31.12.17

Analogias, errâncias

Será que se aplica aos cabelos o princípio da roupa? Um penteado bonito é aquele que temos vontade de despentear? Não sei.

Mas sei de saber seguro que não tenho vontade nenhuma de calar uma miúda que fala bem.

Das diferentes formas da beleza

A música começou com Leonard, passou por meia dúzia de merdices modernas (isto hoje deu-me para o pleonasmo, nada a fazer) melhorou com rock alemão, passou para o Médio Oriente e agora anda pelo Brasil. Águas de Março. As miúdas continuam giras e entre os corpos que se agitam ao ritmo da música - ou fora dele - vislumbro por vezes as luzes de Lisboa, ao longe e em baixo.

Nunca ninguém cantará suficientemente a beleza do tédio. 

Curta adenda sobre o tédio

Isto está cheio de miúdas giras e bem vestidas (tendo presente o pouco que percebo do conceito).

Há pelo menos dois sentidos que não têm razões para se entediar: o palato e a vista.

(Uma miúda bem vestida é aquela que me dá vontade de a despir. Não tenho a certeza de que este critério seja partilhado por quem desenha a roupa, mas é o meu).

Objecção contra a modernidade

Se em vez de escrever num telefone portátil escrever num bloco-notas (de capa encarnada, preciso) com uma caneta de tinta permanente toda a gente pensa que sou um intelectual. 

Com o portátil percebem logo que não passo de um simples troglodita moderno.

Auspícios bis

Gajos que dançam bem e outros  mal; um casal no qual a miúda é gira e mede pouco menos de dois metros  (isto é uma redundância, eu sei) e ele não deve chegar ao metro e sessenta e cinco e é feio (outra redundância); uma vista linda sobre Lisboa (estou ao lado do Chapitô); a Música perdeu a maiúscula e está quase a perder o título; bom champanhe (a casa é de uma senhora francesa).

Se isto não auspicia um ano fantástico eu sou a mulher do Papa Francisco.

Auspícios

Um ano que começa ao som de Hallelujah não vai ser mau de certeza. 

30.12.17

Escrever, descrever

Dizer que é assim que eu gosto é um exagero; mas dizer que não gosto é um exagero maior ainda. Descrever não passa de uma escolha entre dois exageros. Escrever é pior: não temos comparativos.

É como saltar a um poço sem saber se tem água no fundo.

Ninguém escreve porque gosta. Escreve-se porque se tem de morrer e se tenta adiar essa morte. A outra já sabemos que há-de chegar.

29.12.17

Ausência, leveza

Costumava dar-me o braço, para onde quer que fôssemos. "Anda sempre atrelada" costumava pensar. Mas era muito leve, parecia uma pena, mal a sentia, como se flutuasse agarrada a mim nas ruas escuras e frias do Inverno ou nas mesmas quase outras do Verão.

Um dia deixou-me e hoje sinto uma terrível falta daquela ausência.

28.12.17

Geografias

Acorda a meio da noite lamentando ligeiramente não estar no Transiberiano, numa praia de Antigua ou num barco feliz a meio do Atlântico. Ligeiro, o lamento; quase sem peso, como a névoa não muito densa que mesmo sem ver sabe que está lá fora à espera do dia para se dissolver. É a possibilidade de movimento que lhe falta, mais do que um leito que se mexe impaciente ou inconformado. Não sabe onde deveria estar mas sabe que não está onde quer.

Querer e estar conjugam-se a ritmos diferentes, têm geografias desirmanadas: por onde anda um não está o outro.

27.12.17

Diário de Bordos - Lisboa, 27-12-2017

O restaurante tem uma iluminação péssima, cadeiras piores, é triste, solitário e completamente adequado ao meu estado de espírito. O prego é bom (melhor seria se não fosse) e barato, o serviço rápido, atencioso - às vezes até simpático -. Venho cá jantar de vez em quando, fica a caminho de bordo e não faz muito sentido quando se está sozinho e teso ir a um sítio caro e bonito. 

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Continuando na gastronomia de alto nível: estão muitos espetos ao lume. Um deles sairá bem. Dito de outra forma: de todas as bolas no ar uma delas cairá na mão. Ou: de cem tiros um acertará no alvo.

Se este tiver sido bem escolhido, claro.

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A sorte dá muito trabalho, toda a gente sabe. O azar também.

Ou mais: é preciso trabalhar para os dois, o azar que foi e a sorte que há-de ser.
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A vida em terra: ver as previsões meteo e olhar também para as da chuva.

(Lembrar-me do Senhor de Castilho: pronunciar "mete-o". Nunca se vive em terra: está-se em terra de passagem, como quem procura um quarto de hotel numa cidade cheia por causa de um congresso).

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"Não quero ser a única", diz-me A. I. Nem eu quero que tu o sejas, minha querida: ninguém pode acumular tantas unicidades.

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A minha estadia no F. está quase a chegar ao fim. Em breve vai saracotear-se para outros. Espero que quem o veja saiba apreciar-lhe a elegância tão bem como eu.

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Os nossos partidos preparam uma chapelada; o governo quer salvar um banco com a massa da Santa Casa, que mal ou bem lá vai funcionando. Hesito entre John Huston, Raoul Walsh ou Ed Wood como realizador para esta desgraça. Uma coisa é certa: Hitchcock não seria de certeza. Não há suspense, tudo é esperado.

Un long fleuve tranquille

Um amor pode evoluir em amizade. Já o contrário - uma amizade transformar-se em amor - é mais dificil. Para começar não seria uma evolução, mas sim uma regressão. Depois, a amizade sobrevive sem amor, mas este sem aquela morre de morte súbita (e tantas vezes incompreendida).

Melhor deixar o rio correr tranquilamente. Nem ele sabe quando deixa de ser rio e passa a mar.

25.12.17

Sheila

A ideia era chamar-lhe Sheila: a primeira sílaba pode ser lida Sei ou Ela, consoante. A segunda é sempre Lá. Sei Lá, Ela Lá. Ela lá sabe? Não sabe ela nem sei eu nem sabemos nós. Sheila, mulher de trinta anos e outros tantos amores. Magra, alta, cabelos ruivos encaracolados, olhos verdes de matar vocações, dizia um desses amores, mais breve ainda do que os outros. Solteira, professora de literatura escandinava numa faculdade inglesa. Está em Portugal de férias, com a intenção de se encher de sol, areia, vinho verde e um ou outro homem "desses que agarram touros".
-Quem se atira a touros despreza vacas -, respondi-lhe em português. Ela não percebeu.

Ainda bem. Estávamos numa praia da Costa Vicentina. A água não estava tão fria como de costume, o aquecimento global tem as suas vantagens. Fazíamos amor dentro de água, longe da costa mas provavelmente à vista dos binóculos dos Nadadores-Salvadores. Pouco me importava: veriam quando muito duas cabeças perto uma da outra, dois braços agarrados a um colchão, dois corpos que se possuíam mutuamente, um dos quais se afogava devagar e não era no mar.

Sheila tinha o amor vivo e expressivo das ruivas; eu a vergonha do macho latino que se vê enleado na liberdade alheia. Daí o vaca, claro: era despeito-próprio.

Antes de irmos para a pensão onde toda a gente nos olhava de soslaio parávamos no bar da praia e bebíamos uma garrafa de vinho verde.

Ao fim de uma semana Sheila disse-me: - Não consegui o que queria.
- O que é que te falta?
- Pensei que ia ter vários homens e afinal um chega-me. Estou a ficar apaixonada por ti. Espero que passe depressa.

O bar da praia fica no lado Norte, em cima de uma pequena falésia. É de madeira escura, tratada só com óleo. Sheila fala baixo, numa voz arranhada pelo tabaco, pelo whisky e pela fúria. Mais tarde, muito mais tarde referir-me-ia a ela como "As Fúrias" porque eram muitas as que continha de manhã à noite. Vamos jantar a uma tasca na vila e em seguida ao bar du Sud, assim mesmo em francês. Jean, o dono é um suíço versado em whiskies, cocktails e psicologia nocturna. Abafava a erudição numa vasta careca, pequena estatura e uma reserva educada, quase caricatural. Chamava-me Senhor e My Lady a Sheila. Fazia os melhores Alexander da galáxia. "Isto devia ser pago pela Segurança Social", dizia-me My Lady. Fazia-lhe que sim com um acenar de cabeça e tratava de os beber o mais depressa possível. Também eu queria que aquilo me passasse depressa.

