28.1.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 28-01-2015

Foram-se um computador, um telefone e um bocadinho de ego.

O telefone já voltou; ego faz pouca falta, tenho que chegue; falta-me o computador. Muito. Mas enfim, vou de novo confirmar que "muito" é relativo e que se pode viver com muito menos do que se pensa.

Ego e computador incluídos.

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Procuro activamente uma stew. Se alguém souber de alguém que queira um trabalho em barcos à vela por favor transmita.

O salário não é grande coisa, mas a vida podia ser pior.

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O que me assusta na expressão "trabalho estável" é o adjectivo.

O substantivo (e verbo) é um amor de palavra.

Mesmo que se refira a manutenção de embarcações de recreio.

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Nasci com dois braços esquerdos. Não tenho jeito para trabalhos manuais. Nem apertar parafusos sei.

Mudar de preconceitos é bom. Vê-los progressivamente trucidados pela realidade ainda melhor.

27.1.15

Lauda, laudae

Que inveja tenho de quem sabe cantar laudae.

Se eu soubesse cantaria uma e uma só: à vida e ao vento, ao mar e ao amor.


26.1.15

Ser, não-ser, proporções

É noite e a vida volveu ao normal: tenho  facebook, gmail e DV. Um espaço virtual no não-mundo em que vivo.

Deve ser de uma sensação semelhante que nasceu o mito do tapete voador. É num deles que vivo. Às vezes aos comandos, outras comandado, outras ainda - a maioria - nem uma nem outra.

O que não comanda não se deixa comandar, tal como o que vive não se deixa matar, o que luz apagar, o que voa abater.

Somos o que somos e o que não-somos. Só variam as proporções.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 26-01-2015

Estou de novo condenado a escrever num telefone portátil: ontem escorreguei a entrar num dinghy e fui para a água. Eu, o telefone que herdei do T.L. e o computador Asus comprado em Galveston.

Os danos são: a) um ego molhado pela água suja da laguna, pesado com a má-consciência de fazer, outra vez, um erro básico e chateado com o dinheiro que a distracção custa (deviam fazê-las mais baratas, ainda que com mais custos intangíveis); b) um telefone portátil no lixo. Pouco grave. Estava previsto; c) um computador portátil idem.

É o pior. Não vale sequer a pena elaborar. E não sei quando poderei comprar outro.

Este deve ter batido o recorde de brevidade de vida: dois meses.

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A semana de charter correu demasiado bem.

Estas coisas pagam-se.

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Falo com o filho do meu melhor e mais antigo amigo (não é uma redundância. É um espanto).

Está na Tanzânia em trabalho. Digo-lhe para ir a Kigoma, onde uma vez sobrevoei um engarrafamento de vinte e cinco quilómetros de vagões de caminhos-de-ferro. Fica nas margens do lago Tanganika.

Fui lá para ver se havia maneira de escoar aquilo tudo mais rapidamente. Não havia.

É preciso imaginar a linha de Cascais cheia de comboios parados para se perceber a dimensão do absurdo.

Às vezes parece-me que vivi. Deve ser uma ilusão, como todas as outras.

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Hoje soube que vou ter mais charters. Provavelmente duas semanas por mês.

Gostaria de ter mais uma: três semanas de trabalho e ums de descanso, em vez de duas de charter e duas de manutenção.

Se calhar é a isto que chamamos vida: a bóia de barlavento chama-se realidade e a de sota sonho, ou desejo, ou o que devia ser e não é.

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Uma promessa é uma promessa e com o meu primeiro salário fui comer ao Bistro Nu.

O meu colombo é melhor, mas mesmo assim foi um grande jantar.

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Os serviços de transporte público em St. Martin (e em St. Maarten - salvo explicitamente contrariado uso-os indiferentemente -) são fornecidos por táxis, buses e gipsies.

Estes operam sobretudo aos domingos, quando há menos buses e cobram os mesmos preços, apesar de terem menos custos e - regra geral - menos capacidade.

Tenho uma enorme simpatia por eles, tanto mais que os chauffeurs de bus são geralmente antipáticos.

Hoje porém vi um fazer uma coisa e quase mudei a minha percepção: numa paragem (das quais algumas têm lugar designado e a maioria depende do driver please stop gritado pelo passageiro que quer descer) o condutor parou a carrinha de modo a bloquear o trânsito que vinha no sentido oposto, para que o passageiro - um miúdo - pudesse atravessar a estrada em segurança.

Começo a gostar desta ilha, o que é tão agradável como inesperado.

Retratos quase reais

Uma sublime velhaca: não havia maldade na sua velhacaria.

Não é por crueldade que o sol nos queima, ou a escuridão nos impede de ler.

16.1.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 16-01-2015

As marés metafóricas não mudam como as reais, com uma precisão lunar, previsivelmente. São irregulares, repentinas, avassaladoras. A minha mudou hoje. Acabou a vazante, começou a enchente.

E que enchente. Fui pago e amanhã começo uma semana de charter. Vou às BVI, um arquipélago no qual não gostaria de viver mas onde gosto de ir. Ainda não sei o percurso: é charter à cabine, versão marítima de conduzir autocarros.

O que demonstra quão melhor é tudo o que é marítimo: até conduzir autocarros é bom.

15.1.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 15-01-2015

Hoje a prelecção de Francesco começou pelos preços das coisas. No lado francês são muito mais baratas, coisa que Francesco não compreende, não aceita e contra a qual se revolta. E me revolta.
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Agora vai no vegetarianismo; veganismo; o tio dele e respectivo pai; um gajo qualquer que tem cancro e o tratou com comidas naturais devido ao conselho de um "quase guru" (sic) indiano.

Coisas que não aparecem na televisão porque é preciso comprar gorduras, etc. e enriquecer as empresas que querem ganhar dinheiro matando-nos, etc.

Digo que sim a tudo. Posso não ser um ouvinte atento mas sou fácil. Não contesto, não respondo, Não por falta de educação ou de interesse, muito longe disso. Mas porque acho pena interromper um fluxo de palavras tão bonito, tão largo, tão tranquilo, no fundo.

(Isto dito, Francesco come carne e aceita o vinho que lhe ofereço. Mas sabe que "quando morrer não culpará ninguém se não ele próprio").

Os temas já variaram bastante, entretanto. Agora está a falar da mãe e da cozinha dela. A garrafa de Frontera que comecei no início do jantar - isto é, incluíndo o cozinhar - e da qual lhe ofereci dois copos está quase a acabar.

Transpiro abundantemente, em partes iguais devido ao picante, ao silêncio do Francesco (calou-se para comer e o silêncio é abafador) e ao calor na cozinha da Little Crew House.

