17.5.24

Emoções, alísios e outras tretas

Estou deitado no poço. Trouxe uma almofada para cima, juntamente com um copo de rum (Mount Gay Eclipse, passe a piroseira do nome),  deixei a música (Carmina Burana do Clemencic) lá dentro e vim para cima.

Penso: é de emoções que quero falar. Ou: quero falar de emoções. Quais? O vento ainda não caiu completamente. Este vento tem um nome: alísios. São os alísios que tornam suportável a vida nestas latitudes. Primeira emoção: ser parte dos alísios. Emoção antiga: vem de 1984, a primeira vez que atravessei o Atlântico à vela. Paráfrase: é nas emoções mais antigas que se fazem os melhores sentimentos. Outra emoção: não vou regressar à Europa a navegar. Vou de avião. Que tristeza! Preciso tanto de umas semanas de mar. Outra emoção: mais uma época financeiramente falhada. Quando aprenderei a viver comigo? 

Emoções. A lista, aqui deitado a ouvir o Clemencic Consort, acariciado pelo rum e pelos alísios seria interminável. Sou melhor a acumular emoções do que dinheiro. E a vivê-las, também. Com elas não tenho a relação diarreica - ou hemorrágica, para os menos escatológicos - que tenho com o guito. Consigo mantê-las comigo, em mim. Consigo vivê-las, senti-las, dar-lhes um destino (se tanto é que se pode chamar destino a uma publicação num blogue).

No fundo, tratar-se-ia apenas de não deixar que estas emoções se transformassem automaticamente em sentimentos, mas elas fazem o que querem e de mim um mero espectador.

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas Holandesas, 17-05-2024

Poder-se-ia argumentar que há sítios piores para escrever disparates num blog do que o Lagoonies. Há. Cerca de três milhões, mais coisa menos coisa. Sobretudo a esta hora, em que o rhum punch custa - já aqui o disse - dois euros se for tomado aos pares ou a múltiplos. O dia cai na laguna, a luz do poente esgueira-se por baixo dos tecidos que eles pões para os clientes não ficarem encadeados, a maioria das pessoas está sentada em redor do balcão e à minha frente tenho uma sequência de mesas nas quais a luz escorrega e chega a mim com trejeitos. A música é boa - não fosse o marido da O. músico [não é] - mas demasiado variada para o meu gosto . É daquelas listas feitas para agradar a todos menos aos apreciadores de música clássica. De maneira é aqui que venho. Às vezes tenho sorte e servem-me o punch num copo grande sem gelo, doutras nem tanto e reduzem o copo à dimensão adequada (para eles. Para mim não). Nem reclamo nem peço para acrescentarem spiced rhum. Tão pouco reclamo por me trazerem a bebida mal me sento, sem ter sequer de a pedir. É uma prática que não aprecio muito, mas enfim. Paciência. 

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Gosto de navegar em tudo quanto é embarcação (de recreio. Marinha mercante, de guerra e pesca não obrigado) e dentro dessa navegação prefiro a de vela, por muita tentação que tenha de mudar definitivamente para o motor, por razões carcássicas e financeiras. Há várias razões pelas quais gosto de navegar à vela e uma delas é que a vela é um continuum no tempo. Se nós pegarmos no primeiro homem que se lembrou de pôr um pedaço de pano num mastro e o pusermos numa embarcação moderna, ao fim de meia hora ele reencontrará os movimentos, as funções de cada cabo e cada objecto e saberá orientar-se a bordo. Há uma linha que vem dos primórdios. Uma escota hoje é diferente da escota de há cinco mil anos, mas faz a mesma coisa. O mesmo se pode dizer de uma adriça, de um amantilho ou de um leme - que durante muitos anos foram remos, de resto, de onde o steerboard - estibordo de hoje.

Tudo isto para explicar porque gosto tanto de embarcações tradicionais. Não as oponho às modernas, longe disso, apesar de saber as de hoje mais rápidas e mais seguras do que as de antanho. Gosto de embarcações tradicionais porque a cada momento da história reflectem tudo o que o saber náutico da época permitia - e foi esse saber que nos trouxe ao de hoje.

Por isso fico encantado com todas as iniciativas que promovem as embarcações tradicionais. Dentro destas, as baleeiras dos Açores ocupam um lugar muito especial. São lindas, rápidas, elegantes e a caça à baleia (enfim, ao cachalote) está para o mar como as touradas para terra: a desproporção de forças é enorme. Não há actividade marítima em que a noção de «elo mais fraco» seja tão evidente como na caça ao cachalote dos Açores.

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O. apareceu no Goonies. É o seu aniversário. Ofereci-lhe as fotografias que fiz - ou melhor o uso delas, se quiser. Quem dá o que tem.

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ADENDA - Por causa do aniversário da O., hoje bebi três rhum punch. Pobre sempre, miserável nunca.

