, o tempo é um exfoliante e vai-nos tirando camadas de células uma a uma; sem darmos por nada de repente estamos assim, expostos e nus aos implacáveis ventos da vida.

Novidades velhas

Dias em que acontece sempre qualquer coisa mas não há novidades... Ontem por exemplo começou mal e acabou com um gratin dauphinois mais ou menos decente (o próximo será melhor, já não fazia isto há tanto tempo); o Menières que muda de natureza e de timings; o meu primeiro cliente confirmado para um passeio no rio, à defaut de jantar e música; e outras coisas, que também não são novidade.

20.1.18

Exposição, vulnerabilidade

Há um fenómeno estranho, perverso, na vulnerabilidade: é quando estamos frágeis que nos expomos mais.

Como um náufrago se afoga porque tomou por um tronco sólido uma palha, um alpinista cai porque espetou um piton em areia e não numa rocha ou um marinheiro desata cedo de mais os cabos que o prendiam ao mastro.

Sentido, sentidos

Não são os sentidos que dão sentido a uma vida sem sentido. É o amor que dá sentido aos sentidos e os dois em conjunto que o dão à vida.

Tortura(s) e respectivos remédios

Ménière a lume brando e frequência elevada. Espero que os episódios violentos e breves regressem. Digo isto, penso nos dias que passei nos hospitais com episódios incontroláveis e volto atrás: espero que alguém encontre uma cura para esta merda o mais depressa possível. E lhe dêem o Nobel, um lugar no céu, uma quantidade ilimitada de ex-virgens recentes (as virgens são umas chagas e devem ser deixadas para os idiotas dos terroristas), rios de whisky, rum, leite de coco e mel mais tudo o que ele quiser, incluindo estadias nas ilhas quentes das Caraíbas, apaixonantes e intrigantes do Mediterrâneo, geladas do Norte ou sejam elas quais forem que lhe agradem.

Que tenha tudo o que quiser mas encontre um remédio para isto. Não sou de certeza o único a implorar à ciência o fim desta tortura.

Se bem lhe reconheça uma vantagem: não me deixa pensar nas outras. (Podia era ser mais homeopática...)

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Isto dito, é forçoso reconhecer que as outras têm o fim à vista e tortura da qual se vê o fim passa imediatamente à categoria inferior: inferno, só. Abaixo há o calvário, depois uma série de maldades até se chegar ao rame-rame habitual. Depois começa a subida, claro. É por isso que é melhor olhar em frente e  acima do que para trás e abaixo: qualquer pessoa sabe que o futuro é melhor do que o passado e este melhor do que o presente.

Eu sei, pelo menos e sou uma pessoa qualquer; ou seja, qualquer pessoa.

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Estou com saudades de S. Luís e de Salvador da Bahia; de St. Martin e da Martinique e (um bocadinho menos: o círculo fechou-se) de Antigua; de Palma de Mallorca e de Atenas, de Genebra, Londres e Paris; de almoçar num bouchon em Lyon e de passear no Jura; de uma fondue de queijo, de uma fontina no Val d'Aosta, de milhares de outras coisas. 

Orgulho ignorante

Pergunto-me se não se deveria criar uma marcha "Pride" para os ignorantes, como a dos homossexuais.

Houve um tempo em que ser ignorante era visto como uma vergonha. Hoje quanto menos se sabe mais orgulhoso se é. 

19.1.18

Papagaios

Os pássaros capazes de imitar o discurso humano são injustamente vilipendiados. Se em vez de falar soubessem escrever estariam nas redes sociais em vez de numa gaiola ou no ombro de um marinheiro bêbedo e seriam tão respeitados como o oráculo de Delfos.

Passeio

Miopia há mais de cinquenta anos, síndroma de Menière há vinte, diabetes há doze. Se alguma doença crónica quiser instalar-se tem todo o interesse em despachar-se. Caso contrário arrisca-se a um passeio muito curto.

Placebo

A dor no cotovelo direito está identificada e em vias de tratamento. Agora apareceu uma nova, na coxa esquerda, inquietante. Não sei se hei-de começar a referir-me a mim como a diagonal da dor, dores em saldos, a ano novo dor nova, a dor é a vida ou, mais simplesmente, que se foda a dor. O desprezo é um remédio duplamente eficaz.

Ou um placebo.

Patologias, normalidades

Não consigo impedir-me de estranhar cada vez que vejo a depressão incluída no rol das patologias mentais. Um estado habitual não deve ser considerado uma doença.

Doente será, quando muito, quem não está deprimido.

