30.11.12

"O seu filho não tem os olhos fechados, senhor. O seu filho é japonês."

O OE2013 tem bastantes defeitos e uma qualidade; mas é uma qualidade tão grande, tão inesperada, tão bem vinda que eu não sei se só por isso não devíamos felicitar o governo: já não me lembro da última vez que ouvi falar no "modelo sueco"; nunca vi tantos socialistas a reclamar tanto contra os impostos. Obrigado, Vítor Gaspar. 

Bordéus e a televisão

Mais uma da televisão francesa (enfim, esta de um viticultor francês, "originário da região [Bordelais]): "eles [os investidores estrangeiros] são um problema porque fazem subir o preço dos terrenos artificalmente".

Isto suscitaria várias questões, claro: o preço dos terrenos na região de Bordéus só subiu quando os estrangeiros começaram a comprar lá quintas? (Na realidade os estrangeiros compram terrenos em Bordéus desde pelo menos o século XVIII, mas isso é outra história.) O preço dos vinhos de Bordéus é estratosférico por causa dos compradores estrangeiros; também se queixam? Por cada estrangeiro que compra a preços elevados não haverá um francês que vende a preços elevados?

O jornalista esqueceu-se de fazer estas perguntas, e eu regressei à minha resposta habitual: desliguei a televisão. É preciso provar-se regularmente aquilo de que não se gosta, para confirmar que se continua a não gostar.

A revolução industrial foi ontem

Há pouco ouvi na televisão francesa esta frase magnífica: "será ele [Lakshmi Mittal] um industrial, um empreendedor [o termo utilizado pelo locutor foi bâtisseur, literalmente construtor] ou não passa de um financeiro?"

28.11.12

Barcelona, Catalunha, Espanha, 28-11-2012

Os dias foram difíceis; mas não é por isso - antes ao contrário - que não se tomam decisões. São para tomar e executar logo, sem muito tempo perdido em lamentações nem arrepanhar de cabelos (dos quais de qualquer forma tenho cada vez menos).

Se no R. B., barco para o qual tínhamos tudo e mais alguma coisa a favor não conseguimos embarque não valia a pena insistir muito mais. Ou seja: vamos de avião para Antigua. Com muita pena e alguma bagagem, pouca, felizmente.

Vamos por um caminho complicado: Barcelona, Paris, Martinique. Ivan Illich, um  dos raros intelectuais de esquerda que respeito [acabo de encontrar uma citação dele que me fez pensar na reacção histérica a Isabel Jonet: "In a consumer society there are inevitably two kinds of slaves: the prisoners of addiction and the prisoners of envy"] escreveu um livro chamado Energy and Equity no qual fala, entre outras coisas, da relação entre o poder e a energia. Eu penso em dinheiro versus tempo. Tempo é dinheiro? Sem dúvida. Mas a relação entre eles também é inversa: quanto menos dinheiro, mais tempo - para ir de um lado para outro, por exemplo.

Não sei se gastámos mais ou menos energia vindo de avião para Barcelona, apanhando um comboio nocturno para Paris (qual a energia de um quarto de hotel que se poupa?), avião para a Martinique - o bilhete é mais barato do que para Antigua, e no meu Marin, onde isto tudo começou, ou arranjo um job ou uma boleia para "a minha casa", por enqanto ainda com aspas.

De que gastamos muito mais tempo há, em contrapartida, poucas dúvidas.

E aventuras. Hoje roubaram-me o saco do computador; pouco tempo depois o senhor que mo roubou devolveu-mo - na pressa não reparou que a máquina estava à minha frente na mesa e não na mochila (não me disse isso, claro. Balbuciou outra coisa qualquer e desapareceu). Foi simpático da parte dele, mas não me impediu de o assinalar a dois polícias que pouco depois passaram por ali.

Enquanto isso, eu tentava lidar com a Air Caraïbes, que num anseio anulou o meu bilhete pois fora pago com um cartão de crédito que não era meu. É simpático para o dono (neste caso a dona) do cartão; mas chato para mim - gastei o saldo internacional do telefone, a bateria do computador e a bateria do telefone (por esta ordem) a tentar repor a reserva, não fosse a dona do cartão ter de ir sozinha para a Martinique e eu por aqui ficar sozinho.

Tudo se compôs, claro - os problemas acabam sempre por se resolver, se não não seriam problemas - e tivemos um bónus: conseguimos uma tarifa especial no comboio da noite.

O prémio disto foi: um dia esplêndido em Barcelona. De manhã no Mc da estação de Sants (por causa do wifi gratuito); à tarde no restaurante da estação de França (por causa do wifi gratuito, da beleza e conforto do local, para carregar baterias - literais - e para escrever entretanto).

É realmente lindo, o sítio (esta fotografia está simultaneamente esplêndida e realista; estas também). Quando saímos do aeroporto viemos para aqui. À noite o Restaurante Station Barcelona transforma-se em piano-bar, café-concerto, cabaret, dependendo dos dias; ontem foi dia de tango, por exemplo, e estavam bastantes pares a dançar. Era bonito, parecia que estávamos não a caminho de Paris e à procura de um quarto mas no meio de uma viagem no tempo, à espera do coche que nos ia levar para o palace mais bonito do século passado. É um sítio para casais adúlteros, desses que sonham deixar tudo para trás e começar de novo no outro extremo da linha (a linha não tem extrems, mas isso é outra história).

(Acabámos num quarto bastante aceitável a vinte euros, pequeno almoço e IVA incluídos.)

Não vou ter tempo para mostrar Paris: um caso de proporção directa entre dinheiro e tempo.

América, América

Porque é que nos Estados Unidos a venda de armas - cujo objectivo é fazer mal a terceiros - é livre e a venda de drogas - que só fazem mal a quem as compra - não?

