30.6.17

Quem nos ama

"Amamos quem nos ama", escrevi há alguns anos. E também quem não nos ama, já sabia muito antes de ter escrito aquilo.

Pouco importa quem amamos, na verdade. Só conta quem nos ama.

Fragmentos (do discurso amoroso)

Poderia dizer "amo-te" até gastar a língua e os lábios e os dentes se transformarem em pedacinhos minúsculos das conchas do areal e mesmo assim não diria tantas vezes quantas as que preciso de to dizer. 
Imagina um tanque gigantesco cheio de amor. Tem um buraquinho minúsculo numa das paredes e cada vez que eu digo "amo-te" sai uma gota. 

Se eu te disser um milhão de vezes "amo-te" o tanque continua tão cheio como estava e eu não terei mais boca para to dizer, nem olhos para to mostrar, nem mãos para to provar. 

28.6.17

Mar, água doce

Imagina por exemplo as paisagens desta manhã, aqueles portentosos nimbus cinzentos, carregados de chuva, ameaçadores. A chuva acabou por cair noutro lado, mas a ameaça estava lá, deslocava-se lentamente, réplica celeste à falta de cor da cidade na qual tu te perdes e que por isso ficas a conhecer mais depressa do que se tivesses uma carta e por ela te guiasses. Foste comprar uma camisola que logo a seguir esqueceste no restaurante Cardoso: há coisas que não mudam.

Uma vez mais confirmaste que se deve regularmente provar aquilo de se pensa não gostar: hoje calhou a vez às francesinhas das quais deixaste de poder dizer "Não gosto". Entretanto a cidade enchera-se de cor: são as festas de S. Pedro, os feirantes montam as suas barracas nas ruas, vendem-se cuecas e meias, uma senhora grita "venham ver os preços da cigana!". Um pouco mais à frente o senhor que hoje de manhã parecia escandalizado pois a livraria estava fechada e já passavam quinze minutos da respectiva hora de abertura. A cidade respira, apesar de os stands estarem encavalitados uns nos outros nestas ruas estreitas e sinuosas. O homem do talho vem à porta, não vês se para fumar um cigarro se para olhar para a feira. O acesso ao talho não é fácil. Será que isso o aborrece? Não sabes. Não queres saber, de resto: um dia as palavras permitir-te-ão escolher uma das alternativas. É para isso que servem.

Um pouco mais longe os vendedores de roupa e sapatos são substituídos por africanos que vendem aquelas horrorosas girafas, porta-moedas de couro sintético e capas para telefones. Falam uma língua que tu não identificas. Perguntas a hora a um deles, para ver se pelo sotaque lá chegas. Não. Talvez sejam senegaleses. A maioria é Bantu mas há alguns Nilóticos. "De qualquer maneira os San não emigram", pensas. "Porque será?"

A pergunta é estúpida. Nem nos países deles os vês.

À tarde vais dar um passeio pela Serra do Alvão. É um parque natural. Ainda há nimbus, mas menos. Chove de vez em quando, aguaceiros ligeiros. A paisagem é bonita: minifúndios, casas tradicionais, de vez em quando uma casa de emigrante. Pensas no amor e no medo, perguntas-te "como será,  quando estiver apaixonado?", temes não o vir a estar, temes sofrer. Há sempre lugar para mais uma dor na grande mesa do amor.

Não é para isto que servem as palavras. (É uma pergunta. Só falta o ponto de interrogação).

Vais dormir, mas antes lês mais um artigo da revista literária que compraste de manhã. Pensas no livro de Carpentier que tem umas descrições magníficas, frases intermináveis como caminhos de montanha no meio das paisagens que viste hoje à tarde. Perguntas-te "para que servem as palavras? Para que serve o amor?"

Tentas responder: as palavras servem para cobrir a dor, como o edredon no qual te proteges do frio te cobre dos pés à cabeça.

As montanhas não são muito altas: mil e duzentos metros. São menos redondas do que as do Jura e menos ásperas do que as dos Alpes. Pensas em todas as montanhas que já viste, das nuas de Cabo Verde às da Costa Rica ou das Caraíbas, cobertas de vegetação. Lembras-te dos passeios que davas no Mpumalanga. God's Window. Os elefantes naquele parque cujo nome insistes em não reter. Pensas nas montanhas do Leste do Zaire.

Hoje viste, finalmente, o que te espera. Veio numa palavra como um bebé trazido no bico de uma cegonha nos livros infantis. Tentas afogar essa palavra com um ror de outras. Como se usasses o mar para esconder meia dúzia de gotas de água doce. Meia dúzia de gotas de sangue. 

Mudez, sorte

Digo para dentro as palavras que não posso dizer para fora. Ventríloquo mudo.

Ou afónico, com sorte.

Diário de Bordos - Vila Real, Trás-os-Montes, Portugal, 28-06-2017

Uma vez em Genebra fui comprar a República, de Platão. O diálogo com a empregada da livraria foi assim: (verbatim, traduzido): "A República de Platão. E quem é o autor?" "Platão". "Ah, muito bem. Quer então a República de Platão por Platão. Vou buscar o livro".

Começo por aqui para não ser acusado de capitalite. Desesperos há-os em todo o lado. Hoje andei à procura de uma versão portuguesa de On Liberty, de Mill. Fui às duas principais livrarias da cidade. Nenhuma das pessoas que me atendeu conhecia o livro ou o autor.

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"A cidade é feia todos os dias", diz-me I., que aqui nasceu e vive. Tem razão. Mas percebo-a: é fácil gostar desta arquitectura caótica, mistura de mau gosto dos anos setenta com ruínas dos séculos passados, destes sítios clássicos a que nem a jovem idade dos empregados ou a intervenção de arquitectos conseguem estragar a patine ou a magia. É como amar uma mulher feia que passou por muitas coisas: olha-se para ela e sonha-se com o passado. A fealdade desaparece, transformada em desafio.

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A rapariga que me atende na loja de roupa onde vou comprar uma camisola - o Verão fez um recuo estratégico e está frio - é pequenina, bonita, despachada, competente e dá-me troco às piadas;  ontem tive uma estimulante conversa com uma jovem de vinte e quatro anos - a quem vou oferecer On Liberty, não por proselitismo mas por vício pedagógico -; as queixas sobre "a juventude" são provavelmente as mais antigas do mundo  (há uns anos encontraram um texto cuneiforme com dois ou três mil anos cujo tema era a degradação dos jovens, que "só pensam em dançar") e as mais injustificadas.