16.5.24

Diário de Bordos - Cole Bay, Sint Maarten, Antilhas holandesas, 16-05-2024

Do S. D. ao Lagoonies (Goonies para amigos e família) são cerca de dez minutos em bote. Talvez quinze, no máximo. Venho cá durante a happy hour (cada vez gosto menos desta designação. Significa que as outras vinte e três são infelizes?) porque o rhum punch custa dois euros (caso se bebam dois. Um só não sei quanto custa). Não é tão bom quanto o recordo. Ou então a razão é outra: a O. recusava-se a fazer-me o preço da tal hora feliz porque dizia que os meus punch eram mais caros do que a norma. Agora vergo-me às circunstâncias e não peço nada de especial. É o que vem no copo - sem gelo, porque a malta aqui já sabe que sou mais ou menos alérgico à água, seja sob que forma for. Acho espantoso: bastou-me dizer uma vez. Outra razão pela qual frequento o lugar é a luz do fim do dia. Este café tem uma forma de a absorver que é um desafio para qualquer fotógrafo. E depois - no fim, claro - vem a memória. Essa treta de que não se deve voltar a um lugar aonde se foi feliz é isso mesmo: uma treta. Já fui feliz aqui e se hoje não o sou tão pouco sou infeliz e na verdade estou-me nas tintas para a léria da felicidade e ainda mais para a dos seus lugares. Gosto da luz deste café, da comida quando cá como, do serviço, do rhum punch (se bem pudesse ser ligeiramente melhorado, bastaria arrefinfar-lhe com mais spiced rhum mas agora fica como está), gosto da patroa que é uma pequena francesa viva e espigadota e nunca cá está quando eu venho - talvez veja isto como a unhappy hour, quem sabe? - gosto do trajecto para cá e para lá, gosto da ideia de que para o ano posso vir trabalhar para Saint-Martin se nada se interpuser entre aquilo que quero hoje e aquilo que poderei daqui a quatro ou cinco meses, gosto de tudo menos de algumas coisas que não têm nada a ver com o Goonies e não me apetece mencionar agora.

Para dizer a verdade são poucas as coisas que me apetece mencionar agora: a luz, o rhum punch, a beleza simultaneamente simples e elaborada - ou falsamente simples - do sítio. Quando voltar para bordo vou fazer pão. Tenho o barco cheio de farinha. A esta hora devia estar quase a chegar a Ponta Delgada e ainda aqui estou. Podia ser pior, eu sei. Podia estar no Marin, por exemplo, para onde irei muito em breve. Ou na Baixa da Banheira. Ou noutro lugar qualquer desses que não conheço. A geografia da memória reserva surpresas a quem nela se aventura. Assim, olha: vai fazer pão, pá. Amanhã não precisarás de sair de bordo para o comeres ao pequeno-almoço. Esquece a memória: é esse o destino dela, de qualquer forma, não é? É. Um dia não passará da palavra, vazia para ti e cheia para os outros. Uma espécie de vasos comunicantes. Esvazia-se para uns, enche-se para outros. Não são é os mesmos. Pensa no pão, daqui a duas ou três horas, quente a sair do forno, manteiga da Bretanha por cima, uma rodela de chouriço. 

Troca-se: trabalho «normal» por pão com chouriço, rhum punch no Goonies, passeios de bote na laguna de Saint-Martin, melancolia flutuante e algumas dúvidas sobre o futuro.

Não acreditem na troca. Não há trabalho «normal» que valha isto tudo.

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A happy hour acaba quando tenho de voltar para bordo por causa do fim da luz. Atravessar esta laguna à noite é uma seca. E ainda há quem não acredite em coincidências.

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ADENDA

O pão ficou bom, apesar de ter sido feito um tanto ou quanto atabalhoadamente. Fui ao supermercado comprar cerveja e no caminho decidi que isto hoje vence vinho tinto. Resultado: um Saumur a seis euros que vale isso, nem mais nem menos. Não é exactamente uma pomada, mas não fui enganado. O Saumur tem a vantagem de se poder beber fresco sem perder muita qualidade. (Da pouca que tem, quero dizer.) A coisa acabou por resultar: o cheiro do pão, o vinho tinto (não bebia há mais de um mês), Officium do Garbarek a tocar, temperatura agradável - vim jantar para o poço, lá dentro estava insuportável, com o calor do forno - e o sono, que gentilmente se anuncia.

Gosto de fazer pão e devia fazê-lo mais vezes.

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O gajo da lancha que vai e vem a St.-Bart e fica atracado perto de mim chegou há bocado e está a lavar o bote, apesar de ser noite cerrada. Infelizmente esqueceu-se das luzes de navegação acesas - merda que, diga-se de passagem, acontece a qualquer um.

Gostava de ser skipper de uma lancha a motor, mas maior. Como a Gulf Porsche que está ali ao fundo. Sessenta pés, pelo menos. Semi-rígido. Coisa para dois mil por dia mais gasóleo e comida. Mais dinheiro, mais velocidade e menos trabalho. Parece-me uma boa combinação, por pouco que ligue à velocidade.

