31.12.21

A menos que

A ideia começa numa grande planície branca na qual escorregam pessoas das mais variadas formas: patins de gelo, trenós, skis. Escorregar é  bom, melhor do que a imagem habitual que disso se tem: "escorregou e caiu", "a partir daí foi sempre a escorregar para baixo". Et coetera.

Nada disso. Acordem. Não há ideia nenhuma, nem planície branca, nem patinadores. Não há sequer horizontais nem verticais. Não há nada senão branco, queda e sono, muito sono, o que te acompanha durante esse longo escorrega para o azul do Índico - do qual não pensas emergir, nunca mais.

A menos que seja para ires ao mar das Caraíbas. A menos que. 

Do ano novo ao Índico, passando por considerações menos interessantes

Verdade seja dita, todos os dias são de Ano Novo, a cada um começa um, tão novo como o que acaba, todos os dias. A gente olhamos para trás  e a gente pensamos na sorte que recebemos das mãos de nosso senhor Jesus Cristo e companhia (são três) e logo a seguir a gente pensamos um monte de coisas que não interessam nem ao menino Jesus, entre as quais se devemos trocar aquelas primeiras pessoas do plural por outras, mais singelas e com o raciocínio apoiado num LBV de 2014 a gente diz: que porra de gente és tu? Que porra de gente sois vós?, que para falar usais os tempos verbais errados e para passar o ano pensais em calendários, em anos idos, em punhetas a grilos, em anos novos a cheirar a cueiros?

Interessante seria termos um ano novo a cheirar a Tanzânia, damas postas a um canto a fazer tricô,  o Índico ali à porta, o cheiro das especiarias a espelhar-se no cheiro da pele, na cor dos olhos, o Índico,  meu Deus, o Índico.  

Um gajo encontra uma rapariga bonita e pergunta-lhe: "qual o teu oceano favorito?" É só a partir daí se pode julgar o ano. E a pequena,  mas isso fica para depois.

Ano bala

Os anos começam todos como o comboio-bala dos japoneses. Alguns descarrilam logo a seguir, alguns levam mais tempo, outros não descarrilam de todo e levam-nos aonde queríamos ir logo no início da viagem. 

Que 2022 seja uma dessas balas directas ao destino para todos nós.

29.12.21

Receita - Gratin dauphinois

La recette pour 8 personnes 

Peler et laver 2 kg de pommes de terre à chair ferme. Les sécher dans un torchon. Les émincer finement à l’aide d’une mandoline et les sécher de nouveau dans le torchon, sans les rincer. 

Frotter l’intérieur d’un grand plat à gratin avec une gousse d’ail pelée. Beurrer généreusement le fond et les bords. Ranger les pommes de terre par couches successives, en assaisonnant chaque couche avec un peu de sel et de poivre noir (pas trop car le goût va ressortir en cuisant), et en ajoutant éventuellement une petite râpée de noix muscade. 

Verser environ 1 litre de crème liquide entière (ou 60 cl de crème fraîche épaisse mélangés avec 40 cl de lait entier). Veiller à ce que le liquide entre bien dans les interstices et arrive à la hauteur des pommes de terre, sans toutefois les noyer. Parsemer de petits morceaux de beurre.

Enfourner à 150 °C pour environ 1 h 30, en vérifiant régulièrement que le dessus ne brûle pas. Les pommes de terre doivent avoir « bu » le liquide et être bien tendres. Si le dessus n’est pas doré au terme de la cuisson, passer le gratin rapidement sous le gril.

Notas: Hora e meia / duas horas.