Verdade que para mim é fácil gostar cada vez mais de jovens: basta-me olhar para o mundo poluido pelo plástico e pela praga do politicamente correcto, inundado de televisão e conspurcado pelo automóvel que a minha geração lhes vai deixar para ter pelo menos recato antes de os criticar.

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Uma coisa é certa: se alguém quando eu tinha dezoito anos me tivesse dito que aos sessenta estaria de novo a lutar pela liberdade eu não teria acreditado. 

Ilha

O amor é uma ilha estranha, cercada de tempo por todos os lados.

27.6.17

Toda

Olho-te para as mãos nuas e vejo-te toda.

Ter vírgula sorte

Há pessoas que pensam que ter sorte é ter tudo, agora. Não é.

Ter sorte é ir tendo, vírgula, tudo.

Parabetos, bens

Como toda a gente tenho um amigo preto e outro que é maricas (isto são tangas. O meu amigo preto é quase meu irmão e o meu amigo maricas são muitos e nenhum deles se importa que eu use as palavras que quero usar porque sabem perfeitamente que amizade e liberdade andam de mãos dadas ou não andam de todo e sabem perfeitamente que a minha amizade não se dissolve no ar do tempo e muitas são as coisas mais que eles sabem e portanto não vale a pena a polícia da linguagem cair-me em cima. Nem as outras).

Mas ao contrário de muita gente a esses amigos que toda a gente tem eu acrescento um beto de Cascais que é tão beto tão beto tão beto que se não se souber que o rapaz é beto (dos de Cascais. Os da Foz não são betos, são bentos) não se nota.

É um gajo que fica muito para lá do porreiro, por quem eu tenho uma amizade sem limites.

Faz hoje anos e este post é para ele, com um abraço daqui até lá.

(Para o A. G., claro).

26.6.17

Imagina

Imagina um tremor de terra; a respectiva falha tectónica; imagina o medo, o sol a tremelicar como uma vela numa corrente de ar, o solo a fingir que é comboio; nada sólido se não a incerteza: esta muralha manter-se-á de pé?

Imagina que muralha e amor são sinónimos.

25.6.17

One and only

"Quanto mais o tempo passa mais tolerante fico; e menos paciente", escrevi faz agora algum tempo passado. Continua verdade.

O problema sendo actualmente gerir esta tensão dicotómica entre a paciência e a tolerância. A coabitação não é tão fácil como então pensava. Imaginava dois pólos - duas bolas de bilhar, por exemplo - que se afastavam simetricamente uma da outra.

A imagem não está correcta. Mas não devo conformar-me a essa incorrecção. Antes pelo contrário: o objectivo é exactamente cortar os fios que ainda por vezes esporadicamente unem a falta de paciência à tolerância e a arrastam para o mesmo lado da mesa.

E nunca mais voltar ao Bar One no Burgau se lá estiver este gajo a tocar guitarra e os amigos a cantar (tocar e cantar sem aspas porque não as tenho em quantidade suficiente).

Adenda: o que de resto é pena porque os mojitos são bons, a barmaid tem a cara mais bonita e a expressão mais estúpida que jamais vi juntas, o que não deixa de ser interessante e - oh espanto - quando os amigos se calam E (condição lógica) o guitarrista conhece a música até nem é tão mau como se esforça por parecer. 

Diário de Bordos - Burgau, Algarve, Portugal, 25-06-2017

É a noite antes do dia; já estou quase arrependido de a ter passado aqui. Grande quase: em Lisboa não estaria melhor.

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Terei que ser eu a fazer a carbonara de que a vontade me atezana há semanas? Tudo indica que sim. Paciência. Já as comi piores; e com sorte talvez me lembre de procurar a solução daquela infernal dúvida: com salsa ou sem?

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O Algarve no Verão não é habitável por quem não tenha nascido a norte de Brighton. E mesmo Brighton deve ser melhor.

Quando vivia em Portugal só cá vinha no Inverno. Agora quero viver em Portugal mas não tenho a certeza de aqui voltar tão cedo. Antes Brighton.

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Num país que apresenta a gastronomia como uma das bandeiras ("pontos fortes" em Swotês) o vinho tinto está numa prateleira na cozinha a metro e menos de meio do fogão / forno (é uma pizzaria). A ASAE não serve para coisas destas e os terroristas do ISIS não saberiam distinguir onde pôr as bombas. Estamos condenados.

Só não percebo por que raio de carga de água os produtores de vinho não dão formação aos ignorantes dos restauradores. Se calhar dão.

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Bebo um branco algarvio ao qual faltam duas ou três coisas para ser um grande branco mas tem duas ou três que o põem claramente acima do medíocre; oiço Eleni Karaindrou, prova de que as intuições, impulsos ou simples curiosidade funcionam mais vezes do que não; daqui a pouco vou ler o Vila-Matas que ando a ler há dois meses; o dia acaba nesta casa que poderia ser usada para demonstrar que por vezes os impulsos não dão bons resultados; espera-me um caminho que vai exigir trabalho, amor, dedicação, esperança: tudo coisas de que não estou em short supply nem nunca estive; daqui a pouco vou beber um mojito sem açúcar; penso na senhora que amo e há três anos conheci: isto é, penso em mim há três anos e penso "abençoados três anos".

O dia termina numa espécie de acção graças, como se por uma vez o universo se tivesse apercebido de que existo e tivesse mobilizado tudo aquilo de que gosto: o vento, a luz, a música sagrada de Eleni Karaindrou tocada pelo Garbarek, a paz.

Disparate, claro. O universo sou eu e este amor que sinto por C. e saiu de um canto de sinapses que lá o mantinham fechado a sete chaves, só o deixando sair de vez em quando por curtos períodos de tempo como se não quisessem que morresse mas tão pouco se perdesse por montes e vagas. O resto é conversa, "falar porque quero", imaginário.

O resto é gratidão. 

24.6.17

Aviso à navegação - Évora, Rua de Serpa Pinto número 6

As pessoas que passem em Évora à frente do Art Café, sito nas instalações do Inatel daquela cidade devem ter cuidado com um risco à navegação.

À frente da porta desenvolve-se uma poderosíssima corrente aspirante que nos leva para dentro do café e nos impede de sair. É uma espécie de buraco negro que em vez de usar a gravidade para atrair passantes incautos usa a beleza do pátio, a qualidade da música - qualidade em dois sentidos: a da selecção musical e a da reprodução - a simpatia do serviço e (diz-me quem sabe) a qualidade das saladas ao meio dia.

Passando em frente da porta ninguém no seu perfeito juízo consegue resistir a entrar; uma vez lá dentro só um louco sai sem para isso ter uma razão de vida ou de morte.