Uma livreira no sonho

Sonhei com uma livraria no meio do nada na Califórnia. Era uma livraria muito grande, meio em tenda meio em cimento, com uma livreira bonita e todos os livros que pedia. Não percebo porque estava na Califórnia, no meio do campo e era uma construção tão estranha, híbrida. Como se metade fosse para ir e outra metade para ficar. O sonho foi bonito e durou muito tempo. A livreira ficou, lembro-me que lhe acenei com a mão quando cheguei à porta, pouco antes de acordar.

Recordo vagamente a cara dela. Era loira, olhos azuis e tinha um daqueles barretes de Pai Natal que realça a beleza de algumas faces (poucas) e torna ridículas as outras todas. Não sei de que livros falámos ou sequer se comprei alguns.

Acordei no meu F. querido, que agora não se saracoteia. Talvez por despeito - ou mais provavelmente porque não há vento -.

Continuei deitado a modorrar. De vez em quando, entre dois sonos, tentava lembrar-me da livreira e da sua livraria híbrida no meio do nada californiano, ver se o sonho voltava. Já me aconteceu uma vez, um sonho de cowboys que durou uma semana. Cada noite um episódio novo, a continuar o anterior.

Com este da livreira não tive sorte: o sonho acabou e a única forma que tenho de o prolongar é escrevendo-o. Assim posso continuá-lo para onde quiser, mudar-lhe a parte móvel da livraria para outro sítio qualquer, comprar-lhe livros como nos sonhos.

22.12.17

Se pudesse

É sempre a mesma palavra: mudança.

Poço: muda tudo e cais no poço, nada muda e dele não sais. Ilusão: muda tudo e fica na mesma. Antes concentrar-te no tempo. Isto é,  no que não muda. Imanente. Perene. Intocável - aquilo que o tempo não toca, nem sequer aflora nem em sonhos, mesmo que o tempo sonhasse -. Somos hoje o que ontem fomos, corrigidos pelo que já éramos quando o tempo passou por nós. Não mudámos: afeiçoámo-nos ao que éramos e ficámos-lhe mais iguais do que já éramos.

Isto é: pele seios mãos pila; olhos. Mãos outra vez, a entrar pelo olhar dentro como um gato a estirar-se ao sol. Pele; uma gargalhada potente precedida por um sorriso. Pele outra vez. Joelhos: os teus apertam-me os meus sustentam-me. Amor, ouve-me: quem disser que mudei mente. Não mudei: amo-te como sempre te amei e quem disser o contrário não sabe do que está a falar.

Eu sei. Falo-te do sono, do amor, da luz e do rio da nossa cidade, do desejo e da paz, de olhar para a frente sabendo que à minha frente estás tu, pele da minha pele, olhar do meu olhar. Sou a mão que te leva a colher à boca da alma; tu és a alma que eu alimentaria se pudesse.

21.12.17

Família amiga

Família é aquilo que fica quando se expurgam os afectos de um grupo de pessoas; amizade o que fica quando se espreme o que há entre duas pessoas.

Isto é: ambas são essências. Família é um conjunto de pessoas que não precisam de amizade para serem parte do mesmo grupo; amizade é o que une as pessoas apesar de não serem família.

Dúvidas resolvidas a amizade tem a vantagem de ser voluntária e não cobrar dívidas.

20.12.17

Ruas, máquinas

Nas ruas da cidade cruzam-se a máquina de fazer sorrisos e a de fazer idiotas. Estas são mais numerosas e são portanto quem manda.

É pena: com um sorriso na boca até um palerma passa por gajo simpático. Com muitos sorrisos as ruas seriam bem mais hospitaleiras.

Pergunto-me como vão reproduzir a idiotice nos automóveis sem condutor. Será que vão pô-los a buzinar cada vez que passam por um ciclista ou essa função ficará reservada aos veículos-táxi? E vão programá-los para fingir que não nos vêem?

Que farão os idiotas todos que agora conduzem? Que será feito deles quando as máquinas de fazer palermas os dispensem?

Ângulos, redondos

Era um casal desigual. Ela cheia de ângulos e ele de redondos. Não ficaram juntos muito tempo: ele cansou-se de se lhe enrolar nas esquinas e ela de não ter quem lhas limasse.

[Tinha as pernas muito finas; pareciam palitos. A cada passo ele pensava que se iam partir e que a mulher nunca mais sairia de cama. A perspectiva assustava-o: nela até os guinchos do sexo eram facas.]

Dias, contas

Escrevo como cago: sai merda mas não consigo viver sem o fazer. Algumas pessoas discordam e acham que não, não sai merda quando escrevo. São poucas as opiniões discordantes às quais dou mais peso do que à minha, neste assunto.

Hoje tive o indescritível  (ia dizer injusto...) prazer de ouvir duas dessas vozes, duas pessoas que amo de amizade e respeito de admiração, duas pessoas cuja opinião tem peso, tanto como o da Senhora (caixa alta) que durante tanto tempo me encorajou. Há dias bons, inexcedivelmente bons. Se acreditasse num deus qualquer em vez de pensar que aquilo a que chamamos deus não passa de uma mistura de acaso, impotência e medo pensaria que dias assim são merecidos. Paguei-os adiantado, é tudo, ao contrário de outros que pagam a beatitude na outra vida.

Nunca deixarei de dar dar prioridade ao acaso, na grande desordem das coisas. Mas lá que às vezes acredito que paguei adiantado acredito. E dou por mim a desejar que haja mais dias assim, apesar de saber perfeitamente que se fôssemos a contas, a vida e eu estaríamos quites.

(Para a F. V. e o M. M., com um beijo e um abraço).

19.12.17

Auto quase retrato

Olham para mim e vêem um tipo que sabe ler, escrever e comer de garfo e faca. Não vêem o troglodita tímido que está por trás do tipo. 

Liberdade é poder escolher as suas prisões

Não ter dinheiro é uma prisão; escolher não o ter uma liberdade.

Pequena nota à margem

As palavras devem entrar sozinhas numa frase, escorregar sem ajuda para dentro dela. Se precisam de vaselina - ou, pior ainda, de um martelo - está a frase estragada.

18.12.17

Dia sem fim / Diário de Bordos - Lisboa, 18-12-017

Fui ao Povo e levei o casaco de couro que a miúda me deu. Era do pai dela e fica-me melhor - diz a A. I. - do que o que comprei em Gibraltar por cem euros. Acredito que sim, claro. Não percebo nada destas coisas de ficar bem. Não me aperta e é quente, como se a miúda estivesse ali comigo. É por isso que gosto dele. A poesia foi boa, mas gostei mais da malta que por lá encontrei; e gostei da viagem de regresso para bordo, apesar de me ter parecido demasiado curta. Apetecia prolongar o gozo um bocadinho, mas a verdade é que tenho de me levantar cedo e sem a miúda nunca adormeço muito depressa, fico sem pele e dói.

O almoço também foi bom, em casa do A. G. Voltei de comboio, meio sonolento meio a ver a paisagem e meio a pensar que se isto não é ser daqui então não sei o que é ser daqui. Isto era o estado de comoção em que vinha, o sol, a barra, tudo azul e a ponte ao fundo, o almoço que foi comida para o corpo e para a alma, o comboio que agora pára sempre em todas lá vinha a fazer-me o favor de fazer aquilo durar, como faço eu à miúda, fazer durar o gozo e a comoção e essas mariquices todas.

De maneira assim foi o dia, porreiro e amanhã vou falar com um armador que se tudo correr bem será o meu armador e o dia será teu, miúda. Muito longo, muito nunca-mais-acabes, um sem-fim de dia, como quando estamos os dois juntos numa cama, tu e eu. Coisas boas que nunca mais acabam. Levam é muito tempo a começar, mas isso é outra história. 

17.12.17

Auto-confiança ou confusão?