27.11.12

Em louvor da idade

A partir de certa idade um gajo sabe o que espera de uma relação. Não é muito: o amor já foi reinventado milhões de vezes e nenhuma delas serviu para grande coisa se não para vender livros, filmes, peças de teatro e fazer crer a alguns jovens mais ou menos desprevenidos que são únicos.

Tão pouco espera grande coisa do mundo: já foi refeito milhões de vezes e continua sendo o que lhe dá na real (ou republicana, ou caótica, ou ditatorial) gana. Mudá-lo proporcionou, é certo, algumas noites de magníficas conversas, muitos copos, alguns manifestos, muita esperança; mas bombas, também, violências, milhões de mortos.

Mais vale deixar o mundo como está e tentar, se for absolutamente imprescindível, mudar algumas coisas que nos estão próximas. O mesmo com o amor: ir fazendo de conta que ele existe; e aproveitar o que fica para lá dele, que é muito mais, e muito mais importante.

26.11.12

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 26-11-2012

Dias difíceis. Não sou muito dado a "já-estive-aquis-e-alis", mas um dia gostava de fazer uma lista dos sítios onde já fui feliz, infeliz, onde já tive fome, onde já não-tive dinheiro, onde já fui rei. Seria um mapa muito mais interessante.

Jantar improvisado - Peixe no forno com presunto e pimento verde

Não sei se comece por dizer que o pimento verde a que o título se refere é o pimento de Maiorca, mais suave e infinitamente melhor do que o pimento verde habitual. Ou se por falar no peixe: dois lombos de tamboril congelado e rasca, que poor causa disso, e só por causa disso foram salpicados de sal, cobertos de rodelas de limão e aspergidos com um bocadinho de sumo dos ditos e assim ficaram de um dia para o outro.

Fosse o tamboril tamboril e fresco e dispensava o limão, ou pelo menos durante tanto tempo.

Depois foi muito fácil: o nosso supermercado vende uns presuntos das patas dianteiras do porco a preços ligeiramente inferiores aos da uva mijona, sendo o sabor praticamente o mesmo (do presunto normal, não da uva mijona). Já vem cortado em rodelas (muito largas) e tudo.

No tabuleiro de ir ao forno pus azeite, o peixe, as rodelas de limão e uma cebola idem, o pimento verde de Mallorca; ao lado, o presunto, com a pele e gordura. Ficou no forno "até o peixe estar cozido" (com aspas porque cito a minha Mãe, para quem os tempos de cozedura fosse do que fosse era "até estar cozido").

De um mau peixe não se consegue fazer um bom, é como sei lá com as bananas, os sapatos ou as gravatas; mas consegue-se pelo menos disfarçar. E a verdade é que este prato merece ser recordado para um dia que tenha presunto e peixe bons; já que pimentos de Mallorca não terei pelo menos por alguns meses.

24.11.12

Qualidade

Escrever é isto.

Apartheid 3

"Uma África do Sul democraticamente pobre" traz-me à mente uma pergunta: será que todos são pobres, nessa África do Sul que aí vem? O apartheid era odioso; o sistema que aí vem não será muito melhor. O círculo do optimismo é muito reduzido.

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 24-11-2012

A ideia era só escrever quando houvesse boas notícias; mas não as há. Só más e muito más, em todas as frentes. O R. B. escolheu outros tripulantes para a travessia e há cada vez menos barcos em Palma. As perspectivas de atravessar o Atlântico de barco são quási nulas.

As duas ou três últimas semanas foram difíceis: doença, hospital (por meia dúzia de horas, só; mas foram duras, as horas). E agora isto. Desta vez não posso correr com o tempo; e pôr-me de capa tão pouco. Há que continuar a marchar. Esperam-me uns dias largos de bolina, dias sem vento ou com ele a mais. Mas não podemos parar.

Sobretudo parar em Palma. Estou farto da cidade até à ponta dos cabelos e ela não tem culpa nenhuma - continua a cidade afável e bonita de há dois meses e meio. Mas os sítios onde estamos não são o que são, são o que nós somos, ou como nós estamos. "Não vemos as coisas como são, vêmo-las como somos", escreveu Anaïs Nin; ou como estamos, talvez seja mais exacto.

Só penso em Antigua. A ver se desta vez é tão bom como da outra; a ver se é lá que um dia terei um país. Algo me diz que não, que ainda não é desta. Mas é preciso ir ver.


Apartheid 2

Obviamente, é preferível uma África do Sul democraticamente pobre a outra rica devido ao apartheid. Sobretudo para quem não vive lá.

O que nos levaria a pensar o que a maioria dos sul-africanos teria feito se soubesse no que a ANC se iria tornar. Mas isso é irrelevante: na História não há condicional.

Apartheid

O apartheid foi um regime odioso. Mas manteve-se durante tanto tempo por razões políticas, nada tinha a ver com as raças. Daqui a vinte anos, quando a África do Sul for um país africano como os outros, as pessoas aperceber-se-ão, finalmente, disso.

Razões

De todas as razões que fazem um casal manter-se unido há duas particular e igualmente poderosas: o dinheiro e o trabalho que daria manterem-se separados.

23.11.12

Viajar - 2

Para viajar com olhos de ver o ideal seria não saber ler, não ter memória, ser surdo. Ter sido cego antes de cada viagem, quase.

Paradoxo

Amar alguém é amar-lhe os defeitos. Quanto maiores ou mais detestáveis estes forem maior o amor.

Viajar

Tenho viajado muito, é verdade. Mas raramente sozinho: a maioria das vezes vou comigo.

Ideias ladradas

A falta de cultura do debate em Portugal é aflitiva; a divergência de opiniões é vista quase como um insulto. É provavelmente por isso que o debate político tem o nível que tem: cães a latir uns aos outros exprimem mais ideias do que dois bloggers portugueses com opiniões diferentes sobre qualquer coisa. 

(Matilhas... O caso de Isabel Jonet faz-me pensar em matilhas de cães a ladrar.)

Escutar a RTP

Num país em que toda a gente escuta toda a gente a RTP não pode dar os brutos de selvagens a apedrejar a polícia e a destruir propriedade privada?

