31.5.18

Yuri

- E se fosses brincar com o caralho do teu marido em vez de brincares com os meus sentimentos? - Não deve haver muitas relações a começar assim. A minha com o Yuri começou.

É pedreiro; faz obras em casa das pessoas. Quer deitar uma parede abaixo? Aumentar a cozinha? Descobrir o que a prende ao seu marido (ou agora se desprende)? Cimentar o seu casamento? Deitá-lo abaixo de uma vez por todas? Chame o Yuri. Ele trata de tudo. Não fala muito bem português, ainda; por vezes é preciso um estômago forte para o ouvir. Não é sequer particularmente bonito: nada daqueles deuses eslavos loiros, altos e esbeltos.

José - o marido em questão - é professor de filosofia na Universidade. Especialista em Kant, incapaz de responder "quatro" se alguém lhe perguntar "quanto é dois mais dois?" Começa por dizer que "dois é um mais um, dois mais zero, quatro menos dois ou quinhentos e oito menos quinhentos e seis. A qual deles te referes?" Depois explica que mais é o contrário de menos; que uma multiplicação pode ser vista como uma sucessão de adições. Diverge para explicar que adição em matemática ("ou álgebra") é diferente desse neologismo-anglicismo-palavra-a-evitar porque temos"dependência"; volta ao tema inicial para afirmar que a maioria dos autores aponta para "quatro", mas quando chega aí tu já esqueceste a pergunta inicial e estás a sonhar com um café, ver se acordas.

Eu sou "doméstica". É a primeira vez que engano o José. Ou qualquer outro dos poucos que o precederam, de resto. Isto não é bem verdade. O que é "enganar"? Ao meu casamento a minha amiga Ruth chama (erradamente, mas isso não é para aqui chamado) "Paz podre". Percebo o que quer dizer e não a interrompo enquanto penso naquele bruto atarracado que um dia me sentou na banca da cozinha, afastou-me as cuecas para o lado e penetrou-me com a energia de um camartelo. Não percebo sequer como já estava eu tão molhada, tão pronta a recebê-lo ("Parece manteiga", foi a observação dele. "No Verão", acrescentou, com medo de que eu não tivesse percebido a alusão).

As obras estão quase a acabar. Demoraram mais tempo porque foram interrompidas várias vezes por dia - nem sempre, apresso-me a esclarecer, na bancada da cozinha. Um dia levei-o para o quarto da "paz podre", que nessas ocasiões deixava de ser pacífico e - ainda menos - podre.

Hoje disse-lhe:
- As obras estão quase a acabar. Que vai ser de nós?

A resposta foi a mesma do primeiro dia:
- Vai brincar com o caralho do teu marido e deixa os meus sentimentos em paz.

..........
Yuri aprendeu português nas obras. Para ele "caralho" não é a mesma coisa do que para mim. Eu sei, mas faço como se não soubesse.
- É com o teu que quero brincar.
- Há sentimentos por trás dele, sabes? - Traduzo o seu português aproximativo, mas não o sentido do que me diz. Na Ucrânia Yuri era professor no liceu, ensinava ucraniano. Um dia perguntei-lhe:
- Porque não falas melhor português? Tens bagagem para isso.
- Não preciso de bagagem para deitar paredes abaixo.
- Precisas para me foder.
- Vou pensar nisso.

Aquela massa compacta de músculos escondia sentimentos de cuja existência era impossível suspeitar vendo-o manejar a maça e o cinzel, ou aplicar cimento com a colher. Nem na cama era fácil descobri-los. Yuri usava o silêncio como cimento por cima de tijolos e tinta por cima do cimento: camadas e camadas de vidas, fugas, andanças, placas geológicas sobrepostas, granito em cima de granito por baixo de basalto. O único modo de comunicação com ele era o tempo. Esperar. Esperar que ele se viesse (perguntava, serenamente, "posso vir-me?") esperar que ele falasse ("Não te quero chatear com as minhas histórias...").

Uma coisa aprendi: não era preciso esperar que ele sentisse. Imaginem-se a escalar uma montanha, espetar um piton numa falha e ela gritar "ai, magoaste-me". Dois meses depois, com sorte, mas a dor estava lá, imediata.

........
Um dia disse-me:
- Vivo ao retardador.

Assim mesmo, literalmente, sic, verbatim, o que quiserem: "Vivo ao retardador". Estávamos em casa dele, um tugúrio de vinte metros quadrados dos quais metade estavam ocupados por livros e por discos. "Salto de uma biblioteca para outra", pensei. "Mas não de uma pila para outra".


(Cont.)

29.5.18

Diário de Bordos - Paguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-05-2018

Chamas a isto um dia? Chama-lhe um mês, um ano, um sentido até se quiseres. Porque hoje foi muito mais do que tudo isso.

Como se o P. tivesse ressuscitado subitamente, como se a luz deixasse de tremelicar lá ao fundo e fosse o túnel todo iluminado de uma vez, não devido a um só interruptor mas a muitos. Que salto, que mergulho tão altos e tão para a frente. Vieste para casa a cantarolar Avante Camarada, Avante (depois continuava: Junta a este muitos dias).

........
Acabei The Only Story, de Julian Barnes. É a história de amor entre um miúdo de dezanove e uma senhora de quarenta e oito anos (quando começou). Durou "dez ou doze anos", diz o narrador (a personagem masculina já numa idade avançada). A história é contada em modo memorial, dá saltos para trás e para a frente.

Não deixa uma única porta ou janela do amor por abrir. A maestria narrativa deixa-nos sem ar como um pontapé nos tomates, um pôr-do-sol particularmente bonito ou o não desesperado de uma miúda que amamos: ataca-nos por todos os lados, o físico, o estético e o dos sentimentos.

A última vez que me senti assim ao acabar de ler um livro foi com o The Sea, The Sea de Iris Murdoch.

........
Uma insónia como se os dois braços da ansiedade tivessem passado a noite a tricotar dentro de mim. De vez em quando trocavam as cores, para se divertirem.

Vá lá: consegui ler. A manta era pesada mas não opaca. O resultado é que agora morro de sono, claro. Mal me tenho de pé.

Ele que espere. Passou a noite a gozar-me, agora paga.

........
O café Can Miquel, em Andratx é certamente muito bonito, mas infelizmente o sei interesse queda-se por aí. Isto é como tudo na vida: antes o conteúdo do que o continente. 