"Persigno-me e sigo" será sinal de auto-confiança excessiva, auto-confiança dubitativa ou, no mais benigno dos casos, simples confusão? 

Gatos e vidas

Convivi muitos anos - uns catorze, mais coisa menos coisa - com uma gata com quem não falava. Ela retribuía. Partilhámos vários apartamentos e casas - a Masha, a minha então mulher e hoje amiga querida, dona do animal, e eu - sempre sem trocar uma palavra que fosse. Tratava da bicha, mudava-lhe a areia e dava-lhe de comer em silêncio. Ela não-agradecia exactamente da mesma forma, como se o silêncio fosse uma viagem de comboio com bilhete de ida e volta. Partilhávamos o espaço, o desprezo mútuo e uma pessoa que amávamos os dois e nos amava aos dois.

Assim aprendi que mais do que partilhar camas, casas de banho ou projectos de vida o maior e mais sólido sinal de amor é partilhar gatos.

Ler, escrever

Quanto mais um gajo escreve menos lê. É pena: o que se lê é sempre melhor do que o que se escreve.

Vinho deste mundo

Janto vinho tinto e disparates, na esperança fátua de que estes sejam menos maus do que aquele.

Fátua e não vã: o vinho é péssimo e o copo grande, graças à gorja que dei ao empregado, o que me trouxe o copo anterior, tão pequenino. O rapaz até me apertou a mão, coitado. Não deve estar habituado, porque a gorja não era nada do outro mundo.

Ou sim. Valeu-me um copo com o dobro da capacidade e o mesmo preço. Fosse o vinho um Haut-Marbuzet, por exemplo, e estaria no outro mundo.

Isto de olhar para as coisas como elas são e não como poderiam ser também tem os seus limites.

Jorodada

A senhora que está à minha frente (enfim: na mesa ao lado da minha, eu é que estou sentado na direcção errada) tem uma curvatura nas costas que começa por me fazer lembrar uma personagem de Vila-Matas e acaba a fazer-me perguntar como seria ir para a cama com ela.

Como foder num baloiço ou num carrinho de rodas? Regresso a Vila-Matas: não tem respostas mas pelo menos as perguntas são melhores.

Louvor e simplificação da escrita

Não é que eu queira ou sequer pretenda escrever bem, longe de mim tão estapafúrdia ideia. Não escrever mal já me deixaria contente. É por isso que hesitei tanto tempo antes de decidir publicar um livro e mesmo agora, com a decisão tomada, não me apresso: olha se sai tão mau como alguns que por vezes vejo por aí? Isto é, até aceito que vai ser pior, mas não tão mau como. Há que ser inteiro, mesmo no horror. Tudo menos a mediocridade.

Aceito mais facilmente que um gajo se apaixone por uma mulher feia, gorda, vingativa e estúpida do que por si próprio. Por muito maus que sejam os outros nunca são tão maus como nós, não é?

Às vezes acontece-me gostar de alguma coisa que escrevi. É raro, mas acontece. Quando isso se passa ponho a tal coisa no frigorífico outros dez anos, ver se a distância lhe fez bem. Devíamos todos escrever com uma caneta de cinco metros, como aqueles artistas que andam em cima de andas muito altas e parecem um bocado desajeitados [se alguém me puder dizer o nome agradeço]. Na verdade não são, apenas parecem. Escrever devia ser a mesma coisa, mas com uma caneta longa ou um teclado muito distante.

Enfim, já passou. Daqui a pouco mergulho de novo na Alexandra Alpha, bebo outro copo de vinho e vou para o "meu" bote, o que se saracoteia mal me vê chegar (se calhar fá-lo para todos, mas eu não me importo. Não sou ciumento, graças a Deus. Sou um teso, mas ciumento não). 

Sol e sol

Quase todas as mulheres que amei foram o sol para mim: algumas sol de inverno, que brilha mas não queima; outras sol dos trópicos: queimam antes de um gajo dar por elas. 

16.12.17

Noite, manha

A noite tem manhas que não acabam com um simples til na segunda sílaba. São mais complicadas. Hoje por exemplo o Irreal estava uma merda: os miúdos tocavam demasiado alto e a clientela era demasiado jovem, se é que tal coisa existe.

Deve existir porque a vejo em todo o lado: mulheres novas (uma mulher nova é uma mulher que tem menos de trinta e poucos anos. Ou seja, ainda é só uma pessoa, não chegou à categoria mulher. Uso o termo por comodidade, preguiça ou insuficiência de vontade), homens jovens - alguns bem simpáticos, verdade seja dita - e ninguém mais (aos homens a regra da idade não se aplica porque não percebo nada de homens). O bar estava cheio e vazio ao mesmo tempo, o que tem a ver com a quântica da noite; isto é, com as suas manhas.

De resto nada: vim para bordo fingir que durmo, boa maneira de fintar a noite: não durmo e estou deitado com os aquecedores todos a funcionar, o F. a saracotear-se cortesmente para mim, ver se me adormece pela calada.

Pela calada de noite, quero dizer. Pelas manhas da noite. Un être vous manque et le monde est dépeuplé... Une envie vous manque et la nuit est vide.

Talvez as manhas de noite tenha a ver com a solidão. Não sei. Ou com o vazio dos dias, com a espera: dissolve-se na noite o tempo do dia e ela finge que não vê, manhosa. Talvez.

De certezas sei pouco e de noites ainda menos. Não são feitas para andar juntas, de qualquer forma. E de manhas tão pouco percebo: como sou me dou, noite ou dia.

Sé, disparates

Os rapazes tocam uma espécie de pop-rock que já devo ter ouvido meia dúzia de vezes mas não sei identificar. Não me parece mau, eu é que raramente estou para aí virado e ainda por cima o volume está demasiado elevado para uma sala tão pequena como esta.

Isto dito, o Irreal é uma Sé Catedral e não se contestam nem sés nem catedrais. Afastamo-nos um pouco e vamos escrever disparates para a "galeria". E pensamos que se Sé Catedral é quase um pleonasmo há pior: nem sequer é o único. O Tati também é uma Sé Catedral, por exemplo. E a Ler Devagar.

15.12.17

Ainda bem que não pararam

Fui ao teatro ver uma coisa  chamada "Devíamos ter parado". Uso o termo coisa de propósito, mas sem qualquer propósito pejorativo: foi um dos mais fantásticos momentos de teatro que tive oportunidade de viver.

Um gajo passa uma hora e meia a ver actores basicamente a despirem-se, vestirem-se  - trocar de roupa, só um se despe uma vez, de resto uma das raras cenas dispensáveis por cheirar a zeitgeist à légua - e não só não se chateia um segundo que seja mas ainda por cima gosta e pergunta-se (de vez em quando, porque a atenção está concentrada no palco) "como raio é que isto funciona?"

As respostas vão aparecendo aos poucos. Em primeiro lugar funciona por causa da música. É excepcional, tanto a composição como a execução; depois funciona por causa dos actores  (é bastante possível que seja ao contrário e sejam estes a primeira causa. Não sei. Pouco importa): conseguem ao longo de meia dúzia de frases desconchavadas, mímica digna de Marcel Marceau e de uma ocupação do espaço quase beckettiana transmitir-nos uma vastíssima gama de emoções, memórias e sentimentos. Depois (ou antes) funciona por causa da encenação: um sequência de quadros, alguns autónomos outros não que explora e se aproveita do potencial de cada um dos actores - o encenador deve conhecê-los como se os tivesse feito (e alguns se calhar fez) - e visivelmente ama-os e ama o trabalho do actor.

O teatro deve ter nascido assim: uma série de pessoas a dizer "aposto que sou capaz de te fazer sentir triste, ou alegre, espantado, enamorado" (de preferência com poucas palavras, quando o teatro foi inventado a então humanidade ainda devia estar muito longe dos polissílabos. Tudo o que tivesse mais de uma sílaba não devia passar de sonho. Ou de pesadelo, mas isso é outra história).