Talvez não seja em partes iguais. Francesco tira a camisa, o que num gajo magro quase esquelético é sinal de calor a sério.

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Vou para a varanda fumar o cigarro que troquei por um dos copos de vinho. A varanda tem muitas vantagens: vento, Sirius, posso estar descalço sem pensar que estou a andar em cima de uma porcaria qualquer (o chão é de madeira, à moda caribenha, tábuas afastadas para escoar a água da chuva). E tem Ph., o homem que ontem estava aflito porque só tinha cem dólares, quantia com a qual me sinto quase rico.

"Estoy borracho. Desculpame" (falamos espanhol. Ele vive em Mallorca). "Por amor de Deus, Ph." não lhe respndo. "Ontem foi a minha vez".

A varanda está voltada a Sul. O vento entra pela esquerda. Sirius está a Sueste. É o único astro que se vê. Ph. foi para o quarto, Francesco idem. Volto para a cozinha. Ainda tenho um copo de vinho, e não consigo escrever bem (nem mal, de resto, como é mais frequente) na varanda, porque não há mesas. Há sofás confortáveis onde me posso sentar e esticar as pernas.

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Penso muitas vezes na reforma. Tenho duas alternativas: um cancro benfazejo ou o mar.

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Fui trabalhar para o C. e por conseguinte consegui comprar comida. Fiz uma espécie de caril com o peixe que me sobrava. Não consigo imaginar-me a pedir crédito ao chinês (ou à chinesa. Ele não fala uma palavra de inglês). À Olivia do Lagoonies é mais fácil.

Não é por racismo, claro - quando muito seria por socialismo - mas não deixo de pensar que é irónico: se a senhora soubesse de certeza me pediria para ser o mais racista possível.

(Francesco acha que são "ladrões autorizados" e que eu devia andar quinze minutos, depois do trabalho, para ir ao supermercado grande do lado francês, poupar dinheiro nas compras e ganhar em qualidade. Eu não. Estou-lhes grato por serem do outro lado da rua, por terem leite e gengibre e frango, peixe ou carne picada congelados, ovos, bacon, sal e azeite. E vinho. Nunca lá comprei utras coisas, que assim de repente me lembre).

E sabonetes. Hoje comprei um, enquanto não chegam os sabonetes / shampoos da Grão da Terra. É um luxo, eu sei, importar sabonetes artesanais do Alentejo.

Como dizia M., ontem "sê gentil contigo". Sou.

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Não tenho medido o nível de coiso no sangue. A julgar pelo tinitus deve andar na estratosfera. Bom proveito. Pelo menos adoça-a.

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O Lagoonies fechou, o vinho acabou, o tinitus urra, a loiça pede-me insistentemente que a lave, para ir dormir.

Daqui a pouco estarei a dormir. Há pessoas que não gostam de viver ao dia a dia, Acham desestabilizante, ou coisa que o valha. Eu gosto; mas não é ao dia a dia. É ao sono a sono.

14.1.15

Os outros; nós

Porque é que cada mulher fantástica que conheço tem um marido detestável?

Serei detestável, eu tambèm?

(Sou. Eu sei. Mas não é isso que quero dizer).

Mar

Se eu soubesse desenhar transformaria esta fotografia num desenho.


Erros, eros

Por onde começar? Pela cabeça - coitada? Pelos pés, tão apertados?

Por onde acabar?. Como foder uma asneira? Pô-la por cima? Por baixo? Ao lado?

A única maneira de conviver com um erro é deixá-lo foder-nos. No outro sentido a coisa não funciona: um erro é uma entidade autónoma, independente, masculina.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Hlandesas, 14-01-2015, cont. cont.

And then suddenly un oiseau s'est échappé de sa cage e o G. come a sua comida vegetariana e eu, cujo ego levou um arrombo hoje (e a V. disse "ainda bem, os egos todos precisam de vez em quando de ser amachucados") tento compreender o dia.

Não é fácil.

Espetei-me num barco fundeado. Ponto final. Não tinha o motor de bombordo e A. não me ajudou com o dinghy. Mas isso são merdices. Punhetas.

Agora estou a beber esta merda. Daqui a pouco vou fodê-la.

Depois se vè, como diz o cego à mulher. Que é surda, coitada.

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 14-01-2015 - Cont.

Uma das minhas avós ensinou-me, aos dezoito anos, que não se deve confundir amor, casamento e sexo. Eu era demasiado novo para perceber a lição, claro.

A mesma avó dizia-me que a única maneira de resolver problemas era dormir com eles. Também levei algum tempo a perceber.

A única - ou pelo menos a mais eficaz - maneira de resolver problemas é fodê-los. E quanto mais os problemas sabem, ou gostam de foder (é quase a mesma coisa) melhor é.

Na verdade, sei agora, talvez seja mesmo a melhor maneira de seleccionar problemas: os que não merecem ser fodidos não devem sequer ser considerados.

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 14-01-2015

Não sei o que o dinheiro faz à felicidade; mas sei o que a ausência dele faz à ausência dela: potencia-a. A culpa é minha, claro: deixo sempre a corda ir até ao último nó, o elástico até ao milímetro antes de rebentar. Ontem Ph. dizia-me na Little Crew House que não tinha dormido bem. Estava à espera que o armador lhe enviasse dinheiro. Já só lhe restavam cem dólares. Eu tenho dez, disse-lhe. Mas estava a exagerar. Na verdade tenho quatorze.

E J. perguntara-me se precisava de dinheiro. Disse-lhe não. Esperava ter o cheque da empresa hoje, mas ainda não foi desta.

A transferência do Ph. chegou hoje de manhã. Espero que o meu cheque chegue depressa, ele também. Estou cansado do trabalho e farto deste problema do dinheiro. Amanhã não trabalho nem que a frota seja engolida numa vertigem de avarias, num abismo de problemas a resolver.

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Trabalhar na manutenção de embarcações tem duas desvantagens: o salário é relativamente baixo e o trabalho exigente fisicamente. E uma grande vantagem: não há melhor maneira de ficar a conhecer barcos do que mexer-lhes nas entranhas. E quando, como aos fins-de-semana, é sob pressão (entre as nove da manhã e as cinco da tarde temos de os reparar) ainda mais.

É preciso uma enorme capacidade de improvisação, flexibilidade tanto física como mental, saber gerir a pressão. Qualidades boas, prazerosas.

Apesar disso tudo, preferia estar no mar.

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Escolher um sítio para almoçar é resolver uma equação com quatro variáveis: a qualidade da comida, o seu preço, existência ou não de wi-fi e a taxa de câmbio do dólar.