 

O circo desceu à cidade

O circo chegou à cidade e não há maneira de se ir embora. Começou na China faz agora dois anos. Uma província rebelde, um governo central a querer mostrar quem corta o bacalhau, uma imprensa às ordens. Este foi o ponto de partida da caravana. Dali, foi para Itália. A imprensa chinesa foi substituída pelos media ocidentais. Já não por dependência dos governos mas por simples e banais questões de tesouraria os jornalistas pegaram naquilo e usaram o arsenal todo: mentiras, omissões, exageros, distorções, fotografias falsas. Nada de novo, excepto que desta vez usaram o arsenal inteiro ao mesmo tempo. Não ficou uma arma, uma que fosse, em armazém. O pânico - o maior auxiliar de finanças da imprensa desde sempre (afinal, foi para noticiar invasões, inundações e outras desgraças que os jornais nasceram) instalou-se e propagou-se como chamas em pradaria seca. Instados a escolher entre meia dúzia de especialistas que diziam que as coisas não eram assim tão más e multidões histéricas os governos não hesitaram dois segundos, claro. Quem vota são as multidões. A escolha não chega sequer a sê-lo.

O circo já está bem avançado: temos a tenda, temos os músicos, temos os espectadores, temos os apresentadores a fingir que são eles que mandam quando tudo o que fazem é seguir os outros todos. Entram os palhaços: «especialistas» (desta vez com aspas) que se deixam inebriar com os holofotes, com aquele ruído todo, com os cavalinhos a dar voltas à pista. Têm todo o interesse - nalguns casos, tangível; noutros, intangível mas não menos real - para que o circo cresça e para isso contribuem com afã.

Já só falta a malta da caixa. Esta começou por ficar surpreendida com tanto maná, tão súbito e inesperado. Não há máscaras, não há testes, não há vacinas... Que fazer? A resposta é fácil: fazer isso tudo. E hey, presto, de repente eis que aparece uma parafernália para nos «defendermos». Ninguém consegue parar o circo. Muito menos, claro, os especialistas do início, os que tentaram resistir à avalanche de pânico. Alguns cederam-lhe, outros afastaram-se, simplesmente. Ficou uma pequena minoria a clamar no deserto.

Entretanto, a avalanche segue o seu caminho. Alguns governos começam a ver que aquilo é muito bonito, espectacular e tudo mas que se arriscam a perder votos quando a conta chegar. Outros, mais responsáveis, desidiram mesmo parar com a palhaçada, apesar dos riscos eleitorais (estes ganharam a aposta, mas ainda são poucos, infelizmente). Alguns dos palhaços cansam-se. Os espectadores começam a fartar-se do espectáculo, que acham pouco variado. Pouco a pouco, muito devagar - excruciantemente devagar, para quem não gosta de palhaçadas - o circo começa a fazer as malas e a preparar-se para sair da cidade. 

23.12.21

Curta história longa

Encontraram-se num café e ficaram retidos um no outro. Ela por falta de atenção, ele falho de intenção. Assim deixaram o tempo passar por eles, distraidamente e sem rumo. Ao fim de alguns anos descobriram atónitos que o amor tinha dado um sentido àquilo. Não o tinham visto chegar e só deram por ele quando já se amavam como as duas linhas de um caminho de ferro.

Tão pouco o viram partir quando chegou a hora. O comboio bem apitou, mas eles não o ouviram. Continuaram juntos: demasiadas travessas os uniam. Precisariam de muita atenção e de mais intenção ainda para desmontar o que o tempo e o amor tinham montado

Do meu amigo Ricardo Álvaro, Negacionismo da época

« NEGACIONISMO DA ÉPOCA


Negacionistas do Natal rejeitam a primeira dose de Bolo-Rei com frutos cristalizados.



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Cientistas da Lapónia esclarecem negacionistas do Natal e avisam que, historicamente, a variante da Páscoa é mais letal. 


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Em plena pandemia, foliões do Fim do Mundo compram champanhe Barqueiro e passas Caronte para a Passagem.


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Pangolim escaldado deixa aviso aos incautos e outras bestas humanas: «Depois não digam que foi o peru».


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Última Ceia cancelada depois de testes antigénio aos comensais: Judas assintomático diagnosticado como falso-negativo.


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Primeiro-Ministro envia a tradicional mensagem de Boas Festas e pede aos eleitores para retribuírem os Votos no dia 30 de Janeiro.»