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O pão devia ter levado mais sal. Está demasiado OMS para o meu gosto. (Com a manteiga salgada não se nota.)

Fragilidades inexpugáveis

Ou: como fazer um castelo inexpugável com uma baralho de cartas? Com um molho de fragilidades atadas com um cordel como os de salsa nos mercados?

Poesia de emergência

Incapaz de adormecer um gajo levanta-se e vai ao frigorífico buscar uma cerveja. Faz dois ou três comentários disparatados no FB - a hora atenua o disparate - e aparece-lhe uma palavra na cabeça. De onde vem? O gajo não sabe.

Mas sabe aonde o leva. A um poema de Manuel Gusmão que tem guardado no Google Keep porque de vez em quando precisa de poesia tanto como de sono, ou cerveja, ou disparates avulso:

«Revolução orbital: vai-se a rosa transformando
na coisa múltipla, amante e amada, na acção
que assim a faz e nos acidentes mínimos – paisagens, 
estações dos dias e das noites, dos anos da história.
Ondula no cérebro a fronteira que as margens da luz
desenham. E a rosa é uma hélice que vibra
no ar que a respirar obriga(s): torção dos pulmões,
do tronco e do sexo, dos nomes e dos vocativos
que se respondem: como um coração que deflagra
a rosa faz do ar que te falta a terra de onde nasces
e o chão sobre que danças.»

De Gusmão a Tamen vai um passo:

"Não durmas, que há uma escada
Para uma noite maior.
Não morras, que há uma espada
Que mata com mais amor.

Pássaro de todos os ramos,
Ó minha esquina tão esquiva,
A verdade é que afirmamos
Pela dupla negativa.

Querer-te: não querer e não querer.
Não fugir: ouvir o vento.
Amar-te é nao me esquecer
Da minha casa e assento."

"Um filho como um verso: neste branco
do mundo, o universo. Nos cinco dedos
da mão todos os ventos, e a rosa
que os respira e dá, vertiginosos."

"Nada a fazer, amor: tu és nascida,
e eu também, por graça ou majestade;
de lados longe e de que portos parte
esta morte insolente e assumida
que se nos dá nos dando a maior parte
do pão que se mastiga e bruxo há-de,
além de miga, ser de vida a vida?"

15.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 15-05-2024

De maré cheia a maré baixa, desta a maré vazia e agora... Agora resta-me esperar que o nível dos mares suba por aí acima, como bombeiro por uma escada de nós. Estou no zero hidrográfico. Subzero astronómico. Não tarda ando pelas ruas de escafandro. Botas de chumbo já as tenho, com o que me custa mexer-me. E óculos embaciados também, cortesia desta porra deste olho direito, que segue o exemplo do esquerdo aqui há uns tempos. A minha guerra com a carcaça tem altos e baixos, como o nível da maré. Feliz ou infelizmente os ciclos não coincidem. Não sei o que seria melhor: tudo mal e tudo bem ao mesmo tempo, ou tudo caótico sempre? Deixo a questão aos filósofos, pensadores e outros frequentadores da taberna do Tio Rijo.

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Nove e vinte da noite e ainda aqui a escrevinhar disparates em vez de estar na cama à procura da melhor  posição para adormecer. É que o problema não é só com a carcaça. É com a electrónica também. O computador está cada vez mais reticente a pegar e tem as portas USB inoperacionais. O telefone demora horas a carregar, apesar de lhe ter trocado a placa de carregamento há pouco mais de uma semana. Cinquenta euros para o galheiro. Já fui reclamar, claro, mas o aldrabão disse-me que a culpa é da humidade do barco. O power bank tão pouco vai bem. Numa coisa dou razão ao filho da mãe que «reparou» o telefone: aquela bátega de água de há uma semana deve ter feito mais estragos do que os que vejo no S. D. 

Se fosse a pôr em gráfico a minha vida obteria uma belíssima imagem do caos. 

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Felizmente tenho os disparates e posso rabiscá-los. É como o óleo que os antigos deitavam no mar para aplanar um pouco as vagas. Punham uns sacos cheios de óleo no costado, com uns furos, e à medida que o navio ia derivando para sotavento o óleo acalmava o mar a barla. Por incrível que pareça funcionava. Comigo é mais as teclas do computador, se bem também estejam a ageniar. O problema da colocação de uma vírgula desvia-me a atenção dos outros, que subitamente passam ao segundo plano.

Abençoadas vírgulas. Bem dizia o Emílio: «Sonho com um mundo aonde se morreria por uma vírgula.» Eu não morro. Ressuscito.

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Para o jantar ia fazer uma salada de spaghetti, mas aquilo ficou tão bom que a comi ainda morna, antes de ir para o frigorífico. O problema é que estou a comer cada vez menos e ainda não aprendi a cozinhar nem para quando comia normalmente. Tenho salada para dois anos, se a comer todos os dias ao almoço e ao jantar e uma vez por semana ao pequeno-almoço. Ia fazê-la com fiambre, mas tinha chouriço a bordo com uma data limite mais cedo e resolvi-me por este. Não que ligue muito às datas, mas a verdade é que detesto deitar comida fora e não me apetece nada correr riscos. Sobretudo porque o frigorífico já ficou desligado algumas vinte e quatro horas quando apanhámos o primeiro arraial. 

