29.9.23

Vagamente dispersas de hoje, Genebra, 29-09-2023

O mercado de Plainpalais tem cada vez menos gente - vendedores e logicamente clientes. Domingo não poderei ver se isto é devido a ser dia de semana pós-férias por causa de festa familiar (afinal não é no sábado). Espero que Genebra não se esteja a transformar numa Nova Iorque, com mudanças de dez em dez semanas.

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Não percebo bem isto de separar a vida e o trabalho. São coisas distintas? 

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Para as religiões laicas da actualidade - a saber:

- Igreja das Urgências Climáticas do Amanhã;
- Igreja do Sagrado Corpo e da Saúde;
- Igreja Verde do Ambiente Santo...

... o pecador é o homem (pode redimir-se aderindo à segunda via meia dúzia de fitness clubes com liturgias de corpo presente - não é jogo de palavras - cinco dias por semana e penitências administradas por um PT).

Às vezes penso que devo designá-las por micro-religiões e não por religiões, mas logo a seguir percebo que isso é manifestação de um desejo, não uma descrição objectiva da realidade.

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De todos os erros que fiz - são muitos - os únicos que não me perdoo são os que não dependem de mim: mulheres cujo número de rifa me fez ver o inferno. É provavelmente o único aspecto da minha vida em que não o mereço. (Tenho a sorte de ser compensado, é verdade, por muitas que me trouxeram os céus - o do mundo e o que há em mim. Mas quantos céus são necessários para fazer esquecer um inferno? Ou quanto tempo, vá lá?)

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Retratos possíveis 

Não gostava de incomodar ninguém. Era demasiado bem educado para se suicidar. Deixou-se morrer, simplesmente não vivendo.

28.9.23

Acaso, labirinto, veredas

O labirinto é uma sequência aleatória de veredas e é por uma vereda que lhe chega. Os caminhos são estreitos. O que lhes dá vida é o caos, a desordem, o acaso. O exterior de labirinto distingue-se deste apenas pela falta de muros visíveis. Os caminhos bifurcam-se, trifurcam-se, circumvalam, enrolam-se em elipses, círculos e outras figuras geométricas que só um olho bem treinado identifica. Deixa portanto o acaso fazer o seu trabalho. Um dia chegarás ao fim do labirinto, descobrirás que ele não tem saída e que não podes voltar atrás. Nesse momento - e só nesse momento - verás a ordem e descobrirás que o outro nome do acaso é o teu.

Diário de Bordos - Genebra, Suiça, 28-09-2023

Chegada a Genebra. O avião aterra às oito menos cinco da manhã, o autocarro sai do aeroporto às oito e oito e às nove e um estou em casa (da S., que é onde costumo ficar quando aqui venho). Tudo isto sem um solavanco, um buraco nas ruas - com excepção das obras, que nesta cidade são permanentes mas estão sinalizadas e delimitadas - um grito ou uma buzinadela. O espeanto mantém-se: como é que uma cidade tão lisa pode provocar tantos turbilhões? 

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A festa vai ser no sábado, o dia certo, em casa da L. Sessenta e seis anos. Para além da ideia de que falta ali um seis - e de que posso pagar meia tarifa nos autocarros - ainda não digeri bem esta coisa. Já nem penso nos sessenta: penso é nos setenta, que estão ali ao virar da esquina. Ainda não comprei um retrovisor. Não tarda vou precisar de um, suponho.

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(Cont.)

Da legitimidade de alguns léxicos (tema a debater com o M. M.)

Palavras que uso ou oiço desde a minha infância e não conseguiria trocar mesmo que quisesse (seguidas da respectiva tradução, quando disponível):

  • Surveyor (inspector);
  • Shipchandler / chandler / ship (esta abreviação usa-se em francês) / chandlery (loja de aprestos náuticos);
  • Charter (actividades marítimo-turísticas - provavelmente a expressão mais feia de todo o léxico português);
  • Ir a bancas (meter combustível - do inglês bunkers);
  • Peak de vante (ou de ré - desconheço a tradução);
  • Broker (intermediário, agente);
  • Tanque (depósito de água ou de combustível);
  • Boomjack, boomvang  (não tenho a certeza de que a tradução correcta seja burro);
  • Backstay (estai de ré?);
  • Plotter (esta é recente mas é como se não fosse).

27.9.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 27-09-2023

O dia foi longo e a noite será curta. Ficam duas notas para não me esquecer.

Dia límpido, limpo, luminoso e claro (quanto mais pressa mais adjectivos). À minha esquerda o mar, à direita a catedral. É preciso muita força para resistir à tentação de me tornar crente. Não do mar, desse já sou; nem da Igreja, há muito que deixei de o ser. Refiro-me à fé em geral, a fé abstracta, à ausência de cepticismo.

Em nome das respectivas religiões os antigos erguiam catedrais; os modernos reclamam contra os puns das vacas. Cada época tem os seus desígnios.

Jantar no Buscando el Norte, restaurante armado ao pingarelho ao qual raramente vou, talvez por isso mesmo. Tem um nome bonito e empregadas a condizer. Infelizmente nenhum destes justifica o preço. (Isto não é inteiramente verdade. Fui lá duas ou três vezes, com a de hoje, que por acaso não foi brilhante. Da ou das outras não guardo más recordações.)