Não estão longe

Um gajo vê europeus defender os palestinianos - esses faróis dos direitos humanos, dos direitos dos gays, mulheres e das crianças, da lei e da ordem, da tolerância e da liberdade de expressão, garantes da paz doméstica, defensores do estado social e de tudo aquilo por que a Europa tem lutado - e não pode impedir de lembrar-se que o comunismo e o nazismo nasceram aqui, nesta Europa. E, sobretudo, que não estão longe.

22.11.12

Ele há gates e gates.

Devia haver um certo sentido da medida. Recentemente vi "Jonetgate" escrito já não sei onde. A coisa pareceu-me tão absurda que nem os ombros encolhi. Hoje, no Conciso, vejo "RTPgate". Bolas, já há muito deixámos de pedir a quem escreve nos jornais que saiba escrever; depois deixámos de lhes pedir um mínimo de cultura; vamos ter que abandonar o bom senso também?

21.11.12

"É tempo de pagar o que se recebeu"

Este video é impagável. É caso para citar a Ana Vidal: "O mundo é de quem o reinventa"!



(Via Domadora de Camaleões)

"As mentes brilhantes do crescimento económico"

Mais um desafio para a Jugular School of Arts: explicar que toda a gente, incluindo claro o presidente da Ryanair está enganada; e porquê.

Arrogância

A arrogância é uma arma de dois bicos: inquina a inteligência, exacerba a estupidez.

20.11.12

Calvinologia

- Look, Hobbes, I got a paint-by-numbers kit. It's really fun.
- But you're not painting in the lines and you're not using the colors that correspond to the numbers.

- If I did that I'd get the picture they show on the box!
- Ah!

18.11.12

Diálogos exemplares

- Dói-me a cabeça da pila.
- Não sabia que agora fazias redundâncias.

17.11.12

M.

Prologue
L'autre jour j'eus une violente, soudaine et irréparable envie de M., comme un coup de foudre dans un paratonerre.

Espiègle et coquette, M. a des grands cheveux noirs, deux grands yeux amandés, deux grands seins qu'elle porte avec une nonchalance apparente et en fait avec beaucoup de soin. Elle les enveloppe dans les soutiens-gorge d'un magasin de la specialité de notre ville, où elle se fait servir par les deux propriétaires de l'établissement, les employées n'en étant pas, à son avis, suffisamment fournies.

M. dormait les yeux ouverts, sa grande chevelure étalée sur le coussin, son regard étalé dans le vide, ses seins pendus, l'un de chaque côté du corps, satisfaits et rassaciés. Je la laissais s'endormir et partais - je n'aime pas partager mon réveil, le moment le plus intime de la journée.

En realité je n'aime pas partager mes journées, ni ma vie. De temps en temps je partage mes envies prennantes avec M., qui les accepte apparemment avec plaisir - je ne crois jamais sérieusement aux soupirs de femmes, vu l'extrême facilité qu'elles ont à les feindre; ni à leurs spasmes, pour la même raison.

Après je m'en vais. J'ai ma vie, de laquelle je ne me plains point; de temps en temps elle croise celle de M., ses soutiens-gorge, ses sourires, ses phrases dites en riant comme si chaque mot avait un deuxième sens et moi l'obligation de le comprendre.

Ele ne me pose jamais de questions, ne me demande pas où vais-je quand je la quitte, d'où viens-je quand je la retrouve;  moi non plus, je ne lui pose pas de questions: je sais qu'elle écrit dans un journal de mode, qu'elle aime le théatre et pas le cinéma, qu'elle apprécie les fleurs que je lui améne si par hasard le magasin de fleurs près de mon hôtel est ouvert.

I
Je ne sais pas si vous connaissez Lisbonne. “C’est une ville de contrastes”, disent les autorités touristiques. Elles ont raison, pour une fois. Lisbonne est un ville de contrastes: entre les magnifiques monuments et les maisons à l’abandon (il y a environ 4200 bâtiments nécessitant une réhabilitation, dit la mairie); entre les rues, belles, pavées, et l’impossibilité quasi totale de les parcourir en marchant, car les trottoirs sont pleins de voitures (et si l’on a une poussette l’impossibilité devient totale); entre la lumière, superbe comme dans toutes les villes baignées par la mer (ou un fleuve, dans ce cas) et les odeurs de pisse, d’ordures et de merde de chien. Les contrastes pourraient continuer ad infinitum. On s’en fout.

La civilisation est simplement un synonyme de police efficace. Mettez un policier entre chaque groupe de x centaines, ou x milliers de personnes; donnez-lui les moyens d’effectuer son travail correctement – et vous aurez une ville civilisée. En revanche, si votre policier est plutôt un boy-scout, “ami” de la population, dans le meilleur des cas; ou un corrompu, dans le plus commun, vous n’aurez point de civilisation.

Lisbonne n’est pas une ville civilisée; mais c’est une ville adorable – en part car elle n’est pas civilisée, en part malgré cela. J’y ai un appartement, cadeau de mon père le jour où j’ai reçu mon diplôme à l’Uni. Il est dans le quartier de la ville que je préfère, celui de Príncipe Real. J’ai une vue sur le Tage, je suis à proximité de tout et loin du bruit; j’ai de bons restaurants, un marché de produits “biologiques” (je ne sais pas ce que sont des produits alimentaires non biologiques; jamais vu une tomate en béton dans ma casserole, par exemple; ou du riz en fer forgé. Mais la désignation a pris, hommage à l’irrationalité collective d’une espèce qui se croit rationnelle et parfois parvient à faire croire qu’elle l’est).

Je ne suis pas souvent à Lisbonne et je loue l’appartement à des étrangers de passage. Si je viens pour une fin-de-semaine je descends à l’hôtel; si je reste plus longtemps j’attends que mes locataires partent et je prends mon espace comme si c’était une maison de vacances, une maison dont les objets me sont familiers mais qui n’est pas la mienne.