Era a comida da travessia. Esta vai ser de avião, outra vez. Porra! Dupla porra!

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O S. D. tem água entre o contra-molde e o casco, quase de certeza. Isto não são barcos para atravessar uma poça de água, quanto mais o Atlântico. Servem para fazer piqueniques aos fins-de-semana com a familia. E ainda há quem se admire de eu ter saudades do «meu» P., que não passa de uma cabana de madeira rústica ao lado desta luxuosa e confortável residência secundária.

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Quarenta minutos ao telefone com a M. Ao princípio era a rainha das vítimas, como de costume. Ao fim estava aguerrida e cheia de força. Vale a pena ouvir meia dúzia de disparates para obter este resultado, não vale? Vale. A S. sempre disse que sou melhor psicólogo do que muitos colegas dela.

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Em resumo: uma merda de uma éoca, salva pela doutora C. D. e pelo meu filho T. Quem é que falava em caos?

14.5.24

Como um refugiado

«Every heart, every heart
to love will come
but as a refugee
»

L. Cohen, in Anthem

Regresso regularmente a Cohen, como um refugiado.

13.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 13-05-2024

Fui à Sunsail procurar trabalho para a próxima época. Amanhã vou à Tradewinds. Estou farto destes invernos infernais, sem cheta.

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O mais apropriado seria dizer que estou farto de mim, farto de ser como sou, inviável, peixe fora do aquário. Não vale a pena: não mudarei nos vinte anos que me restam de vida. Ou quinze, com sorte.

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Um higrómetro é um instrumento de trabalho básico. Serve para medir a humidade num material qualquer: fibra de vidro, por exemplo. Ou madeira. Ar. Nesta ilha não há um. 

Não acredito. Há-de haver. Mas nenhuma das cinco pessoas / entidades com quem falei hoje tem um. Duas já tiveram, mas um ardeu num incêndio e outro avariou-se e não os substituíram. Isto numa ilha que é um dos pólos mais importantes do yachting nas Caraíbas (em português dir-se-ia náutica de recreio, mas não é a mesma coisa e fica como está).

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V. diz-me que a época em Palma está péssima. Tenho de regressar rapidamente à Lua, de onde nunca deveria ter saído.

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Tempo: as máximas anda não começaram a subir. Mantém-se nos trinta, trinta e um. Em contrapartida as mínimas vieram por aí acima: vinte e sete, hoje e nos dias que aí vêm. A humidade também disparou. Pergunto-me como vai ser o Verão.

Pergunta sem sentido. Ninguém sabe. Ou todos sabemos: quente, abafado, húmido e pluvioso. 

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As saudades do "meu" P. - que não me largam - transformam-se pouco a pouco numa imperiosa necessidade dele. Ao chip do português, que há tantos anos peço me extraiam, junta-se o dos barcos. O Musk não pode inventar uma máquina de extracção de sinapses? Não digo todas, dão jeito. Mas algumas. As que ou não fazem falta ou são perniciosas. Tenho três a tirar fora, Elon.

O mundo, representação pictórica

A ideia é essa: partir a vida aos bocadinhos e viver cada um deles como se fosse o único. Todos ao mesmo tempo, mas cada um um só. O Tiago Taron faz isso nos quadros dele e é por isso que gosto tanto do seu trabalho. Também gosto da Bárbara Assis Pacheco, mas essa não vai aos fragmentos da vida. Vai à essência do que pinta e assim vai à essência da pintura. A Mariola Landowska é diferente destes dois. É uma pintora polaca que vive em Portugal há muito tempo e viajou pelo Brasil e pinta a alegria, a leveza, usa cores vivas. Há outros, claro, mas estes três são os meus pintores favoritos. 

Mas era no Tiago que pensava quando comecei a escrever. Naqueles pequenos quadrados ou rectângulos, nas linhas com pontos de fuga para lá do horizonte. Pequenos segmentos de tempo, de espaço, o infinito cortado em pequenas porções, uma espécie de Aleph em cada quadro.

De tudo o que não sei fazer, pintar e cantar (ou compor música) são o que mais me dói. 

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Tento dividir a minha vida dessa forma e quase consigo. Quase. Nem sempre. O mar meteu-se pela exposição de fotografia, por exemplo. Inundou-a. Afogou-a. A literatura (acho que já posso chamar literatura àquilo que faço, sem me envergonhar nem achar patético) mete-se por todo o lado, por todas as frinchas, aquelas de que falava Cohen. É por ela que entra a luz. O mar, os barcos, este universo de que conheço a língua e os silêncios, que sei interpretar talvez porque é para ele que apontam as linhas que o Tiago pinta quando eu as vejo. Se um dia a Bárbara pintasse o mar tal como eu o vivo as pessoas perceberiam muito melhor o meu mundo do que com os meus balbuciamentos, a minha "inabilidade fatal" (aspas porque cito. Rimbaud, a quem possa interessar).