A ordem não é necessariamente esta; ou pelo menos sempre esta. Acabo invariavelmente no Sous-marin, que responde favoravelmente a três dos quatro critérios.

À noite a equação é mais simples: por defeito cozinho na Crew House; se não tenho dinheiro, janto no Lagoonies. Uma das curiosidades da vida na parte inferior do leque de rendimentos é que se acaba por gastar mais, pelas razões mais inesperadas.

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À tarde o vento cai, diz a meteorologia. Espero que sim. Gosto de vento, mas esta última semana tem sido insuportável. Vinte e cinco, trinta nós todos os dias, permanentemente acaba por cansar.

Manobrar na Marina Fort la Royale nestas condições exige uma concentração e um cuidado excepcionais, cansativos.

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Tenho um novo colega de quarto. É preciso reconhecer a boa sorte: tal como o Ernesto Edwin é cuidadoso, educado, não faz barulho. Ao menos isso.

Se me apanho numa casa nem acredito. Ou num barco. Ou no mar, a mil milhas do porto mais próximo. É o melhor lugar do planeta.

Ou o único.

12.1.15

Desajeito. Tolerância

Pronto, yes, sim, oui, da. Vamos deixar as palavras fugir, como se fossem veados a escapar de um aquário, mosquitos de um sítio sem luz, eu de um  bar com a música demasiado alta.

Vamos pensar em palavras. Ao acaso: música. Bullshit. Vinho. Vinho outra vez.    

Mar. Intolerância: deve o mar acolher pessoas que não são marinheiras? Não, claro. Sim. Não suporto elefantes no mar. Como será uma foca em terra?

Como eu quando estou em terra. Desajeitada.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 12-01-2015

Dia trinta de Janeiro vou à Florida buscar um barco e levá-lo até Antigua. Uma embarcação feita para a America's Cup (perdeu), agora transformada para charter.

Parece-me uma boa maneira de regressar a Antigua.

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Mais um dia de loucos. O jovem local com quem trabalho só fez asneiras. Do princípio ao fim, e não só profissionais.

Que sorte tenho com os meus filhos: apesar do pai que têm saíram bem-educados. O meu obrigado à Mãe deles é absoluto, eterno.

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No Lagoonies - e para além dele - trava-se uma feroz batalha entre a fome, o barulho (ou música) e a falta de dinheiro.

Estou cheio de fome, tenho de lá comer porque é lá que tenho crédito mas a música - ou melhor, o seu nível - é insuportável.

O princípio do fim deste calvário é amanhã, creio. Enfim, dizem-me. E eu acredito. De pouco me serviria não acreditar. C., o chefe de base é um tipo decente, vê-se à légua. E A., a responsável pelo departamento técnico, uma mulher admirável.

Às vezes penso descrever um dia de trabalho, mas depois parece-me que para os leitores deve ser uma seca incompreensível. Ou então que vão pensar que estou numa casa de doidos, e o que faço é o equivalente aquático de senhores a passear no Júlio de Matos com um funil na cabeça.

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A música da pequena banca de drogas não é tão boa como a do Lagoonies - não chega sequer a ser música - mas está mais baixo. Só por isso merece um obrigado. Só lamento que não vendam comida. A crédito, claro.

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Tenho estado sozinho no quarto, mas hoje chegou uma pessoa. Não sei por quanto tempo. De qualquer forma C. vai para a água amanhã, de maneira é provável que eu possa finalmente mudar-me em breve. Que bom seria.

Viver nm barco na marina de Fort Louis, enquanto espero a viagem para Jacksonville. O céu não deve ser muito diferente.

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Vir para St. Martin em vez de voltar para Lisboa, como tinha planeado, não foi uma decisão fácil. É táo fácil enganarmo-nos.

E tão bom.

11.1.15

Com princípio sem fim

Amanhã partimos para ontem ou hoje. E se partirmos hoje vamos para amanhã. Esqueçamos ontem.

O destino depende da partida: é por isso que ontem nunca acaba. Os dias todos: começam mas não acabam, como as viagens, as vidas e alguns amores.

Nougaro

Uma vez trabalhei num bar em Genève chamado Moulin à Danses. MAD. Moulin.

Numa altura em que praticamente não havia discotecas em Genève - e as que havia eram péssimas - o Moulin era uma espécie de porto de abrigo, símbolo de status, ponto de encontro. Era um clube privado e mais difícil lá entrar do que num harém.

De barman às vezes. Outras servia às mesas. Acabei por ser despedido: um dia um cliente bêbedo agrediu alguns clientes e uma empregada com uma faca e eu bati-lhe. Demais, no dizer dos pacifistas que dirigiam a coisa.

Uma vez o Claude Nougaro foi lá cantar. Não tinha grande estima pelo homem: alguns anos antes ouvira-o em La Chaux-de-Fonds cantar música brasileira e não achara que as canções - nessa altura conhecia-as de cor - ficassem a ganhar com a tradução para francês.

Estava de barman. Quando o concerto acabou o Nougaro veio ao bar pedir uma bebida. Ficámos na conversa, não sei se por causa desta canção. Espero que sim.

Falámos a noite toda, ele ao princípio ligeiramente mais bèbedo do que eu. Lembro-me de que tinha um complexo por ser baixo, e de que a Ile de Ré ficou, para sempre, uma das minhas canções favoritas.

Se calhar já era, não sei.






Jé estive aí

Não sei por que raio de carga de água penso agora na relação entre os países comunistas e o marxismo.

Ou na ausência de relação: nenhum país comunista representava o verdadeiro marxismo. Todos sem excepção eram deturpações. O verdadeiro marxismo mostraria ao mundo o que na verdade é ser marxista.

10.1.15

Definição

Boa música é aquela que te impede de ir dormir quando estás cheio de sono.

Ou de rum, é quase a mesma coisa.

Piadas

Tenho duas piadas para os senhores da imigração dos diferentes países por onde passo. Uma é a morada: avenida da Liberdade, nº 1, Lisboa, Portugal (não sei quem lá mora, mas desde já as minhas desculpas). A outra é a profissão: travel writer.

Diário de Bordos - Cole Bay, etc.

"Il faut monter le niveau du sax". A música do Lagoonies hoje é completamente diferente. Uma banda a tocar o que lê numa pauta. Com o nível de som perfeitamente aceitável. Tangos. Gastei uma parte substancial do dinheiro que me resta num corona Partagas. É fútil, claro. Mas acho que se deve pôr o bolso onde se põe a boca. E já agora a boca. Que se foda o açúcar.

