30.11.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 30-11-2018

Que dia... E ainda só vai a meio.

Encontro a bordo com S. e J. para discutirmos o apoio da sapata do pé do mastro. S., diz-me J. (o surveyor) é um génio da fibra e uma excelente pessoa. Combinamos para sexta-feira que vem, apesar de ser feriado. Não pode vir antes e assim fica com o fim-de-semana para acabar. Pelo menos a segunda parte de descrição de J. é verdade. Não é todos os dias que se encontram nesta ilha pessoas dispostas a abdicar de um dia feriado, sendo que ainda por cima pensa prolongar pelo fim-de-semana, se for caso disso.

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Estou outra vez constipado. "Outra vez" sendo mentira: é sempre a mesma constipação, mas quando reaparece vinga-se e deixa-me de rastos. Não é a primeira vez que estou doente nesta casa de hóspedes, mas da outra tinha pelo menos alguém a quem me queixar. Quando se está sozinho uma constipação é a coisa mais inútil do mundo.

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Fui almoçar à Bodeguita del Centro. Sublime bife com molho de pimenta. Nunca perceberei porque é tão difícil aos portugueses fazer um bife mal passado, entre o cru e o mal passado. Não custa nada, basta saber contar até três: Uma frigideira perto do ponto de fundição, põe-se o bife, um dois três, vira o bife, um dois três, serve.

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Grande conversa com J., de quem me aproximam duas ou três coisas essenciais: o amor pelos barcos, primeiro; pelo trabalho bem feito, segundo; não sermos movidos a dinheiro, terceiro. Não sei como é nas outras profissões, mas esta tem isto de particular: ganha-se bem, é certo. Ou mal, é igualmente certo. Alternadamente. A única coisa que permanece é esta espécie de adoração irracional por coisas que flutuam com linhas bonitas: um barco, pensava eu hoje pela milésima vez, é a coisa mais perene da história da humanidade. Se hoje no P. entrar o primeiro homem que teve a ideia de pôr um pedaço de pano num pedaço de pau, aposto que ao fim de cinco minutos ele se entende.

No fim, decidimos que a armadora merece tudo: "a indústria precisa de pessoas assim", diz J. E nem eu lhe disse da missa a metade, claro: fiquei-me pela sorte que é poder refazer este barco "pondo quanto sou no mínimo pormenor", passe a paráfrase desajeitada.

Obrigado, M.

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Nunca, que me lembre, fui simultaneamente tão feliz e tão ansioso como agora. As crises de ansiedade - herança da minha querida Mãe - são intensas, aproveitam-se dos motivos mais delirantes. Já a felicidade é difusa, indefinível, está em todo o lado e só se manifesta um pouco mais fortemente quando de manhã chego a bordo e vejo aquelas linhas finas, elegantes, de braços estendidos a dizerem-me "despacha-te".

Despacho-me, sim, P. Mas olha que mais vale fazermos isto como deve ser do que depressa: depressa em breve estará esquecido. Como deve ser nunca passará. 

29.11.18

De chofre?

Assim dito de chofre, "amo-te" é um palavrão e "amas-me?" uma pergunta estúpida. Melhor seria um interregno, um espaço entre as duas.

Sei lá, dez anos? Quinze?

Revelações

Do egoísmo no amor:

Revelaciones

En la noche a tu lado
las palabras son claves, son llaves.
El deseo es rey.
Que tu cuerpo sea siempre
un amado espacio de revelaciones.


Alejandra Pizarnik

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-11-2018

Por exemplo. Conto isto para mim, confesso: tentar ver claro através desta névoa. A sapata do pé do mastro estava apoiada nuns blocos de chumbo que me impediam o acesso aos fundos. Não os queria ali por três razões: a) Não tinha acesso aos fundos; b) não queria quinhentos quilos (como se veio a verificar mais tarde) de chumbo numa superfície de menos de meio metro quadrado, mesmo que apoiados em Chockfast, como estavam; c) não gosto de carregar pesos inúteis.

Perguntei ao arquitecto, ele disse-me que o chumbo estava ali para rating e não para estabilidade (coisa de que depois duvidou, mas demasiado tarde). Tirei-o e vendi-o, tudo no mesmo dia. Há coisas mais difíceis do que vender quinhentos quilos de chumbo. Agora, claro, é preciso um apoio para a sapata. Na minha cabeça era fácil: duas peças de alumínio e hey, presto, ecco, signore. O A.  (rigger) viu aquilo e pensou exactamente a mesma coisa. Uma vez as nossas duas brilhantes mentes juntas e a cantar em uníssono chamei o J. (surveyor). Afinal tratava-se simplesmente de validar a opinião de duas mentes brilhantes, não é?