Três palavras, devagar

Digo "quero-te". Digo "Amo-te". Digo "És linda". Deixo as palavras escorrerem-te na pele como se fossem os meus dedos nos teus seios, os meus lábios nos teus, os meus olhos no teu ventre: com leveza e voluptuosidade, lentidão e gozo, vagar, divagar, devagar, surpresa há tanto anunciada e esperada.

Quero-te: entram por mim as palavras que de mim saem; amo-te. Sou teu. A elas me entrego como aos teus dedos, os teus olhos, a essa maneira tão lenta que tens de sorrir.

Sorris devagar; amas devagar; vives e nessa superfície lisa do lago albergas-me, a mim e às minhas palavras simples, desajeitadas e verdadeiras.

Não sei mentir: como sou me dou. Como és te recebo.

Devagar.

Para a C. V., com amor devagar.

23.6.17

Ordem, desordem e uma breve consideração sobre algumas hierarquias

Ontem escrevia a alguém que é muito mais do que alguém e mencionei a expressão "ordem alfabética". Ocorreu-me (o tema prestava-se a isso) perguntar a essa pessoa que é mais do que uma pessoa (no sentido em que os artigos definidos são mais do que os indefinidos: a pessoa) ocorreu-me, dizia, perguntar-lhe "haverá uma ordem desalfabética?" Ou, talvez mais adequadamente, uma desordem alfabética?

Quanto à superioridade dos artigos definidos: não são os artigos, mas aquilo que eles designam.

Palavras novas, atitudes antigas

Saio do médico com uma "receita sem papel" (está no telefone portátil).

Como é que um velho conservador rebelde que sempre detestou papelada vai reagir à digitalização da vida quotidiana? "Estou farto de digitalizadas"?

21.6.17

Confusão

Sei o que é confusão. Quando cheguei a Bujumbura vivi duas ou três semanas no meio de uma confusão indescritível. Uma delegação que se preparava para ser fechada  (com pompa e festejos) viu-se a braços com trezentos e sessenta mil refugiados em pouco mais de um mês.
Ninguém, nada estava preparado. Faltavam pessoal, material, equipamentos, linhas de comunicação, remédios, comida, água, camiões. As agências tinham enviado para o Burundi o pessoal de que dispunham, pouco e o mais das vezes impreparado (exceptuavam-se as que já lá estavam, mas mesmo assim com programas completamente diferentes).

Sei o que é confusão, quão fácil é fazer erros nessas circunstâncias. Não é a isso que atiro pedras. Tão pouco penso que se devem começar a atirar já. Mas que se devem preparar as fisgas disso não tenho dúvidas. 

20.6.17

Objecção contra a modernidade

Dormir sozinho numa cama sem estar sozinho fora dela: louvável prática ancestral que os tempos recentes condenaram.

Pior: inverteram. Hoje anda-se sozinho fora das camas porque estão sempre cheias.

Cont.

Foi obviamente o fogo que nos uniu. Não o que grassava por esse país fora mas o que nos consumia.

Devia, para ser exacto, dizer "fogos", no plural. Eram muitos, exacerbados pelo calor, a ausência de vento.

Cada uma das nossas conversas fazia-me sentir numa peça de Sartre encenada pelo pior aluno da turma; o acto mais simples e anódino transformava-se numa epopeia existencial. Beber um copo de água levava-nos ao inferno. Rita Maria - o nome talvez seja falso, claro - não conseguia viver sem estar em levitação a dois metros do solo; à mais pequena questão ameaçava cair. Levei algum tempo a perceber que o objectivo de viver no ar era poder ameaçar e não o inverso: ela não ameaçava porque vivia no ar; levitava para poder cair.

Um dia propus-lhe que se alcandorasse numa coluna. Sempre tive uma admiração  sem limites pelos estilitas e a perspectiva de coabitar com uma - excluindo o problema prático do sexo - aliciava-me. Além de que deixaria, caso aceitasse, de poder cair e as ameaças ficariam assim vazias de sentido.

( Precisão: Rita Maria gostava de sexo e descia todas as noites uma hora para a ele se dedicar com empenho, carinho e técnica. Descer da coluna seria decerto mais complicado. Ou pelo menos a ela subir de novo).

Não sei. Sei apenas que viver num estado perpétuo e permanente de avaliação, repetição e clarificação de cada frase que dizíamos era esgotante, levava a um consumo exagerado de álcool e cigarros e ainda por cima era inútil: nenhum de nós mudava a sua percepção do que o outro dissera por causa das sessões de esclarecimento, como eu lhes chamava.

Daí a ideia da coluna. Santa Rita Estilita soava-me bem. Tê-la a quatro ou cinco metros em vez de dois idem. Perderia decerto as magníficas sessões quotidianas de sexo, mas isso parecia-me mal menor.

Educação sentimental

Ao contrário do que frequentemente se pensa, a parte mais importante da educação sentimental não é aprender a amar.

É aprender a ser amado.

Diário de Bordos - Praia da Luz, Algarve, Portugal, 20-06-2017

Vim ao Bull, onde estive no sábado. De que ano? De que vida? 

O Irish Coffee está perfeito. A temperatura também. O mar deixou de se ver e as inglesas feias vão para dentro porque está frio.

O céu - ou a parte dele que se vê - está confuso. Cumulus estratificados,  altos e por cima disto tudo cirrostratos, a lembrar que o dia começou assim, nebulado e cinzento.

Invejo as pessoas que têm certezas e lamento-lhes a ausência de dúvidas. Se saber muito é bom, como será saber tudo? E não saber nada?

Isto eu sei. É como estar numa piscina de puré de batata demasiado líquido e não saber nadar. A imagem é francesa mas o sentimento universal. 

Fragmentos, Vésperas

O meu mar é outro: o da dúvida,  do medo,  da "inabilidade fatal" de que falava o velho Arthur antes de ir vender armas aos etíopes,  um povo tão bonito quanto altivo e guerreiro. Que se foda o mar: o rapaz pôs o vinho tinto no congelador e agora está fresquinho. 

O vento caiu e as vagas parecem rugas no rosto de uma jovem trintona, à espera do amor ou do amante, vai saber.

Um velho adágio inglês explica a colonização britânica como sendo uma busca por "melhor clima, melhor comida e mulheres mais bonitas". Há muito que o sei justificado mas alegro-me cada vez que o confirmo. Salvo raras excepções os ingleses não têm sorte com as mulheres. 

Vou perder a camionete por cinco minutos. Hoje vi um quadrado do Calvin no qual ela explicava ao Hobbes que "a realidade continua a atrapalhar a minha vida". Podia elaborar horas sobre isto mas prefiro olhar para o mar - cujas rugas se atenuam porque há cada vez menos vento ou, quem sabe?, o amor está cada vez mais perto -.