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Estou em Saint-Martin, o S. D. tem uma avaria, tento resolvê-la, imagino que vivo um quadro composto por fragmentos da realidade e o meu trabalho consiste em juntá-los e dar-lhes um sentido.

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Desse quadro está ausente um bocado: o que representaria os meus livros, também eles fragmentos, também eles um todo com significado para mim, uma vida.

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Faltam os netos. Crescem sem o português que têm de conhecer, porque se não souberem falar português faltar-lhes-á um fragmento importante da sua história, da sua vida.

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Falta o cansaço, a coisa que agora mais me representa e insiste em fugir pelas cores vivas e alegres da Mariola, quando penso nelas.

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Falto-me eu, em suma.

12.5.24

Portaló e outras considerações

Um portaló é aquilo que nos leva ao navio ou à embarcação. Pode ser uma escada, uma prancha, uma "passerelle". É sempre um portaló. "Fazer da quilha portaló" é virar o navio de pernas para o ar. Há mais expressões com portaló, mas agora não me lembro delas. Penso neste termo, de que tanto gosto: portaló. É a porta que te faz entrar no teu mundo, porta que passas desde miúdo, desde muito antes de conheceres a palavra. Desde muito antes de saberes que este é o teu mundo.

Não são as palavras que fazem o mundo. É este que as faz e lhes dá sentido. O princípio não é o Verbo. É o que este designa.

O princípio é portaló. O resto vem depois. Os cheiros, os corredores que te pareciam labirintos, as escadas que ias subindo e que te levavam àquilo que para ti era o céu. Hoje não sobes essas escadas. Desce-las. Mas são as mesmas, o céu é o mesmo. Só mudou de tamanho, de cheiro. O teu céu agora não tem corredores nem anteparas de fórmica nem placas nas portas a dizer primeiro piloto, messe dos oficiais ou merdas do género. Mas é o mesmo: um céu que flutua, navega, requer atenção e carinho. É um céu ao qual te dás muito antes de receberes o que ele tem para te dar.

Ao qual te entregas como se céu e inferno fossem sinónimos.

São. 

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 12-05-2024

Espremendo bem o dia, que sai dele? Coisa pouca. A água continua a entrar no S. D., mas cada vez mais devagar. O Cadisco estava aberto e comprei uma garrafa de Mount Gay Eclipse por dezoito euros e qualquer coisa. Comprei também dois maracujás, o primeiro dos quais bóia agora no copo de Flor de Caña quatro anos que comprei recentemente no libanês pelos mesmos dezoito euros (não é verdade, é efeito literário. Custou-me um euro menos). Oiço Carlo Gesualdo enquanto como os ovos que sobraram do almoço acompanhados por uma tomatada bem puxada - continua a puxar, de resto. Pergunto-me o que sairá amanhã do estaleiro, dos seguros e do proprietário, entidade fulcral no meio disto tudo. Continuo a massacrar-me por não conseguir descobrir de onde vem a puta da água. Gozo a minha novel solidão com um misto de alívio e melancolia. Fartei-me de arrumar e limpar e arrumar e limpar outra vez: um marinheiro não vai para o mar com a sua embarcação suja e não apanha um avião com a sua roupa de mar por lavar com água doce. Lavados e secos, roupa, sapatos e botas. Pronto, foi isto. Parece pouco e é pouco.

Ah, esquecia-me: o meu olho direito, que começou a ageniar há uns meses, está definitiva e oficialmente a precisar de reparação. É a tal história das cerejas em cima do bolo.

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São nove e meia da noite. Faço um café para me ir deitar. (Mentira: faço um café porque quero provar o Mount Gay e apetece-me um café. Mentira. Faço um café porque não quero ir já para a cama e assim tenho de esperar que ele arrefeça. Mentira: faço um café porque me apetece um café, simplesmente. De quantas mentiras é feita uma acção simples como fazer - e beber - um café? Que agora arrefece, mirado com um certo desprendimento pelo rum. Estatisticamente este acabará antes daquele, a menos que encha de novo o copo.)

De repente isto tudo puxa-me para a melancolia e imagino o S. D. a sangrar, mas para dentro. Efeitos precoces do café, sem dúvida.

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Estou completamente farto de tanto plástico, coisa que me parece injusta porque sou com certeza a pessoa que menos se preocupa com a saúde do planeta. É simplesmente que acho enjoativa esta ubiquidade. Não se dá um passo sem tropeçar numa merda qualquer de ou com plástico. 

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Não consigo perceber esta coisa do festival da canção da Euro qualquer coisa. Eurovisão? Não faz sentido nenhum. Não me lembro de ter ouvido uma única música vinda dali nem, muito menos, de ter visto um espectáculo. Nem por um minuto. Não me lembro. No FB vejo algumas fotografias de um monte de palhaços vestidos de panilas ou ao contrário, panilas vestidos de palhaços. (A palhaçada é pior do que a panilada, diga-se de passagem. Quanto a isso, continuo como sempre fui: cada um leva aonde quer e dá aonde pode.)