Não. O J. disse que não queria alumínio ali; queria fibra de vidro. A posteriori é forçoso reconhecer que o J. não tem só razão de um ponto de vista físico - não quer mais parafusos nas cavernas - mas também que a sua solução é infinitamente mais elegante, mais bonita, mais mais do que a das tais duas brilhantes mentes.

Contado assim parece simples: em vez de se fazer os acrescentos em alumínio (marítimo, ça va de soi, mas isso encontra-se) faz-se as bases em fibra e hey, presto, ecco, signore. Bem, não. O homem que conheço para fazer o trabalho começou por dizer que estava muito apertado em tempo mas que sim, poderia vir fazer o serviço. Depois que estava muito apertado em tempo e faria a maior parte da coisa na sua oficina; hoje disse-me que nada, niente, nix, não tem tempo, não pode, está infinitamente sorry.

Amanhã vem outro, sugerido pelo J. Mas para a semana há montes de feriados e pontes e mai-los raios que os partam a todos. Entretanto continuamos - graças à chuva dos últimos dias e ao facto de o I. estar a lixar (literalmente) o interior para depois o pintar - a descobrir que ainda há montes de pequenas entradas de água (a que os franceses chamam fuites, nome muito mais adequado. O lugar da água é no exterior, não no interior). É que não páram.

Entretanto agora os riggers já têm as peças todas e continuam tranquilamente o seu (deles) trabalho, sabendo que enquanto a sapata não tiver apoio eles têm uma apólice de seguro do tamanho do mundo.

E é assim. Não sei como é nas outras, a minha experiência de gestão de projectos está limitada à área náutica: navios (dois product carriers na Rússia de Gorbatchev primeiro e Ieltsin depois) e várias embarcações de vela. É sempre igual: os factores que não controlamos são infinitamente mais do que os que controlamos e esta situação propaga-se aos nossos fornecedores e - obviamente - aos fornecedores dos nossos fornecedores. Junte-se-lhe as condições meteorológicas, a situação afectiva dos senhores (já tive um que não podia trabalhar porque ia para o Uruguai ver a namorada, depois não podia porque a namorada veio do Uruguai; outro não pôde fazer o trabalho no dia combinado porque lhe morreu o sogro - foi uma semana de atraso, entre o enterro do sogro e o apoio à sogra - e as coisas que se vão descobrindo porque se está a trabalhar... E o Natal está aí, eu aqui e vamos os dois encontrar-nos em Palma, disso já não há dúvidas.

Tudo isto quando eu pensava que já não havia mais surpresas, o stock estava de certeza esgotado. Não estava.  Nunca está.

Se calhar é por isso que este trabalho é uma droga (no bom sentido do termo).

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(Isto dito, uma coisa deste trabalho que mais uma vez me maravilhou: quando, depois de discutir com o A. - um senhor mais velho do que eu, primeiro rigger a trabalhar em Palma, homem de experiência e saber seguros - lhe disse que ia chamar o J. para validar as nossas conclusões a resposta foi: "Claro. Quanto mais opiniões melhor". Por sorte o surveyor podia vir a bordo, falámos os três e a evidência foi aceite sem qualquer espécie de resistência.

Não conheço muitas áreas de trabalho das quais a humildade seja o pilar principal.)

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Hoje ha leitura de poesia no Antiquari. O tema é "a poesia sensual" (cito de memória).

Não há relação, eu sei.

... Não? A sério?

27.11.18

Fragmento

"...
Só fui ateu até te conhecer
..."

Fragmento

"O problema é simplesmente esta vontade de entrar em ti pelo meio e só sair quando tu me amares e eu a ti. É uma questão que parece simples, não é? Vamos para a cama e de entre quecas, cambalhotas, trepas alguma coisa nascerá.

Pois é o contrário: essa "alguma coisa" nasceu antes e agora trata-se de não a deixar morrer."

Fragmento

"...
Levo-te, mulher, de coxas nos ombros até ao céu e nele mergulho como um adolescente na vida ou um velho feliz na morte: sem hesitar, até ao fundo - de ti, do céu. O crepúsculo adensa as cores e o desejo: vens-te com ele e eu contigo. O fim de um dia é o princípio de uma vida, talvez duas. Comer e comer-te, comer-me e morder-te, penetrar-te por cada poro. Receber-te de caralho aberto, feliz como um Papa em dia de fumo branco.
..."