Silentio felicitas

A vantagem do sexo oral é obrigar pelo menos um dos intervenientes a estar calado durante meia hora.

Paráfrase

Se você pensa que as putas são caras experimente o amor.

Humor público - privado

Organizar uma viagem entre dois pontos do Portugal profundo não ligados por uma linha / meio de transporte directo faz-nos perceber imediatamente porque não há humoristas neste país.

Estão todos empregados em empresas do sector público ou em organismos do sector privado.

19.6.17

O que sai na rifa

Passava as horas a reclamar contra a malvada da sorte, que não lhe premiava as rifas que todos os dias comprava.

Uma vez saiu-lhe o primeiro prémio. Não o foi buscar: a ideia de não ter nada contra o que reclamar era-lhe insuportável. 

Remédio

Na longa, interminável lista de maleitas de que padecia incluía ser amado. Era a sua preferida: não tinha remédio. 

A causa e a culpa

Esta incapacidade nacional, colectiva, de pensar, separar a causa da culpa.

Como se em português reflectir e acusar fossem sinónimos.

18.6.17

Papelão

A mulher era lésbica - via-se à légua  - e feia como aquelas máquinas de alcatroar ruas do antigamente - isso via-se de perto - mas nenhuma das duas condições explica ou justifica o que ela fez.

Atribuo mais a causa a uma fraca imagem de si própria, a um desejo de vingança de um heterocoiso patriarcal ou a um desconforto com o resultado da rifa.

Tenho pena por ela e espero sinceramente que a vida não lhe dê mais momentos de amargura como o que eu lhe proporcionei: deixei uma folha de cartão de para aí quinze por vinte e cinco centímetros - dobrada em quatro, o cartão era fraquinho - em cima da cadeira do café para que a empregada a deitasse fora.

Veio a correr atrás de mim, apanhou-me porque eu parara numa loja de chineses, fez um grande sorriso e fisse-me "Esqueceu-se disto na cadeira".

Recebi o agora quadrado tosco de talvez oito centímetros de aresta - mais as dobras verticais, claro, não passara aquilo a ferro - e ainda tive tempo de a ouvir dizer "Ponha num papelão".

Dez minutos depois voltou a passar por mim - penso que era uma cliente do café e não uma empregada ou a proprietária -; vinha acompanhada por outra senhora, globalmente igual a ela. Mas não me disse nada. Desviou o olhar, até, quando a mirei para lhe retribuir o sorriso de pouco antes.

17.6.17

Palavra falada

Na e pela palavra te amo.

Falo. 

Semântica ferroviária

A viagem para o Burgau foi mais uma daquelas viagens portuguesas que só a CP pode proporcionar ao viajante. Será contada, um dia quando voltar a ter um computador portátil que funcione - isto é, não seja da marca Asus -.

Há contudo um episódio dessa viagem que não deve esperar: o percurso de Tunes a Lagos, passado na cabine de pilotagem do comboio, a conversar com o condutor e a aprender imenso sobre a condução de comboios.

O ponto alto dessa viagem foi, contudo, de ordem semântica: fiquei a saber que o ramal de Lagos é "muito encostante".

Isto é: tem muitas encostas.

Amor, calor

As estratégias para lidar com o calor são semelhantes às que se devem usar se de repente o amor - o. Artigo definido singular que podia ser grafado em caixa alta - se de repente o amor. O amor.

Isto está confuso. Deve deixar-se o calor escorregar por nós. Devemos unir-nos ao calor com a entrega de quem sabe que lutar contra ele só piora as coisas. Deve beber-se cerveja gelada, vinho branco bom, chá de gengibre forte e frio, sentados numa esplanada a olhar para o mar - que no fundo é a vida - sem se fazer muitas perguntas nem às bebidas, nem à vista nem muito menos à vida.

O calor e o amor são ambos em igual medida uma promessa, chegam quando têm de chegar e devem ser acolhidos com alegria, dignidade e gratidão.

É na pele que o calor e o amor se sentem. É por ela que entram em nós, para ficar.

Portrait exprès

Une de ces femmes que tu amènes à l'autel sans même avoir besoin de passer par l'hôtel. 

16.6.17

Dispersas políticas

"Com amor é mais caro", diziam as putas quando eu era adolescente. O dito aplica-se à perfeição a quem se extasia com a dupla Costa & Centeno: estão a foder o país à grande e à francesa, mas "com amor". Quando chegar a conta vamos  poder aferir o preço de tanto carinho.

.........
Os juros portugueses continuam altos, apesar dos génios que nos governam. A principal razão é, obviamente a ganância dos "mercados" (entre aspas).

Há uma coisa que eu não percebo: por que raio de carga de água são os "mercados" (entre aspas) menos gananciosos com a Alemanha, que até tem mais massa do que nós? 

Coisas de luz / II

É preciso ir buscar o sono onde ele está: no fim de cada palavra, naquele sítio em que a palavra começa a cair e leva com ela a luz. Cada palavra tem a sua luz, diferente da seguinte e da anterior.

Viver é brincar à cabra-cega com as palavras: palavra-cega. As palavras têm luz. Dá para um muro, um abismo, um passado. Só as palavras que ainda não foram ditas têm futuro. As outras nem já presente são.

Tacteias no recreio mas estás sozinho: a palavra-cega é um jogo solitário, obscuro.

- E a luz?
- É preciso ir buscá-la aonde está: no fim de cada palavra; quando esta deixa de o ser, naquele preciso instante em que palavra e passado se fundem. É aí que vive a luz.

- Apaga a luz e dorme.
- Cala-te

15.6.17

Coisas de luz

Estávamos a falar do dia, da noite e da luz e eu disse-lhe "espera, luz é de dia " e ela respondeu "não. Luz é sempre".

Bateu na mesa como se me quisesse dar um murro.

"Quando tu falas de amor não te referes só a uma parte dele, pois não? De Arvo Pärt, Hildegarde, Miles a uma parte da música?

É preciso falar da luz. Toda. A da noite e a do dia. Começar com as Vésperas de Rachmaninov, com a Ressurreição de Mahler, com a luz difusa da porta do Tabernáculo,  com a luz daquela pele que te deseja.

Começa pela luz. Começa por Pärt. Começa por ti nessa pele, no mercado de Ver-o-Peso, na luz glacial, branca e quase invisível do extremo-Oriente russo. Começa pela luz densa do olhar de uma rapariga de dezanove amos que te ama. Aos dezanove anos tudo é denso, da luz ao desejo. Imagina-te na neve. "Qual a diferença entre imaginar e recordar?"

