31.10.19

Amor, peles, mar e praia

Há amores que se nos colam à alma como o mar à praia. Digo-vos eu, que Deus sabe quantas vezes já fui nadador-salvador.

Arrumações

Era um homem que gostava de ordem. Enquanto não teve os passados arrumados não morreu.

29.10.19

Outro lado

A espessura do ar tece fios entre pessoas; tocam-se sem mesmo se verem. Avanças ao longo desse muro, tacteando, tentando perceber se há uma brecha para ti. Vais no sentido da brisa, tocando corpos que não vês,  não te vêem. Tacteias mas tentas impedir o pensamento de te explicar o que tocas: preferes deixar aquilo ou aqueles que sentes explicarem-te o que são, quem são. (Isto caso haja pessoas no muro, do que agora não estás seguro.) A brisa - um filete de ar tenso, ditatorial tenta desviar-te da missão mas tu não lhe obedeces. Queres saber de que é feito esse muro, simultaneamente opaco e invisível, que te separa do outro lado.

Como sabes que há outro lado?

Chapéus há muitos

Comprei um chapéu, um quase Borsalino. Um borsalinho, digamos assim.

É bonito, não foi caro e aposto que vai fazer chover muito menos do que choveria se não o tivesse comprado.

28.10.19

Árvores, camelos

Tento desligar-me de Lisboa. Projecto vão: os fios que me ligam a esta cidade renovam-se e fortalecem-se cada vez que por aqui passo. Amores velhos,  amizades novas, encontros de café tecem um teia capaz de suportar mil pontes, cada qual a mais pesada, a mais forte, resistente. 

Recentemente descobri-me um passado, do qual me lembrava mas não vivia. Cada dia em Lisboa dá-me a ver um presente, é um presente. A pertença é o oxigénio dessa lenta combustão a que chamamos vida. Um nómada é uma árvore que anda, não um camelo perdido no deserto. 

27.10.19

Diário de Bordos - Mértola, Alentejo, Portugal, 27-10-2019

Faço o trajecto de Évora para Mértola ao som da Segunda Sinfonia de Mahler, a Ressurreição. A coincidência é perfeita, adequada, ajustada. Quase seria tentado a acreditar na malta que nega a existência de coincidências. Quase. Continuo a acreditar nelas.

Passei horas em Évora a vasculhar no meu passado. Coisas que pensava perdidas para sempre, desde textos a fotografias passando por objectos completamente inúteis  (nem todos. Encontrei um saca-rolhas tipo beto cuja proveniência esqueci por completo; já está no armário das bebidas de Mértola).

Uma das ressurreições. Houve outras, inomináveis. Foi a tal ponto que mal cheguei a casa pu-la outra vez: Mahler em excesso é uma  contradição nos termos.

Já vida em excesso não é, mas isso fica para depois.

Colisões

Demasiadas coisas a fazer para o tempo disponível; demasiada vida a viver para a vida que te resta.

Sabes que estás a fazer alguma coisa mal quando o trabalho e a vida colidem.

(O trabalho é mais importante.)

Série "Precocidades"

- A noite só é noite
Quando o sol te anuncia a urgência do adeus.
- Quando nasceu teve problemas respiratórios e o médico fez-lhe respiração boca-a-boca de urgência. O médico era alcoólico.

Está tudo dito.

- Escolho as palavras como quem atira pedras ao comboio: algumas partem vidros, outras não.

O dilema é escolher: as inteiras ou as partidas?

26.10.19

Talvez

Talvez amar uma cidade seja isto: um gajo emocionar-se cada vez que passa por uma rua onde já passou duas mil vezes. Talvez amar seja isso, amar só, seja o que for: uma mulher, um barco, um livro - um gajo emocionar-se cada vez que a vê, que o navega, que o lê, muitas que sejam as vezes que tenha feito isso antes. Talvez amar-te seja isso: emocionar-me cada vez que penso em ti e penso em ti todos os dias, todo o dia.