26.11.18

Fragmento

"Escrevo-te de ... , cidade na qual já fui tão feliz que hoje não tenho saudade nenhuma desse tempo. Os verdadeiros amores têm tendência a regressar; já os tempos felizes não, bastam-se a si próprios, fazem de saudade uma palavra desnecessária. (Talvez até se tenha mais saudade do tempo em que se foi infeliz, não é? Apetece lá voltar e trocar-lhe as voltas, usarmos nele o que desde ele aprendemos, como faríamos se à felicidade se pudesse acrescentar o que quer que fosse.
..."

24.11.18

Alguém, ninguém

- F. foi alguém muito importante para mim.
- Foi? E hoje?
- Hoje é ninguém.
- Passa-se de alguém a ninguém com uma facilidade desconcertante.

22.11.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-11-2018

Apanhado na rua no meio de uma multidão, por causa da inauguração das iluminações de Natal. Não percebo por que raio de carga de água sociedades laicas celebram o Natal. Das duas uma: ou não são laicas ou não é o Natal que se celebra. Opto por uma mistura das duas.

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Amanhã, encontro com o surveyor e o rigger (fico grato se me indicarem os termos em português) para discutirmos o apoio da sapata do pé do mastro. Depois, viagem relâmpago a Lisboa, para tratar de alguns assuntos. Hoje senti-me pela primeira vez preso numa ilha. Resultado: Driiveme

O estabelecimento de preços das companhias aéreas é ridiculo.

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Expressão brilhante de E., companheiro de casa de hóspedes: Panda Conservation Company.

Eu chamar-lhe-ia Panda Waltz Company: um passo à frente dois atrás, mas estaria a ser injusto. É inegável que estamos a avançar.

Talvez Panda pé de chumbo companhia de dança?

Para a semana acabamos de pintar o primário no interior e arvoramos, se não houver muitos atrasos com o raio da sapata.

A qual é de alumínio, não de chumbo.

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Com a combinação de barco vazio e chuva copiosa têm aparecido algumas surpresas. Pensava que já tinham terminado, mas são como loiça para lavar: há sempre um prato que aparece depois de tudo lavado.

Enfim, só uma é potencialmente chata. O resto não passa de pequenas contrariedades, coisa de dar um tabefe ao bote, mais para aliviar do que para o corrigir.

A verdade é que estamos a fazer de uma vez só o que devia ter sido feito em trinta e cinco anos e não foi. E a corrigir erros feitos ao longo desse tempo todo.

Ele merece, ao menos isso.

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Creio que nunca conheci um barco tão bem como este, o INDOMÁVEL e o DON VIVO.

É como conhecer uma pessoa intimamente, penso. Por coincidência, devem ser três as que conheço assim, também.

19.11.18

Curiosidades

Separavam-nos cinco milhões de coisas e uniam-nos duas ou três, singelas: a independência, a liberdade, a sensualidade, a noção de que o que se tem para dizer deve ser dito.

Curiosamente, estas prevaleceram.

O que parece nem sempre é

A história sai na sequência de uma troca com a A. V. e com F.V.F., mas anda para ser contada há muito tempo. Só me faltava encontrar-lhe o ângulo, por assim dizer. Cá vai:

Poucos anos depois de chegar a Genebra abri uma empresa de charter nos Açores. Passava lá metade do ano e aqui a outra metade, a fria. Nesses invernos só fazia trabalhos temporários, encontrados através da Manpower, se não estou em erro (isto passou-se há muitos anos e alguns pormenores falham; mas o essencial está correcto). Um dia fui parar a uma empresa que fazia reinserção de pessoas recém-saídas da prisão. Não me lembro de qual a sua actividade, mas lembro-me do que fiz nas duas ou três semanas em que lá trabalhei: preparar stands para o salão do Automóvel de Genève. Éramos seis ou sete, dos quais metade saídos recentemente da prisão. Na minha equipa havia dois desses, o "Paul" e o "Richard". Paul era alto, esguio, viscoso. Tinha o corpo e o comportamento de uma enguia. Richard tinha uma estatura média, largo de ombros, forte; era o tipo de pessoas com quem só um cego se mete na rua. Transpirava maldade, brutalidade por todos os poros.