Nenhuma, estúpido. A imaginação é a memória do que ainda não aconteceu. A memória é o que poderia ter acontecido, imaginado hoje à luz deste fim de dia esvaído. Pärt, Hildegarde no abominável som do telefone.

Literatura, muita. Pensa assim: um dia vais querer a pele que te quer. Aliás: um dia vais querer a pele que queres. Não: tens. Tira os dois pontos e a confusão será total. Querer e ter são coisas diferentes, sabe-lo desde os dois anos de idade. Qual confusão?

- Estás a confundir memória e imaginação.
- E tu pele e desejo.

Há cidades nas quais a luz tem a forma de uma serpente gigante que a envolve sem ela (a cidade) saber.

Noutras, como Lisboa a luz parece-se com um pote de mel que alguém  (provável mas não seguramente chamado Leonard) entorna com um sorriso nos lábios.

O mel chama-se "Ausência". Ao fim de muitos anos é enjoativo, mas deixa a cidade entregar-se-lhe e vais ver como fica: limão.

(Dizia o ceguinho, entre parênteses).

Abismos, malvadez

Este incidente com o cartão de débito é uma chatice com M maiúsculo. Provoca arrelias várias  ("arrelias" porque estou em modos cruzados understatement e bem-educado). Tem, claro, a dúbia e pírrica vantagem de não me permitir gastar muita massa na Feira, mas tirando isso é um regresso a dois passados e a uma confirmação: há entre mim e o dinheiro um abismo de incompreensão mútua; por vezes deixa-se atravessar por uma ponte ou outra. Pontes temporárias, frágeis, ilusórias. Nem quando tenho dinheiro tenho dinheiro. Felizmente tenho amigos. Não o substituem mas pelo menos atenuam-lhe a malvadez.

14.6.17

Bênção?

Perder o cartão de débito  (e com ele todo o acesso às parcas massas) em vésperas da Feira entra na categoria Bênção?

13.6.17

Biologia

A partir de uma certa altura ter amigos é mais importante do que ter família.

Os SDF são gajos que não têm amigos; não gajos que não têm família. Família toda a gente tem. Por uma estranha torção da biologia é mais fácil a um familiar ver-nos a dormir na rua do que a um amigo.

Neste ponto (mas só neste) Margaret Tatcher errou. Verdade seja dita: não foi a única. Há centenas de anos que nos enchem o saco da biologia.

Vacilante

Telefone com M. J. M. V.
- Está cá?
- Estou.
- A que se deve esse "Estou" tão vacilante?

Há pessoas que sabem ler-nos sem nos ver, a quem basta uma palavra para nos ler como se fôssemos um livro aberto, capazes de ouvir os infra-sons.

O meu "estou" não foi vacilante.

11.6.17

Raízes

Há sempre aquela velha história das raízes, dizia o choupo à galinha. No mar não há raízes. No ar tão pouco, respondeu a miúda, que ainda se lembrava do tempo em que os antepassados voavam.

Mas explica-me: que ganhas tu com as raízes?

O choupo não sabe responder a esta pergunta. Não pode viver sem elas, coitado. Já uma galinha não pode tê-las: perde a sua razão de ser. Isto é: perde a razão. O ser.

As raízes são uma porra que ora alimentam ora matam. Como a água, o amor e meia dúzia de coisas que agora não saberia nomear. 

Não sei / II

A peregrinação algarvia chega ao fim. Amanhã volto para Lisboa. Gostei muito, como das outras. Salvo raras excepções a cada uma penso "poderia viver aqui".

Depois apercebo-me de que a questão não é essa. É "Durante quanto tempo?"

Da série Dúvidas para sempre

Esta mistura de calor, vento e luz entra por mim adentro e penso que nunca estarei tão perto de saber o que uma mulher sente quando faz amor.

Não deve estar muito longe disto.

Não sei

Portugal é um país pobre, miserável. É fácil - demasiado fácil - um gajo esquecer-se disso.

A pequenez de espírito, a indigência na argumentação, a convicção de que as pessoas só pensam em função de ganhos ou perdas imediatos não passam de sintomas dessa miséria.

Ou se calhar são-lhe a causa. Não sei.

Diário de Bordos - Tavira, Algarve, Portugal, 11-06-2017

Puxo a Peregrinatio ad loca memoria um bocadinho mais longe e venho a Tavira, onde estive pela última (e primeira) vez em 1975.

Calor, vento, pouca gente nas ruas bonitas (não vi outras). Peço sugestões para almoço a um chauffeur de táxi. Dá-me dois nomes de restaurantes, ambos fechados. Baseado neles pergunto por uma alternativa. Zeca da Bica, Rua Almirante Cândido dos Reis, 22.

Encerra à quarta-feira, dia em que os outros dois estão abertos, provavelmente. Escrevo antes do teste final, mas até agora a coisa corresponde: vinho na fronteira entre o medíocre mais e o suficiente menos mas mais perto do menos do que do mais; sopa de peixe entre o bom e o bom mais. Vamos (eu e eu) ver como estão as amêijoas à Pato. Serviço eficaz e português: reservado, sem flores nem vénias.

Depois do almoço (que espero se prolongue até depois do adeus, digo, calor) vou passear pela cidade, da qual não recordo rigorosamente nada excepto os grandes corredores do convento ou mosteiro onde fiquei.

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As amêijoas tinham duas qualidades que frequentemente se excluem: estavam óptimas e eram muitas. O restaurante Zeca da Bica é recomendável e recomendado.

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Há pessoas que não gostam do calor. De certa forma compreendo-as: precisam de lutar, não sabem (ou não querem) deixar-se escorregar na inclinação das horas.

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O almoço acaba com um Colonel. A ser rigoroso devia se despromovido. Mas não sou e fico satisfeito. Que se lixe o rigor. É coisa para dias frios, tristes ou de trabalho.

Hoje não há nada disso e o guichê das queixas está fechado.

Hierarquia

É obviamente discutível e estou pronto a reconsiderar se alguém provar que estou errado: a seguir a um porto o melhor lugar do mundo é uma estação de comboios (a seguir é uma gare rodoviária. Aeroportos vêm em último, mesmo antes do inferno e logo depois de uma casa).

10.6.17

Das coisas difusas

A dor no cotovelo está no limite do suportável; a outra, mais geral, difusa e indefinível desapareceu.

A vida demonstra-me todos os dias - reconhecidamente por caminhos ínvios - que tenho razão. A liberdade é o único caminho. Na falta dela só há auto-estradas que levam a nenhures, como naquele romance do Ballard.

