31.8.20

Sílabas, simplicidade

No fundo,  trata-se apenas de exprimir a complexidade e a beleza da vida com um mínimo de pentassílabos.

Não é fácil: quanto menos sílabas mais trabalho.

Diário de Bordos - Porto, 31-08-2020

Uma palavra que não me larga o espírito: vastidão. Da gratidão: sou capaz de passar por baixo de escadas; da sorte: tenho amigos que me ajudam nas passagens; de tudo: o meu mapa-mundo dos afectos é vasto e profundo e tudo o que ele contém é meu, está vivo e tangível. Pode a maré estar baixa, vazia quanto quiser que a carta não mostra nunca o fundo. Pode por vezes ver-se um baixio ou outro, um escolho não assinalado, uma corrente adversa, um dia sem vento. Mas é tão pouco, comparado com a vastidão de tudo o que ela contém.  

O Porto, por exemplo. Tenho andado a tentar perceber porque tanto gosto desta cidade, que dantes tanto detestava. Tem um efeito apaziguante em mim. A juventude das pessoas - não sei qual a diferença entre as pirâmides etárias do Porto e de Lisboa, mas estaria tentado a apostar que aqui há muito mais jovens do que em Lisboa. A limpeza - esta cidade é limpa, pelo menos nas áreas por onde a percorro. As pessoas: parecem-me menos façanhudas, os semblantes menos cerrados, há mais risos.

Não sei. Pode ser uma falsa impressão, sou-lhes propenso. O que não tem nada de falso, isso posso afiançar, é o gosto que tenho cada vez que aqui estou. 

Verdade seja dita não faço muito. Dou descanso à anca e deixo entrar a calma que vejo em tudo o que me rodeia. Vasto programa, juro, apesar de não parecer. A calma, a alegria que vejo nas pessoas, a beleza têm de desalojar a merda toda que se tem acumulado estes dias todos. Vasta sorte: esta coabita bem com a gratidão. Quando um dia morrer espero que a minha última palavra seja «Obrigado». Ou «Amo-te vida, apesar de todas as merdas que me fizeste.»  Percebo finalmente de que ri a hiena da história: da vida.

Esperam-me dois ou três dias de férias, que serão passados entre o hotel, o Aduela, um bar cujo nome não recordo e fica nas redondezas, o Papagaio - descoberta recente, abençoada - o Piolho e pouco mais. Tentarei não ir à feira: não há pior tortura do que ter livros à frente e não os poder comprar. Talvez chova a tempo de ainda lá dar um salto. Que se lixe: estou de  férias, estou de purga, estou feliz. O resto é basicamente ruído de fundo, como o barulho de um rato que corre debaixo do palco durante a prestação da orquestra sinfónica.

.........
Há momentos nestas ruas que me transportam para um quarto de criança que fizesse construções com Legos, Mecanos e todas as outras marcas de jogos de cosntrução infantis. É uma mistura alegre de estilos, harmoniosa, leve. Como em Espanha, de resto. 

O que o tempo muda: alegria, leveza, harmonia são as últimas coisas que pensaria um dia associar ao Porto. 

.........
Quanto mais penso na morte mais grato me sinto.


(Para a M. B., amiga de muitas escadas, pontes e cartas.)

30.8.20

Divagação

Escrever sem descrever é o melhor  remédio. 

Disparates, vida

O Don Vivo é o diário de alguém cujos dias são vastos, altos, baixos, curtos, reais, sonhados, imaginados, projectados, descritos, inventados, planeados, improvisados e por aí fora. 

Quando me perguntam sobre o que é, respondo: "disparates", mas o que na verdade quero dizer é "vida".

Diário de Bordos - Porto, 30-08-2020

Venho ao Aduela depois de uma sessão catastrófica na feira do livro. Entre as duas ficou uma soberba conversa com uma amiga que vejo ocasionalmente, com quem discuto no FB frequentemente e de quem gostarei sempre. Uma conversa frente a frente enche os tanques de amizade muito mais e melhor  do que mil diálogos num monitor. Ou, dito de outra forma: numa conversa, mais vale ter de permeio dois copos do que dois monitores. Vimos a pé, ela para o metro eu para o hotel que aqui no Porto me faz de casa. Depois venho ao Aduela. 

A maré já nem baixa está: está vazia, maré baixa de Equinócio; a anca lixa-me o juízo e o andar; sinto uma conjuntivite a chocar - hoje percebi que me vêm da máscara - e apesar de tudo regozijo-me. Tenho sorte, posso andar debaixo de escadas, como cantava uma senhora gira há muitos anos.

A música no bar está alta, mas hoje gosto dela - é blues eléctrico, Chicago. Ao contrário de ontem, que era uma porcaria sem nome. A música só está demasiado alta quando não se gosta dela. Ah, e o almoço não foi grande coisa. 

Que chatice, nada consegue irritar-me! Verdade seja dita: o vinho da casa é óptimo, as pequenas (infelizmente de outras casas) são lindas, não tarda chove e a maré enche, a conjuntivite trata-se em menos de nada, a dor na anca não tardará mais de uns meses a desvanecer-se, a merda da Covid idem.

É em dias assim que percebo os católicos. Com uma diferença: não preciso de esperar pelo outro mundo. Basta-me esperar por outros dias. 

Jornalismo, definição

O jornalismo é hematófago. Quando não tem sangue inventa-o.

29.8.20

Discrepâncias, medo e drogas

Há uma discrepância enorme, abissal, entre a percepção que a maioria das pessoas faz do vírus e o que os números dizem. Isto em si não é particularmente grave, todos sabemos que o homem é um animal de percepções. Um animal pode fazer e faz muitas coisas que o prejudicam, mas não vê desertos onde há pastos verdes e frescos. O homem gosta de imaginar tragédias onde não as há. Para o animal, o medo é um simples mecanismo de defesa. Para o homem, é uma necessidade ontológica. Há alguma religião que não se baseie no medo? Até o budismo ameaça de downgrading na próxima reencarnação quem não se portar bem nesta. O medo, na humanidade, deixou de ser apenas uma estratégia de defesa, um aviso ao corpo para este produzir adrenalina em doses suplementares. A adrenalina é uma droga barata e o homem viciou-se nela, uns de uma forma outros doutra. 

(Enfim, barata é uma maneira de dizer. É barato a cada pessoa produzi-la, mas os custos colectivos podem ser muito elevados, como se vê.)

O problema é que a humanidade tem tendência a impor as suas percepções aos outros como se fossem verdades absolutas e não são. São verdades relativas. É óbvio que acredito na boa-fé de quem me diz na rua para pôr a máscara. Essa pessoa está intimamente persuadida de que aquele bocado de pano (ou outra matéria qualquer, aquilo não é pano) lhe vai salvar a vida. Infelizmente para mim, ela foi buscar essa convicção algures e a impressão de que ma pode impor ao governo.

É pena não podermos mudar o "algures" - a liberdade da imprensa é fundamental - e termos tão pouco controle sobre o governo.

Queria? Já não quer?

Hoje ouvi uma palermice de um empregado de mesa que deixa a do título a léguas:

- Posso sentar-me naquela mesa?

- Na cadeira pode. 

Missão

Visivelmente, a maioria das pessoas não sabe ou não percebe como funciona o sistema imunitário, o que me deixa inquieto a dois propósitos. Primo, o ensino. Quando acabei o liceu, em 74, tinhas noções sobre o funcionamento do nosso corpo, sobre a forma como se defende das doenças, como cria anticorpos, etc. Não me parece que este conhecimento - admitidamente básico (mas correcto) - seja partilhado por estes mascarados todos. Secundo, o futuro: se tivesse filhos em idade de receber conselhos quanto a cursos, sugerir-lhes-ia medicina, sem hesitar. Especialidades: alergologia e doenças auto-imunes. Impedir as crianças de desenvolver imunidades é um crime que vai ser pago em alergias e doenças relativas; será uma mina de ouro. A crendice, a ovelhice, a necessidade de pensar como a manada vêm da ignorância, imagino. 

Não sei. Talvez seja inata. Conheço muita gente educada e adorável que acredita que este vírus é diferente dos outros, é um virus especial, incapaz de se propagar por causa de uma máscara de pano ou capaz de matar ao molho, como o alecrim. Terão esquecido aquele princípio básico da virologia segundo o qual um vírus ou é muito letal ou é muito contagioso, mas não pode ser os dois? (Este não aprendi no liceu, eu sei. Aprendi aquando do Ébola, se não me engano.) 