25.10.19

Frio

A solução para o frio é simples: entrar por ele dentro antes que seja ele ele fazer o mesmo em nós. Ser o primeiro. Pressentir que é uma guerra que não conseguiremos ganhar e recuar.  Isto é: entrar no frio às arrecuas, de marcha a ré, prescrutando no horizonte as inexistentes escapatórias.

Verdade seja dita: o frio limpa a cidade, torna-a mais leve e mais clara. Isso é inegável. Até as burras andam nais ligeiras, nestas ruas agora "quase desertas".

Isso faz-te precisar da Martinique, não faz?

Faz.

23.10.19

Cada vez que o Sol se põe

Chegou o frio e com ele o Outono (não, isto não é um socialista a falar de economia. Sou eu a pensar na ordem das coisas, nas relações de causalidade, na maneira que cada um tem de interpretar o que lhe aparece pela proa, na diferença entre tolerância e relativismo, nos diferentes registos da linguagem). Chegou o frio. Para a semana talvez haja calor mas estarei em Lisboa, tanto me faz. Em Portugal vai chover, isso sei e não me indifere nada, antes muito pelo contrário. Aborrece-me bastante. Não gosto de chuva, útil que seja.

Palma está a preparar-se para o Natal. Já há luzes em bastantes ruas. Felizmente ainda não as acenderam. Já ando deprimido que chegue, não preciso de iluminações natalícias intempestivas.

Pouco importa. Mergulho nesta noite que me recusa, acaricio-a, tento suborná-la: "deixas-me dormir e em troca dar-te-ei sonhos lindos, sonhos impecáveis, novinhos em folha, sonhos que nunca foram vistos antes". A noite hesita, recua, avança, deixa-me pôr um pé na porta, acaba a troçar ternamente de mim: "Já viste quantos sonhos recebo cada vez que o Sol se põe? Que farei dos teus?"

22.10.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-10-2019

O passado é um país diferente porque é aconchegante, aprazível, parece um daqueles xailes que as senhoras de idade põem pelas costas. Quando o passado era presente era o que era: uma chatice, uma alegria, uma coisa qualquer. Quando era futuro, uma incógnita. Mas agora que é passado é mais confortável do que um sofá à frente de uma lareira, cachorro de um lado e whisky do outro. Entramos nele e o presente fica imediatamente mais fácil, mais leve, risonho.

Fui jantar a um restaurante brasileiro e mal cheguei vi-me em Salvador, no Rio, lembrei-me dos rodízios todos e das caipirinhas todas, lembrei-me da feijoada, dos dias que passei com a minha filha H. na minha amada S. Luís.

(Tive de deixar a bicicleta no restaurante e vir de táxi, porque está a chover torrencialmente.)

..........
O P. avança a galope, a rédeas largas. Cheira-lhe a mar e a mim também. Todos os dias tropeçamos e todos os dias nos levantamos dois grandes passos à frente.

Seriam três sem os tropeços? Também o céu seria azul sem a chuva: que interessa? Onde poderia estar nada, de certeza. Onde estou sim, muito: amanhã estarei mais à frente.

........
D. voltou para a Alemanha e eu para a solidão. Posso estar enganado, mas parece-me que nem a Alemanha nem a solidão são as mesmas de antes.

Uma vida inteira

Precisei de uma vida inteira para te ter na minha cama e vou precisar de outra para te manter lá.

21.10.19

Liberdade?

Liberdade? Até me conheceres, tu não saberás o que é liberdade.

20.10.19

O começo de uma história

Os deuses enviaram-me um presente, o carteiro enganou-se e deixou-o na porta ao lado, o vizinho foi simpático e veio entregar-mo.

A história começa com dois terraços, um onde se falou e outro onde se amou.

A história começa com Leonard Cohen e um casal que o dança na cozinha.

A história começa com dois dias na Tramuntana e a descoberta de que algumas magias são partilháveis. Sa Calobra, por exemplo.

A história começa com uma parte de mim que andava perdida e regressou.