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Ricardo Álvaro
Dezembro
2021

K4 - uma pergunta

"Tentar divinizar o homem é o primeiro sintoma da Amnésia. O homem é o contraste do divino", diz Almada Negreiros em K4, o quadrado azul.

Pergunto-me se os cultores da "guerra ao vírus" não deveriam ler este opusculozinho, pequeno só em tamanho.

21.12.21

Diário de Bordos - Ponta Delgada, Açores, Portugal, 21-12-2021

Estas casas pequenas, baixinhas, parece que encolheram com a chuva ou que foram esmagadas pelo «capacete açoreano». À noite as ruas estão iluminadas pelas decorações de Natal, bem bonitas. E desertas, frias, ventosas. Tenho de inventar uma escala de Beaufort para o chapéu. Será simples porque só terá três forças. Zero: posso usar o chapéu à vontade e sem quaisquer restrições; um: tenho de o enterrar bem enterrado na cabeça e estar atento; dois: devo levá-lo na mão. Hoje oscilou entre força um e dois.

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Passeio-me por estas ruas como se nunca cá tivesse vivido. De repente a moeda cai e apercebo-me de que nunca vivi nesta cidade. Vivi no seu porto, o que é bem diferente.

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A grande vantagem da velhice é ter um fim; a sua grande desvantagem - pelo menos actualmente - é que esse fim está cada vez mais longe. A medicina moderna equivocou-se completamente. Mais do que quantos anos viveremos importa como os viveremos. A qualidade antes da quantidade. 

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Todos nós chegamos a um ponto em que descobrimos que nos enganámos. Os que têm mais sorte ou mas perspicácia são mesmo capazes de definir onde, quando, como e porque isso aconteceu. Ou melhor: os ondes, quandos, comos e porquês - são sempre muitos, não são? Infelizmente esse ponto (esses pontos) chegam sempre tarde de mais. Temos de viver não só com, mas no erro, como se este fosse uma piscina na qual nadamos, pela última vez, os cem metros livres. Como se fôssemos mais uma encarnação desse erros ou desses erros. Não somos. Sim, somos. A vida é como as regatas oceânicas, que são ganhas não pelo melhor mas por aquele que comete menos erros. Ao fim de muitas regatas, o melhor e o que cometeu menos erros são o mesmo, é certo, mas o padrão é sempre o erro. O padrão contra o qual vais aferir a tua vida é o erro, meu caro, a quantidade e qualidade deles. (O problema sendo que regatas há muitas e vidas há só uma, mas isso faz parte da piscina.)

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Não reconheço o Café Central: foi «modernizado». A Igreja Matriz tem outra iluminação, a praça mudou. Tudo isto com um tempo abominável. Espero que a porra da frente passe depressa. E com ela o tempo.

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O arquipélago - enfim, pelo menos a cidade, ignoro o que se passa nas outras ilhas - tem três jornais quotidianos. É notável. Têm todos as mesmas notícias e Mota Amaral publica nos três (não sei se o mesmo texto). Igualmente em todos eles os comerciantes queixam-se do fecho de ruas ao trânsito automóvel em vésperas de Natal. Neste ponto têm razão. 

Pergunto-me se uma viagem aos Açores é, como era antigamente, uma viagem no tempo. Creio que sim. Espero que sim. 

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(Vivemos todos neste cruzamento, não vivemos? Onde os verbos esperar e crer se cruzam. Talvez não todos, mas pelo menos aqueles de entre nós que têm essa sorte.)

14.12.21

Que vemos, quando nos vemos pela primeira vez?

Um cego de nascença recupera a vista. Vè-se pela primeira vez ao espelho e detesta-se. Acha-se feio, contrariamente a todas as outras pessoas que agora vê, também pela primeira vez e nas quais percebe uma irreprimível beleza (às vezes injustificada, mas isso seria outra história: que vemos, quando vemos pela primeira vez?)