Sax, acordeão, orgão (eléctrico, mas orgão) e um baixo. E tango, bem tocado e cantado.

"Are you a happy skipper?" perguntou-me há pouco o gajo completamente grosso que me deu boleia de Marigot para Cole Bay. "Yes", respondi. Há muito tempo que não dizia uma verdade tão grande.

Tão boa.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 10-01-2015

Poderia começar por dizer "O chuveiro da Little Crew House é comparativamente sujo", mas a frase teria um defeito: abre portas, não as fecha. Comparado a quê? Não sei. A milhares de chuveiros por onde tenho passado, por exemplo. Mas está longe de ser o mais sujo. A uma ideia platónica de chuveiro ideal. Não gosto de Platão, nunca gostei. Não vivemos uma caverna, por metafórica que seja. Ao chuveiro da mamã. À cozinha da Little Crew House.

Talvez. Não sei qual é mais sujo: se o chuveiro se a cozinha.

........
Deixei três dólares debaixo da garrafa de bourbon do G. Hoje disse-me que não estavam lá. Má sorte, mate.

Não deixo outros.

.......
Ontem a carcaça riu-se quando saiu do pique de ré do C. Hoje chorou: passei o dia a fazer ioga, outra vez. Não sabia que a cavalariça era tão flexível. Enfim, não sei se é. Sei que passa os dias em lugares onde a priori parece não haver espaço para ela e para o trabalho que a levou lá.

Mas acaba sempre por caber; e fazer. É uma cavalariça decente. Provavelmente boa de mais para o cavalo que acolhe.

.......
Muita conversa e pouco mar. Devia ser ao contrário.

9.1.15

Os bons, os maus e os inteligentes

É-me dolorosamente incompreensível que toda a intelligentsia bem pensante esteja neste momento tão preocupada em fazer a destrinça entre muçulmanos bons e muçulmanos maus.

A verdade é que até agora os "bons" nunca se manifestaram claramente contra estes actos de barbárie - o que de resto a meu ver ajuda a explicá-los -.

A mesma intelligentsia que defende a Palestina e acha os Israelitas uns selvagens.

Vómito d'alma

Uma senhora por quem tenho um infinito respeito diz-me que o DV é bom. Eu não acho. Parece-me uma merda, um vómito.

Tem apenas a qualidade de ser um vómito que vem directamente da alma.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 09-01-2015, cont.

Nunca mais vi G. de cuecas. Agora aperalta-se. Deve ser por causa da chegada de uma jovem senhora, com a qual fala bastante. Em troca ela usa-lhe o computador enquanto ele vai trabalhar (ainda não percebi bem em quê ou para quem. Sei que tem um barco que ou se afundou ou sofreu bastante com o ciclone Gonçalo. No sábado a seguir ao fim do ano tirou o mastro do fundo da laguna. Estava torcido porque foi um dos que passou debaixo da ponte. A qual estava, naturalmente, fechada).

Verdade seja dita que não o vejo de cuecas, mas vejo-lhe as cuecas: os calções nem para trapos davam. Têm mais buracos do que tecido.

Hoje tentava resolver um dilema dilacerante, passe a aliteração: só tinha dois dólares e não sabia se devia ir ao chinès comprar uma cerveja (um dólar e vinte e cinco cèntimos) ou ir ao Lagoonies (dois dólares). "É melhor ir ao Lagoonies mais tarde, quando já estiverem todos bêbedos. Agora ninguém me paga uma cerveja. Daqui a duas horas sim".

Foi, por conseguinte e justificadissimamente ao chinês.

É um dilema que eu conheço muito bem, em termos diferentes. Sou incapaz de ir a um bar à espera de que alguém me pague uma cerveja. Mas já me aconteceu, por exemplo, ter de optar entre apanhar um autocarro e beber um café (ganhava este, invariavelmente). Ou comprar comida fazendo atenção aos cêntimos.

Tinha resolvido não lhe dar nada, porque ontem ele teve uma atitude desagradável. Não comigo, mas uma coisa que lhe expôs o carácter como os calções lhe mostram as cuecas. Porém a verdade é que comprei coxas de frango congeladas para o jantar, os bicos do fogão nem para metáforas servem e acabei por lhe propor um negócio: eu dava-lhe os cinquenta cêntimos que faltam para ele comprar outra cerveja no chinês e em troca ele deixava-me usar um bocado do Bourbon com que anda a tratar uma constipação (tratamento de resto intensivo: começa ao pequeno-almoço e acaba muito depois do jantar).

Disse que sim, alegremente."Good deal". Alguém lhe deve ter oferecido a garrafa.

Infelizmente usei muito mais do que pretendia e vou dar-lhe dois dólares. Assim fica como começou.
(Acabei por lhe deixar três dólares: bebi uma rolhinha ou duas, para ver se ainda gosto de Bourbon. Gosto).

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De maneira que o meu jantar hoje vai ser um bastante estranho: cebola, pimentos, quatro malaguetas das muito picantes e gengibre salteados em azeite, déglacés em cerveja (um fundo de garrafa que pus na panela para não beber). Frango congelado frito muito superficialmente, flambé em bourbon e posto na panela a cozer em leite de coco, ao qual foi copiosamente acrescentado pó de caril e pimenta.

Talvez não seja cozinha de fusão; mas mistela de fusão é com certeza.

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A minha generosidade com o G. vem na sequência de um excesso de generosidade comigo: comprei uma garrafa de vinho que ainda não sei se é boa, mas que custou dois dólares mais do que a zurrapa habitual.

Pode ser-se pobre, mas não se devem ser miserável. O dia soberbo, sublime, mágico de hoje aguenta bem uma liberalidadezinha, um pequeno excesso ou dois.

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A cozinha da Little - mas insisto compreensiva - Crew House não é das mais limpas que tenho visto. Nem das mais bem equipadas. Cozinhar aqui não é propriamente um prazer. Hoje hesitei bastante : uma boa garrafa de vinho ou um jantar fora?

O problema estava enviesado, claro. Nunca compraria uma boa garrafa de vinho para beber nas chávenas (não há copos) do hostel. Acabei por gastar menos no chinês do que gastaria indo comer a um restaurante, tenho jantar para três dias e ainda ajudei um inglês tosco. É irrelevante, eu sei; mas que se foda a relevância.

O vinho é efectivamente melhor do que o outro. Por seis dólares não se pode pedir muito mais. O frango... bem o frango fica para depois. Ainda está a cozer. A música no Lagoonies está como todas as sextas: boa, demasiado alta e uma seca.