Tratava-se porém de um homem correctíssimo, que levava com modéstia o seu papel de herói da empresa - era o que tinha feito mais anos de prisão -; quando se apercebeu de que eu lia jornais todos os dias levava-me um ou dois, roubados nas caissettes. Uma vez fiz-lhe ver o absurdo de ele roubar jornais que eu podia ler gratuitamente no café; respondeu-me "Tenho de fazer um pequeno delito ("larcin") todos os dias, se não não me sinto bem". Richard contava-me muitas histórias da prisão, mas nunca me disse porque tinha sido preso (nessa altura confirmei o velho adágio de nunca perguntar a alguém porque esteve preso). Designava as cidades pelo nome das respectivas prisões: Genève era Champ-Dollon, Lausanne Bois-Mermet e por aí fora.

Tanto Richard, com quem eu me entendia bem, como Paul tinham o cuidado de todos os dias deixar os contentores varridos, arrumados, limpinhos. Hábitos que teriam provavelmente trazido da prisão, mas que levariam um observador externo a pensar que estavam a concorrer para o concurso de empregado-modelo do ano.

Adenda: esses trabalhos temporários deram-me a ver uma parte da humanidade que por vezes nos escapa. Quando trabalhei numa empresa de reparação de elevadores tinha como colega um tipo que estava a regressar ao trabalho depois de um ano de baixa: o elevador onde estava a trabalhar tinha caído de um décimo quinto andar. Perguntei-lhe onde é que ele ia buscar coragem para voltar a fazer a mesma coisa. Encolheu os ombros e disse-me "Estas coisas nunca acontecem duas vezes".

Outra das minhas favoritas: uma empresa de montar andaimes. O nome era TPH - Toujours Plus Haut. Isto não se inventa... - Um dia vou com o meu colega e chefe de equipa fazer um trabalho atípico: montar um andaime no interior de um prédio, por cima da cage d'escalier, para se poder reparar a clarabóia. Chegámos cedo e o homem passou a manhã toda a olhar para aquilo; não conseguia encontrar uma maneira de montar o andaime. Depois do almoço disse-lhe para ficar a beber um café, eu tentaria encontrar uma solução. Ele não me tinha em muito alta consideração e deixou-me ir, provavelmente na esperança de que eu caísse e ele se visse livre daquela missão. Quando voltou, uma hora depois, o andaime estava praticamente pronto, seguro, utilizável. Voltámos para a empresa e ele foi a correr para o escritório. Não sei o que disse de mim, mas fui despedido nessa tarde. Já não sei porque razão o patrão falou com a S. e explicou-lhe que eu não era feito para aquele trabalho.

18.11.18

Diário de Bordos - Genève, Suíça, 18-11-2018

Um raio de sol, um só e Genebra muda. Nesta altura do ano parece que Midas andou a passear por aí, tocando inadvertidamente aqui e ali e com o sol o que era amarelo fica dourado. (Na Primavera gosto do dia em que subitamente as miúdas descobrem que se podem descobrir, mas isso é outra história).

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Muda, mas nem tudo. Há obras em todo o lado. Não me lembro de ter vivido um dia, um que fosse em Genebra sem que houvesse obras num sítio qualquer. Refiro-me a obras importantes, nada de mariquices como re-pavimentar ruas, que se faz aos fins-de-semana e à noite. Agora estão finalmente a fazer o aterro perto da Nautique, um projecto velho de para aí uns vinte anos e que só não avançou antes por causa da oposição do WWF (e provavelmente de outros "ambientalistas", a quem tudo o que cheire a trabalho, dinheiro e melhoramentos cheira mal).

Muito mais divertida é a oposição dos donos de cães do quarteirão onde S. agora vive. É um quarteirão chique, de casas velhas e dinheiro mais velho ainda. Há um terreno vago, inacabado, vazio, feio, cuja única utilidade é servir de urinol aos cães das redondezas. A Câmara quer fazer ali um pavilhão de dança (ou escola de dança? Não sei) mas os proprietários de cães das redondezas opõem-se. S., ela mesma proprietária de uma cadela Leelou, ri-se: "neste bairro há cinquenta advogados por metro quadrado. Não é amanhã que a Câmara vai fazer o pavilhão de dança". Isto de os políticos não terem poder tem vantagens e desvantagens. Para o pavilhão de dança estou-me nas tintas: que os meninos dancem ou os cães mijem não muda grande coisa. Já o aterro da Nautique é importante, é uma obra de que Genève vai beneficiar sem dúvida nenhuma (e a Nautique também, daí a oposição de muitos dos verdes-melancia). Tudo bem pesado, é melhor que eles não possam fazer o que querem: antes a merda escolhida do que o bem imposto.