Náufragos

Só as verdades abstractas são suportáveis; as outras, concretas, tendem ou a deixar-nos de mármore ou a indignar-nos de tal forma que nos transformam também em mármore, mas quente, desta vez. As verdades concretas têm o misterioso poder de nos deixar ver através delas  como se tivessem fendas pelas quais o olhar se perde e nos impermeabiliza. Acabou-se o veneno para as zarabatanas de uma tribo da Amazónia; acabaram-se os comprimidos de um pobre de uma cidade europeia; apareceu um anjo (com documentos em dia, isto foi garantido pela imprensa de referência, fotografado, testemunhado) numa autoestrada do Sul do país. Verdades absolutas, concretas, palpáveis cuja única virtude é relembrarem-nos a existência de florestas tropicais, doenças ocidentais e habitantes celestiais.

Já o abstracto é uma floresta (azul no alto da madrugada) na qual se passeiam anjos indocumentados, lúbricos, loiros, provocantes e se acredita sem mesmo necessidade de uma cerveja no inferno.

Não acredito em verdades, acredito em ilhas literais ou metafóricas, tropicais ou temperadas, flutuantes ou bem presas ao fundo com o peso da podridão toda que levam em cima. Não acredito em anjos, acredito no amor venéreo ou platónico, na mentira, na força terapêutica da amizade, no seu poder regenerador. Abstractos como a verdade, luzes de uma noite que por vezes um corpo atravessa deixando um rasto de fogo, invisíveis para todos excepto para os náufragos da verdade.

Generosidade, oxalá

Não me posso queixar da generosidade; não é aquele rio de sentido único contra o qual me prevenia a minha Avó e a verdade é que as minhas travessias de desertos, por horríveis que sejam - são piores, cada vez piores - só têm sido possíveis devido à generosidade de duas ou três pessoas (a quem de resto deixo aqui um obrigado! do tamanho de todos os desertos do mundo juntos). Mas arrependo-me de ter sido generoso com pessoas de quem não posso esperar nada quando sou eu que estou no lado baixo da mó.

Não é verdade. Não me arrependo. Só assim é generosidade: dar sem esperança de receber em troca. Pensando bem, mais vale ser generoso competente do que emprestador incapaz.

Há pouco pensava que de todos os disfuncionamentos do meu cérebro (são tantos) o pior era a generosidade. Não é, acabei de o ver. Basta um pouco de reflexão. Talvez o prémio deva ser dado à impulsividade, que pensava atenuada e agora vejo - com os óculos de realidade aumentada que a maré vazia traz com ela - que não. Hei-de morrer num impulso e com a cabeça tão vazia como quando nasci. A cabeça e os bolsos.

Inch'Allah.

18.1.18

Labirinto

Imaginemos por exemplo um palácio dentro do qual uma pessoa erra, perdida. O palácio está debaixo de água, mas o ser errante que o habita não sabe. Há muito que toda a gente o abandonou; ele dedica-se a construir um labirinto com as conchas que as marés lhe vão depositando, uma a uma (por vezes duas a duas) à porta. São conchas minúsculas mas o homem - sabemos que é um homem de meia idade, alto, magro, curvado - é persistente.

Talvez não seja persistente: talvez lhe falte simplesmente imaginação. Ou talvez seja prisioneiro da ideia de labirinto, tão prisioneiro que não se apercebe sequer de que não há labirinto nenhum.

"Ainda", diria o homem se nos ouvisse dizer isto. "Ainda não há labirinto nenhum".

O homem está preso dentro de um palácio, debaixo de água, num labirinto inexistente (por enquanto). Constrói-o sozinho, uma concha por dia, às vezes duas. Aprecia a solidão: em tempos teve uma família, amigos, uma mulher, colegas de trabalho; foi-se despindo deles, tirando-os como se fossem peças de roupa desadequadas à estação. Em tempos lera um livro sobre dois irmãos que se encerraram num palácio num labirinto de jornais e morreram, muito devagar, cada um do seu lado da casa.

Lembra-se vagamente de ter tido, ele também, um irmão. Agora não tem e o labirinto é de conchas e não de jornais, conchas redondas, estriadas, feitas para se encaixarem umas nas outras sem se queixarem, sem caírem ou escorregarem, feitas para durar e não deixar passar nem um fio de luz nem uma gota de água e assim fazer do labirinto uma tomba seca e escura ocupada somente por ele, ele e a sua persistência, ele e a sua falta de imaginação, um labirinto eterno no qual nunca ninguém o descobriria mesmo que alguém o viesse um dia a procurar, hipótese essa demasiado remota para que a considere sequer uma hipótese, não passa de um grupo de palavras alinhavadas e sem qualquer contacto com a realidade, essa realidade de que o homem sempre fugiu e na qual quer agora morrer só, seco, é tudo o que quer e para isso constrói, peça a peça, um labirinto debaixo de água dentro do palácio onde um dia por acaso entrou, não sabe se sozinho se acompanhado por um dos seus amigos ou se calhar pela sua mulher ou o seu irmão.