28.5.18

Vantagem maiorquina

A vida em Mallorca tem pelo menos uma vantagem sobre outras regiões de Espanha: isto tem tantos alemāes como indígenas e os restaurantes abrem as cozinhas às seis da tarde. 

Esperas [e obrigado]

Uma das dificuldades em reler-me é que mal começo penso na quantidade de leituras decentes à minha espera.

[Adenda: acabo as primeiras páginas com as correcções de JMV. A re-leitura fica muito mais fácil. Um interminável obrigado, J.]

25.5.18

Bares, Lua

Os únicos bares aceitáveis são aqueles de onde se vê a Lua.

A noite e o bom senso

Uma noite acaba no Procópio da mesma forma que um rio desagua no mar: não por inevitabilidade (há rios que desaguam noutros rios, ou em terra); mas por simples bom senso.

Amor e óleo de fígado de bacalhau

Não te amar é doloroso, por muito necessário que seja. É como beber todos os dias uma dose gigante de óleo de figado de bacalhau. Pode ser bom para a saúde, mas é melhor estar doente.

24.5.18

Vogue Vogue petit navire

Por falar em Playboy: alguém alguma vez leu um artigo da Vogue?

(Li hoje o primeiro, de sempre. Mais vale olhar para as fotografias).

23.5.18

Anúncios

"Homem 42 anos, bom aspecto físico, situação estável, rentável, cultivado e com sentido de humor aceita ser usado para salvar casamentos, testar potencial de sedução de senhoras com dúvidas, ser amado passageiramente como quem espera por outrém.

Não guarda rancores, más vontades ou coisas similares."

Refit, e depois?

Um gajo vai ao Quinta Puñeta e pergunta-se "como para jantar?" responde "Não, estou ao lado do Ca na Chinchilla" (em voz baixa, claro, todo o diálogo) e pensa na J.

Conjugação feliz de acasos? Não. De vontades. O polvo à galega da Chinchilla é maravilhoso, o Albariño idem, da vida então nem se fala.

Mesmo no meio de um refit.

O conforto do calor

"Só me sinto confortada com comida quente" diz-me J.

Mude-se o género e subscrevo a cem por cento.

Infelizmente

Acabo de ter uma conversa interessante com uma jovem senhora a propósito de mamas.

Começo por dizer que as dela passam o teste do lápis sem qualquer compromisso.

"Infelizmente isso não chega" explico-lhe. "Gosto delas direitas ou caídas, fúseas ou abolachadas, com lápis, máquina de escrever ou a apontar para a Lua."

O mais importante não está nas mamas. Infelizmente.

Hesitação balística

Gosto de imaginar balas hesitantes: perguntam--se no caminho se o alvo é mesmo aquele? Ou se é merecido (isto é: merecem--na?) Balas que se desviam milimetricamente do seu trajecto, por causa do vento ou por vontade própria.

Uma bala que hesita é um homem que duvida.

Ruth e a dor

De Ruth guardo um tecido para limpar óculos com uma imagem de um quadro de Van Gogh trazido de uma visita ao museu de Amsterdão e a ideia de que devia ter limpo os óculos antes de ela me deixar e não depois. Agora é tarde.

Era uma miúda alta, muito magra, morena, bonita como o amor que sentia por mim, que era vasto. (E por ela. Narciso passou por ali. Há pecados piores. Esse é invejável).

Uma vez disse-lhe "estás à distância de um grito" e ela respondeu "não posso". O grito era meu por mim, não dela. A verdade é que recusei terminantemente apaixonar-me enquanto ela não "pudesse"; agora recrimino-me: "se te tivesses apaixonado hoje poderia".

Mentira, claro. Mas a história teria sido mais bonita. Isto é: ainda mais dolorosa.

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-05-2018

O refit de uma embarcação é um refit de nós próprios, cada um deles. Refazemos um objecto de sonho e refazemo-nos, refazemos os nossos sonhos todos os dias.

.......
Escrevo de novo num bloco Clairefontaine. "Tem dos outros, dos que não têm listagem para telefones?" "Não. Ninguém os compra. São muito caros". Agradeço em silêncio a explicação e compro o que tem as divisões  alfabéticas. "São caros porque são bons". "Sim, mas as pessoas não querem pagar..." Perco o resto no espaço sideral da desatenção. Ou do desinteresse, ainda maior.

Penso nas canetas de tinta permanente sem as quais um Clairefontaine e só meio, na merda daquela estúpida queda, quanto tempo falta para que os carris voltem a ser paralelos.

........
O café Can Miquel é o meu favorito em Andratx, depois do Cafeína. Ou antes.

(Na verdade esta afirmação tem pouco ou nenhum valor operacional: para além destes dois só conheço o Gastrobar no qual um dia me extraviei e não entra sequer na lista, por notória inadequação.)

........
Esperar por fornecedores é pior do que esperar por uma senhora séria. A esta pelo menos não pagamos.

Insónia?

É noite, sabes que é noite mas tens de entrar nela, tens de a atravessar, se lhe deres simplesmente a volta ela nunca se irá embora.

22.5.18

Marqueses

Por muito respeito que tenha pelos monárquicos - e tenho - não consigo deixar de ver naquela preocupação com as ascendências e descendências um certo patetismo.

Parece tudo a brincar, como miúdos a fingir que criam cavalos ou cachorros. "O meu quadrisavô era primo-irmāo do cocheiro do Conde de Serpa, do qual herdou o nome e a prima"; "a minha bisavó era a amante favorita do Rei Eduardo Nono, que lhe fez quatorze filhos antes de conseguirem uma menina, que era o que ele queria (para casar com o filho, como veio a acontecer)"

Além de que ignoram a entropia, princípio básico da física. Não é por acaso que se descende e não se ascende: os genes não melhoram com o tempo. Pioram.

Basta contar as pessoas no nosso país que descendem (sublinhado) de familias ricas, aristocratas, chiques: um bando de tesos na pior das hipóteses, marinheiros ou vadios na melhor.

Pior do que tesos: marqueses.

21.5.18

Janela vs. vontade

A vontade de te amar é mais forte do que o que vejo da janela.

Não é a janela que vou fechar.

Amor e Espírito Santo

"Would you rather love the more and suffer the more; or love the less and suffer the less?"

O livro que comprei hoje começa assim. Depois continua, diz que a questão não é verdadeira porque não se consegue controlar o amor. Estes são os dois primeiros parágrafos. Chama-se The Only Story e é de Julian Barnes.