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(No seguimento de uma troca com F. V. G.) A Suíça é um país paradoxal. Quando se é jovem é impossível apreciá-lo correctamente. Começa por não ser um país: são vinte e seis (tecnicamente, vinte e três cantões e três meios-cantões) que num território mais pequeno do que Portugal têm em comum a moeda e o exército. O resto é diferente, tudo: o sistema escolar, a polícia, a legislação, a carga fiscal, a saúde. Quando aqui cheguei alguns cantões impunham tarifas aos produtos dos outros. Isso acabou, como acabou a proibição de uma polícia entrar no terrítório de outro cantão ou nuns o ano escolar começar em Março e noutros em Setembro (para não mencionar, claro, a abertura da Landsgemeinde às mulheres, mas isso releva mais do folclore do que da política).

É preciso crescer para se perceber a Suíça e sobretudo apreciá-la ao seu justo valor: é o melhor país do mundo, o mais equilibrado, o que deixa mais espaço ao indivíduo, porque é uma espécie de vulcão do qual a superfície é calma e ordenada e o que está por baixo fervilha e só não explode porque se pode manifestar, organizar e votar. Não é por acaso que a Suíça foi o primeiro país do mundo a legalizar a homossexualidade, tema que me interessa tanto como a mija dos cães ou a dança dos meninos, mas é ilustrativo da capacidade inovadora de um sistema que visto de fora parece mais rígido e bloqueado do que uma mulher frígida.

Ao contrário do que muita gente pensa os Suíços não são diferentes de nós. Não é por civismo que os automóveis não passam nos sinais encarnados: é porque estes têm radares e fotografam quem não espera pelo verde. No fundo, "civismo" é simplesmente a capacidade que uma sociedade tem de reconhecer as falhas de quem a constitui e organizar-se em função dessas falhas e não em torno de míticas e inexistentes qualidades como o "civismo", a educação ou respeito pelos outros. Se não respeitas a vida em sociedade és punido (e a punição é pesada e não falha). Se a respeitares fazes o que queres.

Quando se é jovem isto parece opressivo e pesado; quando se cresce percebe-se-lhe a ligeireza. Claro que há contras, mas não há nada que não se possa resolver nas urnas.

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Amanhã volto para o meu P. Não pensei muito nele estes dias. Quem acha que eu só penso em barcos tem aqui um desmentido formal, comprovado (hoje o passeio foi à beira lago para ver os barcos, mas isso é diferente. Sempre foi o meu passeio favorito em Genebra).

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Esta cidade tem mulheres lindas, já aqui o tenho dito muitas vezes. Hoje fui com a minha filha H. à Ferblanterie beber um copo e conversar sobre um breve serviço que terei em Abril e apercebi-me de que não me fica bem mencionar isto: contribuí para isso. Modestamente em quantidade, mas não em qualidade.

17.11.18

Família, famílias

Durante muito tempo reclamámos contra "a família", sem nos apercebermos de que há pelo menos duas famílias: a que herdámos e a que construímos.

Porra

Parcimónia nas metáforas, porra.

16.11.18

Diário de Bordos - Genève, Suíça, 16-11-2018

Regresso a Genebra e reencontro o prazer concentrado de cada um dos meus regressos de há vinte anos. É bom voltar a Genebra: os autocarros a horas, tudo a funcionar impecavelmente, desde a aplicação dos TPG (a Carris local) no telefone à máquina dos bilhetes, aos autocarros, às ruas. Hoje fui mesmo um bocadinho mais longe: por distracção apanhei o autocarro errado e tive que mudar mais vezes. Esperas quase inexistentes, autocarros e eléctricos uns atrás dos outros, tudo em silêncio e sem solavancos, sem espinhas, fluido como mel a escorrer de um pote.

Depois do almoço venho à Livresse, livraria cum café (ou vice-versa) na minha zona favorita da cidade. Está frio, um café custa três euros e é péssimo, mas nos primeiros dias tudo passa. Se cá ficasse mais de três ou quatro semanas lembra-me-ia de que na Suiça tudo o que não é permitido é obrigatório e tudo o que não é obrigatório é proibido; que se em cada cidadão há um polícia adormecido, na Suíça ele está acordado (isto diz-se aqui do cantão de Vaud, mas pode extrapolar-se, mutatis mutandis); que esta camada de nuvens não se irá embora até Abril.

Mas os livros, meu Deus, os livros! Caríssimos, é verdade; mas tantos, em todo o lado, tão apetitosos, escritos na língua mais bonita da Galáxia. Felizmente na Livresse posso lê-los sem os comprar.