Nao sou muito chauvinista. Não sou nada. Mas todos os proprietários de bar deviam ir fazer um estágio ao Café Tati, sito no Cais do Sodré, em Lisboa, para perceberem o que é uma boa programação musical.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 09-01-2015

Um dinghy de 17' com um motor de noventa cavalos que não é bem um dinghy, é um tapete voador; um dia lindo; percorrer a laguna nos ditos dinghy e dia.

Tudo isto precedido por uma soberba carbonnade (de porco, pela primeira vez na vida. Deliciosa). E sucedido por um rum punch com mais rum do que punch, porque na verdade o que me faz mal na mistura são os sumos de frutas, açúcar puro. O rum não: é açúcar destilado, sem demónios.

Esticando um bocadinho a definição de trabalho posso mesmo dizer que tudo isto foi trabalho.

........
Como levar a sério a burocracia francesa?

Sinto-me como se estivesse a combater um tanque armado com uma fisga. Terei uma quantidade infinita de pedras? Se sim, ganho. Se não perco.

Uma vez mais confirmo a minha opinião sobre os governos, todos: não há declaração de intenções, de objectivos, de projectos, programas e mai-la puta que os pariu que não seja balela.

A próxima vez que ouvir o palerma do Hollande falar de luta contra a exclusão social esfrego-lhe a minha história nas ventas. Anda aqui um pobre skipper solitário e longe de casa a tentar integrar-se na sociedade francesa e só lhe aparecem obstáculos pela frente.

Parece que estou a subir uma escada rolante descendente. Só temo que isto se transforme num desafio. Queira deus que não.

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Hoje explicava ao Greg porque não podia pagar o alojamento e ele, mal eu começara, perguntou-me "Estás a trabalhar do lado francês? Então não há problema".

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Vou deixar o dinghy / tapete voador antes do segundo rum punch (e na happy hour, ainda por cima). Sou um fraco carácter, mas profissional.

De qualquer forma a partir de amanhã vou ter uma semana de dias loucos, nos quais o profissionalismo se mede pela capacidade de gerir o caos e não de o criar.

8.1.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 08-01-2015

É preciso começar por dizer que a burocracia francesa ganhou o primeiro round por KO técnico. Técnico num sentido metafórico. Num arremedo de proteccionismo inqualificável a derrogação que me tinha sido concedida pela própria burocracia francesa não foi aceite.

Alguém um dia definiu burocracia como sendo um sistema em que o funcionário que nos atende ao guichet tem demasiado poder. Hoje não foi um funcionário do guichet; foi o chefe do escritório, o equivalente da pessoa que em Fort-de-France há quatro anos me passou o documento, com uma rapidez notável, porque eu precisava de tabalhar.

Mas enfim, posso pelo menos trabalhar nos pontões, coisa que vou fazer toda a semana que vem; e posso trabalhar noutra base da empresa de sonho que me acolhe, fora do território francês. E posso continuar a procurar empregos que não impliquem a burocracia gaulesa.

E já tenho uma residència oficial, primeiro passo para ter uma conta no banco.

........
Hoje à tarde fui trabalhar para o C., instalar gualdropes e respectivos moitões. Um trabalho que me dispensa de fazer ioga: o pique de ré do C. não é feito para gajos do meu tamanho. Nenhum é, num sloop de 43', verdade seja dita.

(Quando saí de lá, o meu corpo desatou a rir-se. Quero dizer o corpo todo. Músculos, articulações, veias e artérias... tudo a rir à gargalhada. Eu também ri, mas mais discretamente.)

No fim do dia J. leva-me a casa dele para tomar um duche, dá-me roupa lavada e paga-me o dia, apesar de eu lhe estar a dever dois dias. Hoje disse-lhe que não queria o dinheiro: assim cada vez que trabalho aumento a minha dívida, não a diminuo.

Limita-se a responder que eu preciso do dinheiro - o que é imegável - e traz-me ao Lagoonies, onde aproveita para pagar uma bebida ou duas.

M., J., a empresa para a qual trabalho e não me pode pagar por questões legais mas que faz tudo para me manter, R., que hoje me ajudou a obter a residência, C. que fez a factura em seu nome para que eu possa, um dia, ser pago -... Se alguém me ouvir dizer que estou sozinho dê-me, por favor, uma martelada na cabeça.

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Hoje pela primeira vez desde que saí de Galveston medi a taxa do coiso no sangue. Estava altíssima. Parece que é por causa do tabaco. Dei um maço acabado de comprar ao R e deixei de fumar.

A cavalariça merece e o cavalo também.

Todos somos Charlie

Dizer Je suis Charlie não significa apenas que se está de acordo ou se gosta Charlie Hebdo. Significa reivindicar o direito de pensar ou dizer coisas eventualmente ofensivas para terceiros.

É por isso que não percebo aqueles que dizem que não são Charlie. Todos somos Charlie, excepto os vermes, as amibas e quem não tem coluna vertebral.


7.1.15

Os barcos e as secas

Só se deve falar de barcos com pessoas que sabem a seca que é falar de barcos.

Disparates, coros

Um dos grandes inconvenientes de ter um blog é que já há tantos disparates por aí que juntarmos-lhes os nossos é desnecessário.

Isto dito, tenho imensa pena - raramente, mas tenho - de não ver televisão. Acabo de ler um post que é uma crítica a um anúncio de televisão. Se bem não seja impossível, parece-me pouco provável que o anúncio seja tão mau como a crítica.

Deixar-me-ia indiferente se não tivesse ficado sem vontade de escrever. Para dizer asneiras não é preciso um coro.

Camus

"Faire souffrir est la seule façon de se tromper."

Caligula

Pena de morte?

Sou genericamente contra a pena de morte. Mas não sou fundamentalmente contra.

Acho que o autor do massacre na Noruega, por exemplo, devia ser morto. E os autores deste também.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 07-01-2015 - cont.

O dia começou mal, claro. A bárbarie é uma das coisas que ajuda a relativizar muitas outras. Enquanto esperava R. para tratar da residència - não apareceu, mas o meu stock de fúria estava esgotado e não me importei muito - vi televisão no café ao lado da Capitania.

Sou mau juiz, porque raramente vejo televisão e leio jornais (a menos que se considere ler os resumos do Observador como ler jornais. Trata-se apenas de uma boa aproximação). Mas pela primeira vez ouvi de boca de um dirigente muçulmano uma condenação clara, explícita, firme, sem ambiguidades.

É por aí que tem de se começar: enquanto a comunidade muçulmana não condenar estes atentados a amálgama entre muçulmano e terrorista não terminará.