Não sei e cada vez sei menos. É horrível. Sempre acreditei nas pessoas e vejo agora que o desprezo dos leninistas pelas "massas" era mais do que justificado. Próxima missão: não permitir que este desprezo se incruste em mim.

28.8.20

Plaka e muitas outras coisas que agora não se vêem

Habito esta carcaça que pouco a pouco se desfaz. É como viver dentro de um terramoto ao retardador. Aquela semana em Atenas depois do sismo foi uma antevisão do que me espera: tudo colapsa à minha volta menos o M. e respectiva, o dono da pensão (nessa altura não havia hostels), eu. Éramos poucos. A cidade desfeita, demolida, habitada por meia dúzia de resistentes (no meu círculo. Outros haveria). Não por heroísmo ou estoicismo. Nada disso.

Questão de gozo, de revolta, de vida.

Lembro-me do café com brandy nas tascas da Plaka... Lembro-me de mais coisas do que agora quero aqui contar. 

Hoje vejo este corpo que se desfaz e o vinho que lhe falta, coitado e penso na Plaka. Estúpido de mim!


Seja como for

Na verdade, o problema é relativamente simples: consiste em digerir o facto ineluctável de que o mundo em que um gajo cresceu está a ruir. Todos os mundos em que todos os gajos cresceram ruíram e ficaram melhores (salvo raríssimas excepções). E isto desde que a humanidade existe.

Só não percebo o que pode ficar melhor a partir desta merda, mas suspeito que de todas as formas não estarei cá para ver.

Daqui a pouco

Diga-se o que se disser, é no Antiquari que a boémia ainda tem sentido. Pouco mas tem. Aqui fica uma homenagem, um agradecimento e uma dor: tenho de acordar aqui a bocadinho. 

Dos reconfortos

Grosso modo, um homem sabe que não está a fazer tudo mal quando um senhor, verosimilmente maiorquino, de certa idade (ou seja, de uma idade igual ou superior à de um homem) lhe diz que o chapéu é elegante.

Um gajo sabe, obviamente, que o chapéu é elegante. Por isso o comprou, na Sombrereria Casa Juliá, que está para Maiorca como a Casa Ruas está para Lisboa.

Mas vê-lo aprovado por alguém que estereotipadamente não diz nada se puder estar calado... É reconfortante, reconhecei.

27.8.20

Adivinha de quinta à noite

Esta "pandemia" mata zero vírgula setenta e duas pessoas em cada milhão de quê...?

Se respondeu formigas está enganado. 

Se respondeu asneiras na imprensa também. 

Se respondeu pessoas está certo.  V. precisa de juntar um milhão e trezentas mil pessoas (contas de cabeça. Espero que os meus amigos matemáticos me corrijam) para ter um morto - normalmente com mais de oitenta anos, obeso, diabético e cardiopata.

Outra opção...

...ir à ròla do sono e só acordar quando a vaga de estultícia tiver passado.

À ròla do mar

Pairar, derivar, ir à ròla... Palavras diferentes para designar basicamente a mesma coisa: não tenho nada em comum com esta gente, não quero ter, não saberia mesmo que quisesse.

É impossível que os políticos não tenham acesso à informação que por aí circula. Se lhe ligam peva não é por serem idiotas, não são. Nem por quererem salvar o Soros / Gates / S. Francisco de Loyola / [introduzir nome de teoria da conspiração preferida].

É para adquirirem um capital político que lhes permita dizer "fizemos tudo o que pudémos", "não houve mais mortes porque  tomámos medidas", etc. Quando houver provas irrefutáveis (ou pelo menos fortes, irrefutável não existe em ciência) já estarão na reforma ou no conselho de administração das grandes empresas.  

Quem paga esse capital à cabeça somos nós, acreditemos ou não em patranhas. E depois andam aí feitos gado ovino, máscara na cara e "é a lei" na boca. Ou asinino, vá lá saber-se.

"Conheço-os. Não sou um deles." Antes ir à ròla do mar.

Se calhar

Cheira a pataniscas de bacalhau, está um calor infernal, a música alterna entre o bom e o medíocre, os Bailey's esvaziam-se depressa de mais; se alguém consegue escrever nestas condições que ponha o braço no ar. Ou no teclado, ou  na caneta, ou na ideia, que às vezes se escrevem coisas bonitas com ela. A porra é passá-las ao papel depois, mas isso é outra história. O papel reduz as ideias que temos quando escrevemos com elas e transforma-as noutras coisas, piores. Por mim, estou-me nas tintas: só ligo ao que fica escrito. O resto leva-o o vento, de quem sou grande amigo - e assim demonstra ele sê-lo meu. Verdade seja dita, tenho a barragem de palavras cheia, não tarda isto começa a entornar. Esta merda deste vírus foi-me para o cérebro, invadiu-o de alto a baixo. Não sei de que cor é, mas se alguém me abrir a mona não encontrará massa cinzenta de certeza. Espero vivamente que alguém descubra a cor desta merda, para saber como chamar à coisa esponjosa que tenho entre as orelhas e por trás dos olhos. Parece-me negra como a estupidez.

Se calhar é.

Cecil, de longe

Ouvir Cecil Taylor num bar é como ouvir uma tempestade ao longe: está lá, quaisquer que sejam as barreiras de som que tenha de atravessar. 

Pequenas qualidades, grandes estupidezes

As minhas pequenas qualidades bóiam num mar de defeitos e incapacidades como farófias no molho de baunilha. O pouco que sei fazer faço-o bem, não por especial dom mas por ser incapaz de o fazer mal. Sou honesto por falta de imaginação, directo e frontal por não saber mentir como deve ser.

Aprendi com o tempo a conviver com os meus defeitos. Aceito-me apaziguado. Os anos de revolta ou de crença injustificada em super-poderes passaram. 

Só há uma coisa em mim contra a qual me revolto, que todos os dias lamento ter de suportar: a incapacidade total de conviver com a estupidez. É um problema grave - pejorado pelo facto de até agora ter vivido num mundo encantado, onde a maioria dos habitantes era inteligente e sabia melhor do que ninguém o que é melhor para si-própria. A coisa que mais me faz sentir a falta do meu Pai é esta. Ele tinha um jeito para lidar com estúpidos... Não é bem verdade. Ele tinha jeito para lidar com toda a gente, incluindo mentecaptos. Eu não. Dou-me bem com a maioria das pessoas que cruzo, mas com a estupidez não há maneira.

Digo isto com pena, tanto mais que vislumbro aqui um sinal de estupidez. Se fosse inteligente isto não aconteceria e teria a confederação de tolos toda atrás de mim.

26.8.20

Imobilidade, distância

 Deito-me em ti como na luz, de tão imóvel 

Dois

Vem, querida. Vamos embora. Não deixes que esta sensação de leveza te arraste para o fundo. Não deixes que o peso te impeça de voar. 

Oscilamos entre o fundo e o voo, entre o ar e o granito, o silêncio e o tumulto. 

25.8.20

Capacho, noite

Humildemente estendo-me à porta da noite e espero que ela me deixe entrar.

Tantas vezes fico de fora, feito capacho. 

O frio e as pernas

Começa a chegar o frio à noite, como dantes no cinema aproximávamos a perna à das pequenas.

Critérios, bordéis e poetas

Um grande amigo meu diz que só ouve  cantoras femininas se forem bonitas. O critério parece-me válido, mas tento estendê-lo à poesia e não sei se funciona: só ler poetas com caras de porteiro de bordel? 

São poucos, não dá. Tenho de alargar a malha.

Uma cerveja no paraíso

- Querido diário... Ou será antes Querido Don Vivo? Don Diário? Diário Vivo?

- Não me chateies com tanta vida. Estou  cansado, homem. Não podes parar de viver? (Em surdina: mas continuando vivo, claro)?

- Queres dizer: viver nas margens de um grande e largo rio tranquilo? Na planície que depois da chuva fica verde? Olhar à janela o Sol beijar a calçada?

- Está calado e cala-te. Não me chateies. Vive onde e como quiseres.

- Vou beber uma cerveja e depois conto-te o meu dia, queres?

- A cerveja quero. O resto dispenso.

Preços

A Covid 19 é uma gripe Zara a preços Louis Vuitton. 

Bilhar ("às nove e meia")

Ser capaz de fazer contas de cabeça é provavelmente a competência mais importante para um pobre no supermercado.

Eu tenho orgulho nisso: é o equivalente mental do bilhar às três tabelas.