De modo é isto: um gajo vai ver uma espécie de nave espacial extra-terrestre que tomou a forma de uma "peça" de teatro, encanta-se, surpreende-se emociona-se e lamenta não ir mais vezes ao teatro, apesar de saber que tão cedo não verá nada de semelhante e portanto talvez não seja má ideia não voltar a pôr os pés numa sala com actores ao vivo assim muito depressa. Pelo menos enquanto durar o encantamento deste.

O teatro a amar-se a si próprio é tão bonito de ver como tudo o que se ama a si próprio e não se chama Narciso, não cai no poço. Ao contrário: abre um poço, abismos, vertigens.

Cartas de amor

Os homens que só pensam em sexo não escrevem senão cartas de amor e são uns chatos. Por que raio de carga de água não escrevem sobre aquilo em que pensam o dia todo? As cartas seriam decerto muito melhores.

14.12.17

Diário de Bordos - Lisboa, 14-12-2017

"Curvas e luz" não resume o dia. Nada o faria, ainda que quisesse: curvas dispersas em tanto sítio, tantos rostos, corpos, copos, sorrisos... Já a luz não. Era a fotografia de uma das colunas do cais. Fi-la assim, a pensar "E se em vez de Cais das Colunas fosse Coluna do Cais"? Mas nem isso chega para o dia. Quase é preciso parafrasear Baldwin: "aquele que vive um dia é sempre maior do que o dia que vive". Ou seja: não posso resumir o dia porque sou maior do que ele? Não faz muito sentido.

O que faz sentido é descobrir a luz de um corpo / num corpo. Nos meandros de um desejo fina-se a luz, isto é: apaga-se. O desejo é o território do fim da luz. Começa onde o que se vê acaba.

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Comprei o Kaváfis. Anteontem tive o cuidado de passar pela livraria [Snob] e pedir para reservar o livro. Assim não podia deixar de o comprar. Li os primeiros vinte poemas. Se eu fosse quem ainda não tem este livro correria já para a livraria mais perto. Felizmente agora já não preciso de correr. Basta-me estar deitado e ler.

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Fui ao Irreal mas não fiquei muito tempo a ouvir a música porque amanhã trabalho. Juntamente com "Amo-te muito" e "um copo de vinho tinto, por favor" "amanhã trabalho" deve ser a mais bela combinação de palavras da língua portuguesa.

"Estou a reler Alexandra Alpha" pode talvez entrar na corrida ao título.

Tal como "Boa noite".

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[Pequena nota à margem: quero-te deve sempre vir antes de amo-te. Se vier depois, das duas uma: ou se desconfia ou se louva Deus. Juntar as duas e fazer só uma acção de graças desconfiadas não dá.]

Meandros, rios e homens

Meandros é a palavra certa. Espraiar menos. Um meandro, um conjunto de meandros, um rio, um delta que - agora sim - se espraia numa planície. Tem forçosamente que ser numa planície: nas montanhas não há meandros.

Navegar nos meandros de um rio é fácil: basta ir pelo lado de fora da curva. A água corre mais depressa porque tem uma distância maior a percorrer e portanto há menos sedimentação;  ou seja, mais profundidade.

Os rios são o contrário dos homens: em nós quantos mais são os sedimentos maior é a profundidade.

13.12.17

Bem-estar, subjectividade

O desafio é ver o mundo subjectivamente. Olhar para o tecto e não ver vigas, ver outra coisa qualquer; ouvir Zeca Afonso e não pensar "Esta música é uma merda"; beber o vinho e pensar que estás aqui; ouvir as conversas em torno e não fugir; fugir para dentro e fingir que se é a abertura pela qual os mundos comunicam entre si.

A subjectividade é o caminho mais curto para o bem-estar.

Curvas

Nas curvas da noite de uma noite em linha recta bebo vinho, penso no vinho que beberia se estivesses aqui e seria outro o vinho, serias o vinho tu e eu o copo ou tu o copo e eu o vinho ou ambos um e outro e a noite deixa de ser em linha recta e passa a ser as curvas do meu copo e as do teu corpo.

Benditas curvas, as do copo e as do corpo.

A monogamia dos outros

Coisas que se aprendem na vida nocturna: "os pinguins são monogâmicos" diz alguém na mesa ao lado. Eu acredito piamente. Nunca achei graça nenhuma aos bichos, de qualquer forma.

Mas como técnica de engate parece-me fraco. Fosse eu a miúda a quem o gajo diz isto e responderia "pena não seres um pinguim".

Sensatez, esquinas

É mais sensato amar o amor do que amar alguém. Questão de sensatez, prevenção, auto-defesa. O amor está sempre ali ao lado, não foge nem se esconde nas esquinas da noite.

Encher chouriços com pão integral

- Senhor Doutor Juiz, nada tenho a apresentar em minha defesa. Sou culpado. Bati no homem e só não bati mais porque o polícia que estava de guarda ao banco do lado me impediu.

Mas veja o senhor doutor: não tenho nada contra a modernidade, antes pelo contrário. Gosto mais do futuro do que do presente e deste mais do que do passado.

Mas uma coisa é a modernidade e outra pedir-me uma febra magra em pão integral. Febras magras sirvo todos os dias para cima de cem. Mas, em pão integral? Por amor de Deus!

Disse ao homem que integral só no cu. Não podia adivinhar que ele era maricas, desculpe-me o termo. Ele interpretou aquilo mal e eu quis dar-lhe uma ajuda com uma garrafa que tinha ali à mão. Vai daí o homem respondeu e eu tive de me defender, não é? É que isto de maricas (desculpe-me Vossa Excelência mas não conheço outra palavra, não sou homem de letras. Eu avio imperiais, bifanas e taças de vinho) ele há uns mais do que outros. Este era dos tesos. Ferrei-lhe com a garrafa nos cornos... Desculpe. Na cabeça, mas ele não se ficou. Antes pelo contrário. Em vez de se acalmar parece que se excitou ainda mais. É o que dá comer bifanas em pão integral. Tivesse ele pedido uma bifana magra e nada disto teria acontecido.

A modernidade tem destas coisas, não é? Provoca iras incompreensíveis. Eu gosto, mas sou um paz d'alma.

Por amor de Deus, senhor Doutor Juiz, não estou a brincar consigo. Isto não tem nada a ver com o pão. É uma questão de estética. As minhas bifanas são bonitas, mal cabem no pão, vêm ensopadas naquele molho que aprendi com a minha Elvira.

A saúde não é para aqui chamada. Ele que vá comer bifanas em pão integral para a terra dele. Aqui há papos-secos e tintos de penálti. O resto é conversa de ir ao cu. Desculpe, Senhor Doutor Juiz. De encher chouriços.

Adeus

A miúda disse-me adeus, finalmente. Compreendo-a: ando há anos a dizer-me o mesmo.

Tentativa de afogamento

O grupo é esplêndido: baixo, violino e flauta (a vocalista e manda-chuva da banda). Chama-se B-mesmo, aconselho fortemente. São brasileiros mas têm um reportório vasto.

Eu não. O meu reportório é curto: bebo vinho, oiço música, leio livros e escrevo disparates. Se alguém se lembrar de chamar boémia a isto está enganado. Talvez tentativa de assassínio por afogamento seja mais adequado.

Falta apenas identificar a potencial vítima. 

Inveja

É mais ou menos isto: ela veio pedir-me dinheiro e eu dei-lhe um euro.

Inveja pura, mais do que solidariedade ou altruísmo.

Voar

Mexes as pernas e voas. É preciso outra justificação para se gostar de andar de bicicleta?

Encantação

Pão de comer as côdeas, rosa de amar os espinhos, noite de amar o frio, mar de amar a distância.

11.12.17

Simetrias, mentiras

A mulher que um dia me pediu para não me esforçar muito porque não tinha orgasmos morreu. Soube-o há comparativamente pouco tempo (comparado ao longo tempo que leva o nosso encontro, a noite de não me esforçar muito - única que passámos juntos - e o tempo em que nunca mais a vi, que foi muito: vem desde esse dia até hoje, sendo que hoje já sei que ela morreu e até ao dia em que o soube não tinha pensado nela mais do que duas ou três vezes cada ano, talvez). Achei muito simpático da sua parte, muito atencioso: "não vale a pena esforçares-te muito, sou completamente frígida e não tenho orgasmos. Nunca tive".