É claro que se consegue controlar o amor: é um acto da vontade. Não uma pomba que nos cai na cabeça, feita Espírito Santo.

Não gosto de coisas involuntárias. Cheiram-me a erros. Têm o mesmo gosto do que eles, a mesma textura.

Projectos

Um dia voltarei a Oakland só para beber Mai Tai. Há projectos de vida piores, não há?

(Espera, foi Oakland? Verifica.)
(Foi. Trader Vic's.)

Definição - cidade

Provavelmente, definição de cidade é: um sitio onde um gajo pode comprar livros e beber hierbas secas.

20.5.18

A flecha do dia

As coisas são como são e não como as queremos, é facto irrefutável. Mas podemos - devemos - imaginá-las diferentes do que são, sem acreditar no que imaginámos. Exercício de equilibrismo, eu sei. Como tudo na vida: equilibristas na corda bamba, sem balancier.

Gosto de imaginar as coisas - todas as coisas, indiferenciadamente, objectos, actos, tempo, tudo - como se fossem aquelas flechas dos desenhos animados que procuram o alvo, hesitam, voltam para trás, sobem e descem até que finalmente chegam onde as queria o senhor (normalmente é um homem) que as atirou.

Hoje o meu dia, por exemplo foi uma flecha dessas atirada em direcção a um alvo que dizia "Ordem e descanso".

Ordem porque ultimamente me sentia como um polvo a perder a coordenação dos tentáculos. Descanso por razões mais ou menos óbvias.

Felizmente a flecha não perdeu muito tempo à procura do alvo. Antes assim. Posso readormecer em paz.

19.5.18

À espera do churrasco

À partida os planos eram simples: voltar para casa, tomar um duche, engrossar-me rapidamente e ir para a cama. Tudo correu mal desde o princípio: cheguei como previsto a Paguera, fui ao "escritório" beber uma cerveja (até aqui tudo bem) e ao supermercado Casa Pepe, cujo dono - Pepe, por coincidência, mas não o "meu" Pepe - é um chato mas tem uma carne esplêndida, salva seja, claro, a decência. A minha obrigação era comprar carne e vinho, mas um homem que tem carne tão boa tem de certeza um bom pâté au poivre e um bom queijo de Menorca. Em casa havia pão, manteiga e um fouet por acabar, bem como uma garrafa de vinho tinto meia aberta (falta uma vírgula).

Adivinhem o que aconteceu?


Assim é impossível um gajo engrossar-se, seja depressa seja devagar.

18.5.18

Colina, in contradictio

Nada de colossal nisto, ouve. Não passa de uma pequena colina que se trata de subir. Nunca desce, só sobe.

Enfim, sim, desce. Às vezes. Poucas. No fim vais ver que acabas mais alto do que quando começaste. Andaste às voltas e não te apercebeste de que subias. Era pouco, também, verdade seja dita.

Tens aproximadamente oitenta anos para a subir. Descer é instantâneo.

Um longo e interminável gin tonic

A ideia apelativa de que é possível separar as coisas umas das outras é irreal. O gin tonic que agora bebes no bar Stop em Paguera está relacionado com o que um dia bebeste não sabes onde nem quando, com a miúda por quem estás pronto a apaixonar-te, se ela quiser, com um livro da Marguerite Duras cujo título falava de Gibraltar, com os teus devaneios em Veneza há quarenta anos. Tudo o que hoje acontece está no fim de uma longa linha que foste paciente mas ignorantemente tecendo ao longo dos anos. A vida é um sono interrompido por meia dúzia de sonhos, mas é sempre o mesmo sono. E se fores a ver bem se calhar até o mesmo sonho.

Mudam os bares e os olhares, as mãos e os ventres, as palavras de uns e outros; mas hoje estás aqui como ontem estavas em Bastimento no Palmar Tent Lodge, no fim de um dia de trabalho a beber um rum punch; ou no Lagoonies a beber outro rum punch que era o mesmo, um prolongamento; já amaste a mulher que hoje amas, a caipirinha que bebias em S. Luis no Bar do Porto ainda não acabou.

Nada nunca acaba. O calor de ontem é o de amanhã, como a sorte, o azar, a dúvida.

Uma longa e interminável dúvida, sempre a mesma. Uma longa e interminável busca. Até os erros são os mesmos, vestidos de cores diferentes: aprendes a mudar-lhes a cor, é tudo.

Sonha; vive; engana-te; aprende; esquece; reaprende; cai; levanta-te; falha; acerta: tudo isso está nesse gin tonic que agora bebes num obscuro bar "familiar" de Paguera.

(Para a L., com um beijo).

17.5.18

Diário de Bordos - Paguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-05-2918

A senhora tem mais de sessenta anos, deve andar perto dos setenta, ponham ou tirem cinco. Está visivelmente grossa, mas composta.

Diz-me "primeiro os maiorquinos, depois os estrangeiros". Respondo "primeiro as senhoras, sejam de onde forem", mas ela não regista. É a amiga que lho mete na cabeça e acrescenta "o senhor é um cavalheiro".

Ao meu lado está alemão apalhaçado. Fala sem parar e ouve-se falar, sem se aperceber de que é um chato sem piada, ao contrário do que pensa.

A lista de personagens é curta mas o almoço excelente (uma sandes de presunto e dois chocos comprados no stand ao lado. Um gajo traz as compras para este e eles cozinham).

Tudo começou porque estava perto do mercado de Sta. Catalina e quis beber um vermute da U., que de dia trabalha aqui e à noite tem a Sifoneria. Apareceu um senhor - cliente dela - com um prato de presunto para provarmos. Acabei por ficar-me a ver e a ouvir. Retribuí o presunto ao senhor com uma cerveja e pensei em quantos Charlies (é o nome do alemão, há destinos que nos são fixados à nascença) já vi por esse mundo fora. E no que é bom encontrar um desconhecido que nos oferece um bocado de presunto e aceita uma cerveja. A nossa troca limitou-se a isto, mas é preciso tão pouco, não é? Um gesto chega, um braço estendido para oferecer, outro para aceitar, um sorriso, um momento que se partilha, um prazer oferecido, toma, prova, é bom.

A U. não vende comida, a cena passa-se num stand lá perto, estou sentado num canto do balcão como se estivesse num canto do cinema.