(Querida, bolas, por favor desmonta as mamas e põe-as numa gaveta. Com elas no sítio não há quem consiga dormir.)


(Cont.)

Sinonímia

- Era um tipo bastante complexo...
- Complexo é outra palavra para estúpido, não é?

18.10.19

Fora de pé

Compro livros desgraçadamente e desgraçadamente não os leio. Enquanto bebo um vermute na Babel oiço um jovem pianista, pouco aventureiro mas talentoso. Tenho um encargo: escrever sobre o meu encontro com ela, mas é demasiado fresco, demasiado quente, ainda queima.

- Estás a comprar um produto em segunda mão, não te esqueças.
- Segunda? Que bom seria, se fosse só em segunda mão.
- Bom, um produto usado. Não sabes onde se escondem as avarias.
- Tonto. Tu és as tuas avarias.

Escolho a via fácil: o vermute, a música, as miúdas infinitamente novas e bonitas que desfilam, a ideia de que o mar um dia resolverá tudo isto. O mar resolve tudo: nele nunca estou fora de pé.

17.10.19

Metade da outra

Começa-se por tocar contrabaixo mas depois aquilo começa aos saltos e aos urros e de repente fica um violino, que não tarda desafina e guincha e vai daí é um trompete ou um sax, passa a piano, pelo meio aparecem uns címbalos e quando se dá por ela tocou-se a orquestra toda e metade da outra.

Não me passaria pela cabeça

Discordo de muitas coisas que fazes, dizes ou pensas; mas nunca me passaria pela cabeça pedir-te para não as fazeres, dizer ou pensar: amo-te como és, não como queria que fosses.

Primeiro, último

Não há segundos amores. Todos são - sempre, todos, cada um deles - o primeiro e o último.

16.10.19

Caminho

Deitado ao teu lado, tento descobrir o caminho mais curto ente a tua pele e o teu coração.

15.10.19

Pergunta matinal

- Gosto de ti, dos teus cabelos, dos teus olhos, da tua pele, do teu cheiro...
- Quantos gosto de ti são precisos para fazer um amo-te?

13.10.19

Vem

Palavras abandonadas, dispersas ao acaso, como cadeiras num salão de baile depois de a música acabar. Todos saíram, os músicos levaram os instrumentos, nas cadeiras vazias adivinham-se alguns sonhos, uns restos de esperança, um ou outro traço de desejo satisfeito ou não.

Palavras mudas: nem as cadeiras nem os fantasmas que agora as ocupam falam uns com os outros. O ar está pesado, lento, quase opaco. As palavras não se vêem. Sentem-se, talvez.

Talvez até palavras seja um exagero. Murmúrios seria quiçá mais adequado. Como se diz "quero-te" com um murmúrio? "Espero-te."

O salão é enorme, está vazio, aqui e ali, se estiveres atento, ouves uma voz muito baixa, quase inaudível: "Vem."

Imodéstias de domingo à tarde

Disse recentemente que o projecto do PANDA é a única coisa que posso comparar aos meus filhos. É um exagero, claro (admitidamente, raríssimo em mim. Não sou nem nunca fui excessivo em nada).

Não é inteiramente verdade: o trabalho que deixei no Burundi está ao mesmo nível. A rede logística que lá ficou, o sistema de telecomunicações (tínhamos internet em Bujumbura em 1994, meu Deus), o mecanismo de pedidos, recolhas, entregas... Não sou eu que o digo, era o que ouvia semana após semana, vindo de pessoas tão insuspeitas como as ONG que pouco tempo antes me acusavam de fascista para cima (ou para baixo, dependendo do ponto de vista).

Dêem-me dinheiro e liberdade e juro-vos que o resultado não desiludirá. (Para os filhos nem sequer houve assim muito dinheiro, mas manda a verdade dizer que não só eu não estava sozinho mas também a maior parte do esforço recaiu na Mãe deles - e o mérito também, claro. A minha única intervenção foi ter sabido escolher. Não é pouco mas tão-pouco é tudo).