Não sabe: foi há muito tempo e o tempo é um ácido, corrói tudo, até os ossos, a amizade, a família, a retórica, a esperança (passe o pleonasmo: a esperança é apenas uma das variantes da retórica, a mais infantil e inútil, de resto), a memória, a vida, se é que alguma vez esteve vivo.

O homem não sabe nem quer saber. Vive para o seu labirinto e secretamente para esquecer a razão pela qual o constrói. 

17.1.18

Juízo

Começaram a aparecer-lhe palavras como borbulhas a um adolescente. Esse foi o primeiro sintoma. Outros se lhe seguiram: vê-la quando fechava os olhos e não a ver quando os abria; senti-la quando se deitava para um lado e deixar de a sentir quando a queria acomodar melhor, apertar-lhe a cintura ou encaixar os joelhos nos dela, por trás. Esse período da doença durou uma eternidade. Os diferentes médicos que consultou disseram-lhe que não havia nada a fazer: não há, diziam, Clearasil para as ilusões sensitivas, para a verborreia, para os sentimentos desalinhados da realidade.

Nada a fazer; esperar que passe.

Ou então deixar os sentimentos onde estão e alinhar a realidade por eles, não?

Não seja tonto.

A Terra é Redonda. Se andar sempre para Leste chego a Oeste.

E se andar sempre para Sul não chega a Norte. Morre de frio.

Sem ela também morro de frio. O Sul é a morte e o Norte a vida?

Borbulhas verbais. Tenha juízo.

O juízo é o Sul.

Cálice longe

Como um cálice ao contrário para escorrer as últimas gotas de veneno. Quem corre por gosto não cansa? Talvez. Mas envenena-se, tanto como quem corre forçado. Ser voluntário acelera o passo, não lhe retira o peso. Há-de ser até à última gota. Como um  cálice ao sol.

Tiens bon, matelot: tu en sortiras tanné, pas fané.

Erupções de tempo

Pequenas erupções de futuro. Cintilantes? Fulgurantes? Encandeantes? Não sei.

Quem precisa de um presente, quando tem mil passados e mil futuros?

16.1.18

Bicicletas e robots

Li algures que o teste para se saber a relevância do trabalho que se faz é averiguar se se pude ser substituído por um robot.

Já alguém ouviu falar de uma bicicleta autónoma?

2666 páginas a mais

Estou a ler um livro do Bolaño que assim de início me parece muito enfadonho. Ou então sou eu que já não tenho força para aguentar calhamaços de mil e tal páginas, mesmo deitado.

Não deixo porém de achar injusto que se compare o homem aos grandes nomes da literatura sul-americana. Uma página de Manuel Mujica Lainez vale as mil que ainda não li deste. 

Tempo, circunvalações

Há dias em que quero escrever-lhe; quase todos. Outros quero fodê-la cegamente, como se não soubesse falar, ouvir ou escrever; são quase todos, também. Estranhamente não coincidem com os outros, aqueles em que quero escrever-lhe como se não tivesse pele, mãos, pila ou sentidos e aqueles em que não sei sequer o alfabeto.

Há circunvalações no tempo difíceis de perceber, apesar de as vivermos todos os dias.

Como se o amor não chegasse

Como se nada disto fosse suficiente: dar a volta à Lua sem sair do mundo sub-lunar; abomináveis vergonhas intercaladas com brevíssimas vitórias; dores de cabeça até à ponta das unhas dos pés; labirínticos sentimentos, dédalos de emoções imbricadas umas nas outras como o casario nas aldeias gregas, janelas para o futuro que se abrem no passado pensando que estão no presente, ilusões várias de todas as cores do alfabeto, um braço que começa em Lisboa e acaba em Coimbra, comboios que tocam Glass no leitor de CD (ou Bartok ou Taylor ou como agora Ravel, mas este não é um comboio, é um eléctrico urbano que se enganou de linha); o primeiro inverno em muitos anos; outro labirinto, indescritível e mais dédalos, ruas pelas quais me perdi voluntária ou involuntariamente em todas as partes do mundo, sozinho ou acompanhado, bêbedo ou sóbrio, de dia ou de noite (todos estes elementos são combináveis livremente); dias que parecem noites de tão bons e noites que parecem dias de tão más; o mar, sem mim tão longe e tão vazio, a chamar-me com grandes vagas como se eu fosse surdo, esta ideia de que algures há gente em ilhas, com rum e um céu azul do qual escorre calor como se as nuvens transpirassem.

Como se isto não fosse suficiente, como se nada disto chegasse para fazer uma vida, essa ruga no tempo para a qual não há cremes.

Enfim, há. Chama-se amor, mas é melhor não o chamar.

Cola

É o amor que cola e dá sentido aos bocados de que somos feitos. Sem ele não passamos de um puzzle desfeito, as peças na mesa à procura do seu lugar; ou de um quadro de Mondrian, menos geométrico.