........
Isto foi há alguns dias; entretanto muita água passou por baixo das pontes, clara, fresca, há que fazer no P. mas aquilo avança com a habitual mistura de boas e más surpresas, de tanto se repetirem já nem surpresas são, é só uma alegria embrulhada em papéis diferentes.

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Descobri um restaurante italiano perto do hotel (ou de casa?) e hoje fui lá comer uma pasta al nero di sepia que estava má. Quando se comeu aquilo feito por um cozinheiro atrasado mental que só sabia fazer seis pratos mas os fazia tocado pela graça (a única no meio da desgraca toda) é difícil. Menti ao homem, disse-lhe que estava muito bom. É o que dá pedir pratos que não estão na lista, teve de ir comprar a tinta mai-los chocos e depois vai de caminho inunda aquilo de tomate (ele não, a cozinheira, magra de tal forma que um canibal pensaria estar a comer peixe se lhe pusesse o dente), mas bom.

O pior foi ter comido de mais. Assim não emagreço, que maçada.

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Entretanto já o ano vai a meio, que é como quem diz acabou.

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Diálogo sucinto mas agradável com uma "amiga" (entre aspas porque) do Facebook. Fez-me ir à procura de um post que com um bocadinho de sorte merece algum trabalho.

Este ano o DV vai fazer quinze anos! Está lá tudo (quase).

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Quem envelhece é o blog, não eu. Deviar ser ao contrário. Mas como, se os dias são todos novos?

15.5.18

Diário de Bordos - Peguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-05-2018

Começo a escrever sobre o dia enquanto oiço a Hildegarde e pergunto-me "mas que raio de interesse tem o teu dia?" "Nenhum, claro". O mesmo se passa com o rum: ontem comprei uma garrafa de Lamb's, de que não sou particularmente fã e hoje confirmo a) que tenho razão em não ser fã e b) e depois?

E depois? E depois? O que fica? As linhas do P. ficam, de certeza. Um ou dois ventres que amei para além do razoável também. Uma ou duas vidas que vivi sem querer mas depois quis. Borges, Yourcenar, Cem Anos de Solidão e outros de Gabo, Beckett todo, The Sea, The Sea de Iris Murdoch. A música da Hildegarde, a de Cohen.

E depois? Quem se interessa? A quem interessa aquilo de que gostas? Levamos nada daqui, excepto talvez uma memória ou duas, um seio numa mão um copo na outra, uma vaga à noite, uma Lua cheia de vez em quando, uns cabelos insubmissos por aqui um olhar rebelde por ali, os alísios pela popa quase a chegar, um dia de sonho no Mediterrâneo.

Hildegarde explica isso tudo muito bem.

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O casco do P. está bem. É mais ou menos como se alguém me dissesse que tenho cancro e afinal nâo tenho (aconteceu, a comparação não é um efeito de linguagem).

Tem várias maleitas, mas o casco e a estrutura estão bem. Algém imagina o que é ouvir isso em primeira mão de um surveyor?

(O qual mais terde acrescentou "a tua armadora tem sorte em ter-te como skipper" mas disso não falo, não vá ainda começar a acreditar e já é tarde para acreditar nessas coisas, nem ditas por uma miúda gira, quanto mais por um surveyor).

Mas lá que faz bem faz e vai daí vim para casa tratar dos cabos, é coisa que repõe o ego onde ele deve estar.

.........
Ouvir Hildegarde von Bingen é como estar deitado numa cama feita de coisas sem matéria. Não sei bem o que é uma coisa sem matéria, mas basta ouvir a música da senhora para perceber. E ainda há quem pense que a Igreja Católica foi uma catástrofe. Para além da Inquisição - quem nem sequer foi assim tão má como dizem - dos pastores de Fátima e da confissão não lhe vejo nada de realmente trágico.

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Em Peguera tenho uma casa. Que sensação tão estranha.

Das coisas que falam

Há barcos assim, mas são poucos: as linhas falam. Contam histórias de velocidade, ângulos de bolina, plananços fabulosos. O P. é um desses barcos. E eu tenho a sorte de ser um dos homens que o ouve e fala com ele todos os dias.



Darwin e as famílias

Pôr repetida, sistematicamente fotografias dos filhos no Facebook é um mecanismo darwiniano e como tal deve ser respeitado.

Raros são os homens (a prática é maioritariamente feminina) que à vista de uma criança feliz, talentosa e bonita não têm vontade de fazer outra.

12.5.18

Pizarnik

Isto não é um diário. É uma obra. Um escritor escreve como eu navego. Eu escrevo como um escritor navega. 

Diário de Bordos - Paguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 12-05-2018

"Se fizeres aquilo de que gostas nunca trabalharás". É mentira, jovens. Não acreditem. Fazer aquilo de que se gosta é trabalhar.

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Suponho que isto acontece a todos os que têm uma vida parecida com a minha: um dia chega em que um gajo se apercebe de que faz parte do sítio onde está. Quero dizer, não me interpretem mal: sei perfeitamente que ainda agora aqui cheguei e que não tarda me vou embora. Mas de repente é isto: cheguei. É uma chegada temporária, mas é uma chegada e até me ir embora é aqui que estou, é daqui que sou.

Não tem nada a ver com a mojo hand. É outra coisa. Como se um meteorito um dia andasse às voltas de um planeta e por lá ficasse até lhe reconhecer as montanhas e os vales, os rios e os oceanos. Ou pelo menos percebesse onde estão. Ou um nómada que chega a um oásis desconhecido e começa a conhecê-lo e um dia sabe que na verdade sempre esteve ali porque aprendeu a ver o que todos os oásis têm de semelhante e de diferente.

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"There's a shoulder / where death comes to cry", canta Leonard Cohen no you coiso. Penso outra coisa: "Há um ombro onde a vida se vem encostar para descansar" e esse ombro é o meu.

Acolho-a, saciado e ela agradece-me: "fazer o que se gosta não é trabalhar".

É pior. É uma prisão sem barras nas janelas nem guardas armados no pátio. Uma das formas do amor. Uma das formas da plenitude.

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Há pessoas que não gostam da indústria farmacêutica. Eu gosto. A guerra entre a diabetes e a vida está ganha pela vida graças a um comprimido que tomo duas vezes por dia. Não foi fácil decidir-me - as boas decisões nunca são fáceis nem evidentes - mas a indústria química (de que a farmácia é uma parte, tal como os fabricantes de vinho e outras bebidas) tem aqui um admirador reconhecido.