Essa mulher não é a mesma que me pediu para não a amar, obviamente. Esta vive ainda, feliz (suponho, espero) e eu penso nela muitas vezes por dia apesar de raramente a ver, desde o dia em que pela última vez me disse "não me ames, por favor".

Devo dizer que obedeci a ambas: não me esforcei com uma e com a outra esforcei-me por não me apaixonar por ela, contrariamente ao que tudo em mim pedia. Quando digo tudo era tudo, desde a célula mais superficial da minha pele até ao mais obscuro e profundo neurónio.

Penso nisto hoje porque gostaria de lhes escrever uma carta a cada, a agradecer o cuidado que tiveram comigo. Uma, porém, morreu; a outra não sei onde vive. Enfim, talvez com um pouco de sorte eu conseguisse dar com a casa; mas a sorte, todos sabemos, precisa de um pequeno impulso inicial, um empurrão da vontade e não tenho a certeza de encontrar na minha vontade essa vontade, de tão pequena.

A verdade é que as amo, cada uma à sua maneira mas pela mesma razão: a honestidade. Ser-se o que se é e pagar-se o respectivo preço é a única qualidade respeitável numa pessoa, seja mulher ou homem. Uma morreu jovem. A pessoa que mo disse deu-me a entender que ela se tinha matado a si própria, mas não tenho a certeza. A outra não. Sei que ainda vive porque é uma actriz famosa. Às vezes alguém me fala dela pois não é segredo que estivemos envolvidos alguns meses, mais de um ano.

Sei que as amo porque quero escrever-lhes; e quero escrever-lhes a dizer-lhes: "não, não me esforçarei porque te amo e não quero fazer-te sofrer" a uma; e "sim, esforçar-me-ei por não te amar porque te amo e não quero sofrer" à outra.

Nunca nenhuma delas me lerá e nunca, claro, saberá que também eu minto.

Irmandades desconhecidas

Ninguém me tira da cabeça que a Silvia Plath me conhecia como quase ninguém e me descreveu como ninguém. Ora vejam:

"...
And I am aware of my heart: it opens and closes 
its bowl of red blooms out of sheer love of me.
The water I taste is warm and salt, like the sea,
and comes from a country far away as health."

Ou então:

"... Miracles occur,
If you care to call those spasmodic
Tricks of radiance miracles. The wait's begun again,
The long wait for the angel,
For that rare, random descent."

O primeiro excerto vem de Tulips e o segundo de Black Rook in Rainy Weather, ambos in Pela Água, ed. bilingue da Assírio e Alvim, nº 25 da colecção Gato Maltês. A tradução não está à altura, na minha opinião. Creio - mas não tenho a certeza - que é uma tradução de Crossing the Water, uma antologia póstuma organizada por Ted Hughes. [Não parece].

Ainda do Tulips, um verso que confirma a minha hipótese das irmandades obscuras:

"I am nobody. I have nothing to do with explosions."

(Não digam a ninguém: a tradução é exasperante. Aqui a senhora traduziu explosions  por sobressaltos).

10.12.17

Como se estivesses aqui

Façamos assim então: tu deitas-te nesta cama de palavras que para ti metodicamente faço; deito-me ao teu lado e ao mesmo tempo vou compondo a cama, como se fosses um livro.

Amanhã acordamos, tu silenciosa como se não estivesses aqui e eu feliz como se estivesses.

Limites, palavras

Ou seja, podemos imaginar uma cena assim: em vez de te beijar descrevo o beijo, em vez de te amar falo da falta que amar-te faz?

Talvez seja por essas bandas que os limites da palavra andam, não é? 

Querida abstracta

Queria tanto escrever-te em concreto e só o posso fazer em abstracto-te. 

Maus tempos

Está um badanal de merda. O FURANAI geme, puxa pelos cabos, encosta-se ao pontão, adorna sem panos. Pede-me para ir para o mar, que é o lugar de uma embarcação quando está mau tempo.

Comigo passa-se o mesmo: cada vez que me faço à porrada da terra acabo no mar, porque é lá que estou bem.

Desta vez vou aguentar, como o bote onde durmo e cujos gemidos me partem o coração aos bocados. "Somos um!"

A tristeza de hoje é a de amanhã

De uma coisa há que estar grato à tristeza: é um poderoso afrodisíaco. Quando estou triste lembro-me de todos os seios que toquei, todos os ventres que me acolheram, dos olhos que me prometeram o mundo e tantas vezes me levaram ao céu.

Quando estou feliz contento-me com o que tenho à mão. Verdade seja dita, tento partillhar a felicidade, na medida do poder e do saber. Mas - ah! - aquele desfilar de corpos e de promessas da tristeza não tem rival na alegria.

A menos, claro, que veja nesta de hoje aquela de amanhã.

9.12.17

Quando a esquerda era legível

Ivan Illich no "Inverter as Instituições":
"Essa mesma ausência de limites força as pessoas, numa sociedade "móvel", a passar várias vezes por dia de gaiolas fixas para gaiolas móveis". 

Pergunta

Se se descrevessem os sistemas políticos e o quadro sócio-cultural de Israel e dos países vizinhos obliterando o facto de um desses países ser judeu qual deles uma pessoa da esquerda ocidental apoiaria?

7.12.17

Onde estamos

De volta às coisas volvidas: já te disse tudo. Nada há que te diga hoje que ontem não soubesses.

Estarias tu bem melhor aqui ou eu aí do que tu aí e eu aqui. Estamos errados, tu aí e eu aqui: antes fazermos meia troca e vires tu ou ir eu.

Quanto mais não seja para ambos vermos a diferença que há sem nós entre aqui e ali.

Connosco seriam a mesma coisa, o mesmo lugar: tu és onde eu estou e eu onde tu és. 

O que são e o que sabem

As mulheres feias que se sabem feias e as bonitas que se sabem bonitas têm um problema comum: devem corresponder mais àquilo que se sabem do que ao que são. 

Amor e comboios

Dizer que não te amo é mentira e que te amo um exagero. Imagina que és a agulheira da linha de comboios: ele vai para onde tu o apontares.

E eu nele.

Erros, mulheres ouvintes

"Foste o meu maior erro", dizia-lhes Zero todos os dias, a todas. (No sentido de "foi um erro ter-te deixado fugir, ter-te perdido").

Elas gostavam. Zero tinha tido um número incalculável de casos (sendo um caso ter passado mais de dez minutos num banco de jardim a dizer-lhe Amo-te e a ouvir Não digas disparates, desde que ela o deixasse mexer-lhe nas mamas) e fazê-las crer que lamentava profundamente não terem ido mais longe enchia-as de satisfação.

O erro não era o que elas pensavam.

"Percebes", dizia-me "tudo o que seja acima de uma caixeira de supermercado ou senhora das limpezas é demasiado para mim. Por uma razão qualquer só engato intelectuais, artistas e mulheres que pensam".

"E ouvem o que eu digo", acrescentava com o ar mais desolado que jamais vi.

Sentimentos, um monólogo acidental

"Estroinice sentimental", diz ela. Estroinices há muitas, eu sei; todos sabemos. Mas há ele sentimentos que não sejam estróinas? Não, não há. Quem nunca disse "aquele gajo é um filho da mãe, mas é meu amigo"? Ou "A mulher é burra como um penedo, mas eu amo-a"?  Que atire a primeira pedra. Os sentimentos são selvagens, são como um bêbedo numa taberna da qual o taberneiro fugiu (por amor, claro) e deixou tudo à mão. Que faz o bêbedo? Benze-se e vai-se embora? O tanas! Atira-se ao vinho e às aguardentes e às ginginhas e às cervejas quando o resto tudo estiver acabado. Pois os sentimentos são assim como a sede do bêbedo: incontroláveis. Levamos anos a tentar domesticar a amizade, o amor, a tentar civilizá-los, dar-lhes uma aparência cordata, de fato e gravata, sapatos pretos e meias a condizer com a camisa e vamos a ver parecem hippies acabados de acordar, olhos estremunhados das passas e cabelos desgrenhados dos sonhos.