15.1.18

Uma noite

Passo muitas vezes à frente do hotel Namíbia. Só lá dormi uma vez, com uma miúda que me convidou. Foi uma das melhores noites da minha vida, o que não deixa de ser saboroso porque vivi na Namíbia alguns anos. Penso nela muitas vezes; ou nelas: a miúda e a noite. Nunca mais a vi, se bem tenham passado muitas noites depois dessa. Tive outras muito boas com outras mulheres, mas tão pouco as voltei a ver. Como se o sexo não fosse suficiente. Querem sempre mais, não lhes chega a boa vontade, o esforço que fazemos para as fazer felizes. Nem que seja por uma noite.

14.1.18

Diário de Bordos - Lisboa, 14-01-2018

Não sei se era cenoura se miragem; prefiro esta: a miragem que andava a bailar-me à frente da vista há três meses transformou-se num oásis, finalmente. Isto é, como elegantemente dizia um amigo meu "só conta quando está lá dentro" (referia-se ao futebol, apresso-me a esclarecer). Mas deixou de ser uma miragem, isso é seguro. Agora resta-me, já que ando pelas analogias exóticas, lembrar-me do provérbio chinês segundo o qual "metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa". Não fiz as contas, mas vale a analogia. Estes últimos li são simultaneamente mais leves e mais pesados, mais curtos e mais longos, a ansiedade muda de cor (e de advérbio: quando? passa a ainda? ou tanto?)

Tudo muda de cor, na verdade: o preto transforma-se em cinzento e este vai ficando mais claro a cada dia que passa. Até o frio perde as suas qualidades metafísicas e passa a ser simplesmente frio, "falta de roupa apropriada" como dizia o meu amigo norueguês.

Só resta esperar que seja o último, mas a verdade é que todos foram o último até agora.

11.1.18

Sobre-qualificação

Estavam a pedir uma pessoa para um emprego na vida. Concorri, mas não fui aceite: sobre-qualificação.

Chuva oblíqua

Penso na Chuva Oblíqua:

(Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
...)

e só vejo frio oblíquo:

(Atravessa esta paisagem o meu sonho duma paz infinita
e as minhas dores são opacas como as velas dos navios
onde não estou...)

Melancolia, luz

A melancolia é como a luz: não há canto recôndito do corpo onde não chegue.

O acaso e a necessidade

Entre o acaso e a necessidade aquele leva claramente a taça. Esta pedala e o acaso voa.

Melhor: cai. Ou do céu ou para o inferno.

Rebanhos e eu

Gosto muito de rebanhos. Sem eles não seria eu.

Solidão, solidó

A grande vantagem da solidão é que pode ser interrompida mais vezes do que o seu contrário. Quem não está só nunca está só. Quem o está não o está sempre.

Fotografia, noite

As fotografias revelam-se no escuro; as pessoas na noite.

Beleza epidérmica

Por que raio de carga de água existe a palavra "carnal", tão simples e directa e "pelal" não? Tem que dar voltas por "epidérmico", tão feio.

Fraude, desespero

Acabo de ler um comentário de uma mulher que usa o termo "larilas". Se alguém subestimar o poder das palavras atente nisto: o desespero é uma fraude. Uma palavra chega para o aniquilar.

Tinnitus

Vivo com um tinnitus permanente. É como ter uma colmeia de abelhas no ouvido, permanentemente. Só falta uma apicultora.

Viver, sonhar

Não sei o que é pior: estar acordado e não conseguir viver ou dormir e não conseguir sonhar?

Tempo, intervalos

Uma das grandes vantagens do tempo é ensinar-nos a desconfiar dele. Como a vida: tudo o que nos acontece ou é mau e acontece já ou é péssimo e dura muito tempo. O bom fica-se pelos intervalos.

Oportunidades astronómicas

Gosto da palavra oportunidade. Parece um cometa mas é mais rápido.

Como?

Um post curto é como uma ejaculação prematura: só existe na cabeça de quem o lê.

Crime, ou isto não muda

Ando a tentar ser aceite num quarto para raparigas, mas não consigo. Chama-se a isto promover a homossexualidade, mas já não é crime. É uma simples incompreensão das lutas dos milhares de anos que nos precederam.

Pessimismo lusitano

"Cada macaco no seu galho" é uma descrição pessimista mas acertada da vida na sociedade portuguesa.

A forma e o conteúdo

Hoje abri uma garrafa de vinho horrível. Vinha da casa Paciência. Meia hora depois estava bebível. 

Alternâncias

A felicidade e a melancolia sucedem-se como o sono e o desejo. Infelizmente um é mais frequente do que o outro.

Objeção à ressurreição

Com a possibilidade de ressuscitar a morte deixa de ser atraente.

Álgebra, vida

Homem, 42 anos, solteiro, saudável e soldável procura mulher casada, doente e endividada para vida a dois partindo do zero.