Não percebo como é que tanta gente vê aquilo e comenta as músicas, os músicos, as classificações e Deus sabe mais o quê. Um dia hei-de ouvir uma música ou duas, só para poder falar. Afinal aquilo é um concurso musical, não de aparências.)

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Tal como previsto, o café acabou antes do rum. Posso ir deitar-me em paz. (Enfim, se é que se pode chamar paz a este ciclone.) 

Anjos, demónios

Eu não tenho um anjo da guarda. Tenho um demónio da guarda que de vez em quando adormece em serviço.

11.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 11-05-2024

Os tripulantes desembarcaram agora. Fui deixá-los ao novo barco e ficámos de nos encontrar no Lagoonies, para onde vim pôr as escritas em dia e dar de beber à melancolia. Gosto muito de montanhas russas, mas as verdadeiras, de feira, com altos e baixos físicos e carrinhos que vão por ali abaixo a toda a velocidade e enfrentam as subidas com uma facilidade desconcertante. A minha montanha russa é a de sempre: emocional e financeira. Dessa gosto menos.

Apetece-me fazer o balanço da época, mas como ainda é cedo - só termina quando chegar a Lisboa, seja de que modo for - limito-me a um resumo muito resumido. Financeira e meteorologicamente foi uma merda, do ponto de vista da saúde correu mais ou menos bem e ter tido a oportunidade de conviver com o meu filho de uma forma que não fazia há anos uma maravilha. A ver como serão os dias que tenho pela proa. O mínimo que se pode dizer é que não se anunciam bonitos.

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Dois rhum punch no Lagoonies: quatro euros. «Happy hour», explica-me a jovem empregada perante o meu ar surpreendido. Deixo-lhe cinco, o preço de uma cerveja no Arawak. Acresce que os punch são óptimos. 

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Comprei mangas. A primeira não era grande coisa mas soube-me divinamente. O calor a sério ainda não chegou mas a humidade sim. Esta é poca fartou-se de chover e o vento foi sempre demasiado forte. 

Estou cansado.

(Cont.)

"O acaso e a necessidade"

Não sou grande adepto da teleologia, a ideia de que as coisas acontecem com um objectivo. Tão pouco acredito no voluntarismo, no poder da vontade. Não basta querer. É preciso querer, poder, sorte... A receita da vitória é complexa, a proporção dos ingredientes varia. O motor do universo é o acaso, que por vezes se faz acompanhar da sorte e ou da competência e dá bons resultados. Outras vezes o combustível é o azar, a incompetência,  a ganância e temos asneira garantida. Um exemplo recente desta mistura fatal foi a gestão da Covid-19.

Reconheço contudo à teleologia e às suas numerosas primas conspirativas uma qualidade: são  reconfortantes. Se bem eu não perceba de todo qual o ganho que alguém pode extrair de me ver bloqueado em Saint-Martin com o bote a meter água, ou qual o objectivo, ficaria extremamente satisfeito se alguém me demonstrasse por a mais b que estou aqui porque se não estivesse morreria afogado no meio do Atlântico, por exemplo. Ou que há uma conspiração dos estaleiros da ilha e dos iatistas aqui presentes para me reterem e me retirarem os tripulantes.

Claro que acredito piamente que se rezasse muito à Virgem à água deixaria de entrar - tal como se jogasse ao totómilhões ganharia o primeiro prémio. Bastaria querer, em qualquer dos casos. 

Não vou fazer nada disso. Vou esperar por segunda-feira. O calendário é imune ao acaso e não tem a mais pequena ideia, opinião, vontade ou desejo sobre o que eu vou fazer com os dias. 

Tenho que estudar melhor as interacções dos deuses e dos demónios (ou de Deus e do demónio, para os monoteístas). Ainda não percebi se jogam uma espécie de ping-pong cósmico em que cada um detém a bola à vez ou se fazem parte da mesma equipa, alternando de vez em quando aquele que marca os golos.

9.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 09-05-2024

O dia começou sur les chapeaux de roues. A toda a ganga. A toda a velocidade. Convivo mal com mistérios, com entradas de água que não se encontram. Às seis e meia já andava a levantar paneiros, a pôr Betadine numa possível fonte, a preparar-me para mergulhar, a esvaziar completamente o paiol da amarra (não exactamente nesta ordem, claro). Continuo sem saber de onde vem o raio da água, coisa que me tira o sono à noite e a paz durante o dia.

Os tripulantes arranjaram maneira de se ir embora noutro barco. Eu fico, enquanto puder. Tratar de mim está muito alto na lista das coisas a aprender e nunca de lá sai, mas pelo menos já me aparece na mente quando me pergunto o que fazer, tipo geiser intermitente. Pensa em ti. O bote não é teu. Não sigo - ainda - estas injunções, é certo. Porém reconheço-lhes o bem-fundadas que são. 