.........
Comprei o Diário de Alejandra Pizarnik na Babel à tarde e agora acabei a garrafa de Kuei Hua Chen Chiew, um produto da indústria química chinesa. Não há relação nenhuma entre os dois factos, de resto separados por um grande lapso de tempo.

A única coisa que os une é a sequência cronológica agora: o Arvo Pärt que me perdoe, mas vou deixá-lo pela Pizarnik. Os pedaços que li no autocarro mais do que justificam a troca, por difícil que seja (e é). O ideal seria poder ouvir o Part e ler a Pizanik ao mesmo tempo, mas ainda não é hoje.

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Poderia talvez imaginar-se uma fisga gigante, com a capacidade de atirar pedras para lá da força gravitacional da Terra. Põe-se uma pedra nessa fisga e ela parte não se sabe bem para onde (de propósito, a fisga não foi apontada para lado nenhum em especial).


Essa pedra acabará por aterrar num sítio qualquer do Universo, não é? Que tenha sido ela a escolhê-lo ou não é irrelevante.

A música de Arvo Pärt (juntamente com a de Hildegarde von Bingen, Rachmaninov, Mahler e mais dois ou três) descreve ou pelo menos acompanha a viagem da pedra.

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O amor é o único poço no qual se cai tanto por vontade como por gravidade. Tem uma vantagem: é uma queda boa. E uma desvantagem: o poço não tem fundo.

11.5.18

Um dia

Um dia navegar-te-ei a noite toda.

Fauna

Alemães com cortes de cabelo ridículos, cães patéticos, piercings idiotas e tatuagens feias.

Salva-se a luz, o calor e a ideia de que Palma não está longe.

Diário de Bordos - Paguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 11-05-2018

Não é todos os dias que um pobre e solitário skipper longe de casa recebe um elogio de um surveyor. Há duas raridades nisto: o surveyor não pensar que o skipper é um idiota cuja única actividade no mundo é beber Mojitos (sem açúcar) com abundantes loiras enquanto o bote se desfaz por baixo dele (e da loira); outra é dizê-lo, não vá o homem acreditar.

Compreender-se-á portanto a minha emoção quando hoje o surveyor me diz "you're doing a good job here" (no original para não pensarem que me enganei na tradução).

Não fosse a merda da dor no cotovelo - obviamente ligada ao "good job" (aspas porque cito) - e estaria nas nuvens. Assim não estou: estou a caminho da farmácia.

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O Verão chegou, finalmente.  Espero que não se vá embora depressa. Dois três anos, pelo menos.

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Foi-me difícil abotoar a camisa para me vir embora do escritório. Paciência. Porém agora custa-me levantar o gin tónico.

Para se ver que a vida de um skipper não consiste só em beber Mojitos.

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O mesmo surveyor que teve aquelas palavras simpáticas a meu respeito (desculpem a insistência. Ainda não acredito) fez um desconto no preço porque é para o P.

Há dias assim: nem um cotovelo idiota chega para os deitar abaixo.

10.5.18

Diário de Bordos - Paguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 10-05-2018

O bar Stop é o único sítio da "rua principal" (aspas porque traduzo) que não é para turistas, diz-me I. Suponho que seja verdade porque é o único que está vazio. Quando cheguei - vindo de uma coisa infecta onde comi uma salsicha alemã e batatas fritas que me fizeram pensar nos Estados Unidos - o patrão estava a jogar às cartas. Considerou inútil interromper o jogo para me servir. Acabou de distribuir as cartas, deixou o copo de vinho que lhe pedi (e é abominável) no balcão e voltou para a mesa de jogo.

O homem faz vagamente lembrar o patrão do Stop do Bairro, sito em Campo de Ourique, no qual me aconteceu uma coisa gira: a primeira vez que lá fui uma imperdível necessidade de escrever acometeu-me sem eu querer, de modo passei o jantar todo a escrevinhar num dos blocos-notas que usava antes de me habituar a fazê-lo no telefone. Escrevi durante todo o jantar e o homem convenceu-se de que eu estava a tomar notas para um artigo sobre o restaurante, de modo tratou-me como se eu fosse uma mistura de Jose Quitério, Virgem Maria, Francisco Balsemão e Miguel Esteves Cardoso. Aquilo foram mimos sem fim - ainda recordo com emoção a garrafa de vinho que ele trouxe para eu acompanhar a refeição -.

Quando chegou a conta fiquei siderado: era muito menos do que eu esperava. Uma ninharia. Um achado.

Um mês depois voltei lá, sem caderninho. O homem não me reconheceu. Pedi o mesmo vinho mas um alarme tocou e perguntei-lhe o preço. Custava três vezes o que eu pagara pelo anterior jantar todo.

Agora escrevo no telefone e já ninguém pensa que estou a tomar notas.

........
O dono do bar Stop fala alemão. Um casal daquelas bandas sentou-se na mesa ao lado. São visivelmente conhecidos.

Mais um mito que desaba.

.......
A senhora alemã à minha frente tira fotografias ao marido com o telefone. Umas a seguir as outras, como se tivesse medo de que ele se desvaneça de um momento para o outro e se transfome no homem invisível.

Uma delas deve ter ficado bem: o senhor ri-se e bate palmas. Depois volta à sua condição de homem inaudível.

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O licor de hierbas secas é uma merda. Só deve vir a este bar quem gosta de bares vazios (e de homens no princípio da terceira idade que podem desaparecer a qualquer momento).

........
Sábado vou a Palma comprar outro computador. Espero que seja o último sal que a ferida recebe. Ainda dói horrivelmente.

........
A única livraria de Paguera é alemã e só tem livros em alemão.

.........
Adenda: quando fui pagar a conta no Stop tive de pedir ao senhor que repetisse. Duas vezes. Ele deve estar habituado: explicou-me quase como se pedisse desculpa que aquilo "é um bar familiar" e que ele "não é como os outros que só pensam em dinheiro".

Acho sinceramente que me vou juntar à família.

(Assim é facil de perceber porque estava vazio: ninguém vai de férias para desperdiçar oportunidades de mostrar o dinheiro que tem.)

9.5.18

Diário de Bordos - Paguera, Mallorca, Baleares, Espanha, 09-05-2018

Paguera - que, registe-se, é incomensuravelmente preferível a Puerto de Andratx - consiste (para mim e até agora) numa longa rua que num país anglófono se chamaria Main Street e numa praia que não se vê dessa rua. Sei que há mais Paguera por ouvir dizer e porque hoje vim por uma rua paralela à "rua principal". As lojas estavam fechadas - não por causa da hora, mas por manifesta falta de negócio - e tudo aquilo exalava tristeza. Uma rua ao lado era o oposto, excepto na tristeza: montes de gente, movimento, lojas a abarrotar de clientes e de produtos.