Irrelevante

Dias de aspiração cósmica, liposucção da alma, vida nas bordas de um buraco negro. Dou à costa, encalho em mim, bato na parede e como os desenhos animados se põem a escorrer por ela abaixo, eu escorro por mim. Uma palavra é uma palavra, um mundo um mundo, cada um de nós um universo. Bolas de bilhar. Esta imagem, que me irrompeu aos quinze anos nunca mais me abandonou. Continuo sem saber quem maneja o taco, mas tenho uma sorte: a mesa é grande e é azul. O resto é irrelevante.  

Que perdem os que perdem?

Estudei um pouco, superficialmente, o fenómeno das histerias colectivas do passado, desde a Idade Média ate aos nossos dias. Um dos estudos que li dizia que a adesão das pessoas à histeria era provocada pela esperança num ganho qualquer. Esses ganhos variavam com o contexto, mas estavam sempre lá. 

O que me sidera na histeria que agora vivemos é que as pessoas aderem sem a perspectiva de um ganho concreto, palpável. Não morrer? Mas já se sabe quem morre; quem não está nesse grupo não beneficia. Não transmitir? Na rua? No café? Em casa ainda vá que não vá, mas na rua?

Percebo que quem contacta com pessoas de mais de oitenta anos e múltiplas patologias tome precauções; mas os outros? 

A primeira ilação é que quem adere a estas fantasias não perde muito (ou não se apercebeu do que vai perder, o que indica umas pistas interessantes). A segunda é que para eles a liberdade não vale muito.

23.8.20

Quem não gosta não come

 Duas ou três coisas que eu sei dele;

a) É o que é e isso é tudo o que é;
b) É surdo e infértil. Não emprenha pelos ouvidos, por muito que por vezes gostasse;
c) Não alinha em rebanhos, sejam eles de que tipo forem (inscreveu-se uma vez num partido e saiu ao fim de dois meses);
d) Diz e escreve o que pensa e às vezes - nem sempre -pensa o que diz e escreve;
e) Prefere ser como é e ser fodido a foder e não ser quem é;
f) É livre. Sempre foi e sempre o será, por curto que este último «sempre» se revele. 

Quem não gosta não come.

22.8.20

Rascunho

Deito-me embrulhado em calor, abraçado à almofada, na esperança de que o sono seja compreensivo e me leve até amanhã. 

.........

Escrever consiste basicamente em eliminar de um texto todas as palavras que podem ser lá postas pelos leitores. Daí a importãncia de um bom rascunho: tem que ter matéria a eliminar.

21.8.20

Olhar para fora

Hoje fiz as primeiras fotografias desde Caminha. Foram de telefone, não tenho saído com a máquina. Fartei-me de não a usar.

Será que recomecei finalmente a olhar para fora? 

Retratos possíveis

Falavam imenso, conversas sem fim. Mas ao contrário do que parecia visto de fora, não dialogavam. As conversas deles eram dois monólogos que juntos não perfaziam um diálogo. Um falava, o outro escutava atentamente. Depois alternavam: o que antes ouvia falava - mas não respondia, falava de outra coisa qualquer - e o outro escutava. 

Entendiam-se muito bem. Dois lobos solitários, demasiado velhos para caçar cada um por seu lado.

20.8.20

Sugestão

Para combater a insónia não contem carneiros. Contem palavras, sonhos ou os dias que estatisticamente ainda têm por viver. 

Verão que adormecem num instante.

Portas, tempo

Estas noites que entram por nós dentro como um Caterpillar num monte de terra... Empurram-nos para baixo e para trás, porque não sabemos bem o nosso lugar na noite, na cama, na vida, em tudo quanto é sítio que nos pudesse receber. Não sabemos, essa é que é essa. Abrimos portas atrás de portas na esperança de que não se fechem depressa de mais. Por vezes, algumas acolhem-nos um bocadinho mais de tempo e é com isso que vamos construindo uma casa, uma vida: tempo e portas que se abrem e fecham.

Conversas de vida e cama

Eu sei. Esta diferença entre a cama e a vida tem sido muito mal abordada. "Quero-te na minha vida, não na minha cama" talvez sirva para engatar miúdas feias da faculdade de Filosofia, Química ou Literatura Céltica. Para engatar mulheres normais acima dos quarenta e cinco anos não funciona, pela razão simples que de vida estão elas fartas.

É preciso encontrar um argumento a meio caminho. "Se vieres para a minha cama esta noite convido-te para a vida". Hummm... Não me cheira. "Se prometeres que te marimbas para a minha vida abro-te a porta da minha cama. Mas só esta noite." ... Não me parece que resulte. É preciso dissociar as duas entidades: cama é cama e vida vida. O resto é conversa de iraoku, como se diz no marinha japonesa.  "Ó quida, olhe, vamos a isso? O dia está tão bonito, não acha?'

Como é que se diz "quida" em japonês?

E "quer um lugar na minha vida?" 

Das figuras de estilo e suas diferentes formas

E depois, de qualquer foma. que dizer-te? Estou em Palma, refaço os meus caminhos - são carreiros que precisam de ser caminhados regularmente - penso em tudo o que caminhei para chegar aqui e em tudo o que terei de caminhar para sair daqui, se um dia quiser. 

Este «se» é uma figura de estilo.

O aviso, Prometeu

 A vacina «apareceu» a tempo de salvar os governos: agora, basta-lhes prolongar as «medidas» e esperar. A minha hipótese é que o cisma nunca será resolvido, como o outro cisma, o antigo: as igrejas vão dividir-se entre as pró e as anti-histeria e não haverá números nem dados que convençam os crentes. Tenho um filho «católico» e uma filha «protestante» e sei que a convivência é possível (aspas porque as respectivas religiões se ficaram pelo baptismo, graças a Deus). A minha opinião da humanidade sofrerá um rombo - já sofreu - mas pensando bem é um rombo pequeno: nunca acreditei muito nela. Só fingia que acreditava. 

Fica-nos o aviso, esse sim importante: o fascismo está ao virar da esquina. Ao virar do vírus, se preferirem uma aliteração bonita. Ao virar do vírus as pessoas estão prontas a trocar liberdade por «segurança», ciência por crenças, números por adjectivos. Prometeu sobreviverá. Prometeu para sempre. Viva Prometeu.

19.8.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-08-2020

Pouco a pouco, mergulho na cidade triste. Jantei (jantámos, a armadora e eu) no Gustar e bebi um rum no Antiquari. Mergulho - ou melhor, pedalo - no calor. A transpiração parece-me uma saída em massa dos demónios todos, como se estivesse a expulsar o pior de mim, sabendo claro que nunca o expulsarei todo: esta coligação de calor e glândulas sudoríparas em boa forma é imparável. Não há mal que lhe faça frente. 

Estou cansado. Enquanto transpirar demónios está tudo bem.

.........

A anca lá vai levando gelo. Por agora é o que tenho para lhe dar. Sossego, só de raspão - como sempre foi, de resto: sesta prolongada, cama mais cedo... Nada de mudanças radicais. A ver como é que aquilo responde. Só me apetece cortar a perna e substituí-la por uma nova, igual à que tinha antes de saber contar até sessenta e dois. 

........

Agora que posso finalmente ver o futuro, parece-me muito longo. Meia dose do que me espera chega e sobra para acabar o que falta.

Só espero é que ninguém se lembre de me ir carregando o alforje. 

Pensamento demoníaco

Pergunto-me se não deveria acrescentar-se a categoria "Pensamento demoníaco" às diferentes categorias de raciocínio que existem. 

Consiste em acolher o demónio como uma fatalidade, uma necessidade irrefutável, sem qualquer espécie de estudo, base científica, análise racional.

O diabo diz que... e o que o diabo diz erige-se - é erigido - em verdade irrefragável, impermeável à dúvida e ao questionamento.

Não é a primeira vez na história. Aliás, é tão frequente que na minha leiga opinião faz parte do catálogo da razão humana, ao lado do pensamento mágico e antes do lógico-formal.  

Consiste, sobretudo, em aceitar a existência de um demónio todo-poderoso, ubíquo, combatível com mezinhas, máscaras, vacinas, orações, etc. Ou seja, é um pensamento ambivalente. O diabo é todo-poderoso mas com genuflexões, sinais-da-cruz, dietas, obediência e pozinhos vamos dominá-lo. Só falta o óbolo, mas esse não tardará. 