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O mundo é um lugar estranho, passe o lugar-comum: chego a casa do T., amigo de há quarenta anos, parceiro de navegações e regatas, onde vou ficar este fim-de-semana. Falo-lhe no P. e digo-lhe o nome do arquitecto, Hugh Welbourn. "Estive com ele ontem em Amsterdm. Encomendei-lhe um barco", responde.

T. deixou a vela "lenta" há muitos anos e agora dedica-se exclusivamente a barcos voadores, de que de resto é um pioneiro no Léman. Welbourn especializa-se num sistema revolucionário de foils - pôr Welbourn e revolucionário na mesma frase é um exemplo perfeito de pleonasmo -, daí o encontro dos dois.


15.11.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-11-2018

Hoje ganhou ele a primeira volta: descobri que o suporte do rail da escota da grande está podre e precisa de ser mudado. Fiquei chateado, quase lhe dei um tabefe. Tínhamos combinado que não haveria mais grandes surpresas. Depois vi que não é uma grande surpresa: desaparafusar o rail, tirar a madeira, aproveitar para selar um dos sítios por onde estava a entrar água, fazer um suporte igual e pôr no sítio. Segunda está pronto, se entretanto daqui até lá ninguém pedir ao A. um serviço urgente, se o fornecedor tiver madeira adequada, se o sogro do A. não engravidar a vizinha, se o despertador tocar à hora certa, se o Sol não se enganar no percurso, se não chover, se o galo cantar a horas, se e se.

Em contrapartida ganhei a seguinte. Temos os encanamentos instalados. Pouco a pouco o quadro macro vai-se fechando. Ficam a faltar pormenores que o I. e eu poderemos fazer, como as carícias de depois do amor.

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Entretanto, primeiros contactos directos com a burocracia espanhola. Quem não gostar da portuguesa (eu não gosto) pode vir até aqui. Isto é patético. Estava tão bem em cima do muro e de repente sinto-me a cair para dentro de um poço fundo e negro.

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O Verão prolonga-se. As máximas andam acima dos vinte. Infelizmente amanhã em Genebra o aquecimento global vai desligar-se. Nada que uma boa fondue de queijo e um banho de imersão familiar não resolvam.

14.11.18

Pergunta inocente

Que fazer deste corpo, com o teu tão longe?

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 14-11-2018

Podia ter sido um dia como os outros, mas não foi; foi ainda mais como os outros. Que se lixem os dias. O único que não é igual aos outros e interessa é o de amanhã.

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No Alqueva vai começar qualquer coisa que intuí pela primeira vez vai para alguns quinze anos. Não retiro daí nenhum particular orgulho, antes pelo contrário: ver as coisas cedo de mais tem o mesmo valor operacional do que vê-las demasiado tarde. A única mudança positiva foi provavelmente ter  encontrado as pessoas certas para dar corpo às ideias. Fica aqui o meu obrigado ao N. F. e ao meu irmão V. As coisas sendo o que são estarei na Suíça, num banho de família, amigos e fondue de queijo. As ideias são como os filhos: crescem e vivem a sua vida. Crescem e desaparecem.

Está outra, da mesma altura, no forno. Vamos ver, como dizia o ceguinho à mulher, que era surda. Essa não quero que me deixe.

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Para a semana arvoramos. O P. vai ficar com as duas pernas ou quase: ainda faltam os trapos. Hoje dizia ao director da marina que a minha sorte é gostar de Palma. Pensava no martírio que foram os quatro meses na cidade do Panamá  a fazer o refit do A. F., que ficou uma merda. Não mencionei o P., porque não posso usar o verbo gostar, há coisas demasiado íntimas para serem expostas assim à luz do dia. Isto é como um casamento com uma mulher tão forte como nós e nada contemporizadora: todos os dias são uma guerra civil. Um dia ganha ela, outro nós.

Hoje ficámos com os encanamentos de águas limpas, amanhã teremos os das águas negras. O mastro vem para a semana. Até lá teremos o interior pintado. Faltam dois ou três pintelhos na electricidade. No motor também. Depois temos de pintar o convés, fazer o cardan para o fogão, reforçar os beliches de meia-nau, distribuir as bombas de fundos, dar a segunda demão nos fundos, tratar do material de salvamento. Não parece, mas a verdade é que está quase.

O problema é quase ser uma palavra que nunca mais acaba, nunca mais.

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Concerto de piano no Door 13. Se os bares se avaliassem pela qualidade dos produtos este seria o melhor bar do mundo. Não é. Esse lugar está e continua reservado para o Procópio. Sem nobreza um bar não passa de um bebedouro.