10.1.18

Tudo?

Pouco mais disse, depois de morrer. Confortavelmente deitado num caixão que os vermes já tinham começado a roer - esse e o das pás dos coveiros durante parte do dia eram os únicos ruídos que o importunavam, porque gostava de ouvir as elegias fúnebres dos seus vizinhos - sentia uma certa inveja da alma, que imaginava deitada nas nuvens.

A alma estava realmente numa nuvem, mas escorregava o tempo todo e tinha frio. Devia ser um nimbus. Dos intermináveis diálogos de quando estava vivo pouco sobrava: nada tinham em comum, apercebia-se agora, não sabia se com alívio se com terror tardio: quer dizer que perdera aqueles anos todos a falar com a alma errada?

Uma vez na escola um professor tinha gozado com ele por causa do seu uso frequente (abuso, para o dito professor) da palavra alma.

Imagine-se porém um pôr-do-Sol à beira do rio. A água alaranjada parece esconder um segredo. Duas ou três embarcações, dessas que fazem passeios com turistas prometendo-lhes aventura e vida eternas disputavam a meia dúzia de gaivotas o privilégio de ouvir o segredo primeiro. O rio fecha-se em copas, nada diz, o Sol acha que está na hora, a alma agarra-se outra vez  a um canto da porcaria da nuvem - já não é um nimbus mas um cumulus, mais simpático, confortável e adequado ao tempo -.

"É tudo", disse em voz suficientemente alta para interromper as minhocas e fazer um dos vizinhos gritar-lhe "Cala-te".

É tudo.

Sonho, paisagem

Visto de fora o sonho parece uma autoestrada de leite e mel, livre, quente e cheia de sol; na realidade é um carreiro de montanha coberto de gelo e de neve, pedras e com portagens caríssimas. Sonhar sai caro, sobretudo quando não se tem dinheiro.

Não sonhar é mais caro ainda. A única vantagem que o realismo tem sobre o sonho é saber-se o que está para a frente: uma estrada plana, estreita, cinzenta que leva a lado nenhum vinda do nada.

Do sonho ao menos a paisagem é bela, por muito difícil que seja aceder-lhe.

Ou seja: há que escolher entre uma viagem de merda com uma vista bonita e uma confortável através de uma paisagem feia. O ponto de chegada é o mesmo.

9.1.18

À espera, cavalos voadores

O post é sobre cavalos voadores mas só porque acabo de ler a expressão numa frase linda que vi agora na página de um jornal americano no Facebook; se não seria sobre outra coisa qualquer. Sobre a espera, por exemplo,  quão horrível esperar é, nunca acaba, por muito treino que um gajo tenha, por muitos dias sem vento ou com vento a mais ou horas de corrente contra ou dias à espera de peças numa marina. Nenhuma espera acaba nunca, o mais provável é que deixem cicatrizes muito lá dentro no fundo e portanto quando vem uma espera nova é como se fosse um simples recomeço das esperas todas pelas quais um gajo passou.

Um bocado como os cavalos voadores, na verdade. Ou a estúpida incapacidade de falar daquilo que nos atormenta e tortura.

Maldições

"Quem não tem dinheiro não tem palavra", li não sei onde. De todas as maldições que não ter dinheiro traz consigo (e são muitas) esta é de longe a pior.

7.1.18

Facilidades demagógicas

Troco a dor no cotovelo por todas as dores de cotovelo deste mundo.

(Fácil: sou incapaz de inveja).

A inutilidade das preferências

Quando comecei este blog preferia escrever a dormir. Hoje é o contrário: prefiro dormir.

Infelizmente o resultado é o mesmo.

Definição instável - escrever

Escrever é uma forma de perguntarmos a nós próprios aquilo que sabemos não ter resposta.

Isto é: as perguntas a que mais ninguém se não nós poderia responder. 

Ser, ter

Não ser é diferente de não ter, apesar de ambos dependerem da nossa vontade.

Vastidão glaciar

A estúpida vastidão de uma noite gelada. Ao contrário do que se pensa o frio não ajuda a perceber melhor as coisas. 

Vésperas

É nas vésperas da vida que se vê melhor a morte; e nas desta que se percebe aquela.

Falácias e memórias

Envelhecer é uma valsa dançada por "não quero morrer sem amar" com "não quero morrer sem ser amado". Ou seja: uma falácia desmemoriada. 

O soma e as ilusões

Este terrível período está quase a chegar ao fim. Tudo indica que fiz bem em aguentar, desta vez. Não sei; ainda é cedo de mais para falar.

Pergunto-me como reagirá o soma quando a maré mudar: continuará esta lenta degradação  (há tantos anos prevista pela T. em Antigua, de resto) ou, ao contrário, perceberá que o que está para trás está para trás? Já alguém alguma vez ouviu falar de um corpo com passado?