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R. não apareceu, já o disse. Fica para amanhã. Mas aprocura de trabalho deu alguns frutos: três dias de charter numa empresa rival daquela em que trabalho, ou trabalhava; e um cata de 52' que precia de uma tripulação skipper / stew.

Estava com C., uma jovem italiana com bastante experiência do meio e me propôs procurarmos trabalho juntos. Infelizmente a rapariga fala de mais e disse duas ou très coisas que não devia ter dito ao agente.

Vamos ver. Tenho o perfil e pedi um salário no limite mais elevado da fasquia. Um bocadinho de estabilidade sem problemas de residência, bancos e concomitantemente cartas de condução vinha mesmo a calhar.

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Afinal a luta entre o sistema imunitário foi breve, intensa - passei o dia todo meio febril - mas acabou com uma clara vitória da cavalariça. ajudada apenas por um toalhete anti-séptico que expirava em 2002 e trouxe do TL, juntamente com uma série de coisas de primeiros socorros que os armadores queriam deitar fora. Não acreditava em prazos de validade para gazes, ligaduras e quejndos e agora tão pouco acredito neles para o Iodine (suponho que seja a mesma coisa que Betadine, mas não tenho a certeza).

A infecção não passou mas está reduzida a uma mísera sombra de si mesma.

(Também usei uma daquelas coisas que desde a gripe das aves ou outra farsa qualquer se encontram em todos os escritórios e dizem "Mãos limpas começam aqui". Talvez tenha sido daí e não do Betadine. Mais uma razão para estar feliz com os três dias de charter, foi nessa empresa).

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Bebo o meu rum punch no Lagoonies. É mais barato do que um copo de vinho, e de qualquer tenho de incluir fruta na dieta. De repente ocorre-me uma pergunta fundamental, basilar: em quantos bares já terei estado desde que comecei a frequentar bares?

Que pena tenho de não poder dedicar muito tempo a este assunto fundamental.
O misericordioso voltou a atacar. Puta que o pariu.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 07-01-2015

Os meus telefones continuam a ser mortalmente atraídos pela água, qualquer que ela seja. Ontem no regresso à minha pequena e, acrescento agora, generosa e compreensiva casa escorreguei na valeta e caí naquela mistura de lama, esgotos, algas e lixo.

Para minha surpresa o telefone continuou a funcionar, apesar de todo molhado e coberto de lama. Só à noite me apercebi do verdadeiro dano: não carrega. Espero que seja reparável.

Compreendo esta atracção dos meus telefones pela água: eu também a tenho. Mas só pela do mar. E não é mortal, a minha atracção. Nem vital, de resto. É simplesmente vida, e vida dispensa adjectivos.

Eu fiz uma ferida na mão. Infectou a uma velocidade lancinante, claro. Noutras circunstâncias teria sido interessante assistir à luta entre a fauna bacterial de uma valeta de Cole Bay e o meu sistema imunitário. Infelizmente com a crise de chikungunya que por aí vai não posso arriscar e hoje vou à farmácia comprar uma pomada antibiótica. O médico bem me disse para me vacinar, mas por uma razão qualquer não o fiz.

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Escrevo de manhã. Hoje não vou trabalhar: vou dar os primeiros passos para a abertura de uma conta bancária. Até aqui o grande obstáculo tem sido a ausência de uma residência fixa. Antes sequer da ausência de fundos: uma concha vazia é uma concha, não um bocado de calcário, tal como uma conta é uma conta, vazia ou não. Se tudo correr bem esta tarde terei oficialmente uma residência. É o primeiro passo de um longo e pouco apetecível calvário.

Fictícia, claro, a residència. Mas que importa? Não há ficção maior do que a da burocracia. Responder-lhe com outra, bem menor é quase um imperativo moral. E residência por residência St. Martin não é a pior. Pelo menos aqui a carga fiscal é relativamente baixa. Não vai durar, é certo: a autonomia e o fim dos subsídios de França encarregar-se-ão disso. Mas ainda não é elevada.

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6.1.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 06-01-2015

O vinho é francamente execrável. O peixe não (Swai is a white-flesh fish (typically available in fillet form) with a sweet mild, taste and light flaky texture that can be broiled, grilled, or coating with bread crumbs and fried, according to experts. It can be prepared simply, but also takes well to sauces. A 3.5-ounce serving of plain fish contains around 90 calories, 4 grams of fat (1.5 saturated), 45 grams of cholesterol and 50 milligrams of sodium. Not bad.)

Comi-o cozido. Não é grande coisa, mas tão pouco é péssimo. Na verdade pouco me importa. Hoje tive um magnífico almoço a bordo de um 60' do qual o tripulante e a namorada do skipper são italianos. Spaghetti (dois molhos diferentes) e - Allah uAqbar - Parmigiano a sério, saboroso, picante, seco, lindo.

Comprei uma grande embalagem do peixe. Vou comer swai muitas vezes, mesmo que os almoços não o compensem.

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A minha luta contra a burocracia francesa continua. À tarde tive uma garantia - informal mas válida - de que se a resolver terei emprego no sonho de empresa que me quer dar trabalho. Entretanto fiquei a saber que mesmo o trabalho de pontão - eufemismo para manutenção - vai ser difícil.

Pelo sim pelo não voltei a procurar trabalho. Até hoje perdi todas as batalhas contra a burocracia nas quais estúpida ou ingenuamente me envolvi. Com uma excepção: a obtenção da Dérogation no Marin em 2011. Mas isso não foi uma luta. O senhor queria ajudar-me. Agora a coisa fia mais fino: os adversários são bancos e segurança social.

Reintegrar o grupo de pessoas que têm uma residência, conta bancária e - aqui fica a promessa - carta de condução é mais complicado do que eu pensava. Há dois grupos de adversários: um externo e outro interno. Não basta querer. É preciso querer.

5.1.15

Mediocridade, ferocidade

O inimigo da mediocridade é a ferocidade. Portugal é um país de medíocres porque não há ferozes.

Saber, aprender

Não sei tudo, mas sei aprender.

Kowtow, tempo

Foi num bar de Gibraltar, aproximadamente pelos anos de setenta e cinco ou seis que pela primeira vez ouvi falar dos Steeleye Span e especificamente desta canção.

Já por aqui falei do bar: ficava num primeiro andar, tinha um bouncer que lançava, literalmente, os soldados - dos quais havia nessa altura dez mil na cidade - pelas escadas abaixo. Nele apanhei um dia uma bebedeira de Tia Maria que me ficou na memória - ou nas memórias, a hepática incluída -.

A senhora que aqui canta chama-se Maddy Prior. Merece um vénia, ou duas.