Diário de Bordos - Vila Real de Sto. António, Algarve, Portugal, 10-06-2017

Não dormi vinte e quatro horas - há sonhos inatingíveis - mas de resto tudo se concretizou. Lisboa entrou por mim adentro tal um couraçado por uma cidade indefesa (analogia a ler com atenção, não se lhe inverter o eixo). Fui ao Tabernáculo do meu irmão Hernâni beber mojitos, ao Povo comer um prego e dormir ao Areeiro. De manhã tratei de tudo o que tinha a tratar, mais ou menos (computador, óculos e bicicleta. Isto parece um remake. Há um ano exactamente precisava das mesmas coisas, sem tirar nem pôr, mas hoje estou melhor e encontrei melhores soluções. Se para o ano precisar outra vez vai ser uma brisa).

E à tarde Lisboa fugiu-me. Lisboa é um cais, um ponto de partida e de chegada, uma ponte de ontem para amanhã na qual por conseguinte todos os dias são hoje. E foi assim que de repente, neste período em que tanto tenho pensado nas relações do passado com o resto vou parar a Vila Real, encontrar-me com um amigo dos meus treze anos. Tirando a família é a pessoa que conheço há mais tempo. Não nos vemos desde que saí de Quelimane, há quarenta e cinco anos.

Brinco com esta esta ideia de que vivi coisas na minha vida há quarenta e cinco anos como um puto com uma bola nova no jardim da avó.

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No comboio reconheço o senhor do bar: foi o que me ofereceu a cerveja o ano passado com o pretexto - de tão sólido deixa de ser pretexto e passa a razão - que a cerveja devia estar fria. Ou coisa que o valha.

(Acrescento que o comboio vai de novo cheio, alguns ares condicionados funcionam - nem todos - e que desta vez ele não me ofereceu vinho, que era de Cantanhede e bom).

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Tentou seduzi-la abusando dos parênteses mas entretanto ela crescera e começara a preferir itálicos.

……..
No aeroporto de Atenas abriu (há dois meses, diz-me a empregada – jovem, claro -) uma livraria. Dito assim a coisa parece banal. Livrarias em aeroportos é coisa que mais há por esse mundo fora. Lembro-me particularmente de uma no aeroporto de Salvador onde comprei – para oferecer a uma jovem senhora - um livro de Jorge Amado que ainda hoje é um dos meus livros favoritos. Porém a livraria no aeroporto de Atenas tem uma particularidade rara: é boa, óptima, excelente. Pergunto-me se tal como há pessoas interditas de entrar em casinos não deveria criar-se uma categoria de pessoas proibidas de passar a menos de cinquenta metros de uma boa livraria. Ou então criar categorias dentro das livrarias: “Livros para tesos”; “Livros para remediados”; “Livros para gajos preparados para saltar uma refeição ou duas por causa deles”; “Livros para ricos”.

E discos. Comprei um de Eleni Karaindrou chamado Music for Films. É a música de três filmes de Theo Angelopoulos, por Jan Garbarek e mais uma série de outros que não conheço (como de resto não conhecia a senhora Karaindrou).

Ainda só ouvi um bocadinho. Acho que o meu projecto de um dia comprar um televisor no qual possa ver filmes se vai concretizar brevemente.

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Vila Real, pela segunda vez; mas desta é diferente; é como se fosse a primeira: tenho um guia.

Esta coisa de estar com alguém que não se vê há quarenta e cinco anos tem um lado curioso: o que ouvimos de nós nessa idade não é uma novidade; novidade é ter sido vista.

Ontem apanhei uma competentíssima (passe a imodéstia) narsa num bar cujo nome não fixei. Hoje almocei um soberbo carapau grelhado no restaurante O Pescador (e provei o pargo e a anchova, ambos igualmente bons). Hoje à noite talvez haja ostras.

Talvez: o Sul e a certeza não se dão bem.

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O meu laptop Asus continua a ageniar. Os problemas são os mesmos desde o dia em que o comprei: bloqueios e placa de rede. Para aqueles encontrei uma solução: dar uma sapatada com ele na mesa e hey, presto! a coisa recomeça a funcionar. Uma exploração mais metódica ensinou-me que se for eu a dar a sapatada (não precisa de ser muito forte) no objecto o efeito é semelhante.

Já para a placa de rede não há solução, se não mandá-la para a p que a p e reiniciar e reiniciar e reiniciar e reiniciar e reiniciar e reiniciar. E reiniciar. E reiniciar. E depois usar o telefone portátil.
E resistir à tentação de lhe dar uma sapatada definitiva.

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Dormi até às onze da manhã. É a primeira vez desde que cheguei a Atenas que durmo até ao fim do sono, passe o cliché merdoso. Talvez pudesse dizer "até ao fundo do sono". Foi por onde esta noite andei.

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Gosto deste calor amodorraçador. Não há nada a fazer se não beber rum, escrever disparates e esperar que passe. Infelizmente isto tudo vem acompanhado por uma música medíocre; e eu com a Eleni coisa na mochila.

O café Puro Café é uma merda, mas as mesas têm tampo de mármore e não tem ar condicionado (ou tem e não funciona). E tem rum Legendario, que não é o meu favorito mas está longe de ser mau. E é pequeno. Fico-me. Contemporizar com o que se tem à mão é uma qualidade que levei muito tempo a adquirir; não a vou perder já.

9.6.17

A estação, a arquitectura e o provérbio

A estação ferroviária de Lisboa - Oriente é a versão arquitectónica de "Quem vê caras não vê corações".

8.6.17

Serviço Público - Restaurante Atenas

Café Philos
Kerameiko 83 (esquina com a Salamino St)
Keramikos

7.6.17

Talvez

É obviamente impossível prever que se se vai jantar dois aperitivos talvez sejam demais. Sobretudo se um desses aperitivos se desdobra, elevando o total para três.

Já a ideia de que se vai comer o melhor hambúrguer da nossa longa vida, sem exageros nem wishful thinking é mais fácil. Bastava lembrar-te, estúpido.

Aqui fica, para ver se da próxima me lembro: os hamburguers do Philo Café são simples e lhanamente os melhores que jamais comi.

Ponto final, parágrafo. São baseados numa mistura de carne de porco e borrego, soberbamente equilibrada. Mais alguns ingredientes, de cujos a lista não me interessou o suficiente para fixar.

Com batata frita manualmente, numa esplanada onde agora começa a chover.

"Estás embebido", diz-me S. que me conhece como se me tivesse feito. "Quantos copos já bebeste?" pergunta A. (que idem). A minha estratégia está a resultar.

Vou para o Kerameio ouvir jazz. Ou seja.