8.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 08-05-2024

Esta ideia de que um bolo só aguenta uma cereja tem de ser revista. Cada vez me convenço mais de que cabem muitas mais cerejas em cima de cada bolo. A chuva não pára mas isso faz parte do bolo. Amargo, é preciso dizê-lo? As cerejas são outras: hoje é feriado em França, dia da «Vitória» (aspas porque é irónico, refere-se à «vitória» da França na Segunda Guerra Mundial) e amanhã também: Ascenção. Sexta metade da população do país (ilha incluída) faz ponte e só por milagre terei notícias antes de segunda-feira.

Entretanto já lancei os seguros. O óptimo é inimigo do bom e com esta sucessão de feriados e fim-de-semana prefiro ir directamente para a pior das hipóteses. 

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O palito para as cerejas não pára de crescer. Vá lá que ao menos o bolo é grande e aguenta-as todas. Ele são as portas USB do computador, ele é o telefone, ele é o P. que sem mim não quer saber de mim. 

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Louvada seja a ironia. Que seria de mim sem ela?

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Fiz pão e ficou bom. Levei uma marretada com uma proposta do proprietário que me deixou completamente abananado (abasourdi, para quem preferir a língua local). Estou infinitamente grato ao S. D.: é a única coisa neste momento que me dá um rumo. Sei o que hei-de fazer porque sei o que tenho de lhe fazer. Se me pusesse no exterior de mim veria um velho marinheiro a bambolear no cais, garrafa de rum vazia na mão esquerda e cigarro apagado na direita. No outro dia disse ao Jim que aprendi finalmente a escolher os meus clientes. Wishful thinking, Luisinho. Não reclamo: para começar é tarde e para continuar tenho culpas no cartório. Se a mesma coisa te acontece vinte vezes a culpa não é das coisas. É tua. Isto sem esquecer que culpa ou não, a responsabilidade está lá, do teu lado. É coisa que nem te nem se abandona. É tua e só tua. O tempo em que tu eras vítima da família, da sociedade, da Igreja, do código genético, de uma mãe assim ou de um pai assado acabou faz uma data de anos. Portanto, meu caro, agarra-te ao brandal, mija para sotavento e volta para o poço. Quando isto passar poderás beber um rum. Tens uma vantagem: já por aqui navegaste muitas vezes, por nova que seja a proposta do outro. E reflectindo bem, nem sequer é assim tão novidade. É só inesperada, vinda de quem vem. Vai deitar-te, homem. Vai ler, vai dormir, vai sonhar. Sempre te distrais um bocadinho e deixas o mundo em paz.

7.5.24

Diário de Bordos - Marigot, Saint-Martin, DOM-TOM França, 07-05-2024

Não pára de chover e apercebo-me de que há quase duas semanas não escrevo no DV, duas coisas que só muito medianamente aprecio. Com a chuva pouco me preocupo, para além da ocasional saraivada de impropérios a ela dirigidos. Não mudam nada, claro, mas pelo menos aligeiro-me. Já no DV penso muitas vezes. Preciso de escrever isto, contar aquilo, como vou pôr isto em palavras?, etc. Depois não faço nada - nem mesmo um palavrão dirigido a mim próprio. Tem havido coisas a mais, é o que é. Os acontecimentos atafulham-se à porta e acabam por não deixar sair nem um, como numa discoteca cheia de gente em noite de incêndio. A analogia não é aleatória: tem sido realmente uma sequência de incêndios, se bem diferentes uns dos outros.

Começo com o Til, um etíope «clandestino» que ia trazer para Lisboa. Aspas em clandestino: um gajo querer uma vida melhor para si e para os seus filhos («Tens filhos, Til?» «Não, mas quero ter.») não é clandestino. De resto, geralmente e salvo situações particulares ninguém é clandestino. Til é um engenheiro mecânico especializado em engenharia automóvel, nobre como todos os etíopes (pelo menos os que até agora conheci), educadíssimo, ambicioso e inteligente. Passou umas semanas a bordo comigo. Ajudava, era prestável, fazia o que eu lhe pedia para fazer. Tinha uma namorada francesa, uma miúda com quem falei ao telefone algumas vezes, impecável ela também. Til dizia-me que o seu sonho era ir para os Estados Unidos, mas como tinha encontrado a H. ia para França primeiro. Largámos do Marin numa segunda-feira porque no domingo estávamos convidados para um almoço em casa de uma senhora etíope que vive em Fort-de-France. Foi um almoço memorável. O marido dessa senhora é um antigo oficial da marinha francesa agora na reforma com quem mantive uma conversa ininterrupta durante as quatro ou cinco horas que estivemos juntos. Dois dos outros convivas eram um casal também misto (a senhora da Etiópia e o marido martiniquês). Ele é padre na igreja ortodoxa etíope. Abriram recentemente uma loja de comida para fora. Na Martinica os restaurantes exóticos têm bastante procura. Desejo todo o êxito do mundo a esse casal encantador, responsável pelas iguarias do almoço - e de parte da viagem, deram-nos um monte delas. 