(Eu já, mas deve ter sido uma ilusão auditiva).

Ética simplificada

Faz aos outros aquilo que gostarias que te fizessem a ti.

(Perdoei a S. K. o saldo da dívida. A ética não depende das nossas circunstâncias, mas do reconhecimento do outro. Já a de D. não perdoo. Isto é: não me perdoo).

Amor e textos

As histórias de amor devem ser como os textos: poucas vírgulas e a quantidade certa de palavras. De mais cansam, de menos moem.

Paridades

Troglodita civilizada, sensual solitária, coleccionadora desprendida, minimalista barroca, romântica céptica. A mulher era uma antologia de contradições que só se mantinha viva porque tinha duas pernas - a esquerda e a direita - e dois braços (idem).

Como toda a gente, de resto. 

Tangerinas

Podia falar de tangerinas se quisesse; da porra da dor no cotovelo que regressou assim que parei os comprimidos; do frio; da miúda que me deixou, da que eu deixei, deste estranho pas de deux (nos dois sentidos: não somos dois e passos a dois) da vida; da lenta degradação do corpo (não sei se lenta é o termo adequado); dos livros todos que tenho para ler, dos que já li ou estou a ler; dos planos para o futuro e da dúvida fundamental: há futuro? Podia falar disso tudo.

Lembro-me da imagem favorita da minha adolescência, a de bolas numa mesa de bilhar da qual não sabemos quem tem os tacos. Tangentes, secantes, carambolas. Essa analogia regressa, também.

Prefiro tangerinas.

6.1.18

Francine (fragmento)

Caíam sabres do céu. Sabres de samurai, não se deve fazer a coisa por menos. Fui à padaria comprar pão e à mercearia manteiga. O pão estava quente porque era cedo. Encostei-o à barriga  por baixo da camisola para me aquecer e o manter quente. Tinha chegado manteiga fresca à mercearia: o monte estava liso, regular. Pedi meio quilo em vez dos duzentos e cinquenta gramas habituais. Quero ajudar o meu cardiologista a construir uma casa e sobretudo chatear a Francine. "Cada bocado de pão com manteiga que pões na boca é um tijolo na nova casa do médico", dizia-me. Eu não respondia. Para quê? Francine não me ouve. Era a minha namorada vai para duas glaciações, se excluirmos a glaciação que ela própria trazia para casa, levava para o escritório ou para onde quer que fosse.

Gostava muito dela até acordar: loira, de pele clara e mamas grandes quase não se via na cama. As mamas caíam-lhe para cada lado do torso e todos os dias me levantava com aqueles rios de carne a olhar para mim. Depois acordava e o martírio começava.
- Devíamos falar do nosso amor
- Não sei o que é o amor e não gosto de falar do que não conheço.

Ou:
- É desgostante ver-te comer tanta manteiga.
- Posso começar a usar banha de porco, se preferires.

Ou:
- Vais assim vestido?

Ou:
- Há quanto tempo não fazemos amor? Já não gostas das minhas mamas? Andas a comer outra mulher? - Os ciúmes faziam-na falar de rajada.

Morávamos no Aber W'rach, pequena povoação do norte da Bretanha, numa daquelas casas de granito cobertas de ardósia. A casa era dela. Eu tinha lá chegado de barco, encontrei-a num café e pouco tempo depois mudei-me. Queria deixar o mar, fazer outras coisas, mudar de vida.

O pito e o peito

Mariana dizia-se minha amiga de peito, mas eu queria amigas de pito. A coisa não funcionou muito bem entre nós. Pouco depois fui trabalhar para uma plataforma de petróleo na Noruega. A engenheira da segurança queria um amigo de pito mas eu apaixonei-me, queria peito e ela disse que não.

Andava desencontrado, é o que é. Ora tinha pito ora tinha peito mas os dois juntos nem ver.

Flórida (esboço antigo)

Em Setembro do ano passado fui contratado para trabalhar numa embarcação de cinquenta pés - um Catana 50 - na Flórida. Passo muitos pormenores (juntos não chegam para fazer um pormaior). Cheguei a West Palm Beach dia 12 de Outubro. O objectivo era preparar o barco para o levar para as Bahamas e aí prepará-lo para ficar em seco por etempo indeterminado. A lista de coisas a fazer que me foi enviada era pequena e fácil.

O barco tinha muitos mais problemas do que os que faziam parte dessa lista, o que em si está longe de ser raro, antes pelo contrário. Mas neste caso duas coisas chamaram-me a atenção: os problemas eram todos eléctricos e eram muitos, alguns deles coisas que não acontecem frequentemente; e todos os aparelhos eléctricos, ou quase todos, pareciam padecer de um mal ou outro.