C’est le cas maintenant: je suis ici pour trois mois.

Lisbonne fût jadis la capitale d’un empire; je me demande aujourd’hui si elle n’est plutôt une capitale de province: on y vit comme dans un village. Les gens sont les mêmes depuis des dizaines d’années; grâce à la loi des loyers, qui provoque une hécatombe dans les bâtiments, les magasins les plus modestes se maintiennent et n’ont guère besoin de se renouveler. Les relations avec le voisinage – les petites épiceries, les cafés, la pâtisserie – s’établissent rapidement. Il suffit d’y aller régulièrement pendant une semaine ou deux et nous sommes considérés “de la maison”.

II
M. habite loin, au Parque des Nations, une partie nouvelle et relativement laide de la ville. Je vais rarement chez elle: normalement je lui téléphone quand j’arrive à l’aéroport, on se donne rendez-vous pour un peu plus tard si elle est libre ou pour le lendemain et l’on se retrouve à l’hôtel (plutôt une pension, non loin de chez moi, qui me rappelle l’appartement de ma grand-mère et non pas une auberge de luxe).

Cette fois les choses ne se passent pas ainsi: elle a, elle me l’annonce heureuse, “un home dans sa vie”.

“Ce n’est pas une raison pour que l’on ne se retrouve pas, M.” “Ok, mais cette fois je ne pourrai pas te faire l’amour”.

“Je survivrai”.

Nous nous retrouvâmes donc, les deux mois suivants, sans qu’elle me “fasse l’amour”. Nous allions à la petite pâtisserie de M. Leal, qui fait des madeleines intégrales et des pastéis de nata “meilleurs que ceux de Belém”. Nous mangions au Pão de Canela, qui me faisait croire être à New York ou à Paris, lieu favori de la bourgeoisie locale et des intellectuels (à Lisbonne sont les mêmes, quelle que soit l’appartenance politique); où au Trivial, qui fait une Perdiz à Convento de Alcântara qui parfois, en le mangeant, me donnait envie de devenir moine au dit couvent d'Alcântara; nous marchions au jardin du Príncipe Real, récemment détruit par la mairie avec des travaux de “récupération”; nous buvions des Alexanders au Procópio, ou un barman appelé Luis fait les meilleurs de Lisbonne – et avec ça les meilleurs cocktails, tout court. C’est un bar classique, avec une décoration classique, un service classique et une beauté unique.

Des fois nous allions nous promener au bord du Tage; nous nous asseyions aux Cais das Colunas, qui est un concentré de l’histoire du Portugal – en face Almada, ses horreurs, son ex-chantier naval, en arrêt depuis de décennies; derrière la Praça do Comércio, Terreiro do Paço, jadis lieu du pouvoir et aujourd’hui de mauvais restaurants pour touristes. Et nous parlions. Nous parlions beaucoup: d’elle et de son homme; d’elle et de pourquoi elle se maquillait moins, elle se soignait moins, elle s’habillait moins; d’elle et de ses doutes sur la maternité, sur la vie de famille, sur la vie de couple. D’elle et des pressions de sa famille pour qu’elle se marie avec “son homme” – il s’appelait Matias, mais elle ne le nommait que très rarement.

“Tu comprends, João, je n’ai plus besoin d’un masque, maintenant. Je puis être moi. Il m’aime, il n’aime pas mes habits, ou mes bâtons à lèvres”. “Il est ingénieur, il s’en fout de ces choses. Il n’est pas sensible aux apparences”. “Il est tellement drôle. Figure-toi qu’il ne sait pas que Pierre Cardin est une marque d’habits, où que Yves Rocher sont des cosmétiques”.

Mais au bout de deux mois elle commença à changer. M. était trop intelligente – et trop intéressée par elle-même - pour ne pas s’en apercevoir. “Est-ce que tu aimes cette petite robe? “”Que penses-tu de cette couleur?” - elle me tendait les ongles, peints comme je ne les avais jamais vus.

III
Un jour elle m’a dit “j’ai envie de te faire l’amour”. Nous sommes allés dans mon appartement du Príncipe Real, vue sur le Tage, cadeau de mon père qui, sans doute, rêvait justement de scènes comme ça quand il me l’a offert et nous nous fîmes l’amour. Nous nous fîmes quatre ou cinq mois d’amour, pour être plus précis.

Je dis nous nous fîmes l’amour car l’on ne peut, malheureusement, pas dire nous nous fîmes l’amitié. Nous nous connaissions parfaitement maintenant, après ses mois de palabres; trop bien pour tomber amoureux l’un de l’autre. S’énamourer est découvrir; dès que l’on découvre l’autre l’amour cesse et se transforme soit en amitié soit en ennui, haine ou, simplement, indifférence et distance.

Entre M. et moi il n’y a jamais eu d’amour: nous sommes passés par différents stages d’amitié, comme une rivière qui a traversé des montagnes, des plaines, des lacs et arrive à la mer la même rivière qu’au départ, mais différente – plus calme, plus large, plus profonde.

IV
“Tu sais, João? Il n’y a pas d’intérieur et d’extérieur. Nous sommes un. Nous pensons que nous avons besoin d’un masque pour séduire et qu’une fois l’objectif atteint il n’est plus nécessaire; mais ce n’est pas vrai. Nous sommes ce masque, et ce masque est nous. Il est inutile de penser que l’on peut les séparer. C’est comme croire qu’il y a une différence entre la chair et l’esprit: les deux sont faits de la même matière, naissent des mêmes cellules, croissent et se développent ensemble“.

“Je crois à l’amitié entre un home et une femme. Pas toi? “

“Oui, si la femme n’est pas la femme de mon meilleur ami, ou est très laide”.

“Je ne suis ni l’une ni l’autre“.

“Non”.

“Tu crois que je dois dire à Matias que je ne l’aime plus?“

V
“Je le lui ai dit. Il m’a remercié. Il voulait se séparer de moi et ne savait pas comme me le dire lui-même. Quel fils de pute!”