18.8.20

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-08-2020

A maré está baixa, é certo. Igualmente certo é o desnorte, por muito atenuado que esteja. Ou desoriente, se a palavra existisse. Não existe, mas existe a coisa que ela designaria. Desorientação não é o mesmo, tem demasiadas sílabas. As palavras devem ser concisas e não ter mais letras do que as estrictamente necessárias. Nem as palavras nem nada, com a possível excepção da loucura, que por natureza e definição não pode ser concisa.

Olha a política, que boa seria se não fizesse mais do que o absolutamente necessário. Como está hoje, parece leite a transbordar da chávena demasiado cheia. E esse argumento de que é o que as pessoas querem não serve, cada vez me convenço mais. Querem ter medo, viver aterrorizadas e fazer figuras de parvas? É um direito absoluto e inalienável. Não podem é impingi-lo a todos, dizimar a economia, provocar mortes escusadas e para isso é precisa a intermediação do Estado. Isto é, da política. De chefias. De comando.

.........

Esta crise tem a fase emocional, onde agora estamos. E a seguir terá sem dúvida uma racional. Rezemos todos para que esta venha depressa. Nunca suportei a estupidez mas a verdade é que até agora só lidei com ela personalizada, individualizada. A estultícia generalizada, erigida em razão - algum louco entra no manicómio pedindo desculpa pelo funil na cabeça? - é pior do que tudo o que jamais pensei. Já vivi em ambientes de loucura colectiva, mas nada nunca que se parecesse com isto. Nem em intensidade nem em longevidade. Quando isto começou pensei que ia durar dois ou três meses. Já lá vão cinco e não se lhe vê o fim.

........

Deixemos as tristezas à cidade triste e alegremo-nos com as alegrias que ela nos dá. As mulheres continuam lindas - se bem haja menos delas - o Abrakadabra, o Makaria, a Taskita continuam como dantes eram, o Verão está aí, de peito cheio e noites doces.

O resto que se lixe e torça de inveja.

.........

Hoje ouvi de todas a mais delirante teoria conspirativa. O vírus vem "do Vaticano. Mas não dos cristãos, não dos católicos. Dos Jesuítas. São eles que estão a orquestrar tudo isto."

A inveja que eu tenho da malta que acredita nestas coisas, simplesmente para não acreditar no humano, demasiado humano...

17.8.20

Autómatos mascarados

Verdade seja dita: está triste a cidade, estou eu e estamos todos os que nela vivemos. Uma cidade é feita de pessoas livres e felizes. Não de autómatos mascarados e aterrorizados.

Diário de Bordos- Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 17-08-2020

A cidade está triste, coisa que nunca foi. Parece uma criança a quem tiraram as velas no bolo de aniversário: tudo está lá, menos o principal. O homem é um animal de símbolos e não de factos. Tiraram-lhe as velas porque o avô mandou. Ninguém se vai lembrar de questionar as razões: o avô sabe.

Hermann Melville fala de um tipo cujo lugar favorito na Terra era a mil milhas náuticas da terra mais próxima. Je suis Melville, de plus en plus. Cada vez mais.

Chego à Chinchilla demasiado tarde, ao mesmo tempo do que duas raparigas jovens. Era a Isabel quem estava cá fora. Mandou embora as duas moças e disse-me para ir lá para dentro, com arte e jeito. As raparigas nem se aperceberam. Quem quer transformar os países latinos numa Alemanha ou numa Suécia está redondamente enganado.

16.8.20

Da série "Olhar para trás"

Como todos os velhos antes de mim, descubro com horror que deixo um mundo pior do que o que me recebeu. Dupla desilusão: nem sequer sou diferente dos velhos todos que me precederam. 

O totalitarismo - antes confinado ao bloco de Leste e a meia dúzia de países sul-americanos - voltou impante, abrigado sob a capa do "bem", da "correcção política", das "minorias" e da defesa desse pontífice do indefeso que é o "ambiente".

"O desejo, esse cão, ladra-me agora menos à porta" (Eugénio de Andrade, cito de memória) mas tenho pelo menos a sorte de ainda ter objectivos: publicar o resto do blogue, navegar na Patagónia e em Chiloé, ser feliz.  Ou melhor: morrer feliz.

Estou cansado de mais coisas do que pensei um dia viria a estar. Suporto mal a desilusão que este vírus me trouxe numa bandeja: a de que a minha confiança na humanidade foi um equívoco. O pessimismo antropológico que eu insistia em remeter para um canto da ideologia volta à ontologia de onde nunca devia ter saído. Metade de Nietzsche está certa, a outra metade enganou-se redondamente. Deus morreu, sim. Mas não para todos. Agora é fácil de ver porquê: o Diabo não morreu e sem Um o Outro não existe. Enquanto houver Diabo (e diabos) há Deus e deuses. 

A humanidade não sabe ser livre. Precisa de correntes e de gajos que regularmente as quebrem. Não sabe viver sem elas e não pode sobreviver sem eles. A liberdade não é o estado natural do homem. 

Vou passar o que me resta de vida a destrinçar isto do conceito de vanguardas iluminadas, que sempre abominei e abominarei até ao fim dos dias. Não tem nada a ver com iluminações. Talvez seja antes uma fatalidade: sou livre porque não sei não o ser. Por incapacidade, por inabilidade (fatal, como dizia o outro). A liberdade é uma escuridão, mete medo, assusta os inseguros. 

Mas quem diz que ser livre é ser seguro? Eu não. Tive mais do que a minha justa quota de misérias. Se alguma alegria me trouxe a liberdade, é tautológica: a liberdade é um fim em si-mesmo. É uma imposição dessa mistura de genes e acasos de que somos feitos. "Ser livre é poder escolher as suas prisões". Não sei quem disse isto, mas pode parafrasear-se: ser livre é ser escolhido pela maior das prisões.

Chego aos últimos anos da minha vida a lutar pelo que lutava no princípio. Tenho sorte: posso pelo menos confirmar agora que - ao contrário de muitos outros - não estava enganado.

Gazeta Rural V - Porque viajamos?

Viaja-se por amor, por trabalho, para mercanciar, descobrir, explorar, para viver ou sonhar, fugir, encontrar. Viaja-se por gosto, por lazer, desgosto, viaja-se com o tempo ou contra ele, por desespero ou na esperança de. Viaja-se para regressar em breve ou nunca mais; sabendo para onde se vai, como se irá, quanto tempo se ficará no destino – ou desconhecendo tudo isso. Viaja-se para fazer a revolução, ou para dela fugir. Viaja-se até com destino, ou sem ele. Viaja-se por viajar, para não ficar quieto ou na expectativa de um dia se poder, finalmente, ficar quieto. Viaja-se por mil e uma razões, muitas mais do que as que nos fazem ficar onde estamos. Essas são poucas. Viaja-se leve ou pesado, alegre ou triste, com raiva ou sem ela, de olhos abertos ou fechados. Viajamos para nos encontrar, para nos desencontrar, para encontrar. Viaja-se porque se vai para a Terra Prometida ou quando se descobre – geralmente com um custo elevado – que tal coisa não existe. O objectivo de uma viagem não é forçosamente a beleza, porque entre a curiosidade e a estética os laços não são tão estreitos como tantas vezes se pensa. Viajamos para descobrir o outro – ser mítico que só existe nos livros de psicologia barata; para nos descobrirmos – esforço inglório: como disse James Baldwin, «o viajante é sempre maior do que o mundo no qual viaja». Viaja-se no tempo, seja para regressar às origens, seja para delas fugir. Como se existissem, como se as origens fossem a nascente de um rio e não os seus afluentes, como são. Da viagem traz-se mais do que se leva, por muito que se leve, se tenha esquecido o que se sabia à partida, por muito que a viagem tenha durado, ou pouco: a viagem é uma operação aritmética que desconhece a subtracção. Uma viagem tem princípio mas não tem fim: todas as viagens que fizemos prosseguem nas que se lhe sucedem e continuam no que somos hoje, acumulam-se em nós como camadas de sedimentos no fundo de um rio. Viajar partilha com viver muito mais do que a primeira sílaba. 