Contratei uma electricista para fazer as reparações e - naturalmente - os custos começaram a exceder largamente o que era previsível se as coisas a fazer fossem efectivamente as que constavam da ToDo, como lhe chamo quando trabalho em inglês (em português chama-se aFazer). Cheguei também rapidamente à conclusão que tantas avarias eléctricas tinham de ter uma causa comum; estando na Flórida essa causa só podia (ou tinha fortes probabilidades de) ser um raio.

Neste momento duas coisas aconteceram: os armadores mandaram-me parar tudo - parar, congelar, suspender -; e iniciei os procedimentos para que os custos fossem cobertos pelo seguro.

A espera pela decisão dos seguros pareceu-me agoniante: não podia fazer nada que envolvesse custos, estava a viver num barco que não tinha condições adequadas - se os armadores fossem outros teria pedido para ir para um hotel -. Mas tinha a certeza de que os seguros cobririam as reparações e portanto a agonia era relativa. Na verdade não foi uma agonia; e se comparada ao que estava para vir. não passou de um ligeiro aborrecimento, uma contrariedade, uma arrelia.

Salto meia-dúzia de pormenores. Os armadores tinham feito um erro com os seguros e estes declinaram a  reclamação. O montante das reparações oscilava entre cinquenta e duzentos mil dólares, consoante se fizesse uma reparação a minima ou não, por um lado; e fosse ou não preciso substituir o mastro, que é de carbono e podia estar danificado, por outro.

Os armadores decidiram vender a embarcação por aquilo que só pode ser designado por "uma ninharia" (tenho arrepios quando digo coisas destas, mas ninharia é o termo: duzentos mil dólares um barco que quatro meses antes lhes havia custado setecentos mil, ou lá perto - aos quais se devem adicionar umas largas dezenas que gastaram em baterias de lítio estupidamente caras e outros "pequenos" trabalhos).

O meu contrato acabava a quatorze de Novembro. Os armadores deram-me a escolher entre vir-me embora ou ficar na Flórida sem salário, só com um per diem. Escolhi ficar. É importante dizer aqui que eles não me prometeram fosse o que fosse. As condições eram claras: ou o per diem - suficiente para comer sem luxos nem excessos e mais nada - ou desembarcar.

Os armadores eram dois jovens irmãos que conheci no Panamá há uns anos. Esta foi a terceira vez que trabalhei para eles: encontrei-os em Shelter Bay,  Panamá; depois em Galveston, Texas; e agora esta. São pessoas que conhecem muito pouco de barcos e a quem eu sentia que estava em dívida (dívidas, no plural: por duas vezes tiraram-me, sem o saber, de situações difíceis). Sempre foram correctos comigo. Corriam, uma vez mais o risco de ser enganados. Pensei que o meu lugar era a bordo até o barco ser vendido ou conseguíssemos mudar a decisão do seguro.

Sem pontos

Vírgulas,  pontos e derivados foram-se embora. Fiquei sozinho no passeio a vê-los ir-se em fila indiana Primeiro o ponto depois a vírgula a seguir os derivados reticências dois pontos ponto e vírgula a fechar a marcha iam os pontos de exclamação e o de interrogação

Fiquei sem palavras a pontuação está para o texto como 

Dizer

Que quereria ela dizer-me antes que não podia dizer e hoje não diz porque não quer? Dantes - e não foi assim há tanto tempo, meia dúzia de meses se tanto - amava-me, queria casar comigo e ter um filho meu. Mesmo sem casarmos, asseverava-me.

Porque não me diz hoje que não me quer mais, mesmo sem casarmos?

Diário de Bordos - Lisboa, 06-01-2018

Gosto destes dias claros e frios de inverno; o ar faz cócegas, sentimo-nos revigorados a cada inspiração.

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Mudei de casa: deixei o F. e fui para casa de J., a senhora que me forçou a dar ao D. V. outro destino. "Forçar" não é de mais. Mas agora que interiorizei o projecto, finalmente, pergunto-me porque resisti tanto. Todos os dias.

A casa é um paraíso para qualquer bibliófilo (e melómano, já agora). O único inconveniente é que os meus trajectos de bicicleta ficaram reduzidos a um décimo, por causa da localização do apartamento.

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Uma das grandes conquistas da civilização foi diferenciar a punição da vingança. A civilização é um longo, lento e penoso exercício de desapaixonação, de-sentimentalização. Talvez seja por isso que assistimos regularmente ao aparecimento destes movimentos espiritualistas, iogas, new age, IURD, tretas. As pessoas precisam de sentimentos como as torradas de mel, coitadas. Não lhes chegam os que a natureza lhes deu: afectos, ternuras, amor, amizade; e as irritações do quotidiano, que são tantas.

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Se bem hoje tenha tido uma alegria logo pela manhã: uma carrinha deu-me passagem numa passadeira para peões, já eu ia montado e pronto para a deixar passar. Que chatice! Nunca mais conseguirei reclamar convenientemente dos condutores dessas coisas, que juntamente com os fogareiros são os mais assanhados contra os ciclistas. Não tarda vai ser um táxi a ter uma atitude cordial.