Estou-me nas tintas para os sentimentos. Deixo-os fazer o que querem. Que voem como cavalos loucos ou se escondam nos buracos das rochas como rãs. Tudo, desde que me deixem em paz. De resto os meus, coitados, não podem com uma gata pelo rabo. Parecem sobreviventes de Verdun, esgazeados, rotos e famintos. Não dou um chavo por eles. Talvez um dia encontrem uma casa de repouso, vai lá saber; talvez alguém um dia lhes consiga refazer uma saúde, dar-lhes cores novas e pô-los a correr. Duvido muito, mas não é impossível. Entretanto deixo correr. Tenho a loja fechada, mas o que por aí não falta é quem os tenha a todos como novos, como se nunca tivessem sido usados ou ido à guerra.

Eu fui a muitas. Voltei delas surdo, graças a Deus. E quase cego: não vejo nada nem oiço. Não sei onde páram os meus sentimentos nem quero saber: eles que vão bater a outra porta. Pode ser que tenham sorte e encontrem quem trate deles. Ou até outros iguais: são como as mulas, gostam de andar aos pares.

O post ia ser uma coisa e acabou por ser outra

O post ia ser sobre amores, dores, rios, marés, Luas, meia dúzia de nuvens... Merda. Farto de rios e de amores lunáticos, de nuvens que choram as dores em chuvas diluvianas e de céus cinzentos indiferentes às marés. Quero vida. Mulheres ruivas resistentes aos químicos, pratos demasiado cheios nos restaurantes, taxistas que páram para me deixar passar na bicicleta sem que eu me tenha atirado para debaixo dos pneus ou contra a grelha do radiador. Quero ruas cheias de buracos, a ideia de que ao longo do tempo só o acessório muda e nada do essencial mas esse acessório vai evoluindo e não tarda deixa de se distinguir do que é importante.

"Uma simples mutação genética" na molécula do acessório é quanto basta. As mutações genéticas mais complicadas - por exemplo, as que fossem capazes de fazer de mim um gajo cheio de massa - demoram muito tempo e requerem um monte de acessórios - o menor dos quais não será certamente um ventre pronto a gerá-las, organizá-las e finalmente pari-las.

"Tudo isto porque" há dois tipos de evolução genética: para melhor (por exemplo, as que produzem mulheres ruivas) e para pior (as que mantêm o que existe). Ainda está por descobrir uma "simples mutação genética" radical, que faça da merda ouro em pepitas, notas de quinhentos euros ou de mim um gajo sensível ao zeitgeist.

Aí está: o post afastou-se tranquilamente da sua origem e agora a ela regressa como se nada no meio se tivesse passado.

6.12.17

Primeiro passo

Eu já dei os primeiros dez mil passos. Agora tens de ser tu a dar o primeiro.

5.12.17

Diário de Bordos - Lisboa, 06-12-2017

Hoje [enfim, ontem] fui à Voz do Operário e comprei um livro, desta vez a um euro. É uma edição de bolso francesa de um livro de Henry Miller sobre os seus amigos. Pode não ser inesquecível, mas vale muito mais do que um euro. Não sei onde é que a Voz vai buscar estas pérolas. Havia também uma edição portuguesa da Creezy, de Félicien Marceau mas não o comprei nem por um euro. Marcou-me muito, quando era adolescente e ainda tenho presente o horror da tradução do Illich que de lá levei no outro dia (apesar de estar feliz como um abade a relê-lo).

Seria tão bom, se me aparecesse trabalho como aparecem livros.

Ou amigos. É sempre difícil - enfim, é impossível - um gajo avaliar-se bem. Mas nunca me esqueço de que quem tem amigos como eu tenho não pode ser completamente má pessoa.

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Vem aí o frio e enfrento este inverno como se fosse um teste. Vejo fotografias dos sítios que amo e pergunto-me se é verdadeiramente só o dinheiro que me faz ter vontade de lá estar. Não sei. A verdade é que agora arranjei a desculpa perfeita para ter de ficar aqui e vou ficar: "com a saúde não se brinca". De qualquer forma só o saberei quando tiver trabalho aqui. Até lá é uma falsa questão.

E aproveito ponho a máquina a funcionar. "Zero quilómetros", diria um vendedor de automóveis. Pata que os pôs aos vendedores mai-los quilómetros. Se isto continuar como tem vindo já fico feliz. Basta um bocadinho de cuidado e a coisa responde como um barco de regatas com os panos bem mareados, ou uma mulher contente e saciada: com um suspiro, uma doçura e um "continua" sussurrado ao ouvido. "Continua" diz-me a máquina. "Trata de mim". Trato, claro.

Não lhe peço muito em troca. Que me deixe levar a vida como gosto e não me force a desmontar nas subidas. É um bom pacto: eu trato dele e ele não me chateia. Não preciso que dure muito tempo, mas que enquanto por cá andar mo deixe fazer em paz e sossego. Uns copos, livros e um amor ou outro de vez em quando. Quando se apagar a luz que se apague de vez e para tudo, que isto de viver numa casa da qual metade dos quartos estão fechados é aborrecido.

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Amanhã vou conhecer o Alqueva. Não tarda conhecerei a terra de lés a lés e de norte a sul.

Penálti

Descobri hoje que afinal tenho uma relação com o futebol. Longínqua, mas relação: bebo vinho de penálties.

Releituras e farrapos - II

Por falar nisso: alguém se lembra de Althusser (refiro-me à ideologia, não ao assassínio)? Os PC detestavam-no, mas isso não significa que estivesse certo, claro. Em Genebra vivi umas semanas em casa de um althusseriano cuja teoria foi levada aos limites: "Como é que um imigrante ilegal como tu, explorado, vítima de um sistema pode ser de direita?"

"Vai rever a tua teoria da interdependência da base e da superstructura. Talvez não seja correcta. Além de que não sou vítima de nada nem de ninguém, com a possível excepção de mim mesmo". Passei a ser considerado - amigavelmente - um traidor da classe operária (o que eu não era. Trabalhava nos serviços). O senhor seria um dia professor universitário (sociologia, naturalmente), com nome feito na praça. Na altura era assistente. Um dia perguntei-lhe "Tu não devias ser de direita?" e ele escandalizou-se. Amigavelmente, claro. Éramos amigos e em casa dele reencontrei a senhora que anos mais tarde seria minha mulher.

Hoje lêem Zizek e Raquel Varela, coitados. E vão ao Tinder.

Estragar, novas gerações

Todas as gerações dizem que a seguinte só pensa em estragar o que encontra. Isto é assim desde os textos mais antigos que se conhecem.

Mas a verdade é que hoje se vive melhor do que há cem anos e há cem anos se vivia melhor do que há duzentos e por aí fora.

Talvez seja tempo de rever o nosso conceito de estragar. As novas gerações já mais do que provaram desde há milhares de anos que são capazes.

4.12.17

Releituras e farrapos

Releio Illich, que foi durante alguns anos um dos meus autores de cabeceira. Mudei bastante, claro, mas ainda jubilo com a justeza de algumas das análises do homem (só mudei o lado do ponto de vista, como um foco num palco ilumina o actor primeiro de um lado e depois do outro).

Não é nisso que penso. Penso em Illich, Debord, Vaneigen, Marcuse, Reich. Penso naquele artista cujo nome agora não recordo, de quem mais tarde fiquei amigo, o gajo dos robots artistas e da primeira banda desenhada situacionista que vi em português (e provavelmente a única). Comparo essa malta com os Zizek e as Varelas de hoje e percebo porque está a esquerda de hoje como está: parece a sombra de um farrapo da caricatura de uma ilusão. 