Mas lá que os Dry Martini e os Dark n'Stormy estvam excelentes estavam.
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As mulheres eram bonitas, mas cada uma tinha oito pernas e mais braços do que Shiva. Refugiei-me num canto do bar e na música. O resto não passou de epifenómenos. Depois fui ao 5ª Puñeta e ao 7 Machos: gosto de progressões numéricas, ordenadas. Uma noite sem método é um simples desvario.

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U. portou-se como uma estúpida, que não é. Ou será? Aqui está uma dúvida que não vou trabalhar muito. Mais vale deixá-la resolver-se sozinha, porque na verdade o resultado é-me indiferente. Curioso, não é? Quanto mais se conhece alguém mais esse alguém se torna ninguém.

Nem sempre, seja Mendel louvado.

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A grande vantagem dos preconceitos é que podemos trocá-los, como as árvores trocam de folhas ou os marinheiros de futuros.

Ou de passados, vá lá saber-se.

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Se vivesse outra vez não mudaria nada senão uma coisa. Ou é uma tragédia ou uma arrogância insuperável: a única coisa que mudaria na minha vida seria aprender música.

Satisfaço-me com pouco, está visto.

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Banho de imersão na família, in situ. Não sei que dizer, juro. Talvez afinal não seja pouco aquilo com que me satisfaço.

11.11.18

Ansiedades crescentes

A hipótese de juntarmos as nossas ansiedades é atraente, claro. Há sempre a esperança de que elas tenham sinais contrários e se anulem, soma algébrica de ansiedades. Ao contrário por exemplo da tua beleza, que a minha fealdade faz mais bela ainda.

É pouco provável. As ansiedades tendem a acrescentar-se, propagam-se como sons debaixo de água, ninguém os vê ou ouve mas vão longe, não se perdem no caminho. Tu ficarias mais ansiosa e eu mais ansioso e a cada ciclo as ansiedades cresceriam, cada vez que déssemos as mãos ou nos beijássemos.

Pode, repara, fazer-se da vida uma luta contra as probabilidades, fazer dela aquilo que nós queremos que seja: duas liberdades que um dia se encontram e criam uma terceira, independente.

Pode fazer-se da vida o que se quer. Basta querer (e saber fazer operações algébricas).

Classe

Não há melhor prova de classe do que ser capaz de empobrecer com "graça e majestade".

Figuras da beberagem

Um bom Dry Martini é o exemplo perfeito de uma sinédoque; mau, não passa de uma metáfora de mau gosto.

10.11.18

Cheiros

Olho para trás e digo-me "Isto não anda"; olho de novo e vejo que sim, anda, andou. Já estamos a falar de interior, da navegação, da limpeza dos forros dos coxins.

Ora cheira a mar ora não, é um cheiro como toucinho entremeado recheado de amor e frito em impaciência.

O voo de uma grua encadeada

E se por acaso um dia voltares a ouvir-me dizer que te amo, não ligues. Isto não foi mais do que o voo rasante de uma grua sobre a água calma de um lago, de manhã cedo, à espera da primeira brisa do dia, a luz do sol nascente a traçar na água uma linha que em breve se desfará. A grua encadeada desvia-se do seu caminho por um breve instante, tu vês-lhe as plumas na hesitante claridade da hora, pensas que ela se dirige para ti, fascinada talvez pelo reflexo dourado do nascer do dia nos teus cabelos, pela esperança que nos teus olhos ela toma erradamente por uma certeza. Deixa-a voar, seguir o seu caminho, não lhe ligues, ela voltará ao rumo, o espelho da água em breve se quebrará, o raio de luz transformar-se-á numa parede, as plumas cairão levadas pelo vento.

Imagina um dia de inverno, frio mas ensolarado. Pões os óculos escuros e pensas "que contradição, este sol e tanto frio, que desvario" e lago, grua, aquela voz que um dia sonhaste ouvir dizer-te "Amo-te" desaparecem, desvanecem-se, diluem-se numa grande chávena de tempo.

Que alguém um dia beberá, quem sabe?

9.11.18

Tu não podes

Hoje fiz escalopes panados, aquela receita em que se mistura o pão com queijo ralado. Ficaram bons, pensei que gostarias se aqui estivesses, mas tu não podes, pois não? O vinho era bom, o tinto da casa da Sifoneria, mas tu não podes.

Amanhã é sábado e só trabalho de manhã, tenho o I. a bordo a pintar os vaus e à tarde têm de secar; mas tu não podes.