3.1.18

Imperfeita

Queria escrever-lhe como se a estivesse a beijar, beijá-la como se lhe escrevesse, tocá-la como a um texto numa página, inventar palavras, letras, alfabetos, descrever-lhe o mar como se o tivesse descoberto ontem e a ela hoje, fazer do tempo uma roda que não sai do mesmo sítio, olhá-la como se a cada segundo a visse pela primeira vez, dizer-lhe "és a mais imperfeita das mulheres perfeitas, a mais humana".

2.1.18

Linha, horizonte

Era um velho pobre, miserável. Arrastava pelas ruas um cordel longo e reclamava quando alguém lho pisava. Era conhecido na vila como "O velho do cordel".

Gostava dele; falávamos muitas vezes quando nos cruzávamos no passeio perto de minha casa, eu a caminho da escola ele não sei de quê.

Ou melhor: não sabia de quê. Hoje sei. O cordel que ele arrastava preso pela cintura era a linha do horizonte. 

Definição

Este blog é um conjunto de fragmentos de um romance que em vez de ser escrito é vivido.

Analogias coxas

Tentava encontrar analogias para a sua vida afectiva: um jogo de cabra-cega; a casa dos Budas ditosos; um livro de Baricco; o negativo de uma fotografia do qual só pequenas porções foram postas em positivo; um puzzle desenhado por um gajo numa trip de ácido e reconstituído por um bêbedo; um dicionário no qual as palavras e as definições estão trocadas; uma casa na qual chove quando lá fora está sol; um corredor infinito de portas abertas, fechadas, mal fechadas, meio abertas, por abrir, por fechar e outras das quais alguém - não ele - perdeu a chave.

Depois cansou-se de tanta memória mal fodida: uma história de amor ou é banal ou não passa de uma analogia coxa.

Diário de Bordos - 02-01-2018

O bar Irreal tem bastantes vantagens, a maior das quais é ser bastante real. Tem outras: a música, por exemplo. É sempre excelente, excepto quando -  raramente - é só boa. Hoje é excelente,  coisa que de tão frequente é como dizer que o bar é real.

Pode fazer-se uma escala da excelência, mas felizmente não do real. As coisas ou são ou não são. O grupo de hoje, constituído por piano, trompete, flauta, baixo e bateria é e é excelente.

Sou forçado a reconhecer que em Palma não teria nada disto. Ou, mais prosaicamente que o meu amor por Lisboa é excelente porque se baseia em coisas reais.

Entre as quais ocupa um lugar proeminente o bar Irreal.

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Ora gemem, ora murmuram, sussurram, insinuam ou perguntam; todos juntos mandam uma mensagem poderosíssima sobre a excelência da música como veículo / gerador de emoções, o conceito de sintonia e a ideia de que sem música e sem Lisboa a vida seria muito mais chata, para não dizer aborrecida ou mesmo maçadora.

1.1.18

Sono do céu

Tenho sono de marinheiro: vem a pedido e vai-se embora mal o enxoto.

Às vezes atrasa-se, vem de sem vento; outras fica-se mais do que devia. Mas são raros esses sonos de terráqueo.

O que descubro com prazer é o prazer de dormir: vem do céu, não da terra ou do mar.

Sheila - II

Ambos queríamos que passasse depressa, mas não passou. Fui levá-la ao aeroporto - ela não queria, mas insisti e menti-lhe dizendo que de qualquer forma tinha de ir a Lisboa. Enquanto ela estava na fila para o check in fui comprar um bilhete. Disse-lhe que a reencontraria no cafe ali ao fundo, vês aquelas mesas?, é esse. Só percebeu quando passei o filtro de segurança logo atrás dela. Pus tudo o que tinha num tabuleiro - quase nada, claro: a carteira e o telefone.  

Nem nem

A noite avança pelo ano novo dentro como um bêbedo pela garrafeira de um bar no qual foi deixado sozinho: com determinação, sem olhar para trás, sabendo que nada o pode parar.

A festa acabou. Estou em casa, deixo-me levar docemente pelo tempo, como se escorregasse num plano pouco inclinado, o tempo abrandou agora anda mais devagar, desliza e eu com ele.

Todos os dias começa um ano novo; só não muda de nome e pouco ligo a nomes e descendências. 2018 descende em linha recta de 2017 mas no que me toca até podia ser o ano zero ou três mil. Desde que venha devagar, nada de brusquidões, como um barco de pesca que sai do mar carregado de peixe e arrastado por uma junta de bois enquanto  as mulheres olham e avaliam a parte da carga que lhes vai tocar.

Estas dançavam, relembro-lhes a beleza e os trapos.

Nem morto a boiar no mar Morto, nem vivo a nadar no tempo.