Não sei fazer coisas por metade e estou contente por agora ser demasiado tarde para aprender. 

Estas (auto-retrato na praça de Santa Fé, Palma).

Esta repulsa profunda, aversão visceral, total, irreconciliável a profetas, prosélitos, apóstolos; esta incapacidade de respirar o zeitgeist, de integrar rebanhos, igrejas, clubes, partidos (a minha adesão à IL sendo uma excepção), de acreditar em "correntes de opinião", na "opinião pública" só porque é opinião e porque é pública, esta independência. Este horror a opiniões baseadas no porque sim, aos ódios do mês, ao gregarismo, às modas, sejam elas quais e de que forem, à magia e respectivo pensamento.

Esta liberdade.

Sou um ditador de mim, o único ditador cuja autoridade aceito - e mesmo essa discuto-a.

(Santa Fé é um oxímoro.)

12.10.19

Meigas, esfera celeste, eco e outras coisas surpreendentes

Placas tectónicas celestiais empurradas - ou puxadas? - por meigas. Ou seja, estamos na Galícia. Duvido: nem as placas, nem o céu nem as meigas têm fronteiras. Estão em todo o lado, estamos em todo o lado: não há palavra mais bonita do que meigas em galego, seja qual for o mundo em que a oiçamos. A esfera celeste acolhe forças subterrâneas, submarinas, sublunares. Subcelestiais.  Talvez aí resida a explicação: uma pele submarina, um olhar sublunar. Resta saber se a Lua estava cheia nesse dia. Ninguém sabe.

Recomecemos: sabemos o que temos: meigas, forças tsunâmicas, placas tectónicas, um céu que desconhece o seu papel nisto tudo. Temos palavras e um alvo para elas. Sabem para onde vão, sabem o que querem. Uma revoada de palavras disparadas não se sabe por quem voam céleres na mesma direcção, rumo a um alvo que as escolheu e lhes disse: "Sou eu".

"Sou eu". Duas palavras cujo eco é "és tu". Sem essa resposta são incompreensíveis. Será que todas as palavras precisam de um eco para ser inteligíveis? Qual a resposta correcta a "Amo-te", por exemplo? Imagina: estás numa gruta enorme, vazia. Alguém diz:

- Sou eu.
- És tu.
- Amo-te.

Que se segue?

Aqui entram as meigas, discretamente. Ninguém as vê, ouve ou sequer sente excepto os dois dialogantes, a palavra e o seu eco. (Para que isto funcione é preciso imaginar - aceitar - que a esfera celeste não passa do tecto de uma gruta pintado com imagens em movimento de estrelas, planetas, cometas, nuvens, revoadas de flechas, palavras.)

Faltam as placas tectónicas, a lua cheia, Faltas tu, com as flechas e as palavras no regaço.

Faltas tu: que somos? O eco um do outro, a palavra um do outro.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-10-2019

O primeiro jantar Ler por aí... de Palma correu para cima de muito bem. Isto é: chegámos ao quorum mínimo (treze pessoas), o músico estava em estado de graça, o leitor leu decentemente, a comida estava boa. Por fim mas não por último ainda consegui ganhar o suficiente para me pagar dois ou três copos no Antiquari, coisa que não parecendo é agradável.

Os donos do restaurante querem mudar o modelo (trabalhar para pagar uns copos no Antiquari não é suficiente para eles), mas a coisa veio para ficar. Quem se vai sou eu. Não deixo filhos, mas deixo eventos culturais. Vá lá, podia ser pior.

.........
Passei uma hora a procurar guias para a viagem que aí vem. Preparar uma passagem sempre foi uma das coisas de que mais gosto nesta vida. Preparar uma volta ao mundo é outra escala. Uma coisa é certa: pelo menos já não temos de comprar duzentos metros lineares de cartas e cinquenta de guias. Só preciso dos guias e alguns até são em formato electrónico. Mas este foi o primeiro contacto directo com a extensão, a vastidão do projecto.