Momentos de fraqueza e sabedoria feminina

- Senhor Doutor Juiz, isto aconteceu-me num momento de fraqueza. Fraquejei. Não me aguentei.
- Fraqueza? Como seria se estivesse num momento de força. Você quase a desfez.
- Senhor Doutor Juiz: o problema foi com a loiça do jantar. Está Vocemecè (com todo o respeito) a ver. Eu gosto de lavar a loiça. Mas ela não quer que eu faça seja o que for naquela casa. Diz que se eu trabalhar na casa é como se começasse a fazer parte da família e ela não me quer. Isto é. ela quer-me lá em casa pela companhia, mas não posso lavar a loiça, senhor Doutor Juiz. Simbólico, diz ela. Simbólico. Olhe (com todo o respeito) hoje saltou-me o testo e pronto. Dei-lhe dois tabefes pelo simbólico.
- Você vai ter de aprender a contar, senhor Zero. Mas devo dizer-lhe que é a primeira vez que julgo um caso de violência doméstica provocado por um homem não poder lavar a loiça.
- Elas sabem tudo, Senhor Doutor Juiz. Atrás da loiça vem o resto e é isso que ela não quer. É por isso que gosto tanto de lavar a loiça: o que vem a seguir é tão bom!

Diário de Bordos - Lisboa, 04-12-2017

A novela do hostel "Sal e azul" (não googlem, não vale a pena) acabou, finalmente: a senhoria não queria o aquecimento no quarto, ponto parágrafo. E eu não queria o quarto sem aquecimento, ponto parágrafo.

Dois pontos parágrafos de sinal contrário dão um ponto final, como bem sabem todos os que se interessam pela álgebra das letras. Voltei para o S/Y FURANAI, que é - para quem não sabe - o melhor veleiro a fazer passeios no Tejo. Isto poderia ser dito por causa da gratidão (e não teria nada de mal, se assim fosse) mas não é: é uma opinião objectiva baseada em factos e no já longo tempo que levo de trabalho com o barco e respectiva tripulação - que inclui uma das melhores stews com quem já me foi dado navegar, e toda a gente sabe a importãncia fundamental que uma stew eficaz, competente, simpática (e bonita, não estraga nada) tem para o charter, seja ele à hora, ao dia ou à semana -.

De maneira constipo-me à ida para Belém e à vinda de Belém, maldigo o frio - há sete anos que não tenho frio ou pelo menos a perspectiva de passar um inverno inteiro a tê-lo e este ainda mal começou - e procuro trabalhos, no plural. Tudo o que vier à rede é peixe e será aceite sem discussão, ou com muito pouca, vá.

Os trabalhos que procuro dividem-se em três tipos: desinteressantes mas que paguem, interessantes mesmo que não paguem e - isso existe - interessantes e que paguem. Tenho um ou dois de cada categoria no espeto; vamos ver qual ou quais deles saem primeiro.

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Enfim, constipo-me deixou de ser o verbo adequado. Merda! para o frio.

2.12.17

Memória, futuro

É difícil dizer adeus a um corpo. Ou boa noite: o sono chega antes de os esperarmos e depois de fazermos por ele. Melhor dizer-te boa noite agora, antes de o sono chegar e de fazermos por ele. É que por cima do corpo há uma mente, uma memória e um futuro.

Um passo

Traçar linhas num jardim, entre os relvados e as tijuanas. À frente um teatro, atrás um rio: caso para se dizer que estamos entre o martelo e a bigorna. Ir a direito é impossível, às curvas arriscado.

Resta-me pensar em ti, no teu ventre adolescente, nos seios que me preenchem as mãos, tão vazias. Tijuanas e linhas rectas: de um jardim a ti vai um passo.

Amor e cartas

Chegou provavelmente a altura de escrever uma carta de amor. Faz anos que não escrevo uma.

Carta. Amor faz menos.

Definição - O que temos de fazer?

Antigamente as coisas eram diferentes: não estávamos tão perto da morte. Isso - ou ela- muda tudo. Morrer deve ser bom, se já tivermos feito o que tínhamos de fazer.

Difícil é definir o que temos de fazer.

Ornette e o sol

Oiço Ornette Coleman no computador. O som é horrível, mas lembro-me do original e compenso.

E penso quão complicado é falar de nós com pessoas que não pensam como nós. Pensar não é o termo, mas não sei qual é. A ideia que me vem à mente é a de planetas em torno de um sol: as órbitas não se cruzam, se houver um sol só.

Mas: e se houver vários?

Diário de Bordos - Lisboa, 03-12-2017

Boa música é aquela que nos fala de turbilhões. Claro que há várias maneiras de se falar de turbilhões e vários turbilhões dos quais se falar. É preciso não os misturar. Leonard Cohen, Jacques Brel, Miles Davis, Ornette Coleman (este não fala de turbilhões. É um turbilhão). Não sei classificar ou ordenar os turbilhões. Patrick Suskind escreveu um texto sobre contrabaixos e agora oiço um, sublime.

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Em Atenas há um bar assim (pelo menos); mas é maior e mais bar. Em Paris e Londres há muitos. Em Barcelona não há nem um, o que só demonstra que é a cidade mais provinciana do mundo, logo a seguir a Miranda do Corvo, Évora ou Palhais de Baixo.

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Privilégio é um gajo poder entrar num bar e ouvir música que lhe faz - simultaneamente - vir lágrimas aos olhos e pensar em Ornette Coleman, duas coisas contraditórias s'il en est -.

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Entre Miles e Coleman venha o diabo e escolha meio milhão de outros: ou um milhar. A música não é questão de nomes. Isto é: normalmente a minha primeira reacção é: "Vão para a puta que vos pariu". Depois precisam de voltar de lá, da puta que vos pariu.

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Não percebo nada de música, mas percebo de turbilhões, de sentimentos e da mistura dos dois.

Sobretudo quando os turbilhões se transformam em quedas de água.

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Marcelo dos Reis - Guitarra
Niels Vermoulen - Contrabaixo.

No Irreal, claro.

Auto-quase-retrato

Há pessoas que são de compreensão lenta; eu sou de sedimentação lenta.

Razoabilidade e Kavafys num só post e todos sabemos quão imiscíveis são

Há bocadinho entrei numa livraria - uma das minhas favoritas em Lisboa, chama-se muito apropriadamente [segue-se o nome] e é daquelas que dá vontade de comprar todos os livros mai-las estantes - e saí sem comprar livro algum, zero, nix oberlix, apesar de terem acabado de receber (acabado: os livros ainda não tinham o preço marcado) uma nova edição da obra completa ou quase completa do Kavafys numa nova tradução. O livro custava [segue-se o preço] e não o comprei.

[A esta hora a livraria já fechou, seja Deus louvado.]

Estou a comer uma bifana no [segue-se o nome]  e pergunto-me se não devia trocá-la por meio Kavafys, meio. A resposta é não, claro. Não tarda poderei comprar o Kavafys todo mais metade de outro qualquer. Mas porra! Porra! Porra! Ser razoável é uma praga, uma sarna, peste bubónica, é pior do que ser coxo e cego, pior do que não ter mulher nem filhos, pior do que não ser selectivamente surdo e ser obrigado a ouvir tudo o que se passa à nossa volta, pior do ter frio à noite ou ter de andar de autocarro sem comprar bilhete.

(Para o V., e para a A. I., com um abraço e um beijo, respectivamente, ambos gratos e agradecidos e tudo.)

Telenovela "Hostel de Sal e Areia"

Personagens: 
Senhoria: chinesa, dona do prédio todo. Só fala mandarim. É gananciosa, desconfiada e deprimida. Errática, lunática, confusa. Frequentemente esquece-se de que para gerir um hostel em Portugal é conveniente falar inglês e ou português.

F., gestor / explorador do hostel: jovem dinâmico, malaio de origem chinesa. Fala inglês, mandarim, cantonês, taiwanês e provalmente malaio, claro. É proprietário de uma guest house na Malásia e veio para Portugal porque se apaixonou online por uma jovem sino-lusa. Gere - isto é, geria, quando cá cheguei - os dois primeiros andares; o terceiro era gerido pela proprietária. Agora gere os três andares, no seguimento de vários episódios.

D., funcionária do hostel, a estalajadeira: jovem simpática e bonita que faz a ponte entre os hóspedes, a senhoria e F., o gestor (que de resto em chinês não se chama F.: adoptou um nome europeu que dá mais ou menos para todas as línguas. Não sei  se tem uma relação com o seu nome chinês). Para além de bonita é inteligente e estuda japonês. Trabalha muito porque a senhoria despediu - num esforço de contenção de custos - outra funcionária com quem cheguei a cruzar-me brevemente. Nem sempre está no hostel, o que é compreensível, para dizer o mínimo. Na sequencia de um dos episódios F. forçou a senhoria a readmitir a colega para as limpezas, pelo que se pode esperar mais continuidade nesse importante segmento da actividade hoteleira.