 II

 De uma cidade da Sibéria chamada Nakhodka onde passei quatro meses (no Inverno) trouxe uma paixão que dura até hoje; do Rio de Janeiro (no Verão) outra, que também dura até hoje. De Cape Town – uma das cidades mais bonitas que já visitei – uma paixão transformou-se em amizade e esta em nada. Há viagens assim: o que delas trazemos esfuma-se e fica só o resto: as bebedeiras, a beleza, a frequência regular de um bar sórdido, as entradas no porto, sempre tão bonitas, todas e cada uma delas com as mulheres do porto a gritar em uníssono o nome do navio, felizes por nos verem chegar. - Em breve os inspectores de redes virão inspeccionar-nos – avisara-me o capitão durante uma das suas raras e breves estadias a bordo. – Faz o que quiseres, mas não os tomes por estúpidos. Os inspectores vieram. Convidei-os para uns whiskies no meu camarote, com o pretexto – verdadeiro – de que precisava de ajuda para ganhar uma aposta (beber uma garrafa de cinco litros antes de uma determinada hora). Eles ajudaram, de boa vontade. Depois levei-os a ver a rede com a qual «pescávamos». Era nova, ainda estava na embalagem. Cortaram o plástico que a envolvia – várias camadas dele, aquilo tinha acabado de chegar da fábrica – mediram a malha e muito sérios disseram-me que estava em ordem. Para não se tomar os outros por estúpidos os outros não podem ser estúpidos, passe o truísmo. Viaja-se porque sim, porque não e porque não sabemos porquê. Um dia saí de uma discoteca em Cascais, eram três da manhã, talvez quatro. Apanhei um táxi para casa, perto de Carcavelos. A meio caminho pensei que a minha vida era estúpida, não fazia sentido: deitar-me todos os dias de madrugada, acordar ao meio-dia (estava de férias), ir passear, acabar nos copos. Fui a casa, disse ao chauffeur para me esperar, fiz um saco com roupa e «vamos para o aeroporto, se faz favor». Chegado à Portela, havia um balcão da TAP aberto. - A que horas sai o primeiro avião, minha senhora? - Sai daqui a uma hora. - E para onde vai? - Para Milão. - Dê-me um bilhete, se faz favor. Cheguei a Milão eram oito da manhã, lembrei-me de que a jovem que amara no Rio vivia provavelmente lá, não tinha a certeza, indaguei, vivia, fui tomar o pequeno-almoço a casa dela, passámos quase um mês em Milão e acabámos em Veneza, uma semana. Há viagens circulares. Nunca mais a vi, mas ainda hoje a amo e tenho pena de não poder refazer uma viagem assim, impromptu, sem querer, sem planos. «Há que ter um plano, se queres poder não o respeitar», dizem os logísticos ingleses. É verdade. Mas se algumas viagens requerem um plano, outras fazem-no elas, um plano à medida; e ao viajante só cabe adaptar-se ao que a viagem lhe preparou.

III 

De Veneza fui para Caracas, onde passei seis meses. Detestei o país, na altura ainda próspero. Trabalhei na Marinha Mercante venezuelana – fui o primeiro oficial estrangeiro com licença para embarcar em navios da Venezuela –, dormia num iate cujo interior consistia basicamente numa rede (de dormir, não de pescar) e comecei a fazer fotografia. Cape Town veio a seguir, depois um ano em Lisboa, depois as vindimas em França, vinte anos, dois filhos e um casamento feliz na Suíça – com um intervalo no Burundi, outro no então Zaire, outro ainda em Aveiro, nas dragagens do porto, outro nos Açores, três épocas. (A desordem do relato é total e propositada: não há, nunca houve ordem nestas viagens.) De Aveiro fui a Moçambique num velho cargueiro – foi a sua última viagem –, voltei à Suíça, fui para os Açores, atravessei o Atlântico pela primeira vez e sobrevivi a um ciclone no mar... Se traçasse num mapa-mundo as viagens todas que fiz, ele ficaria a parecer os rabiscos de uma criança hiperactiva na parede da sala.

IV

Pode viajar-se de comboio, de carro, de bicicleta, de barco, de avião, de burro ou de camelo, a pé, sozinho ou acompanhado, à boleia, sem sair de sua casa ou da sua cidade, pode viajar-se de todas as formas e feitios pela razão simples e irrefutável de que viajar é viver e viver é viajar. O planeta inspira e expira a cada passo que se dá, cada dia em que se vê o sol nascer num sítio e pôr-se noutro, cada montanha – real ou metafórica – que subimos e descemos, cada oceano que atravessamos, cada cidade de que descobrimos uma estação ferroviária ou se descobre para nós, como uma mulher apaixonada se despe para o homem que a seduziu. 

 V

Agustina dizia que por detrás de cada viagem esconde-se uma intenção erótica. E se tivesse razão?

15.8.20

Há bens que vêm por mal

Os dois principais meios de contágio deste vírus são: a) as redes sociais e b) a comunicação social. Se os governos quisessem realmente parar as infecções, proibiriam o acesso a facebooks, jornais e telejornais.

Felizmente não podem, por isso temos de viver com estes e com aquele.

13.8.20

Água ardente

A água é como a vida: se não for ardente não serve. 

Metamorfoses

Mal os cobardolas portugueses se apanham atrás de um volante, transformam-se em heróis valentes e imortais.

Heróis valentes e imortais? Talvez antes idiotas irresponsáveis e assassinos, não?

12.8.20

Desnorte

É como ter à frente uma escada cujos degraus partem em todas as direcções. Um gajo olha e não sabe qual delas escolher. Não percebe para onde vão, aonde chegam.

De repente escolhe uma das escadas, põe o pé no primeiro degrau e poouuufff: todas as outras desaparecem, encaixam uma nas outras como um leque ou uma boneca russa.

Nada lhe resta a fazer se não continuar a subir, esquecido da farândola de opções que antes tinha.

Reedição - Michelle (l'autre) - 07-05-2012

(16.8.20 - Revisto e corrigido pela G. Y., a quem aqui fica o agradecimento.)

 I 
Viens, on va guincher. - J'aime les mecs qui ont de la suite dans les idées ; je me suis levée. 

 II 
Je la connais de vue, elle bosse pas très loin d'où je vends de la quincaillerie, la journée. Et quand elle sort en boîte je la vois aussi. Elle est petite, sèche, noiraude et a un joli minois. En dansant elle presse ses nichons, durs et ronds comme deux petites oranges, contre ma poitrine. Elle n'a pas de soutif. Bientôt je le lui rends bien : sous mon falzard ma bite durcit et je la presse contre elle, tout contre. Elle s'en écarte, mais pas très vite. "Tu veux faire la fête, ma bibiche", me dis-je. Mais il a fallu tchatcher des heures durant avant de pouvoir lui fourguer rien que les paluches. Heureusement après tout a roulé très vite et en moins de deux j'étais dans la moule. C’est pas une allumeuse, remarquez. Seulement "entre la boîte et le plumard il y a un espace qu'il faut remplir, tu comprends ?" Elle voulait dire remplir avec des mots, avec les bons mots, des mots justes. Moi je m'en fous. C'est quoi un mot juste ? Suis pas très bavard, moi, juste ou injuste ; et plusieurs fois j'ai voulu laisser tomber. Mais elle me zieutait grave, avec des lampions comac. Elle voulait, juste pas trop vite. Ça j'ai pigé de suite. Question de poireauter un peu, parlapater un peu, peu vite tout ça. Michelle bosse dans une banque. Haute pointure, la nana. La semaine je vends, en ville, des conneries faites par mécolle. Les nuits de vendredi et samedi je vends des hotdogs devant une des boîtes de nuit du bled. C'est comme ça que je l'ai rencontrée - de temps en temps je rentre juste pour mater un peu. Le videur est un pote. – Purée tu schlingues. – Je vends des saucisses. – Viens, on se casse. Trois plombes du mat. A cette heure il n'y a que le Café du Commerce qui est ouvert. C'est craignos, mais c'est le seul. J'avais un peu la dalle et ai demandé un hamburger; elle n'a rien clapé. Quand nous sommes partis elle voulait casquer. Je lui ai dit non. Je suis fauché, mais pas paumé. Ma bouffe c'est moi qui la raque. A chacun sa merde, comme disait mon vioque. Du troquet nous sommes allés chez elle. Grosse bagnolle, grosse baraque. – Entre. Désacque-toi. La douche est ici. - Michelle n'avait visiblement pas l'habitude de recevoir des ordres. - Magne-toi, je t'attends au salon. C'était sept heures passées quand j'ai finalement réussi à lui fourrer les paluches dans les lolos. À sept heures et demie on niquait. On a passé le dimanche au pieu. 