.........
A minha bicicleta Panther é grande, pesada, de contra-pedal e - claro - bastante confortável. Desliza suave e silenciosamente pelas ruas e praças de Palma, como se fosse movida por poderosas forças secretas, profundas, invisíveis e me levasse em cima, especial favor feito a esta carcaça que todos os dias ganha em alegria o que perde em agilidade. É uma troca sobre cujo valor estou indeciso, mas que à primeira vista me parece vantajosa.

.......
Suavidade. Não é só a bicicleta que desliza suavemente comigo em cima. É o tempo, também.

10.10.19

Pequena informação, talvez útil às novas gerações

Molhar um envelope com a língua para o fechar é exactamente como molhar um mamilo feminino para o abrir.

9.10.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-10-2019

Pouco importa, na verdade. Isto da solidão não passa de uma aparência. Ou do contrário de uma aparência: é uma gabardine que pomos dentro de nós próprios para nos proteger de uma chuva longínqua, invisível de tão longe.

Está uma senhora a cantar na televisão. Uma legenda chama-lhe The Cranberries. Suponho que seja o nome do grupo, ela não tem cara de se chamar Os Mirtilos (?) A música é agradável de se ouvir. Não percebo uma palavra do que ela canta, mas a melodia é apetecível. A senhora também, de resto, é uma daquelas mulheres com quem um gajo pode sair à rua sabendo que não vai ouvir assobios ou suportar olhares concupiscentes. A mulher impõe respeito.

Acabei a jantar no 7 Machos e hoje está cá a dona. Encomendei um burrito e ela perguntou-me:
- Para beber, vai ser uma Margarita?

É por estas e por outras que a solidão não passa de uma ilusão de óptica. Uma falta de gosto, às vezes. Uma distracção, na melhor das hipóteses.

Devia ir para casa ouvir a Ani di Franco cantar palavrões. 

8.10.19

Dispersas do dia - 08-10-2018

Bar Aduela, Porto.

A mulher fala alto e não é preciso. São duas da manhã, o bar está quase vazio, a música a um nível aceitável. Tem uma camisola branca, cabelos pretos, mamas grandes e redondas que contrastam com o rectilíneo dos braços, finos e cruzados em posições estranhas, que de resto ela muda regularmente. Não devem ser muito confortáveis.

Gosto deste bar, onde vim pela primeira vez com a V. Parece o Marchand de Sable, um café belga ou parisiense, com o soalho de madeira e a clientela de artistas que um dia serão ou nunca foram. A música é uma merda mas não há nada a fazer, excepto talvez adicionar essa mediocridade ao charme do lugar. Tem bom vinho, embora a empregada brasileira não o saiba servir.

Banal, eu sei, a menos que se pense em tudo o que me trouxe aqui. Começou em noventa e três, quando me vi obrigado a fechar a Nauticatur; poucos meses depois fui para o Burundi. Daí até à Casa Comum (o que eu gosto deste nome!) foi um salto; até ao Aduela foram mais dois ou três.

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Se não o podes exprimir, não é exprimível.

Diário de Bordos - Porto, 08-10-2019

A solução mais fácil é começar por dizer que não se sabe por onde começar e depois elencar por ordem cronológica.

- Almoço no Burger Point. Nem no Texas comi carne tão boa (não é difícil., eu sei). Esta carne está ao nivel da de Lubumbashi, de longe a melhor que até hoje provei.

Na volta conheci o H. F., que tem tanto a ver com a sua persona no Facebook como eu com o anjo Gabriel.

Só gostava era de comer um bife daquela carne, em sangue, quase frio por dentro. Algumas pessoas são vegetarianas e dessas há umas poucas cujo vegetarianismo é respeitável. Às outras, sugiro fortemente um hambúrguer aqui. Se continuarem vegetarianas ou são respeitáveis ou são estúpidas, mas isso é coisa que não se decide assim de antemão.