Épilogue
L'autre jour j'eus une violente, soudaine et irréparable envie de M., comme un coup de foudre dans un paratonerre. 

14.11.12

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 14-11-2012

A greve em Palma sentiu-se pouco: dois senhores a apitar numa esquina, acompanhados por uma senhora sem apito, e um "piquete ciclista" a percorrer as ruas; tudo funcionava, incluindo os semáforos. Pelo menos o tudo que usamos: lojas, o bar Gibson - actualmente o nosso escritório -, o mercado onde comprámos sobrasada para logo à noite e o supermercado de onde gentilmente,  a um preço bastante competitivo, vieram as duas garrafas de cava (os semáforos eram uma piada; só os usamos para atravessar a rua. Fazem-me lembrar aquela parte dos funcionários públicos - longe de mim pensar que é a maioria - que não dá um passo nem os deixa dar a quem quer andar).

De resto cá vamos andando, de quase em quase: quase um trabalho na Tailândia para a Tatiana, quase um transporte de Inglaterra para a Grécia, quase quase quase. Quantos quase são precisos para fazer um sim? Acho que já excedemos tudo o que é razoável, o tipo (ou a senhora) que controla a matemática da vida devia prestar-nos um bocadinho mais de atenção.

A verdade é que já não estamos em Palma; as nossas mentes estão longe, em Antigua, em St. Martin, na Martinique, nos Deux Pitons, nas Grenadines, em Grenada, tão verde e tao bonita; em Bequia, no Captain Mack's Bar and Galley ou no bar do Lucífer, que me perguntava quanto tinha pago a última vez pelas lagostas para saber qual o preço hoje (e, abençoado seja, quando lhe pedíamos um rum nos punha uma garrafa cheia na mesa e cobrava o que faltava - às vezes faltava a garrafa toda, vá lá saber-se porquê).

E não são os edifícios de Gaudi contíguos ao bar que me trazem de volta. 

13.11.12

Amor, amores

A humanidade anda há provavelmente milhões de anos a tentar definir o amor e - pelo menos tanto quanto sei - ainda ninguém encontrou uma resposta satisfatória.

A qual, na minha humilde e pouco experiente opinião é impossível porque inexistente. Não há o amor. Há amores, tantos quantos seres amados, e seres que amam.

Pois, diz-me, se tu és - e és - única, como poderia o que sinto por ti ser igual ao que senti por A., ou sentiria por B.?

Amor é uma conveniência, uma simplificação, uma preguiça. Ou, quando muito, uma falta: o que me falta quando tu não estás.

(Para a T., com carinho, amor e as mariquices do costume.)

La sémantique des pommes

L'objectif de l'exercice - établir, oui ou on, d'une façon irréfutable l'existence d'une sémantique de la pomme - s'éloigne au fur et à mesure que la nuit avance - c'est-à-dire, recule - et le jour approche. Nous étions trois - ma pomme, sa pomme et une pomme, mouillés à l'entrée du fleuve, directement dans le chenal.

Il était évident qu'il nous faudrait sortir de là, sous peine de violent coup de cargo, coup de brouillard, coup de courant, coup de foudre, coup de sifflet ou n'importe quel autre coup. Sa pomme à la barre, pomme à la bouche; ma pomme au guindeau. Le brouillard nous enveloppa. La pomme m'indiqua la direction de la marche, travers au courant; nos approchâmes la rive, avant laquelle nous savions - les cartes nautiques existant précisamment pour donnner ce genre d'information - qu'un banc de sable nous attendait.

La sémantique de la pomme étant alors établie sans marge d'erreur. Trois pommes paumées dans le brouillard se retrouvent grace à l'une d'entre elles, une carte nautique actualisée et beaucoup de chance. Mais sur le banc de sable quelqu'un avait - nous le vîmes maintenant, puisque le brouillard se lêve impromptu - construit une cabane et planté un arbre. Est-ce vraiment le banc de sable ou la rive du fleuve?

L'arbre est-il un pommier? La nuit recule, le brouillard se lève, la maisonnette est de plus en plus visible, l'arbre aussi. Toutefois, sans savoir si c'est un pommier, que faire?

Ma pomme décide de sauter à terre et passer un bout' autour de l'hypothétique pommier. Avant faut-il mouiller, c'est évident; et culer le plus possible pour que je me mouille le moins possible. Il n'y a personne à terre; à quoi ou à qui sert donc la barraque? La nuit avance, le jour approche.

Nous sommes perdus sous un épais manteau de verbiage. Les mots nous couvrent comme des corbeaux dans les péllicules de terreur. Ma pomme, ta pomme, ta pomme. Sans l'intervention d'une autre pomme - d'un autre mot - le bateau sera perdu. Quel mot choisir? Vite, il y a urgence.

J'aime sémantique; c'est de la famille de semiologie, mais plus accessible, moins m'as-tu-vu. Tu choisis pomme, car tu en as une à la bouche - les deux mains occupées à barrer. Nous pouvons choisir la lune qui mieux nous convient. Pleine lune: on voit mieux, mais la marnage sera plus grand; alors, quadrature? Que sera-t-il du bateau dès que la marée baissera? Sommes-nous entre le banc de sable et la rive?

Sommes nous entourés de corbeaux, de corps beaux? De mots? Si oui, y a-t-il une règle qui relie les corps entre eux, telle celle qui relie les mots et leurs sens, les corps et leurs sens, la beauté et la vie?

Quel mot, quel corps, quel sens choisir? Quel arbre, au fond?

12.11.12

Jantar improvisado - frango com sobrasada

Há duas ou três coisas que se podem fazer quando se está demasiado tempo em terra. Uma delas é cozinhar. (É óbvio que no mar também se pode cozinhar. Mas não é a mesma coisa; isto é, não é tão necessário.) Em terra por vezes é preciso cozinhar, para não se ter a impressão de estar em terra.