Disse que a senhoria é lunática mas não é bem verdade: muda de opinião mais depressa do que a Lua muda de posição no céu. Talvez "comética", se existisse a palavra a definisse melhor. É gananciosa e desconfiada: pensa que F. a rouba, mas como não sabe falar português nem inglês está ligeiramente limitada.

D. e a senhoria comunicam ou via F. ou via Google translator. Mostram-se os telefones uma à outra, como se estivessem num jogo qualquer de cartas ou de futebol.

Enredo:
Já estive para sair do hostel três vezes, já me mudaram as condições duas e hoje, quando perguntei a F. se a situação com a senhoria estava estabilizada ele respondeu (a tradução é minha):
- Isso não te posso dizer. Com esta senhora nunca se sabe. Nunca nada está estabilizado.

No último episódio não fui a única vítima: D. passou a noite a empacotar tudo - pertences dela e de F. porque íamos todos sair (eu por solidariedade e porque não queria depender directamente da senhoria; é preciso um amortecedor e tradutor, eventualmente) - . De manhã quando saí para o pequeno-almoço (que em princípio estaria incluído, mas a senhoria cortou nos custos e o café deixou de ser potável; só há Nescafé, diluído homeopaticamente: um grão de pó de Nescafé para dez litros de água) estavam os dois sentados em tranquila cavaqueira. Deduzi acertadamente - ganhasse eu dinheiro com a minha intuição e seria mais rico do que o Gates e o Buffet juntos - que não sairíamos. Não saímos.

Comentários:
O hostel tem algumas qualidades - é limpo (quando a jovem e adorável estalajadeira anda por cá, o que nem sempre acontece. Agora por exemplo está de férias: como íamos todos sair F. deu-lhe uma semana de férias, de que ela aproveitou uns dias para ir ao Algarve com o namorado e uma amiga), está bem situado e é calmíssimo. E um defeito: os quartos são glaciais. Trouxe um aquecedor que tinha em casa da A. I. Suspeito que se a senhoria o descobrir vai querer aumentar a renda, que com o último aumento deixou de ser barata e começou a estar na fronteira entre o normal e o aceitável. Mais um aumento e fica normal, ou seja, inaceitável.

Estou na Almirante Reis, a norte do Intendente e a Sul da praça do Chile: rodeado de chineses, portugueses, indianos, nepaleses, bangladeshis, brasileiros, turcos e de vez em quando um ou outro cigano, a dois passos da Portugália. O hostel tem um nome que vai bem com a minha profissão (a anterior, espero); proporciona-me uma experiência televisiva na vida real e tem muito perto um café delicioso e uma senhora que passa camisas a ferro por um preço a que só a decência me impede de chamar simbólico. O aquecimento aquece, o quarto tem bastante luz natural e uma secretária pequenina onde escrevo e pouso as coisas do fim do dia.

Queixar-me seria talvez telenovelesco mas de certeza injusto.

[Adenda: isto não significa, naturalmente, que não haja motivos para me queixar. Há. Mas este blog não se inscreve na escola neo-realista. Inscreve-se em nenhuma, como a maioria dos seus generosos e tolerantes leitores terá visto. Ou talvez numa: a escola de literatura chico-anisiana, tendência hienas. Os leitores da minha geração saberão do que falo.]

1.12.17

Geometria e trigonometria

É de noite que as hipotenusas se tendem, os ângulos se fecham, os senos e os co-senos se tangenciam; no vasto espaço geométrico da noite.

[Adenda: esquecia-me da secante. Sabia que me faltava uma função, mas não me lembrava de qual. Esqueço-me sempre de mim.]

Cena da vida doméstica, com manta e lareira

As noites frias prestam-se a todo o tipo de exercícios, desde fazer amor numa cama cheia de edredons a beber um shot de rum num bar a caminho de casa. Também há quem tente fazer amor num jardim, coberto por camadas e camadas de roupa, ou ler um livro à lareira com um cálice de Porto na mão direita, uma manta pelos joelhos e um livro na mão esquerda. Pode deixar-se cair o livro se por acaso a mão da senhora que se ama afasta a manta e aproxima os lábios pelas coxas acima até se abrirem e quase engolirem o membro que agora corresponde cortesmente à solicitação inesperada.

Digamos inesperada, mas poderia não o ser, claro. É plausível que a personagem masculina desta história tenha planeado a cena e estivesse, enquanto lia, com a mente noutra coisa. A expectativa tem algumas vantagens sobre a surpresa; e uma desvantagem grande: a surpresa é passado. Já passou. Aconteceu. A expectativa refere-se ao futuro: virá? Que estará ela a fazer?

Forçoso porém é reconhecer que a expectativa sem ansiedade, a expectativa da qual a ansiedade se ausentou ou escondeu é superior à surpresa.

Temos assim neste momento uma senhora ajoelhada à frente de um homem que há pouco lia enquanto bebia devagar um cálice de Porto. Agora não lê. Fecha os olhos, acaricia a cabeça da mulher, tenta identificar os fluxos nervosos que lhe sobem do membro. La Logique du Vivant começa mais ou menos assim, não é? Mas François Jacob era médico e a nossa personagem não. Neste momento deixa de se preocupar com a origem do prazer e concentra-se unicamente no prazer ele-mesmo, que tenta separar do amor. Estará apaixonado pela senhora? Esta - que não se vê porque está coberta pela manta, puxou-a de novo para cima deles - agarra-o pela cintura.

Passo os pormenores: já aqui escrevi um texto sobre as técnicas da felação tal como as aprendi em diversos países do mundo e parece-me óbvio que ou a senhora o leu ou já sabia o que lá descrevi. Afinal não é de ontem, a prática; nem mesmo do século passado. E de resto este post não se destinava a falar de felações, mas sim das inúmeras possibilidades das noites frias, potenciadas é certo por uma lareira, uma manta, um cálice de Porto e uma senhora apaixonada (ou pelo menos amiga).

A cena ficaria mais composta, de um ponto de vista puramente visual, se lá fora nevasse; e auditivo também, se no gira-discos (se calhar tudo isto acontece há muito tempo, antes dos CD) tocasse um álbum dos Smiths? Talvez o concerto de Colónia seja mais apropriado; não sei. A quantidade de músicas adequada a esta cena é infinita. Se fosse eu o homem sentado à lareira estaria por exemplo a ouvir Eleni Karaindrou. Music for Films, com Jan Garbarek no sax. Talvez. Não sou. Sou apenas o homem que a escreve, misturando surpresas e expectativas - passados e futuros, para ser mais exacto (o disco saiu em 1991. Há aqui uma diacronia que se resolve facilmente com um encolher de ombros) -.

- Pára - diz o homem. - Vamos para o quarto.

Eles vão; eu fico aqui a ouvir música. Não vou irromper pelo quarto dentro: o amor alheio interessa-me pouco. Sou mais sensível ao frio de uma noite, a uma lareira acesa, a um bom livro e à companhia da senhora por quem um dia estarei apaixonado.

Fórmulas

Podemos olhar para a vida como um livro de geometria ou um tratado instantâneo de trigonometria. Prefiro esta última. Gosto de senos, co-senos e tangentes, secantes, ângulos rectos, hipotenusas e das relações entre essas coisas todas. No liceu era a única parte da matemática na qual era bom a valer: sabia duas ou três fórmulas de cor e com elas resolvia os problemas todos. Para desespero do professor, que criticava a minha falta de conhecimento das fórmulas e elogiava a capacidade de a superar. Para chegar a um resultado trilhava o dobro dos caminhos dos meus colegas, mas raramente me enganava.

Com a trigonometria esférica na Escola Náutica a estratégia funcionava menos bem: era preciso aprender mais fórmulas.

Com a trigonometria multidimensional da vida também não funciona bem, mas por outra razão: não há fórmulas. As funções estão lá. O problema é mesmo a falta de fórmulas já definidas. Há que criá-las para cada vez. Para cada triângulo...