- Exposição Cinzas, no Espaço Atmosfera M. Ver esta exposição depois de um almoço daqueles devia ser proibido. A fotografia documental não é a minha praia: um gajo vai aos sítios e não vê nada do que viu nas fotografias.  Nestas, não é sequer uma questão de se ver: é que se consegue cheirar o queimado, consegue ver-se a vastidão da desolação. Não é uma reportagem, é um luto.

Faltam retratos - deve dar outra exposição - e um catálogo decente. Aquilo que lá está com essa função é vergonhoso e não chega sequer a ser um catálogo. Se chegasse, seria inqualificável.

- Sesta no hotel Malaposta. Gosto deste hotel simples, honesto e bem localizado. F. diz-me que tripiclou de preço desde a última vez que aqui estive. Fico contente pelo dono, grato à U. P., que teve a gentileza de me convidar e feliz pelo Porto. Ser barato não é vida e o Porto tem-na cada vez mais.

- Debate na Casa Comum, reitoria da U. P., sobre a ajuda humanitária. É um tema que me interessa demasiado, agora que as comportas se abriram, para ser cercado em uma hora, para mais partilhada. Sorte: foi partilhada com alguém que vem do outro lado da barricada humanitária, o lado a que no Burundi chamava "os missionários".

Para se falar da arena é preciso conhecer o gladiador e o espectador, a areia e a bancada, o sol e a sombra. Penso que quem assistiu teve uma boa visão dos dois lados.

- Jantar na Casa Ernesto, rua da Picaria. As cidades são feitas de pessoas, já aqui uma vez o disse. Ninguém gosta de um restaurante exclusivamente por causa da comida (excelente), do serviço (eficaz e sorridente) ou da decoração (banal). Experimentem subtrair a companhia a um jantar e verão o que sobra: nada. A companhia é o ingrediente principal de um jantar e este foi opíparo.

Amo-te Porto, porque amo as tuas gentes. Amo-te vida, porque conheço o Porto.

- Copos no Candelabro e no Aduela. Ou muito me engano ou preciso de lá voltar, para ter a certeza.

7.10.19

Vergonha, Quetzal, Inferno

Comprei dois livros da Quetzal, ambos de autoras portuguesas. Um está escrito em português correcto, o outro não. Isto é revoltante. Um leitor - sobretudo quando está com pressa - não devia ter de pensar nesse nojo que é o acordo ortográfico.

Vergonha à Quetzal. Vergonha a mim, que deitei dezasseis euros e sessenta cêntimos para o lixo.

Devia reacender-se o fogo do Inferno para quem escreve e quem publica textos escritos em acordês (não incluo nesta maldição a senhora que me vendeu os livros porque essa tem lugar garantido no céu, faça o que fizer. E porque as livrarias são o elo mais fraco da cadeia).

3.10.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-10-2019

A esta hora, as ruas de Palma enchem-se de melancolia e de mulheres bonitas. O frio chegou. Ou melhor: anuncia-se. Ainda estou de calções e pólo, mas sei que não tarda estarei de mangas compridas e calças. As mulheres já se vestem, elas: estão ansiosas por mostrar as novas roupas. As folhas ainda não começaram a cair das árvores - durante o dia está calor - mas há sempre uma ou duas precoces. A agitação do Verão desapareceu. A aldeia que Palma era há vinte anos reaparece, como a cabeça de uma velhinha à janela depois de ter passado uma hora na cozinha.

Venho ao Ca na Chinchilla beber um copo de vinho e comer uma tapa de presunto. É um dos meus lugares favoritos aqui em Palma, mas a cozinheira queixa-se de que não me vê há muito tempo. Tem razão. É jovem mas não demasiado e tem cara de cozinheira. É daquelas que não engana: olha-se para ela na rua e vê-se uma senhora a trabalhar na cozinha.

O gosto do presunto continua na boca. A Chinchilla só tem coisas boas. Deve ter sido muito bonita e muito má, em nova. Má não é a palavra adequada.