Hoje para o jantar fiz um frango com sobrasada.

Comecei por marinar o bicho em limão, sal, cebola às rodelas, alho, pimento encarnado cortado (por "sugestão" da jovem senhora - entre aspas porque sugestão é um understatement -) em bocadinhos pequenos, cava (uma garrafa dele), sal e pimenta.

Depois foi ao forno; voltei-o a meio e molhei-o de vez em quando. A metade pensante de mim fez um arroz de espinafres para acompanhar.

Deve haver receitas mais simples; mas para frango, poucas são melhores. Pelo menos até hoje.

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 12-11-2012

Mudámos outra vez de casa; agora moramos perto da Plaça de Frederic Chopin. Não foi a música que nos trouxe, claro: foi o preço, bastante mais baixo do que a casa de A., e a localização. Estamos de novo no centro da cidade.

É marginalmente melhor estar encalhado no centro de uma cidade do que na sua periferia.

Há menos trabalho em Palma, e mais, muito mais gente à procura do que é habitual. De momento a única esperança mais ou menos concreta que temos é a de uma travessia no R. B., um nome feio para um barco lindo. Mas o capitão só chega no fim desta semana, e até lá não passará de uma esperança.

O senhor que me queria contratar para a Costa Rica adiou o projecto para Abril. Não sei onde estarei em Abril. A verdade é que quando estou sem trabalho sonho com um trabalho fixo; e quando estou embarcado fico feliz por o trabalho ser temporário. Nestes barcos passa-se muito tempo em terra, e apesar de tudo navega-se mais em freelance. Mas também se encalha mais. Não somos os únicos - o consolo é parco, mas é algum.

A Plaça Chopin também é de parco consolo - não é bem uma praça, é mais uma rua de peões com árvores de ambos os lados e bancos entre elas, onde à noite por vezes me sento para ter acesso à net.

Depois vou para casa tossir, ouvir a Tatiana (e toda a gente com quem falo, verdade seja dita) dizer-me que tenho de ir ao médico, tomar uma colherada de xarope e dormir. Os sonhos são maus, mas são melhores do que estar acordado.

A próxima vez que me apareça um trabalho fixo aceito-o, prometo; enfim, pelo menos prometo que pensarei nisso a sério, mais de cinco segundos.

Sanidade dominical

Uma ilha de sanidade, infelizmente só dominical.

11.11.12

Possibilidades v. capacidades

"Acima das suas possibilidades" e, talvez, muito abaixo das suas capacidades. A verdade é que o jornal estava uma porcaria. Comprei-o durante uma semana e mudei para o ABC, infinitamente melhor.

Mas enfim, nada como ver socialistas tomarem um banho de real.

10.11.12

Línguas e pátrias, Palma, 10-11-2012

G. pôs-se a ler "O Principezinho" no sofá. Olhava, aluado, o tecto como se fosse o céu e evadia-se nele. C. entrou na sala e perguntou-lhe: «O que estás a fazer?» Ele respondeu: «O atum! Ahhhh, estou a ler...» O livro estava ao contrário; G. pensava no que ia fazer para o jantar.

Noutra ocasião, C. decidiu rever com G. algumas conjugações dos verbos em castelhano. Há, no castelhano, um tempo verbal chamado "pretérito pluscuamperfecto". G. tinha a certeza de que de onde ele vinha, lá na Argentina, o nome era "Juan Luis Perfecto". Um senhor tempo verbal.

Estas foram duas das histórias que nos puseram a rir à gargalhada no jantar de despedida de C., num bar/tasca chamado Molta Barra, com um Pa Amb Oli delicioso e uma tapa de chouriços cozinhados em sidra a que chama "políticos a la sidra", vá lá saber-se porquê. C. emigrou para o Canadá, onde tem os filhos e, ao que parece, o futuro. «A Europa morreu», dizia-me H. no outro dia. Senti isso mais em Palma do que noutro sítio qualquer. Da gente estrangeira que aqui conheci, só uma pessoa quer ficar (e é porque vive em Inglaterra, onde o clima se pode tornar mais detestável que qualquer crise, real ou anunciada).

G. é um miúdo doce que partilhou a casa com C. e N. antes de nós. Fez uma despedida comovente a C.: como se esqueceu dos presentes no outro lado da ilha, colocou cartazes nas escadas do prédio dizendo piadas e ternuras. Como todos os argentinos, usa muito a expressão «que liiiindo». É um povo que já me está mais no coração do que a maioria dos cardiologistas aconselha.

Palma está cheia de argentinos. Só S., um argentino adorável que conhecemos em Antígua, tem uns 20 amigos argentinos por aqui. Numa noite conhecemos uns seis dos seus amigos, todos empregados de bares e restaurantes, todos simpáticos e sorridentes, quase todos giros, com buenos aires. E todos longe do seu país, como Gu., que o detesta e não cede à hipocrisia de dizer "que o adora mas não pode viver nele". Eu não sei, já, se gosto de Portugal. Não gosto de que os meus amigos estejam desempregados, ou que não possam mudar de emprego porque de certeza não encontrarão outro. Não gosto de que os meus amigos tenham de deixar um país onde gostam de estar porque não conseguem, nele, viver como viveriam noutro. As razões pelas quais deixei Portugal foram apatrióticas, mas voltar cada vez mais me parece um esforço, uma decisão difícil. Tenho saudades desses amigos e -- muitas -- da minha família. Mas não tenho do resto. Além de que ando a reler Eça de Queirós. Se me perguntam o que leio respondo, simplesmente, «Portugal».

Talvez haja uma explicação para não ter saudades: «O essencial é invisível aos olhos»; o atum, se não há, também.

8.11.12

Dissonâncias indignadas

A malta que clama contra Isabel Jonet é a mesma cuja palavra chave é solidariedade, que há alguns anos cantava "somos todos iguais, braços dados ou não", acha Zeca "traz outro amigo também" Afonso o maior cantor nacional, se emociona com o voluntariado para a ONU, vai aos concertos Aids, We are the world, e acha que a OXFAM merecia o prémio Nobel da paz, não é?