Acreditem se quiserem,  mas um dia ponho um remo ao ombro

Quando se acabarem os comprimidos.

Independente

Costumo dizer que não gosto de dinheiro, mas é mentira.

Aprecio-lhe a independência. Não precisa de mim para se pôr a andar.

Dilemas

Não sei se é melhor engrossar-me depressa se devagar. Na dúvida opto pelos dois.

Diário de Bordos - Atenas, Grécia, 07-06-2017 / II

Contexto: uma rua pedonal, bonita de tão feia e feia de tão estranha: estreita, árvores no eixo central, prédios cuja estética oscila entre feio, muito feio, aceitável, cafés porta sim porta não cheios de gente. Não há um turista em nenhum deles.

Atravesse a rua. Não há um grego no café.

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Que será que impede as gregas (de Atenas) de envelhecer? Espero que não seja o Tsipras, ainda me apanhariam a votar Bloco se um dia votasse.

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Está decidido. Vou jantar ao Philos Café, em Keramikos. As portas do futuro dão para as varandas do passado.

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Ainda bem que há turistas. De outra forma não haveria mulheres feias nas ruas (salvo raras e honrosas, etc.)

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Hoje mandei os livros pelo correio. Amanhã vai metade da roupa. As garrafas de vinho e a de Grappa ficam comigo. Prefiro que se partam na minha presença a que seja um selvagem descuidado a parti-las.

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Passei cinco vezes o canal do Panamá e duas o de Corinto. Há coisas em que o empate é pelo menos honorável.

Para não dizer imprescindível.

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Vou passar um fim-de-semana sozinho num sítio onde não saibam o que é um remo. Só assim posso comparar.

Comparar o quê?

Diário de Bordos - Atenas, Grécia, 07-06-2017

Uma característica curiosa das mulheres gregas - pelo menos as de Atenas, que são as únicas que vi em quantidade estatística - é serem todas extremamente simpáticas, bonitas e terem menos de trinta anos. Salvo raras e honrosas excepções, claro.

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Uma das quais é a recepcionista da espelunca onde vou dormir esta noite. Quando a vi pensei que o Booking.com me tinha enganado e estava num bordel, mas não estou. O wifi não chega ao quarto, que a senhora descreveu como sendo "very nice". Se aquilo é very nice eu sou o Onassis. Entre mim e o Onassis vai a mesma distância do que entre um quarto decente (let alone "very nice") e o quarto número doze do Alyzia Hotel. Escolhi-o por causa do nome - Alyzia deve querer dizer Alísios, não -?

Claro que uma pessoa poderia perguntar-me "mas porque vais tu dormir a uma espelunca se podes, excepcional e optimisticamente dormir num hotel?" A resposta a essa pergunta é simples, se bem se componha de várias partes: a) Os hotéis normais não se chamam Alyzia; b) Nem todos os hábitos adquiridos são funestos. Convém não os perder em grupo e de uma vez só; c) já me aconteceu dormir em sítios normais pelo mesmo preço; d) porque me estou nas tintas; e) porque prefiro gastar a diferença de preço num conjunto sequencial de copos de ouzo (ou de vinho branco), acompanhados por uma soberba salada de beringela fumada e um prato de tsalafouti; f) porque foi o que me saiu na rifa; g) porque me apetece ajudar o dinheiro a gastar-se e não o deixar ir-se sozinho; h) porque me estou nas tintas (bis).

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Vim parar a um antro de turistas. Espero que haja em Atenas um movimento anti-turistas igual ao que há em Lisboa. Enfim, "há".

Ainda não ouvi o rapaz falar grego com um único cliente.

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Não dei ser curioso verificar que por muito chata que a viagem tenha sido - e esta foi - há sempre uma pontinha de melancolia na ideia de que se vai deixar o bote que nos trouxe até onde estamos.

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O rapaz do bar - quase tão bonito e tão jovem como a rapariga - não sabe quem é Nena Venetsanous. Depois pergunta-me se sou grego - não falo uma palavra - e faz ao mesmo tempo um gesto a explicar "grego nascido no estrangeiro".

Aí apetece-me dizer que sim.

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Como sou um gajo cheio de sorte - não sendo o único, claro - E., o agente ou armador do S/Y C. R., ainda não percebi bem - teve ontem o segundo filho. Enfim, foi pai pela segunda vez ontem à noite. Quem teve o filho foi a mulher dele.

Ou seja: não consigo completar a merda da entrega até amanhã, data que tinha previsto dedicar à visita da Acrópole e outros museus.

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Tal como há senhores velhotes, de cabelo branco que atam os cabelos em rabo-de-cavalo et simili, há senhoras de idade superior à das mulheres de Atenas (contenhamo-nos) que insistem em usar vestidos com um longo decote e metade das mamas à vista.

Sacos de café e brancos. Questão interessante para os apreciadores de chocolate, suponho. Para mim é simplesmente desgostante (contenhamo-nos).

Origens, breve mas completo diálogo

- De onde é?
- Daqui.
- Daqui?
- Sim. Sou de onde estou.

Paráfrase em prosa, Grécia

Quando eu morrer voltarei para viver todos os momentos que passei longe da Grécia. 

Portas, passado e futuros

Não devemos permitir que as casas do passado nos fechem as portas do futuro.

6.6.17

"Coming home"

Fundeados à entrada do canal de Corinto à espera de vez. Estamos na rua da casa. Agora é só encontrar a porta.

5.6.17

Quartos, aparências

Ter alguns tripulantes de quarto ou ter uma boneca insuflável é a mesma coisa. Excepto na aparência, claro.

Perto de casa

Ontem estava entre Scila e Caribdis. Hoje estou ao lado de Ítaca.

Felizmente não sou dado a comparações. 

Dor de cotovelo e farmaceuticas

Ando tão cheio de comprimidos que se morrer podem vender-me a uma farmacêutica. 

3.6.17

Diário de Bordos - Ao largo da Sicília, Itália, 03-06-2016 / II

A estibordo a Sicília. A bombordo as Eólicas. Foi nestas ilhas que nasceu o vento. Por assim dizer: foram elas que deram o nome ao respectivo Deus. Há ali ventanias súbitas,  furiosas, dementes e super-locais. A meia dúzia de milhas pode não estar um sopro.

São bonitas, as ilhas. Eolo devia ter nascido mulher: parecem seios, como se fossem uma armadilha. "Pões-me esses olhos lúbricos em cima e levas uma rajada que só páras no Samouco", dizem. Ulisses andou por aqui. Em breve passarei entre Scila e Caribdis, espero que com menos incidentes. Já não há remoinhos e as rochas estão bem assinaladas. Não perderei ninguém.