Senhora, talvez. Soberana. Sabe o que é bom: vinho, presunto, empregados, decoração, cozinha... tudo é bom aqui. Imagino que escolheu a sua vida da mesma forma. Por isso gosto tanto dela.

A melancolia seduz-me sempre, mas isso é pecha velha; ou de velho. A luz cai, o calor sai, o meu espírito vai por aí fora, lento, indagante e saciado.

Depois da tapa de presunto pedi uma rodela de queijo de cabra. Uma rodela só. Angel trá-la e diz-me:

- Não sei o que te hei-de debitar por isto.
- O que tu achares que deve ser, Angel.

A conta vem e não há traço da fatia de queijo. Digo à Chinchilla que preferia ela me cobrasse aquilo, porque se não cobrar não posso voltar a pedir. Responde-me a mesma coisa: não sabe quanto. Digo-lhe "quatro euros", mas ela abana a cabeça. Muito caro. "Três? Vá, Chinchilla, fica três euros". "Não", responde. "Dois euros". Ali quem manda é ela, ponto. O queijo era esplêndido.

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Pouco a pouco vou desatando nós. Bem sei que parece um daqueles cabos de prestidigitador: um gajo desata um nó e aparece outro logo a seguir. Mas há que reconhecer: são cada vez mais pequenos, cada vez mais fáceis de desatar.

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Estou cansado. Nunca me lembro de quão bons alguns cansaços são.

2.10.19

Entraste

Uma vasta praia, um ventre, um olhar azul. Mergulho em ti, vejo-te perdida, mergulho de novo, afundo-me, perco-me, perdes-te de novo.

Reencontramo-nos à superficie. A praia é o tempo, as tuas coxas indicam o caminho, o teu cabelo loiro, selvagem e denso diz "vem por aqui".

Não vou. Não vou por caminho nenhum, aliás. Nem o dos teus olhos, nem o do teu cabelo nem - muito menos - o das tuas coxas abertas, esperando-me. Não entrarei em ti se tu não entrares primeiro em mim.

Entraste.

Hipóteses

Pela primeira vez desde que me lembro, tenho pena de não poder ser lido por  uma pessoa. Uma só. Para todas as outras não poder, querer ou conseguir ler-me é ou uma sorte ou bom senso. Para esta, acho que é um azar desmerecido.

Ou sorte merecida, na melhor e mais provável das hipóteses. 

Ama-me

Os territórios - como os amores - organizam-se lentamente. Impor-lhes uma ordem diferente da que eles próprios generam é tão inútil como dizer a alguém "Ama-me". 

Injustiça

Os diaristas não são muito prezados em Portugal. É injusto: transformar o quotidiano em qualquer coisa que se possa ler é tão difícil como escrever um romance que se possa viver.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-10-2019

Mudei de casa, finalmente. Isto é, mudei de planeta. Vivo agora no quarto onde vivi quando há oito anos cheguei pela primeira vez a Palma. N. cresceu, tem muito trabalho mas continua o mesmo homem puro (isto parece estúpido, eu sei. É tudo menos.) Que jantar maravilhoso. Experimentei uma mistura de especiarias chamada Merken mix. Aparentemente vem do Chile (isto é um anglicismo. Podem pesquisar no Google). Tive sorte. Tive sorte com tudo: com o guisado, com o picante, com o vinho do N., com o N., com o veleiro que hoje me disse que ia arrancar com a genoa, com o rigger, com a namorada que é e um dia será, com o A. C. que vem de Maputo, com... Pouco importa. A lista é demasiado grande. Basta dizer tenho sorte, pronto!, e estou decidido a gozá-la enquanto durar, a chupá-la até não lhe ficar uma gota dentro, a vivê-la até se me esgotar o tempo. O carteiro um dia trará a conta, eu sei. Por isso mesmo deixo aqui agora este registo, para que quando chegue a hora de pagar me lembre de quão bom foi o repasto.

E sim, é bom. É mais do que bom. Está dito.