Analogia

Tal como não preciso de perceber de anatomia para saber se uma senhora tem um corpo bonito ou feio, não preciso de saber de economia para perceber que Sócrates foi uma catástrofe. 

Poço da morte

O sabor do dia, para os indignados do costume são as declarações de Isabel Jonet. Uma das coisas que me fascina é Portugal é a profundidade do buraco. Do poço, se preferirem.

Eu ouvia-as parcialmente, e o que pensei está dito aqui: "meia dúzia de banalidades moralistas, inócuas"; outras que são simples bom senso; enfim, nada de especial vindo de alguém que prefere distinguir-se pelo que faz, em vez de pelo que diz.

Mas o poço da imbecilidade portuguesa não tem fim. Não tem limites. É incontrolável. Caiu o Carmo e a Trindade em cima da senhora. Por um lado por causa da forma, como diz o Lourenço; por outro porque a esquerda (eu confesso que hesito em usar a palavra esquerda como sinónimo de estupidez, mas cada vez me parece mais inevitável) acha que a caridade é má. É melhor fazer pobres, através de políticas económicas de resultados comprovados do que ajudá-los.

Não é uma surpresa, num país que preferiu Sócrates a Manuela Ferreira Leite porque esta era feia e falava mal; Sócrates era bonito, falava bem e vestia melhor - tudo qualidades, como se viu, de incalculável valor num primeiro-ministro.

Não é surpresa; surpreendente é a dimensão do vazio que vai por essas cabeças dentro.

5.11.12

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 05-11-2012

Dizem que a vida é assim: uma coisa mais ou menos caótica (embora ordenada, de alguns pontos de vista -- nascimento, vida, morte) e imprevisível, como acontece quando por exemplo ouvimos um tema do Chick Corea, cheio de vento, borboletas, fantasmas, chuva e sol, ondas e fogos de artifício, choros de viúvas e de recém-nascidos, e por aí em diante até não sabermos se aquilo é triste ou alegre ou se é só, passe a redundância, a vida como dizem que ela é, uma coisa mais ou menos caótica, embora ordenada de alguns pontos de vista, como o nascimento, a vida ou a morte, mais certas do que dois e dois serem cinco.

De maneira que estou outra vez sem trabalho e isso dá-me cabo do juízo. Não tenho jeito para a instabilidade. Felizmente, alguma estabilidade restabelece-se: o Luís, ao meu lado, fala mal da esquerda portuguesa, sinal de que está a recuperar da gripe (graças a Deus, não sabia, como se ouvisse um tema do Chick Corea, se havia de rir com a sua infantilidade tão surpreendentemente tardia ou de chorar com a fragilidade que me assustou tanto e me fez temer-lhe pela vida, apesar de ter sido só uma gripe. Adenda importante: o Luís não é piegas, insulta a tosse com os pulmões que lhe restam, enraivece-se com a doença com o ânimo que ainda lhe não lhe escapa, chama-lhe puta, pífia, e depois sucumbe à exaustão como uma criança birrenta ao sono, ou eu às preocupações).

O melhor que uma pessoa pode fazer é render-se, li não sei onde, ou disse-me não sei quem. «Tenta mudar o que dizes a ti própria; em vez de dizeres "eu não posso ser assim" ou "as coisas não podem ser assim", diz "eu sou assim" ou "as coisas são assim" e procura força para aceitar o facto de as coisas serem assim». disse-me L. A verdade é essa: as coisas são assim e não posso, por agora, fazer muito mais para que deixem de o ser. Ora vejamos: dockwalking, responder a dezenas de anúncios sem sequer ter direito a um "não, obrigada", comer sempre em casa gastando o mínimo possível, passar um modesto 25.º aniversário cujos únicos luxos foram ter saúde, amor do que me estava perto e dos que me estavam longe (e que chegou em força por ondas electromagnéticas, abençoadas sejam) e um bolo de chocolate de peso, tamanho e preço pecaminosos. 

Paciência. É das qualidades que mais me faltam e das de que mais preciso. N., o nosso ex-senhorio (é verdade, deixámos a rua mais bonita de Palma hoje), tem-na de sobra. Ontem passou quatro horas a limpar a bicicleta de três mil euros que pesa menos dez vezes do que eu (que, na contrapartida do dinheiro que tenho, cada vez peso mais), passa outras tantas horas a arreglar os móveis que decora e a tocar batuques. Gabo-lha. E a bondade, e a organização, e o bom aspecto. Gabo-lhe tudo, até a estranheza de me tentar convencer de que o furacão Sandy foi provocado para que Obama ganhasse as eleições, entre outras teorias da conspiração. Foi bom viver em sua casa. Agora, à maneira caótica do mundo, estamos num limbo chamado "bairro acima da Plaza de España", numa casa agradável que partilhamos com a russa A. e o seu gato Casper (na verdade, uma das razões pelas quais respondemos ao anúncio foi o sentido de humor de uma das regras da casa: «No cat killing»).

Amanhã ou depois decidimos o que fazer. Ou a vida decide por nós. Não tenho jeito para a instabilidade. Paciência.

Um singular singular

Para o Público, plural começa nos quatro.

"Três em cada dez lisboetas é obeso, revela estudo"

4.11.12

"Parede de casa de banho"

O nome do blog é no mínimo infeliz; mas tem a PR, e só por isso merece visita e vai já para o reader.

História sem palavras

É tarde, na rua ouvem-se passos; mas são poucos, hesitantes. Como se a pessoa - em breve saberemos que é uma mulher - nem sempre pusesse os pés no chão. Mal se ouvem, afastam-se devagar, agora um sim agora um não agora outro não. Tu estás deitado. Sabes que os passos vêm da mulher que há pouco deixou o teu leito, com quem há pouco fizeste amor também hesitantemente. Ela agarra-se a ti, aperta-te com força, chora e deixa-te ir. 