III 
J'aime bien ce lascar. Il n'est pas lourdingue. Je le vois vendre ses breloques (enfin, pas les valseuses, ne vous gourez pas ; celles-là il se les garde bien gardées) sur la place. Je bosse juste devant. Et ses hotdogs à la mormoileneux devant la disco les weekends. Il est calmos, posé, les crocs toujours dehors. Jamais l'air d'être à côté de ses pompes. Il assure, ne s'excite jamais, parle angliche avec les amerloques et allemand avec les casques à pointe. Un peu maigrelet, grand, beau gosse. Je me suis toujours demandée ce qu'il foutait là. J'ai 36 berges, je suis cadre sup dans une banque. J'ai grimpé à la verticale ; jamais eu besoin de m'allonger pour monter. Une gonzesse jeune et seule dans un monde de vieux schnocks. Pas de grandes histoires : depuis la fac plus jamais de longues amours. Un coup à gauche, un coup à droite ; que de l'hygiénique. Les mecs n'aiment pas les greluches qui ont de la pogne ; et ceux qui faisaient mine de me supporter étaient plutôt après mon fric. J'en ai pris des raclées, ne pensez pas. Mais je me sens bien, maintenant. Antoine m'a tapé dans l'oeil d'abord parce qu'il présente pas mal; en boîte il n'a pas accepté que je lui paie les verres; ensuite on est allés dans un troquet immonde, et il m'a prévenu: "chacun douille sa bouffe". Je l'ai fait moisir un peu avant de passer au pieu, histoire de ne pas le laisser croire qu'il suffit d'être beau et pas tapeur pour avoir partie gagnée. On est resté pieutés tout le dimanche ; et on a continué de se voir après. Je savais que dalle de lui : il était visiblement bien éduqué et cultivé ; tambouillait et baisait comme un dieu ; parlait très peu, et encore moins de sa pomme. On n'allait pas au restaurant : il ne voulait pas que ce soit moi à casquer et je le lui rendais bien. En revanche on cassait souvent la croûte chez lui ; j’en profitais pour lui amener une bouteille d'un bon rouquin, qu'il appréciait visiblement. Peu à peu - ce n'est pas une formule, ce fut ainsi que les choses se passèrent - j'ai appris à le connaître, à respecter ses silences, à apprécier sa vaste culture. On se fendait bien la gueule, remarquez. Il avait un bon sens de l'humour et je me poilais avec ses blagues. Des fois il m'arrivait de partir en voyage de travail. Rares furent les villes pour lesquelles il ne donnât pas une indication, soit d'un gastos, soit d'une rue ou d'un musée. Il avait voyagé et il avait eu du fric. Pourquoi vendait-il de la quincaillerie et des saucisses dans la rue ? Deux, trois, quatre mois. Antoine me semblait être "l'homme qui n'était pas là". Ça me convenait, faut le dire : c'était comme avoir un jules et ne pas en avoir, en même temps. Des fois il m'offrait un bouquin, des fleurs, un des colliers qu'il faisait. Un jour je lui ai dit "tu me donnes tout sauf des paroles". "Jacter n'est pas mon fort". Le lendemain il m'apporta un disque de Hildegarde von Bingen et dit "tout est là". Je ne sais pas si vous avez déjà tiré un coup en écoutant de la musique sacrée du Moyen Age ; ne le faites pas, les frangines. a risque de vous ramollir. Une fois il a commencé "je t'..." et s'est arrêté. J'ai eu envie de lui répondre "moi non plus", mais je me suis écrasée. L'amour n'était pas prévu et encore moins le bienvenu. Un jules comme Antoine ça allait ; mais l’amour ? Ça a duré jusqu'à ce qu’il me soit impossible de le nier : j'étais amoureuse de lui. Ce soir-là je suis allée chez lui - c'était un vendredi, il préparait ses saucisses - et lui ai dit que je partais. "L'amour n'était pas au programme". Je lui ai laissé un gros talbin. "Prends-le", il m’a dit. "Je vais le déchirer". "Je sais. Fais-en ce que tu veux, il est à toi". "Ciao". "À la revoyure". La dernière chose que je lui ai entendu dire, très bas, c’était "moi aussi". 

IV 
Quitter Antoine m'a fait découvrir la vraie dimension de ma solitude. Les coups hygiéniques ont perdu leur intérêt. Le boulot a cessé de me plaire. Il m'a fait découvrir un monde dont je ne soupçonnais même pas l'existence, ou dont je ne voulais pas entendre parler : le mien. Il y avait une gonzesse en moi, muette depuis longtemps. Elle sortait, maintenant. Impossible de lui fermer sa gueule. J'ai pas mal chialé, pris quelques cuites et quatre mois plus tard je me mariais à un collègue d'une autre banque. Y a pas photo : six mois après le mariage je m'emmerdais ferme. De temps en temps je sortais seule. Je laissais Christophe-Louis à la maison et allait faire la bringue. Un soir je suis retournée à la boîte où j'avais rencontré Antoine. Il était toujours devant avec son chariot, ses saucisses, son sourire aimable mais distant. Je ne l'ai pas regardé, mais je savais qu'il m'avait vue. 

V
- Viens, on va guincher. - J'ai reconnu sa pogne sur mon épaule avant même de comprendre ce qu'il me disait. Christophe-Louis n'a jamais compris pourquoi j'ai voulu divorcer. Pas même avec le disque de Hildegarde von Bingen que je lui ai apporté, en disant "écoute-le bien, tout est là". Ce soir-là j'ai pioncé chez Antoine. Dès que l'autre a déguerpi de chez moi Antoine a emménagé. Nous avons un accord : on ne parle pas de fric à la maison, comme d'autres ne parlent pas de politique ou de cul. Dans un tiroir j'ai toujours le talbin que je lui avais laissé, déchiré en dizaines de morceaux ; il les a mis dans une matière transparente et en a fait quelque chose qui ressemble vaguement à un bracelet. "Pas pu les foutre loin", il m’a expliqué. "Je sais combien tu respectes le pognon".

Reedição - Vivre à Lisbonne, ou: La douceur n'a rien d'extraordinaire (05-10-2006)

Il est doux de vivre à Lisbonne, tu sais? Tout y est doux, en fait: le climat, les gens, la lumière, la cuisine, les prix, les yeux des femmes et leur sourire (bon, ils conduisent comme des handicapés mentaux, c'est vrai. Mais l'on peut ne pas y penser). Maintenant je me trouve, par exemple, dans une rue piétonne. Je mange dehors, une soupe de poissons qui n’est certes pas magique; mais elle est honnête, c’est déjà bien. Je bois un vin agréable, un blanc légèrement fruité du Ribatejo, honnête, lui aussi, sans plus. Dans le restaurant en face un jeune musicien (je ne sais pas s’il est jeune, en vérité. Je ne le vois pas) joue Clapton, et beaucoup d’autres musiciens de notre adolescence. La terrace est déserte, car ce restaurant, autrefois très réputé, est en train de passer une mauvaise passe (tout comme moi, d’ailleurs, me diras tu quand tu liras ce verbiage). Il est bon, mais les touristes lui préfèrent celui d’en face. Lequel est bon aussi, remarque, mais point meilleur, je pense en écoutant des morceaux de Clapton, Simon & Garfunkel, Dylan, McCartney. Il n’est pas extraordinaire, lui non plus – il me semble que cette soirée na rien d’extraordinaire… - mais l’écouter n’est pas désagréable. C’est une soirée Portugaise, il me semble, une bonne image du Portugal – rien n’y est extraordinaire, mais tout y est doux. J’écris ces mots et je pense qu’ils ne sont pas justes : il y a des jours de voile extraordinaires, par exemple. Et des amitiés. Les plus belles, les plus anciennes, les plus complices de mes amitiés sont ici. A Lisbonne j’ai aussi vécu quelques amours, mais pas beaucoup. Douces, calmes, tranquilles, elles se sont évanouies sans trace laisser, dans une mare de silences doux, eux aussi. Tout est doux, dans ce pays, mais rien n’y est extraordinaire. Sauf quelques jours de voile, quelques jours que j’ai passés avec toi, et l’envie que j’ai de tomber amoureux, maladivement amoureux, sérieusement, profondément, horriblement, passionnément, rationnellement amoureux (les amours vraies sont rationnelles, tu le sais, il n’y a que dans les mauvais ou les très bon romans qu’elles ne le sont pas; et la raison n’a rien contre la passion, bien au contraire). J’ai envie de tomber amoureux de toi d’une fois pour toutes, du début à la fin, j’ai envie de pouvoir dire que j’ai été amoureux de toi chaque jour de chacune de ces années. Mais dans ce pays tout est doux, et la douceur n’a rien à voir avec ce que je veux sentir pour toi». 