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Gosto de poesia que se come. Não sei como explicar isto se não, talvez, comparando com o vinho, com aquela expressão - tão bonita - "mastigar o vinho". Eu gosto de poesia que se mastiga, que sabe a pão com manteiga de manhã, a bacon frito com ovos estrelados e café, gosto de poesia que se mordeu, comeu e vomitou. Talvez a palavra-chave seja essa mesmo: vomitou.

Correcção: gosto de poesia que se comeu e vomitou.

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Resumo do jantar com N.: nunca serei um realista pela razão simples e irrefutável de que sei o que é ser realista, mas prefiro de longe a companhia de quem não o é.

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O primeiro jantar "Ler por aí" (o seu a seu dono) de Palma vai ter como tema o livro Zen e a Arte da Manutenção das Motocicletas - em espanhol, claro. Procuro o segundo. De Pitigrilli a Agustina, passando por Tabucchi e pelos Segredos do Mediterrâneo há de tudo. A ideia original era Mistérios, mas a edição espanhola está esgotada. Un seul livre vous manque et le monde est surpeuplé.

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Dia oito vou falar na Reitoria da Universidade do Porto, às seis da tarde. A hora foi bem escolhida: as minhas amigas do Porto estarão decerto ocupadas, mas poderemos jantar depois. Volto para Palma no dia seguinte às sete da manhã, de modo será um jantar ou muito curto ou muito longo.

1.10.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-10-2019

- Se fosses mais novo mordia-te - disse-me a U. hoje. Enfim, não utilizou o verbo morder. Não utilizou verbo nenhum, mas reconheceu finalmente os meus esforços.
- Se fosses mais velha não me escapavas -. Idem: não houve verbos, só reticências, olhares e mímica mal esboçada.

O pretexto da conversa foi o meu aniversário - ontem - e o dela - daqui a duas semanas. Perguntei-lhe quantos anos vai fazer (não respeitar as regras é aceitável desde que se saiba que não as estamos a respeitar). Dezasseis anos de diferença.

- Lamento. O meu limite está em quinze.
- Um ano nos separa -. U. tem o sentido de humor mais mordaz que vi desde a S. (as S., Su. e Sa.) Há poucas coisas de que goste mais numa mulher do que o sarcasmo, aquele sarcasmo que está na fronteira da maldade, do lado de dentro. Ainda não lhe disse que tenho uma namorada; ou pelo menos uma possibilidade de namorada. Fez-me esperar um ano, pode esperar uns dias.

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Dias absolutamente caóticos, cinco bolas no ar, duas mãos e meia cabeça (na mais generosa das hipóteses) para as acolher e gerir. Ainda por cima todas diferentes. Os verdadeiros malabaristas utilizam bolas iguais; os malabaristas metafóricos não: misturam a vida com as curiosidades, as paixões com uma simples atracção momentânea.

Hoje desfiava o meu calendário à D. e perguntava-lhe:
- Pode a felicidade esconder-se numa fiada de datas? - Respondi logo a seguir:
- Não, claro. Esconde-se no que essas datas escondem.

(Enfim, isto está um bocadinho burilado, mas o sentido foi este). É o que penso: não gosto de felicidades expostas, como as putas que abrem as pernas mal um gajo lhes põe o dinheiro na mão. Gosto de felicidades púdicas, escondidas, buriladas (se me permitem uma repetição).

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Hoje percebi de onde vem esta aparentemente estúpida compulsão de comprar livros: vou precisar de outra vida para os ler.

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Não devia ter um Facebook para tudo, dizem-me frequentemente. Um para o trabalho, outro para a política. É impossível, infelizmente: sou inteiro.

Já alguém viu um troglodita com problemas de personalidade?

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Em Portugal instalou-se a ideia de que uma não-resposta é equivalente a uma resposta "não".

Ideia errada: estão nos antípodas. Responder "não" é de gente; não-responder é de merdoso.

(Excepto se se for uma personagem de Baricco, claro. Mas isso é outro campeonato.)