Foi nessa noite que aprendi a equilibrar três copos assimetricamente.

E que conheci outra grande cantora inglesa chamada Sandy Denny.





Hoje apetece-me falar disto: do tempo que não passa.

O tempo é uma ilusão da memória. Somos o que fomos, amamos quem amámos, vivemos o que já vivemos.

Selenitas, Selenos et al.

Se alguém um dia me perguntasse qual é o meu astro favorito eu diria "a Lua". Todos gostamos do sítio de onde vimos.

(Esta é a forma romântica. Há outras razões. Já alguém alguma vez teve de usar creme de protecção lunar? Já alguém alguma vez ficou cego por olhar para a Lua? O que é mais bonito: entrar num porto à luz do Sol ou à da Lua? Onde foi dado o maior passo da humanidade: no Sol ou na Lua? Já alguém alguma vez viu o Sol na televisão?)

Depois da Lua é Sirius. Ou Canopus, ando há anos com esta dúvida astronómica. Sirius é muito brilhante - é por exemplo a única estrela que agora vejo quando vou à varanda fumar um cigarro -. Canopus brilha com muitas cores, parece que tomou ácido, ou coisa que o valha.

Uma vez tive uma alucinação com Canopus, ao largo das Filipinas. Parecia um OVNI. Só ao fim de algum tempo me apercebi que não era ela que se movia, era o navio.

Hoje Sirius não se mexe. Espera pacientemente que acabe a vodka, vá tomar banho e vá para a cama. Como eu, de resto.

Árvore seca

Seria preciso que de uma praia a areia o vento o mar o sopro o calor a luz voltassem e assim sílaba a sílaba palavra a palavra se construísse um mundo.

Ao longe o mar, liso como o telhado de um armazém. Não há vento. Arreei o pano. Árvore seca.

 A sec de toile, matelot. Dans le gros temps.



Que se foda a árvore seca. Bebamos à saúde do Rei de França e dos apaixonados.



E à do Jean Françouest de Nantes.



Tiens bon, matelot.



Je suis content.



Je suis le maître à bord.

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 05-01-2015

A prelecção de hoje de Francesco começou com uma defesa acérrima das denominações de origem controlada: ofereci-lhe vodka de uma garrafa que vinha de um dos barcos. As empresas de charter gerem diferentemente os restos das provisões dos clientes. A que gentil mas algo ambiguamente me acolhe no seu seio faz um monte e divide-o pelos empregados. Na partilha coube-me uma garrafa de vodka já meia - ou ainda meia, depende da perpsectiva -. (Ambiguamente é injusto. Já encontrei uma maneira de ser pago, apesar de saber que vai levar algum tempo e que até lá terei de navegar em árvore seca).

Francesco acha que aquilo não é vodka. Viu o rótulo, contrariamente a mim. E descobriu que não vem de um dos países que na sua opinião têm o direito de fazer vodka.

Na verdade não sei de onde vem, Nunca me dei ao trabalho de não respeitar um velho provérbio portugês que fala de dentes e de cavalos oferecidos.

Da vodka passou ao vinho. Não uso o singular por acaso ou facilidade. Falou de vinhos franceses, explicou-me a diferença entre vários tipos de vinho da Emilia Romagna - dos quais creio que vou gostar do Amarone - defendeu os vinhos franceses apesar de achar que são menos variados do que os italianos. Do vinho foi fazer uma visita à cidra e ao sherry, não me lembro bem por que ordem (e não, hoje não estou bêbedo).

Até aqui tudo bem. Estava a fritar peixe em azeite de gengibre e alho, a cozer grão-de-bico (a única leguminosa erótica da natureza). Francesco falava, eu dizia que sim, fui comprar vinho ao chinês e ele continuava a falar. Pelo menos apercebeu-se de que eu nao estava: quando voleti disse-me que baixara o lume do azeite durante a minha ausência.

Foi mais ou menos quando já tinha quase acabado de cozinhar e estava a preparar-me para comer que comecei a entrever uma certa confusão nas opiniões do jovem - "quase quarenta" (a propósito da vodka) -. [Vi agora que foi feita no Texas e custou quase vinte e cinco euros, preço exorbitante para uma garrafa de álcool em St. Maarten]. Explicava-me então que a cidra era feita de uvas que só crescem na Escócia e mais meia dúzia de países.

A vodka texana é boa. E não é por não ter sido eu a pagá-la.

O pior foi quando Francesco passou das DOC para a Europa. Tem ideias confusas sobre o assunto e deixou-me baralhado. Não sabia como explicar-lhe que ouvir as suas opiniões sobre a União Europeia não era a minha prioridade.

Uma vez mais o Don Vivo salvou-me. Comecei a escrever este post e para aí no terceiro parágrafo Francesco despediu-se, Eu disse-lhe "Boa noite, desculpa tenho uma coisa a escrever" e pronto.

Fico com a minha vodka, apercebo-me de que comprei um branco que detesto (e vou ter de beber, isto não está para desperdícios), preparo-me para me ir deitar. Não estou cansado, finalmente. O ritmo do trabalho foi calmo e aprazível. Mas ontem dormi pouco - problema que atribuo a não ter visto o preço da vodka - e ainda tenho de ir tomar o duche da noite e lavar a loiça (pouca. O grão-de-bico também é erótico porque não exige muita loiça).

Enfim. Seja pelo que for vou deitar-me à hora habitual e dormir como é habitual. Amanhã tenho outro dia de trabalho, A empresa de sonho que mo proporciona tem o mesmo objectivo do que eu - pôr-me no mar o mais depressa possível -.

Não fora a horrível notícia com que comecei o ano seria um homem feliz.

Mas isto dos ciclos é assim. Pouco há a fazer. Quando há vento pela proa há que bolinar. O resto é conversa de bar de clube náutico.

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A música do Lagoonies é muito boa, mas não é adequada para quem sai de um dia de trabalho, mesmo calmo. A relação do rock da minha adolescência com o tabalho é ténue; e cansativa.

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Por baixo da Little Crew House - e, manda a verdade que o diga, de uma forma totalmente autónoma desta - funciona uma pequena banca de venda de erva e crack. Passo por ela cada vez que vou tomar banho (refiro-me ao duche da noite; no da manhã a banca está deserta).

Os rapazes que a mantêm são simpáticos e já perceberam que só gosto de derivados de uvas, açucar e cereais. Desejam-me educadamente uma boa noite e, por vezes, oferecem-me um copo de rum.

O qual recuso. Não por falta de educação, espero que eles o compreendam.

4.1.15

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 04-01-2015

Só não posso ficar doente. De resto posso tudo. Apanhar a chikungunya agora seria uma catástrofe.