Hoje as ilhas parecem calmas. Eu não: quero chegar a Atenas, ir ao Philos Café, passear em Keramikos e apanhar o avião, ir ao Tabernáculo e ao café Tati e dormir vinte e quatros horas, história de deixar Lisboa entrar-me nos sonhos, na pele, no olfacto (não falemos em tacto, não vão as Eólicas fazer uma crise de ciúmes) e em mim, pousar como o C. R. agora pousa no mar, tranquilo e avança a seis nós e meio como se estivéssemos eu e ele num tapete voador a voar baixinho e devagar, apreciar as Eólicas e de vez em quando olhar para a Sicília passando pelos instrumentos, claro e assim Lisboa vai chegar a mim e eu a ela, desta forma confusa e ansiosa e ao mesmo tempo calma e pacífica, mar chão e vento pela proa, claro.

Mas sem vagas o bicho porta-se bem.

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Uma amiga recente - que suspeito vai em breve deixar de ser recente e continuar amiga por muito tempo - falou-me numa nutricionista vegan. É um maravilhoso e único oxímoro; e pode, sobretudo, servir de ponto de partida para grandes ideias de negócio. Alguém já pensou numa Escola de Culinária Mahatma Gandhi, por exemplo? Ou em comercializar uma Dieta Bobby Sands (resultados garantidos ao fim de um mês. Pagamento adiantado)?

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Fragmento

Um barco é uma pessoa a quem Deus esqueceu de dar o sopro. Nunca se recompôs, claro e agora ou se vinga se tu o esqueces ou te agradece reconhecidamente se te lembrares disso e lhe deres tu essa vida que tanto lhe falta.

Diário de Bordos - Ao largo da Sicília, Itália, de 26-05 a 03-06-2017

Quatro ou cinco dias de mar vêm mesmo a calhar. Com sorte chego a Reggio sem parar antes, vejo o meu amigo Salverio e três ou quatro dias depois estou em Atenas. Dia oito, digamos. Oito dias de atraso sobre o programa.

Podia ser pior.

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Dez nós pela popa. Vamos a motor, claro. As instruções e as vontades são para chegar depressa.

Amanhã teremos a mesma coisa mas pela amura. Pode ser que dê para navegar. Estamos a dois dias da Sardenha, três da Sicilia e quatro da Calábria. Não é precisa muita sorte para chegarmos a Reggio sem parar antes. Só um niquinho e como não a temos tido até agora é possivel que não borregue.

O tempo está chato, encoberto, nem frio nem quente antes pelo contrário. Onde está o Mediterrâneo da minha infância? Em lado nenhum: a primeira vez que o vi e nele naveguei tinha vinte anos.

Cruzei-o primeiro de Sul para Norte (do Suez para o Bósforo a caminho da Rússia) e depois de Leste para Oeste (do Bósforo para Gibraltar, a caminho de New Orleans).

Até conhecer e amar Palma nunca fui grande fã deste mar. Agora sou. Aprecio-lhe a história e estou-me nas tintas para os caprichos.

Dia de pão e de cozinha. Guisado de frango temperado com temperos, grão cozido e pimentos confitos em azeite.

Não tenho a certeza dos resultados. Estou com o período.

[Não foram maus].

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Entrou Sudoeste, quinze nós. Vocês não sei. Parei os motores e vamos a fazer sete de VMG (que por sinal é o mesmo que o SOG. A fórmula da felicidade de um marinheiro: VMG = SOG > 0)

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A receita do frango foi uma vivência que partiu da confluência de dois desejos: comer grão-de-bico e acabar com uns pimentos confitos que tinha na cozinha há mais de dois dias.

Dessa confluência  (já não conseguia vivenciar o raio dos pimentos numa panela em cima do fogão) nasceu a ideia de os misturar aos dois. Comecei por temperar a galinha com alho, cominhos, ervas de Provence, sal e pimenta (o limão ficou em Aguadulce, na loja, coitado). Mais tarde, muito mais tarde refoguei duas cebolas grandes cortadas em rodelas numa parte do azeite que usei para confitar os pimentos. Depois ainda nesse azeite fiz o mesmo à galinha. Juntei um solitário tomate, o grão, cobri com água e deixei cozer.

A galinha era velha e levou muito tempo até dar o braço a torcer, mas valeu a pena a espera.

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O Leste entrou ligeiramente mais cedo do que devia, mas ainda está fraquinho e não nos atrasa. A noite está fria, a Lua em crescente meio tapada por cirrostratos, como se estivesse de negligé ou camisa de noite. Os motores trabalham correctamente. Não há tráfego. A visibilidade está boa, ao contrário de ontem. Bebi um café,  enrolei a eugénia, daqui a uma hora o meu quarto acaba e vou dormir. Se fosse preciso fazer uma descrição  de calma seria isto. Sábado chegamos a Reggio e terça ou quarta a Kalamaki. Mais dois ou três dias e estou em Lisboa.

Tudo é tão simples, não é? Quem se lembra da merda de travessia, dos dias passados em portos à espera de vento, das avarias? Um bom dia vale dez maus; uma noite destas uma vida, ou quase. Quase: ligeiramente faltam-lhe menos frio e mais vento para ré da amura.

(Se bem o frio seja apenas o suficiente para me dar mais gozo quando chegar à cama. Não chega para me enregelar).

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"Assim gosto de navegar", diz-me K., que tem o sentido das evidências. "Assim toda a gente gosta de navegar, K" respondo, que o tenho também mai-lo do exagero. Mas para teres um dia assim precisas de dez dos outros. É a tarifa. Um dia bom para dez normais. E ficas a ganhar, acredita: um dia bom vale muito mais do que semana e meia dos outros. Vale para aí uma vida; ou pelo menos meia, que as há outras.

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Curiosamente no mar não há solidão.   Desaparece como a esteira - ou com ela -.
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Dissonância cognitiva marítima: mar e carneirada de Sul, vento Leste.

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Alguém me incluiu no grupo "vento Leste",  como aquelas pessoas que nos incluem num grupo do Facebook sem que lhes tenhamos pedido nada.

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De certa forma lamento as pessoas que não conseguem estar no mar sem ouvir música ou ver filmes.

Tal como, suponho, essas pessoas me lamentam por me satisfazer com o que vejo e oiço quando olho em torno de mim.

Compreendo-os: o mar é viciante. (Além de que poderiam acusar-me de passar muito tempo a ler e não há grande diferença. Mas há, claro. Ler livros é diferente de ver filmes, sobretudo no que respeita ao barulho).

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Paramos para bancas antes de Reggio. Questão de brio profissional, ingenuidade da qual não consigo desprender-me.