Pouco depois agarra-te de novo. Tu compreendes que a amas, mas não sabes como dizer-lho, nem mesmo fazendo-lhe amor. Ou então é ela que não compreende, não quer compreender.

A mulher avançava pelo amor como agora pela rua escura, deserta; sabe dar mais do que receber: recebe-te com medo, hesita, abraça-te, suspira, diz "não me ames como eu te amo, cala-te, cala-te".

Tu ouve-la, baixinho e sabes - não é a primeira vez - que dali a pouco ela percorrerá a rua com os seus passos inseguros, como se a cada um quisesse largar a correr e estivesse a lutar contra a tentação. "Ou como se não quisesse ir-se embora", pensas.

"Qures ficar cá esta noite?" "Não, obrigada". Sabes que se chama Teresa e ela sabe que tu te chamas António. Trabalha numa loja das redondezas. É muito tímida, parece que saiu de um filme do Rohmer. Tu gostas desta ideia de um amor secreto, hesitante, silencioso.

Não compreendes bem como começou, nem porquê - não sabes sequer com antecedência  quando é que ela vem  a tua casa. Ouves a campainha da porta, sempre tarde, depois de jantar, vais abrir, ela diz "Olá" tu respondes "Entra" ela vai directamente para o teu quarto.

A primeira vez era inverno, tu recordas-lhe o sobretudo pesado, antigo, mas bonito. Agora é verão. Ela veste-se "recatadamente", pensaste um dia: blusa ligeira mas opaca e com mangas, um decote pouco profundo, saias pelos joelhos.  É muito bonita, com os seus grandes olhos verdes que te olham de frente, sem vacilar.

Quando sai não te olham, sequer. "Não te levantes. Não é preciso. Obrigada."

E ouves o seu passo na calçada, hesitante. "Com que palavras acabará esta história?", perguntas-te.

Sem palavras.

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 04-11-2012

Não foram dois ou três dias; vai no sétimo, e só agora começa a dar sinais de abrandar. Mas tão pouco foi de mata-caballos, como diz N., o senhorio: pelo menos não me matou.

Mas abalou-me muito. Foi forte, grossa, traiçoeira, viciosa, brutal, repelente. Pôs-me quase de rastos - na quinta e na sexta-feiras o quase é dispensável - e deixou-me fraco, exausto, partido.

Mas teve uma vantagem: descobri as virtudes miraculosas do chá de cebola contra  a tosse. Até hoje nada tinha visto de melhor. E descobri as qualidades anti-tudo e pró-vida da Tatiana. Enfim, essas já as conhecia, só nunca as tinha visto postas em prática com tanto carinho e eficácia.

De maneira agora emerjo de uma semana por assim dizer difícil. Só não o foi mais porque ao quase de quarta-feira - que ainda não se apagou - um outro se veio juntar. Não se excluem, e seria justo que nos caíssem os dois; mas o mundo não costuma ter achaques de generosidade desta dimensão e com uma das duas já nos satisfaríamos e muito.

Como de costume,

aos domingos está tudo aqui

1.11.12

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 01-11-2012

E pela primeira vez em muito tempo tenho uma gripe; uma daquelas teimosas. Já por duas vezes me levantei, e por duas vezes ela me mandou de volta para a cama. Odeio estar doente. Só me apetece estrangular os vírus todos um a um, afogá-los em chá de limão, besuntá-los de mel, engrossá-los com vinho tinto.

Triste maneira de celebrar o quarto de século da Tatiana, que o festeja hoje, coitada; mas enfim, o século tem muitos quartos, muitas salas, corredores, cozinhas, caves e sótãos. Temos muito tempo para explorar algumas dessas divisões.

Ao menos as escapadelas serviram para algumas coisas boas - uma das quais descobrir o Bar Dia, um prodígio de qualidade e preços baixos em plena Llotja, o quarteirão mais turístico de Palma; outra foi confirmar o Ca na Chinchilla como uma grande bodega - em itálico para não haver confusões. Fomos lá ontem para celebrar a partida do G. e da A. Vão para Antigua via Polónia (A. é polaca). Em breve seremos nós, espero; e que a nossa festa seja tão agradável como a deles.

É uma via crucis, mas pelo menos as estações são agradáveis.

Os nossos amigos vão-se todos embora; no final do mês que hoje começa pouca gente haverá que conheçamos. E poucos barcos, também. Temos duas semanas no máximo para encontrar um embarque. Felizmente, após uns dias de interrupção, reapareceram alguns quase. Gostava de confirmar um e depois ir a Portugal passar meia dúzia de dias. Parece-me um plano sensato e espero que o ou os tipos que coordenam as coisas lá por cima partilhem esta opinião. Se é que há alguém a coordenar isto, coisa em que nunca acreditei e cada vez menos.

Visto de longe e quase só pelos blogs Portugal é giro. Parece composto por bandos de galinhas que ouvem um grito num lado e fogem apavoradas, cacarejando muito, para o outro sem sequer tentar perceber o que foi esse grito; depois cheira a milho e lá vão todas, cacarejando muito outra vez, ver se lhes calha um grão. Andam sempre juntas, cacarejam sempre muito, não conseguem ir mais fundo do que o buraco que o bico faz no chão quando esgravatejam quaquer coisa para comer. Permanentemente entre gritos que as apavoram e  milho que as atrai.

E a cacarejar muito, sempre, ininterruptamente, indignadas.

De modo é assim: enterrar a gripe, arranjar um embarque e ir a Lisboa. Acordar no mar, que tanta falta faz. Pode começar já, por favor.

O primeiro dia do resto da vida

Hoje o Abrupto saiu do meu reader. O Jugular consegue ser melhor, apesar de tudo.

No dia em que deixar de carregar à hussarda e comece a apresentar soluções talvez o leia de novo.