Não poder viver é horrível, sabes muito bem. Mas não podes. Faltas-me muito, tanto como o ar, mas não podes.

Se pudesses, encher-te-ia a pele de poemas - tu és um poema escrito pela genética, poema de carne sangue olhos e desejos, o teu e o meu, poema sem fim de cantar, amar, louvar, acção de graças à vida.

Mas tu não podes.

6.11.18

Dúvida existencial

Se, como dizia Joshua Slocum (para quem não sabe, um dos maiores marinheiros de todos os tempos) "são os capitães demasiado seguros de si próprios que perdem os seus navios" (ele tinha acabado de perder o seu, numa viragem de bordo falhada, demasiado perto de terra), então os capitães inseguros levam os navios a bom porto?

O frio e as mulheres

Ao fim destes anos todos ainda estou para perceber se o frio é uma mulher feia que se oferece ou uma bonita que se recusa.

5.11.18

Pedaço de terra, pedaço de mar

Deve haver uma razão pela qual se diz "vou comprar um pedaço de terra e plantar couves" mas não se pode dizer "vou comprar um pedaço de mar e pescar sardinhas".

3.11.18

Turismo de Outono

Se um dia eu for um turista a sério, daqueles que dormem em hotéis e se queimam nas praias para poderem contar uma aventura no regresso a casa não seria desses. Seria um turista de Outono: têm melhor aspecto, não andam em cardumes nem de tronco nu (seja por causa da temperatura ou por outra razão qualquer) e falam mais baixo nos bares, cafés e restaurantes.

O turismo de Outono nem parece turismo: dá mais a impressão de senhores que se enganaram na estação do comboio ou na paragem de autocarro e aproveitaram para descobrir as imediações.

Estão a brincar, sem dúvida

Chego a Palma e está sol. A minha pergunta a quem de direito é "Mas vocês estão a brincar comigo ou quê?"

O elo fraco da cadeia é o mais forte, no fim

O dia amanheceu radioso, lindo, azul. I. e eu chegámos a Andratx comentando a beleza da ilha e de como o sol muda tudo, esta ilha etc. e tal e coiso. A previsão era que sim, sem dúvida, fantástico, dois dias seguidos de sol. Meia hora depois estava a chover. Vai chover o dia todo, aos bocadinhos. Comprei lonas para não estragar a tinta que já estava feita - de qualquer forma podem servir quando formos pintar o convés -. Pusemo-las e o I. diz: "Felizmente hoje não há vento". Mal acabou a frase veio uma rajada.

Alguém falou em capacidade de adaptação, flexibilidade, jogo de cintura, teimosia e por aí fora?

[Adenda: o mastro está uma beleza.]

2.11.18

Dia, vida

As miúdas têm vinte e poucos anos e são belas como o nascer do dia.

Ou será o nascer da vida?

Où es-tu, Tati?

Hoje é dia de romaria. Bodega Belver, Ca la Seu, Moltabarra, Sifoneria, Bar Rita. Acabei na Tasquita.

Para que Palma deixe de ser simplesmente amável e se torne habitável só falta uma coisa: o café Tati.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-11-2018

Palma é uma mulher bonita e inteligente que ora se mostra uma ora a outra, mas nunca as duas ao mesmo tempo.

Para a ver totalmente il faut montrer patte blanche, ser paciente, esperar, ter sorte.

Por vezes entrevejo-a como é, visões um pouco fugazes de uma cidade que se recusa, não por coquetterie nem por timidez, mas por arrogância, altivez.

O meu namoro com a cidade entrou numa fase nova: quero desesperadamente deixá-la, nunca mais a ver, esquecê-la; e sei que isso não passa de um voto piedoso, fracassado antes mesmo de ser formulado em voz alta (que só é nos momentos de praguejo, raiva impotente e frustrada).

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Esta chuva ajuda à raiva, mas ao mesmo tempo atenua-a: uma semana de quase repouso, trabalho de escritório, mudança de casa (mais uma!) Quarta-feira fui a bordo as cinco da manhã, estava um badanal de merda, fui hoje para ver que está tudo tão bem como parado (não é verdade, mas é quase) e volto amanhã se o tempo melhorar como eles dizem que vai.

O tempo nunca lê as previsões.

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Quanto mais oiço Mallorquín (basicamente catalão) menos gosto. Lido parece que quem o escreveu se esqueceu de metade das letras; ouvido, é o contrário: onde foram eles buscar tantas sílabas, vomitadas mais do que faladas (com sotaque espanhol, ainda por cima)?