Mentiria se dissesse que nunca fui turista. Fui muitas vezes e gostei quase outras tantas. A viagem de Parnaíba para a Guiana Francesa, por exemplo. Espero um dia poder voltar aos Açores com muito dinheiro, muito tempo e nada para fazer excepto ver, ler e usufruir da hospitalidade e simpatia das pessoas; gostava ir à China vindo de Moscovo.

Mas mentiria igualmente se dissesse que percebo o que vêm as pessoas fazer a lugares como este. Faz pensar em Gibraltar sem o charme e as memórias. É só alemães - alguns restaurantes já não se dão sequer ao trabalho de escrever os menus noutras línguas -; é tudo rasca, igual ao mililitro (incluindo as lojas de marcas, que as há).

O problema é que não acredito que os sítios de onde esta gente gorda, feia e taciturna vem sejam piores do que isto.

Mudar? Sim, claro. Mas para Peguera (ou Puerto de Andratx ou Santa Ponsa)?

 ¡No jodas!

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O mastro e a retranca saíram finalmente do convés do P. Estou exausto e feliz, por esta ordem. Amanhã damos o primeiro passo para a quilha e para os machos de fundo e o último para os molinetes. Não tenho muita experiência doutras profissões, mas organizar um refit deve ser das que mais se aproximam da medicina (salvas as devidas proporções, claro está).

Com a vantagem de que depois se pode navegar no paciente.

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E Palma aqui tão perto... O cansaço implica com as distâncias.

8.5.18

Tretas

Hoje vinha na rua a escrever um post e ocorreu-me que houve tempos em que lia na rua. Agora escrevo.

E ainda há quem pense que a tecnologia é progredir, evoluir ou tretas equivalentes.

Ou envelhecer.

Flagrante delito

Um dia serei apanhado em flagrante delito de amor. Já fui apanhado em amor, em delito e em flagrante, mas nunca nos três ao mesmo tempo, como este provavelmente senegalês que agora entrou pelo restaurante a vender aquelas bugigangas que eles vendem, coitados. Aquilo é uma prisão infernal e desde que fiquei a saber isto não o posso esquecer. Vem-me à memória essoutra escravatura, tão mais bonita. Não é?

O homem tem um ar simpático, sorridente - a tristeza não vende - e nada ridículo apesar da merda cor-de-rosa que leva na cabeça.

Eu não tenho nada dessa cor em mim, Deus me livre, excepto talvez a vontade mas essa não se vê. Pelo menos de fora.

Sinto-me um bocadinho como esse senegalês, sem as coisas na cabeça. Estão noutro lado qualquer.

Concatenaçōes

Tal como a velocidade de um comboio é a do seu navio mais lento; ou a resistência de uma corrente a do seu elo mais fraco, a credibilidade da expressão "amor louco" é a de "louco".

7.5.18

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-05-2018

O tempo arrasta-se como um caracol e deixa uma baba igualmente pegajosa.

Enquanto não vir o P. em terra, o mastro arreado e os brandais no rigger, os pernos da quilha desapertados, os machos de fundo e os passa-cascos fora e o motor a caminho não acredito no relógio.

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O meu computador nadador não tem remédio. Boa ilustração da diferença entre notícia e novidade.

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Fui a Andratx na minha bicicleta Órbita. Vinte minutos, indo devagarinho. Não sei porquê mas tenho a impressão de que foi a melhor compra que fiz nestes últimos malfadados tempos.

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Se não fosse o Acal Puerto de Andratx seria uma versão europeia do bagne

6.5.18

Meu hífen de ti

És o hífen que me liga à vida.

Quinta carta a Pandora

Minha querida Pandora,

Sabes como gosto da melancolia. Ou melhor, daquela mistura tão frequente em mim de felicidade e melancolia, alegria melancólica, uma forma de matizar os sentimentos, de os complementar.

Já a tristeza detesto. Um peso invade-me sem razão visível e ofusca a beleza do dia que começa ou acaba, faz-me ver quanto me custa a tua ausência, perguntar o sentido que tem tu tão longe e eu aqui sozinho, como pedra sem caminho.

Não é por tua causa que estou triste, mas a tristeza faz-me pensar em ti. Se aqui estivesses estaria triste na mesma. Refugiar-me-ia num buraco qualquer dentro de mim, sustentaria o teu olhar crítico e esperaríamos ambos que a coisa passasse, cada um de nós agarrado ao seu livro, forma de nos deixarmos em paz que sempre preferimos aos telefones.

A melancolia enriquece, a tristeza empobrece, torna tudo igual, sem cores nem formas, sem volumes nem texturas. Fica tudo igualmente feio.

Não é assim. Digo isto e penso nessa cabeleira ruiva, capaz de incendiar um bloco de mármore: reduziria esta tristeza a um monte de cinzas que vento e luz se encarregariam alegremente de espalhar pela baía; e esta receberia de promontórios abertos como braços.

Teu Prometeu, sem fogo.

Ingredientes para uma manhã de domingo obnóxia e respectivos diluentes

Muitas pequenas contrariedades irrelevantes e uma grande alegria - os Mojitos do Acal curam mesmo as dores de cotovelo, apesar de serem grandes e pesados -; hesitações existenciais sobre onde almoçar, é um problema recorrente há décadas; confirmação do que pensava a respeito da água nos fundos do P. - uma hora de trabalho logo ao saltar do beliche, já não posso ver aqueles fundos nem que se lá ponham fotografias da Marilyn Monroe -; um diálogo internetiano com uma miúda gira mas longínqua; dúvidas existenciais menos imediatas do que as acima citadas.

Uma flûte de Cava. Ouvi dizer que é um óptimo diluente para manhãs de domingo funestas (apesar de tecnicamente já não ser de manhã ainda é).

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Pequena nota sobre as qualidades analgésicas dos Mojitos do Acal: quem pensar que foi devido ao repouso nocturno que o cotovelo amanheceu livre de dores não percebe nada da vida e respectivos mecanismos.

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As Selecções do Reader's Digest tinham uma secção chamada "O riso é o melhor remédio". Esqueceram-se do rum: "O rum e o riso são os melhores remédios" é mais exacto, mais completo e próximo da verdade.