Percebi que alguma coisa ia mudar porque no dia da nossa chegada a St. Martin não largou o telefone. No dia seguinte desapareceu o dia todo. Regressou à noite, para me anunciar que afinal ia para a Guatemala. Encontrou um cata que o levaria para lá mediante a módica quantia de dois mil dólares. É aqui que a parte feia da história começa. O gajo do cata é um inglês que anda fugido à justiça do seu país porque o governo quer ficar-lhe com os filhos e ele não quer ficar sem eles. Até aqui tem toda a minha simpatia. O governo inglês tira os filhos às pessoas com uma facilidade inaceitável. O que acho igualmente inaceitável é cobrar dois mil paus mais comida e combustível para uma viagem que na pior das hipóteses vai levar dez dias e à popa. Eram dois «passageiros»: havia outro compatriota do Til, mas não se conheciam. O inglês era feroz: não deixou o rapaz ir para bordo enquanto não tivesse a massa na mão. É uma exploração desumana. Mas enfim, ele lá foi, deixou-me saudades e um grande desejo de que a vida lhe corra bem. Merece.

Depois estas tentativas de saída de St. Martin. A primeira estava a cento e poucas milhas e tive de voltar para trás porque fiquei sem doze volts. Apanhámos força sete, o que sendo muito continua manejável. O que estava como raramente tenho visto foi o mar, cavado e caótico. As vagas vinham de todas as direcções, rebentavam-nos em cima, o pobre do S. D. gemia e abanava como se estivesse em cima de um touro daqueles dos rodeos americanos. Viemos a governar à mão, com água salgada nos fundos mas pouco preocupante. Não era muita. No regresso partiu-se o boomvang (em português chama-se burro). Não me preocupei muito com a água. Tratei de reparar a electricidade (Mike Quinn, se um dia algum dos meus leitores precisar de um electricista em St.-Martin. O homem é excepcional, uma personagem. Já lá vamos) e o burro (FKG, uma das melhores empresas de rigging de quem tive o privilégio de ser cliente. Conhecia-os de estadias anteriores. O trabalho bem feito suscita-me uma espécie de sentimento amoroso. Ver alguém trabalhar bem é como ver num museu as peças dos grandes artistas). 

Largámos a uma sexta-feira. Nunca acreditei em superstições e há muito que deixei de as respeitar por piada ou por amor à tradição. Desta vez devia ter respeitado: nessa noite apanhei um dos maiores arraiais de porrada de que tenho memória. O vento nunca passou de força oito, talvez nove às vezes mas a chuva era absolutamente infernal. Parecia que estava a ser lapidado com pedras pequenas atiradas por um monstro furioso e bêbedo. Ficámos sem electrónica e voltámos para trás. Desta vez não esperei para ver se conseguia resolver o problema. Fiz meia volta (o vento já tinha caído mas nem com o motor consegui  virar de bordo ou cambar. Tive de fazer uma série de tentativas até que lá consegui virar por davante, genoa toda enrolada, motor nas duas mil rotações, a aproveitar a descida de uma vaga). Viemos outra vez a governar à mão e com os fundos cheios de água, agora numa quantidade preocupante. O boomjack partiu-se outra vez. A solução para a electrónica foi encontrada rapidamente, a do burro também, falta encontrar a origem da entrada de água.

Procurei por todo o lado, enchi os fundos de papel, sequei e voltei a secar e sequei outra vez, dei a volta ao bote, esquema de passa-cascos e machos de fundo na mão, um a um, metódica e sistematicamente. Não consigo encontrar. Parece que estou a tentar fazer um buraco na parede batendo nela com a cabeça. Não há maneira. Reduzi as hipóteses todas a uma mas preciso de informação da Jeanneau, de maneira estamos aqui à espera de peças (a placa de circuitos da electricidade que deixou de trabalhar na primeira saída e uma caixa para a electrónica que se despediu de mim com um estalido e um cheiro a queimado pouco depois do temporal, por causa da água nos fundos), à espera da resposta do estaleiro e a rezar para que possamos prosseguir a viagem por mar e não de avião. Da primeira vez saímos a vinte e nove de Abril e avançámos três lugares na marina.

E é isto. Personagens - um engenheiro automóvel etíope que sonha com a América e uma espécie de hippie que percebe de electricidade e electrónica como ninguém mas não tem telefone, tem uma barba até ao umbigo, anda descalço e vive numa épave linda, de madeira, na qual já fez mais de duzentas mil milhas mas está num estado de manutenção deprimente - mau tempo e pior tempo a que se seguiu mau tempo de novo, a velha espera por peças, que é o inferno do marinheiro e a ideia - antiga, muito antiga - de que o que não tem remédio remediado está. É só esperar. De algum lado virá a luz.

E acabará a chuva.