Escrevi este texto em francês, o que é estranho, porque foi escrito a pensar numa senhora bem portuguesa. Na realidade o texto “chegou” em francês, não fui que escolhi a língua. É um sintoma: se um dia me apaixonar pela vizinha do lado acabarei por descobrir que ela é decerto hospedeira do ar, conferencista itinerante ou especialista no crescimento das antenas dos camarões machos das ilhas Aleutas. E que só está em casa nos dias em que eu estiver em Londres, em La Rochelle ou numa ilha qualquer de um arquipélago perdido de um lago no centro de África. A verdade é que gostaria de me apaixonar em Lisboa por uma portuguesa cuja ideia de viagem fosse a excursão semanal ao centro comercial e para quem exotismo, na verdadeira acepção do termo, fosse pôr piripiri nas amêijoas à Bulhão Pato ou fazer amor de manhã antes de ir para o trabalho (“cuidado, vou ficar cheia de marcas e eles vão ver, lá no serviço”). Em contrapartida, eu próprio deixaria de viajar – nunca mais um avião, nunca – excepto, claro, para ir ao Brasil de vez em quando “em trabalho”. A minha vida nunca será o grande rio tranquilo com o qual sonho há tanto tempo. E tu nunca serás a ponte entre as duas margens de mim. Continuarei a escrever-te, claro, em francês quando estiveres em Portugal, em inglês quando fores francesa, em chinês ou em swahili, essa língua que em tempos tanto desejei aprender; levar-te-ei a jantar em Nairobi ao Indy, que é o melhor restaurante indiano do mundo (pelo menos, do mundo que eu conheço), ir-te-ei visitar a Tegucigalpa, cozinhar-te-ei intermináveis pratos de cozinha Cajun, levar-te-ei a navegar no lago Tanganika (à frente da península de Burton, onde um dia quis ser enterrado), oferecer-te-ei rum em Bequia, pescarei para ti nas Tobago Kays, bater-me-ei em Cape Town, embebedar-me-ei em Nakhodka, conversarei horas a fio com uma puta no Panamá, mostrar-te-ei uma praia nas Filipinas, os dois numa scooter, bolinarei dias e dias sem fim para te encontrar, para te reencontrar. E amar-te-ei, claro, de todas as formas possíveis, em todas as geografias do mundo e com todas as geografias do amor. Sans douceur.

Orientação semântica

Alguém me sabe dizer se estar desorientado é o mesmo que estar desnorteado? O Oriente e o Norte equivalem-se, semanticamente?

10.8.20

Diário de Bordos - Lisboa, 10-08-2020

Não gosto de dias assim, passam por mim e não param, passo por eles sem os ver. Hoje quase literalmente: tive o insigne prazer de conhecer as urgências oftálmicas do S. José, acordei parecia que tinha andado à pancada com o Cassius Clay. Hospital, farmácia, casa, jantar num restaurante suíço que tem rösti e mirabelle, duas coisas pelas quais vendo dez dias de Sol e vinte de Lua. A mirabelle é boa; o outro assim assim. Chego a casa e o computador não funciona. Não são dias, isto, são horas em forma de vírgula, pausas no tempo, placas de vidro entre mim e a vida.

A carcaça e respectiva manutenção irritam-me. Qualquer dia a ordem dos farmacêuticos erige-me uma estátua: "ao homem que mais detestava medicamentos e mais os comprou."

Enfim, exagero, claro. Há pior do que eu. Agora pelo menos dei um passo em frente: compro remédios e às vezes até os uso. Estes de hoje ficam para amanhã. Com os da diabetes sou religioso: não quero tão depressa perder o uso do periscópio de almas. Com os da anca também: quero levar o dito instrumento aonde ele for preciso. Estes dos olhos podem esperar, amanhã verei, sem jogo de palavras. Dias assim, dou-os a qualquer um que mos peça. Maré baixa, dores na anca, computador avariado, diabetes a lançar foguetes, conjuntivites... Vá lá que ontem conheci uma miúda gira. Trinta anos, italiana, culta e gira (mistura irrefragável).  Ainda há disto?, pensei. Ainda. Tu é que vais tarde, respondi. Uma janela para a vraie vie, qui est ailleurs, tout le monde le sait: la vraie vie est ailleurs, là où tes journées ne sont point. Já não estão? Estás enganado, velho: onde tu estás a vida está. Desengana-te. Isto são vírgulas, não são pontos finais parágrafos. Vai ler: quem lê seus males não vê. 

Onde?

Onde estás, que tanto me falta o teu estar? Onde estou, que tanto preciso de mim?

Deriva viral

Já aqui falei uma vez da diferença entre pairar e derivar: pairar é voluntário, derivar involuntário; este não se sabe quando acaba, aquele tem um fim marcado: quando acabar a situação que o originou. Pairar por vezes é bom, derivar nunca o é. 

Isto que vivemos é uma deriva. Uma deriva viral, que nos está a levar para as costas perigosas do totalitarismo, arrastados pelas correntes perigosas da modernidade.

9.8.20

Versões alternativas

 Há várias versões possíveis:

- Quem não sabe morrer não sabe viver;

- Quem não sabe morrer não merece viver;

- Quem não sabe que vai morrer não sabe que não viveu;

- Viver é um jogo de azar com o destino. Todos vamos perder. O único vencedor é a morte. Não o admitir é uma imperdoável falta de dignidade.

- Viver dignamente é incompatível com morrer cobardemente. 

- A histeria é uma forma demasiadamente barulhenta de viver e de morrer, duas actividades que exigem a dignidade do silêncio. 

8.8.20

Linhas

 «A humildade em si mesma nada mais é do que a verdadeira consciência de nós mesmos tal como somos. Não há dúvida: qem fosse capaz de se ver e sentir a si próprio tal como é, seria verdadeiramente humilde.»

In A nuvem do não-saber, Anónimo inglês do séc. XIV, Ed. Sistema Solar, Lisboa 2018.

Pequena nota à parte: devia fazer-se bicha à porta das livrarias para adquirir este livro. É uma espécie de versão católica do Tao. Não sendo historiador, nem muito menos teólogo comparativo, penso que a religião católica foi a maior e mais fecunda fábrica de conhecimento do mundo. Há uma linha recta que vai de Belém (a do Médio Oriente) a Houston, a Massachussets, a Oxford e Cambridge, à Sorbonne.

Diário de Bordos - Lisboa, 08-08-2020

Aposto que não há diarista no mundo que um dia não tenha escrito «há tanto tempo que não escrevo neste diário...» Não é a primeira vez que isto me acontece e talvez não seja sequer a primeira que o digo: «há tanto tempo arredado deste Diário...»

É preciso dizer a verdade: não é do diário que ando longe. É dos dias. Dias teflon, passam por mim e não ficam; ou eu por eles e não páro. Nem reparo, não vejo, não os vejo. Sei que passo, que mudo de casas, sacos ao ombro e dores pelo corpo todo feito personagem beckettiana (isto é mentira: as dores são apenas na anca direita. São é violentas e inutilizam o resto da carcaça). Percorro as ruas de Lisboa montado na bicicleta - uma das duas formas de não sentir as dores - sonho com Mértola, com uma exposição de fotografia, com o livro a vender-se, com uma caça-fantasmas alemã que na Bavária sonha comigo, com o fim desta interminável fantochada, com o «meu» P. pronto, sonho com dias de paz saudável, bonita, não esta paz podre, como se estivesse separado do tempo por uma placa de vidro: vejo tudo o que se passa mas não lhe posso aceder.

........

O meu projecto de conhecer Portugal avançou mais um passo, quilómetro a quilómetro, multa a multa (foi só uma, até ver). Caminha, Viseu - de onde regressei pelas estradas mais pequenas que encontrei, levei quase dez horas a chegar a Lisboa, viagem por um país deserto, as únicas pessoas jovens que vi tinham «Emigrante» escrito na testa em letras garrafais. Ao menos isso, talvez seja por aí que se possa começar a repensar o interior de Portugal, turismo activo, agricultura biológica, retiros espirituais, vá lá saber-se.

.......

Sacana da carcaça. Só me apetece pontapeá-la com a perna que funciona e de caminho pontapear-me a mim próprio. Um dia um médico disse-me:

- V. deve ter uma grande resistência à dor.

- Não sei - respondi.

- Tem tem.

Continuo agora a conversa, com uma diacronia de vinte ou trinta anos:

- Pois quem me dera não ter! A nenhuma dor, venha ela do casco ou do porão de voláteis, intangíveis, espirituosos, sonhos e similares.