Enchi-me de repelente. E acredito, claro (apesar de saber que é mentira) que lhe estou imune porque já tive paludismo. Já quase morri dele. Isto devia imunizar-me contra uma série de coisas, incluindo crenças absurdas.

Que se fodam as crenças. São todas absurdas, de qualquer forma. Se apanhar chikungunya sobreviverei, como sobrevivi a tudo o que me aconteceu nestes anos todos.

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O condutor do bus que apanhei hoje de regresso a casa é obeso. Os braços mal chegam ao volante ou às mudanças. Conduz muito inclinado para trás e mesmo assim o volante entra-lhe pela barriga dentro. É feio: de perfil (sentei-me à frente, como sempre faço quando o lugar está vazio) parece uma estátua da Ilha da Páscoa com os lábios mais grossos e o nariz mais achatado.

Fala alto, grita mas num tom contínuo, liso, como se estivesse a fazer um discurso e não a dialogar; há uma discussão entre ele e uma ou duas passageiras. Percebo quase nada do que dizem: falam em papiamento, e apesar das origens portuguesas (papo) da língua só percebo as palavras inglesas. É uma questão de dinheiro e trajectos: a (ou as) senhoras queriam que ele as levasse a um sítio ao qual não é suposto ir e não lhe pagaram o suficiente, na opinião dele. Na delas sim.

Acabou por levá-las, apesar de visível - e audivelmente - insatisfeito (e de elas lhe terem dado mais dinheiro).

Aproveitei a deixa para lhe pedir que se desviasse e me viesse deixar à Crew House. Estou exausto, meio febril, tive outro um dia de loucos - trinta nós de vento e cabos nos hélices à saída do pontão de fuel logo pela manhã, seguida pelo habitual caos à tarde - está a chover e frio. Os quinhentos metros a pé são de repente dispensáveis, violentos, uma montanha.

Começou por me dizer que não. "E onde deixo estas pessoas?" perguntou num grito, como se eu estivesse do outro lado de uma rua com quatro faixas de rodagem e não a meio metro dele.

Não respondi. Pouco depois das senhoras desceu o único passageiro que estava na carrinha. Tirei cinquenta cêntimos da carteira e disse-lhe que agora estávamos sozinhos e me podia levar. Mais um grito, no final do qual percebi "one dollar". Dei-lhe o dólar, ele respondeu-me "now we are talking" e veio deixar-me à porta.

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Tive muita sorte com a história dos cabos nos hélices. Ainda estou para perceber de onde vieram. Passei a razar dois barcos fundeados e larguei ferro a tempo de ficar a dois metros de um recife. Depois tive de safar os cabos e mudar um dos hélices. Duas horas de trabalho que contam por quatro ou cinco.

O médico tinha razão: a carcaça é simpática.

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Na sexta-feira trabalhei para o C. Pouco e mal. O ano começou com notícias péssimas. J. diz que está tudo bem, mas eu não estou satisfeito. Disse-lhe que não lhe cobrava as horas. Não me importo de trabalhar pouco; mal chateia-me. A verdade é que estava com a cabeça alhures.

Não existe trabalho manual, por mais que por vezes pareça.

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St. Maarten é um não-lugar. Deve ser por isso que começo a gostar tanto de aqui estar.

Parte francesa, parte holandesa, parte marítima, parte laguna, dólares, euros, aventureiros, empreendedores, regras e ausência delas. Tudo cabe aqui. Mesmo um casal de brasileiros que está num barco e pensa que está em casa.

Fui ajudá-los a atracar. Bow thruster e stern thruster num 54'.  São boa gente, mas não são marinheiros.

À noite embebedei-me. Não com o que bebi, que foi relativamente pouco - e na sua maioria pago pelo armador do 54, aqui fica o meu obrigado - mas pelas merdas todas que se estavam a acumular há algum tempo e que no primeiro dia do ano atingiram o pico.

Não percebo nada das vantagens ou desvantagens farmacêuticas do álcool; como diluente de merdas não conheço melhor.

Enfim, conheço: o mar. Mas agora estou em terra, não estou no mar.

O que gosto da burocracia não é descritível nem recorrendo a todos os vernáculos de todas as línguas, papiamento incluido, qualquer que seja o nível em que seja expresso.

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A população residente da Little Crew House é reduzida - Allah uAqbar: estou de novo sozinho no quarto, depois da breve aparição de uma alemã simpatiquíssima, caladíssima e não muito bonita - e composta por uma mistura de pessoas que têm em comum apenas o facto de serem pessoas. Homens, mais precisamente. Há um inglês cujo nome esqueci que se passeia em cuecas como se estivesse de smoking, Fala com um horroroso sotaque cockney e  só percebo o que ele me diz à terceira vez. Agora já quase não me fala. Deve pensar que sou burro. Tem razão, é certo, mas não é por não perceber o que me diz. É por razões mais complexas e infelizmente menos fáceis de contornar.

Francesco é um italiano do sul. Cinco minutos depois de ter falado pela primeira vez com ele fiquei a saber como calar cães que ladram demasiado (há dois no ferro-velho ao lado da hostel. É com balões cheios de água). Fiquei a saber uma quantidade incalculável de coisas, na verdade; mas lamentavelmente esqueci-me de todas (excepto dos balões para cães). Foi no dia em que estava grosso. É pena. Aposto que tudo o que ele me ensinou é interessantíssmo.

Mark é um jovem australiano que entre outras coisas é chef, presumo que de cozinha. Costuma elogiar o cheiro da comida que faço, mas de resto falamos pouco: é jovem e bonito e prefere poupar as suas palavras para senhoras jovens e bonitas.

Provavelmente nunca aprenderá que a palavra-chave da expressão sexo oposto é oposto e não sexo. (Como alguém deve ter dito antes de mim).

3.1.15

Sócrates et al.

Há uma certa inevitabilidade nisto. Em toda a parte do  mundo um político preso pensa que é um preso político.

1.1.15

De regresso à casa velha

Fragment

"Les douleurs se mélangent comme de la peinture: mets un peu de douleur-mineure dans la douleur-majeure pour blanchir celle-ci un peu et noircir l'autre, un peu aussi. Elle le suportera".

A medida das coisas

E depois de repente temos perante nós a medida de todas as coisas e todas as coisas nos parecem bem pequenas.

Música



Navegar, prever

Navegar é a arte de prever o pior. Mas só o pior possível, imaginável. Não o pior como ele será realmente.

Se nos puséssemos a prever o que será como será não sairíamos sequer da cama.

Telefotos - Do bom uso das especiarias