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Pizza no Coppola. 

5.5.18

Qualidades e analgésicos

À longa lista, quase interminável, de qualidades do café-bar-restaurante-escritório Acal devo agora acrescentar a dos seus Mojitos. A dor de cabeça está a passar.

Não chegam aos do saudoso Red Frog no Casco Antiguo da Cidade do Panamá - nunca nenhum chegará - , mas são bastante bons.

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-05-2018

Deve ser a Primavera: o computador alugado actualiza-se pela quinquagésima terceira vez; o telefone precedeu-o algumas duzentas. Na Primavera actualize-se e goze o seu Verão em paz.

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Quem merece paz sou eu. A porcaria do Cotovelo de Tenista reapareceu furiosamente. Tem estado a ameaçar e hoje irrompeu pelo court como um touro louco pela arena. Bolas, não jogo ténis há cinquenta anos, salvo duas ou três esporádicas e irrelevantes excepções. É como se um castrado apanhasse uma gonorreia.

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Hoje enviei para Lisboa a mochila que caiu à água comigo. O polaco que me ajudou a sair puxou por ela com tanta força que rebentou uma alça. Está a transformar-se numa tradição: com a anterior desmaiei na bicicleta e cai, dois ou três dias depois de a ter comprado. Ficou com dois buracos pequeninos.

Esta vai ficar com sal até ao fim dos dias. Pena porque é bastante boa. É feita por uma portuguesa, anti-roubo e anti-fogo e anti-tudo. Sugeri à senhora que as fizesse anti-mergulhos involuntários.

Mar não faz parte de tudo. É um planeta diferente.

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A dor de cabeça é tremenda. Combato-a com Mojitos sem açúcar. Tenho a impressão de que não faço nada senão limpar fundos. Terça encalho. A impressão desaparecerá, mas é provável que dor de cabeça se intensifique.

Veremos então se os Mojitos são um bom analgésico.

Quarta carta a Pandora

Incendiaste-me outra vez a noite, mulher, com essa cabeleira ruiva tão longa e tão densa, tão longe e tão quente.

Via-te ao meu lado deitada, de costas, mãos cruzadas no ventre, cabeleira espalhada pela almofada - não as fazem suficientemente grandes para ta acolher inteira - pernas juntas, nua, quente como o rescaldo do incêndio.

Não ateies fogos que não possas apagar, pedi-te um dia; e tu em vez de os apagar todas as noites ateias um novo, diferente do de ontem e cada vez mais vasto, mais quente e profundo, dois corpos que se conhecem e se fazem de novo a cada noite e agora dormes, tão longe em mim, tão fundo, como se não fosse nada contigo.

Não ateies fogos que não podes apagar; não apagues fogos que ainda não arderam até ao fim.

P.

4.5.18

Diário de Bordos - Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-05-2018

Passei o dia em diferentes escritórios de Puerto de Andratx: primeiro o Es Porteño - onde de resto se come bastante bem, aconselho-o vivamente -; depois no Sailor, fantástico para quem gosta de televisão. (O Acal tinha e tem o wifi avariado).

Puerto de Andratx tem o condão de me sair pelas orelhas mal passo muito tempo fora do P., de modo resolvi vir espairecer a Andratx. Na esperança, claro, de que o Gastrobar não fosse o único sítio aberto.

Não é e Cubano estava cheio, felizmente. Já a Cafeteria Bar Cafeína está aberta, faz bons cocktails e tem uma empregada que consegue o prodígio de ser espectacularmente bonita e ainda mais simpática. Ou ao contrário, não sei, ainda não aterrei completamente. Junte-se a isto uma música neutra, não-agressiva, um ambiente calmo e propício à reflexão e compreender-se-á porque não é de certeza a última vez que aqui venho.

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Graças à J. conheci um escritor catalão chamado Josep Pla. Menciono isto por duas razões: a) agradecer pública e veementemente à J. a sugestão; b) sugerir ainda mais veementemente a todos que acorram à primeira livraria que encontrarem, à Amazon, ao que for. A Viagem de Autocarro, que comecei e não acabei já me tinha dado um cheiro da maravilha. Hoje comecei as Cartas de Itália e estou subjugado. Se um dia escrever um livro sobre as minhas mudanças de casa já tenho o tom: uma mistura de amor e ironia. Infelizmente não tenho o talento do homem, mas muito trabalho substitui o talento e nunca ninguém me viu fugir do trabalho, excepto talvez dois ou três patrões, entre os quais o da TPH (Toujours Plus Haut) empresa que se dedicava à nobre missão de montar andaimes em Genebra e arredores.

Tentei também trabalhar numa empresa de mudanças, em La Chaux-de-Fonds, mas dessa fugi no primeiro dia. Enfim, no primeiro minuto: o homem veio buscar-me ao ponto de encontro e disse-me "Está dois minutos atrasado" (não estava, mas isso é irrelevante). Respondi-lhe: "Então lamento muito, mas não vou trabalhar. Não nos vamos entender. Au revoir". E voltei para casa, para o aconchego da Ch., apesar dos protestos do senhor.

A Ch. era rechonchuda (sem ser gorda), tinha cabelos encaracolados e sardas, olhos verdes e um corpo acolhedor como nunca mais encontrei. Um homem que me diz que estou dois minutos atrasado não é concorrência para tanta felicidade e não devia tentar.

Fora estes e talvez mais um ou outro não fujo ao trabalho.

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Acabado o período de auto-motivação: tecer loas ao talento, à competência e à simpatia da barmaid do Cafeína; reafirmar a minha esperança em ver um dia o P. refeito, a brilhar por dentro e por fora pendurado numa grua (e com uma cana de leme em vez daquela atroz roda, ora pro nobis); perguntar-me se um dia chegarei verdadeiramente a Lisboa; e pouco mais.

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O problema sendo que são dez e meia da noite, estou cheio de sono e cansado - o trabalho intelectual também cansa, consome bastante açúcar (parece) - isto a quem tem um intelecto; imagine-se o que não custará a mim - e não me apetece sair daqui e meter-me num táxi e ir buscar a burra que deixei no porto. Ainda agora cheguei. Havia um filme chamado The Goodbye Girl, não era?

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E é isto: sono, cansaço, trabalho, uma barmaid bonita e um filme de que só recordo o título. Não sei se chega para fazer uma noite, mas de que é o fim de um dia não há dúvida.