........

Continua a experiência em tamanho real com o medo e respectivo aproveitamento pelos poderes que são e que vão desde o ajudante de contínuo ao Primeiro-Ministro. O rebanho deixa-se rebanhear, é encostadinhos uns aos outros que se sentem bem, máscaras nas ventas e «responsabilidade social» arvorada em caminho para o céu (o da modernidade, ça va de soi).

Entre aspas: até nos carros vejo gajos sozinhos de máscara. Duvido muito que a responsabilidade social seja a principal motivação dessa idiotice.

Duvido muito de tudo, verdade seja dita. A começar por mim.

6.8.20

Prémio Nobel

Paradoxalmente, o problema de se ir do Saldanha para Alcântara de bicicleta não são as subidas, qualquer delas fácil. É descer a Infante Santo a travar constantemente por causa do piso. Quem enfiasse uma ciclovia no cu do Medina ganharia o prémio Nobel da Paz.

Aquela descida é gloriosa, sobretudo se depois se vai para o viaduto. Não se pode. Já uma vez me ia apanhando na Lua, tal foi o salto que dei. E ainda hoje estou para saber como não me esparramei pelo alcatrão todo.

Uma ciclovia? Não. Duas, até acima, com pilaretes, semáforos e (as poucas) árvores que restam.

5.8.20

Duas perguntas

1 - Alguém sabe quando é que os media abandonaram o negócio da venda de notícias e o trocaram pela venda de emoções?

2 - As emoções são mais ou menos rentáveis do que as notícias?

3.8.20

Tempos entrelaçados

Fui o que serei e sou o que esses dois farão, fizeram, fazem de mim.

Pau-de-cabeleira

Como dois corpos que se beijam numa janela, o passado e o futuro. Esquece o presente: não passa de um pau-de-cabeleira.

Gazeta Rural IV - Mértola


Tinha planeado continuar com artigos sobre Palma. Queria falar sobre as ruas e praças daquela cidade, sobre as praias e campos da ilha de Maiorca. Sobre, no fundo, aquilo de que naquela ilha me apropriei e transformei em território meu, território vivido. Porém, estou em Mértola, outro dos «meus» territórios, outra das minhas vidas, dos meus amores geográficos e resolvi fazer jus ao título desta coluna: Diário de Bordos – isto é, dos ziguezagues, das deambulações – e é de Mértola que falarei hoje. 
Acontece-me por vezes, quando tenho um carro à mão (o que não é frequente), sentar-me ao volante e deixar-me levar. Isto é quase literal: o carro vai para onde quer e eu limito-me a conduzi-lo. Claro que os trajectos variam um bocadinho em função do veículo, mas é óbvio que eles sabem escolher as estradas que mais lhes convêm. Estando à vontade em todo o tipo de estradas, desde as de terra batida às mais rápidas, nunca lhes imponho uma preferência. O automóvel decide (ou mais frequentemente vai decidindo), eu vou conduzindo e entendemo-nos às mil maravilhas. Um dia, uma dessas não-decisões trouxe-me a Mértola. Eu vinha de Cascais, cheguei cansado e decidi ficar a dormir aqui e regressar à base no dia seguinte. Era dia de Festival Islâmico, a vila estava cheia de vida, de encantos, de cheiros e ruídos, à beira rio havia (ainda há) uma pensão chamada Beira-Rio. Entrei, pedi um quarto, se faz favor, a senhora da recepção abriu muito os olhos e perguntou-me se eu tinha reserva, disse que não, ela explicou-me com santa paciência que não havia um quarto livre num raio de cinquenta quilómetros, insisti dizendo-lhe que não me importava, no fundo só queria um quarto, ela disse-me que não tinha... Abrevio, não quero maçar os simpáticos leitores: consegui um quarto e apaixonei-me por Mértola, quase simultaneamente. Acabei por ficar duas noites e voltei muitas mais vezes, desta vez menos ingenuamente: sabia para onde ia e o que me esperava. Vim frequentemente de camioneta, vim de carro alugado, de boleia, vim sozinho e acompanhado. Ficava na Pensão Beira-Rio até aparecer o Hotel-Museu, que é ao lado; mais tarde acabei por alugar uma casa pequena, tradicional, no centro da vila. Não é com palavras que se demonstra o amor, é com feitos. 
Falei há pouco dos ruídos e dos cheiros do Festival Islâmico, um marco a não perder no calendário da vila (é em Maio dos anos ímpares) mas o que mais me atrai em Mértola é o silêncio. O silêncio aqui é azul e branco, como as barras de sabão de Marselha e tal como elas deve ser cortado à faca, um bocadinho como um explorador corta lianas na floresta para progredir. Andar numa destas ruas à noite é empurrar continuamente uma parede de silêncio. É de tal forma que uma vez em casa raramente ponho música. Seria tão adequado como fazer um striptease numa igreja ou pedir um leite com chocolate num bar. (Às vezes fujo a esta regra e escuto Hildegarde Von Bingen, porque não há melhor forma de exprimir o espanto e a gratidão. É um espanto telúrico, vem da terra e atravessa-me como as notas dos cânticos da abadessa atravessaram os séculos.) Os árabes diziam de Mértola que era o último porto de Mediterrâneo e nessas coisas eles raramente se enganam. É aqui que o Mediterrâneo começa; ou termina e isto pode ser confirmado de várias maneiras, incluindo aquela teoria segundo a qual o Mediterrâneo acaba onde acabam as oliveiras. Os arredores de Mértola são lindos e incluem as Minas de S. Domingos, o porto do Pomarão – por onde, desde os romanos, se escoava o minério das Minas de S. Domingos –, o célebre Pulo do Lobo e uma série de lugares nos quais sabe bem perdermo-nos, deixarmo-nos conduzir pelo automóvel. O centro da vida social, intelectual e cultural da vila é o Café Guadiana (onde agora escrevo); ao lado, no mercado fica a cafetaria Bom D+, que faz as melhores caipirinhas que bebi desde que deixei terras brasileiras (e tem de caminho uma vista maravilhosa sobre o rio e as muralhas). É praticamente impossível comer mal em Mértola. Todos os restaurantes são bons: o Esquina, o Muralha, o Salvador, o Migas... Todos. Mas um, tal como no livro, é mais igual do que os outros. Chama-se Tamuje e eu desafio qualquer ateu a lá ir comer. Ainda a refeição irá a meio e o incréu será acometido pela dúvida. No fim, estará convencido: Deus existe, chama-se Ana Isabel e cozinha ali. Já me aconteceu chorar de comoção com um coelho em vinho tinto e cada vez que lá vou fico à beira das lágrimas. Aquela senhora tem lugar garantido no céu. Só espero é que seja daqui a muito tempo. Outra das provas da existência de Deus é-nos dada pelo vinho Balanches. Vinhos, no plural, o branco e o tinto, feitos nas redondezas. A combinação Tamuje / Balanches é irrefutável e eu penso que todos a deviam experimentar pelo menos uma vez na vida. (E o medronho, Luís? Não falas do medronho? Claro que falo. Chama-se Cerca da Estrada e é feito em Almodôvar, ali logo ao lado. Mas há tantos mais...) Para além de inúmeros restaurantes excelentes, de ruas e casas lindas, de uma igreja que já foi mesquita e hoje é, aparentemente, o único exemplar de arquitectura islâmica remanescente no nosso país, de um castelo cuja visita vale cada passo até ao topo da colina, Mértola tem uma inacreditável quantidade de museus. São tantos que é conhecida por vila-museu. 
Mértola é um produto de luxo e como tal deve ser visitada e degustada. Com respeito, veneração, espanto e gratidão, muita gratidão: visitá-la é um privilégio e poder lá ir e chamar-lhe «minha» uma incomensurável sorte. 

2.8.20

Fundo Portugal

Oito ou nove horas de condução (propositadas) para vir de Viseu a Lisboa - e isto porque a última hora foi feita na autoestrada. Paragens: uma hora para uma chanfana na Lousã e quarenta e cinco minutos para uma multa em Carregal do Sal, se não me engano. 

Uma viagem pelo Portugal profundo qie amanhã será contada em pormenor. Portugal não é Cascais, Lapa e Foz, por mais que televisões, jornais, políticos e palhaços  o tentem fazer esquecer. (Desculpem as redundâncias.)

Pequena nota prévia: agora que os autarcas sabem fazer rotundas, já podem começar a pensar na sinalização?