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 04-05-2018

Um gajo decide consagrar o dia a trabalho de escritório, que isto de refits não consiste só em acartar material e limpar fundos. O escritório habitual não tem a net funcional, o seguinte é óptimo mas o patrão maluco; acaba numa coisa chamada Sailor que tem pelo menos cinco televisões ligadas com o som altíssimo. Peço para porem mais baixo (ao fim de uma hora e meia) e o homem responde-me que "isto é um bar, não é um café ou um escritório". Digo-lhe que sim e acrescento em silêncio "E se fosses para a puta que te pariu mai-lo escritório?" O bar está vazio. Para além de mim há duas alemãs que ou não se vêem há muito tempo ou qualquer coisa no género e não param de falar. Ninguém vê televisão, excepto - claro! Como não pensei nisso? - o barman.

Se me apanho longe de Puerto de Andratx não acredito. Até Paguera será melhor.

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 Ultimamente sonho enquanto durmo como raramente: não páram. A minha cabeça está transformada numa pequena Holywood, produtora de filmes da corrente Realismo Fantástico Super-Pormenorizado. Uma espécie de Spielberg e Lynch revistos por Virginia Woolf e Duras. Os sonhos descem a pormenores absolutamente inacreditáveis, têm aventura e substância.

Não admira que comece finalmente a gostar tanto de dormir.

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Praticamente vazio, sem o motor e sem o chumbo o P. baila ligeiro na água. Coisa mais linda!

A ver se lhe arranjamos um futuro digno.

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Chove e está frio de novo. Esta Primavera hesita.

Decide-te, porra. Uma má decisão vale mais do que qualquer indecisão.

3.5.18

Alternativas

Não é assim que vou emagrecer, começo por pensar. Demasiada comida ao almoço, idem ao jantar. Quanto ao trabalho físico só de manhã foi demasiado; à tarde aguentou-se.

Continuo a pensar nas diferentes alternativas:
- Gordo e doente;
- Magro e saudável;
- Gordo e bem disposto;
- Saudável e infeliz;
- Gordo e chateado por ser gordo;
- Magro e orgulhoso.

Detesto o orgulho. Só traz chatices.

2.5.18

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 02-05-2018

Começando pelo princípio: mais vale não começar por aí.

Comecemos antes pelo que me inquieta verdadeiramente. Passei a tarde a andar de bicicleta de um lado para o outro em Palma e não ouvi uma única buzinadela, insulto, grito que fosse. Nada. Zero, Nix oberlix. Que se esconderá por trás deste silêncio?

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Comprei uma bicicleta Órbita. Foi uma compra inoportuna, para dizer o mínimo. Porém: tinha prometido ao homem, por um lado; por outro, a burra é irresistível.

Fiquemos por aqui. Pedalo todo direito e bem sentado, com espaço para a barriga e para a má consciência.

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Tenho finalmente um telefone. É um Nokia. Não sei mexer com ele nem ele comigo e ainda lhe faltam metade dos números. Não sei como fazer quando um dia tiver de descrever como vivo. Penso que só para amadores de carrinhos de choque e montanhas russas, como eu. Os outros não perceberiam, nem que eu fosse Stendhal.

Ou Pla. Hoje comprei dois livros dele: um diário de juventude e um relato de uma viagem a Itália. Ao folhear este último apercebi-me (já?, perguntarão alguns) de uma diferença fundamental: eu não viajo. Mudo de casa. Nunca conseguirei escrever um livro de viagens por essa razão simples e irrebatível.

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Fui à Babel comprar os livros e beber um copo e olhava para casa onde vivi com T., há uns anos. E depois?, pensei. Não é o depois, estúpido. É o antes.

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Acabo a trabalhar no café Rita, bem nomeado. O rapaz ainda se lembra de mim e fez uma referência ao copo entornado.

Gostaria uma vez de ser capaz de me deitar sem ter o trabalho do dia acabado. Não consigo. Infelizmente: esta incapacidade não me levou muito longe.

Tenho pelo menos a sorte de poder acabar o dia num dos melhores lugares de Palma, com música excelente, mesas bonitas de mármore, um nome que me faz sonhar e umas Hierbas Secas magníficas. Uma mina de carvão seria pior, sem dúvia. Para não mencionar um escritório, claro.

Lição nº 1, várias versões

1 - Quando o Universo conspira contra ti não respondas. Refugia-te num café, bebe um copo de vinho e vê passar as miúdas bonitas (para as feias não olhes, fazem parte da conspiração).

2 - A confrontação directa com todos os elementos do Universo é inútil, vã, fútil, condenada a perder. Mais vale bolinares num copo de vinho e lavar os olhos nas miúdas giras cujo fluxo é ininterrupto.

3 - O Universo é constituído por uma série de elementos que em condições normais se anulam entre si e o tornam um lugar neutro. Há dias em que esses elementos se alinham negativamente. Não são eles, és tu.

4 - Não há coligação negativa do Universo que resista àquela mistura mágica de relógio e persistência.

5 - O Universo que se foda.

1.5.18

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-05-2018

De repente tudo começa a correr bem, o que não me espanta muito: pior só enterrado. Esperemos que esta nova maré venha para ficar. Alguém acha estranho eu gostar tanto de montanhas russas?

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De hoje a uma semana o P. encalha. Estamos em contagem decrescente: o objectivo é fazer a nado (sem jogos de palavra estúpidos, por favor) tudo o que se pode. Três semanas em seco não serão de mais para tudo o que há a fazer.

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Dias de trabalho intenso, mas feliz. Puerto de Andratx deixou de ser um buraco porque se transformou numa linha quase recta entre o P., o café Acal e o supermercado Eroski (por ordem decrescente de tempo passado em cada um dos sítios).

Amanhã vou a Palma. Espero que Puerto de Andratx não volte à sua condição.

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Nunca gostei muito de feriados nem fins-de-semana. O do Trabalho é particularmente estúpido: a melhor maneira de celebrar o trabalho é trabalhando, não fazendo feriado (argumento de resto usado com sucesso pelo povo suíço para recusar que esse dia - isto é, hoje - fosse de folga. Não sei como está agora, mas lembro-me de pelo menos duas votações em que a proposta de ferialização (?) foi recusada.

Bem aventurado povo, que até para os feriados vota. Os políticos na Suíça são criadores de propostas, não são decisores. O mundo seria melhor se esse sistema fosse adaptado por mais países.