A pintura da retranca está paga. Agora falta trazê-la para bordo, montá-la e aparelhá-la. O trabalho no meu P. avança ao ritmo de uma minhoca tetraplégica.

Rápida nota sobre a arte de escolher colaboradores: dos muitos day workers que tive, Radu é o melhor (excepto na limpeza de interiores, mas para isso, digam as feministas o que quiserem, só uma mulher). A sua especialidade é informática em super e mega-iates. O primeiro trabalho que lhe dei foi limpar o convés e o interior e o último pôr o sistema de navegação a funcionar. Amanhã este fica pronto. Dia sete vai para Nova Iorque. Arranjou trabalho a bordo de um americano. Toda a gente sabe que nos Estados Unidos ninguém percebe de informática.

Adenda:

A noite vai ser curta e durmo com o albói aberto, ver se acordo com o fresco da madrugada. Penso em tudo o que pedalei ontem e hoje e verifico com gosto que a velicidade da bicicleta aumentou grandemente. Duvido muito que se possa atribuir apenas à queda da temperatura, que não foi proporcional.

26.9.23

Do lado de fora de si

Demasiado ocupada com a viida, esquecia-se frequentemente de si própria. "Vivo do lado de fora de mim", explicava a quem a queria ouvir. "Felizmente são poucos os homens que se interessam pelo que eu digo; e desses, menos ainda os que o compreendem".

25.9.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 25-09-2023

Ponto ao meio-dia:

    - Retranca: D. está na Suécia e de lá vai para a Alemanha. Levou uma das duas equipas que tem. Standby. (Nota bene: para a próxima escolher um fornecedor que não tenha trabalho.)
    - Traveller: E. tem trabalho por três meses e não pode vir pintar a base do traveller. Encontrar outro pintor; Nota bene: ditto;
    - Diversos: R. vai para a Alemanha resolver um problema da namorada. Regressa dia 5. Standby;
    - Registo: O surveyor polaco respondeu à mensagem. Vai enviar um mail. Standby;
    - Lavac: antes de mandar vir um tampo novo, certificar-me de que o problema está realmente ali. A única coisa que funcionou a cem por cento hoje: respostas imediatas, claras e precisas.
    - Outros: Leroy Merlin não sabe dizer a que horas entrega o aspirador; pode ser até às duas da tarde. Standby;
    - Carcaça: o triador do Egas Moniz continua a não dar notícias. Standby - dado que tenho outro pedido à espera de triagem há um ano temo que isto não seja tão rápido como esperava. Recrimino-me por não ter feito a operação na Alemanha, que seria no dia seguinte à da consulta.
        Não posso reaver a massa que paguei adiantada à farmácia;
        Não tenho notícias da operação ao olho esquerdo.

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Ponto no crepúsculo da tarde:

      - Tudo igual menos o surveyor polaco. Já tenho números. A coisa parece estar a avançar na boa direcção. Telefonei ao número que o R. me deu para trazerem a retranca mas é caríssimo e vou tentar encontrar alternativas. Acho que a Covid deu cabo de uma data de coisas, entre as quais a noção dos preços.
    - O aspirador não foi entregue devido a problemas com o telefone. O número é estrangeiro e os coitados não tomaram nota do indicativo.

Capítulo boas notícias:
    - (Não mencionado antes) - J. W. acedeu a não fazermos outro buraco naquele casco.
    - O mergulhador do clube enganou-se e limpou o meu casco em vez do do vizinho;
   - O problema do Lavac é efectivamente o tampo, mas por agora reparei-o com cola super-especial. Não vai durar muito tempo, mas para já fica assim. Um tampo novo custa trezentos euros. Trezentos euros por um bocado de plástico. J. W.: «we are loosing control.» (J. e eu partilhamos uma infinidade de pontos de vista, uma das poucas coisas na minha vida que me enchem de orgulho. Não é todos os dias que se ouve um surveyor criticar a multiplicação de regulações sem sentido. «Where's common sense going to?»)

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Jantar no 7 Machos, agendado há algum tempo. A margarita continua a melhor a Oeste de West Palm Beach, o burrito está a habitual maravilha e penso com desgosto na sacana da carcaça que não aguenta mais do que duas Margaritas e mesmo assim a segunda já só lá vai a custo (o jogo de palavras é intencional, se por acaso).

24.9.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-09-2023 / II

A calma regressou a Palma-a-calma, agora que o tsunami de turistas se foi e ficou só a vaga normal. A cidade vive, respira, vibra e se é verdade que por vezes alguns preços me provocam arrepios, sobressaltos e arrepanhar de cabelos é igualmente verdade que um Mount Gay - mesmo a onze euros! - é bem vindo, de vez em quando. Amanhã compro uma garrafa, custa pouco mais e fico com mais cabelos. Vá lá que pelo menos poupei no jantar, sempre equilibra as contas. Ai, P., P. os saltos sobre saltos que me fazes dar.

O dia acaba com o Köln Concert e um valente copo de hierbas secas a bordo, história de dissolver esta impaciência que me consome os dias. Sempre detestei os sábados e os domingos porque não vejo razão para o mundo parar quando eu preciso que ele avance mas pronto, está quase no fim e dá gozo ver a cidade assim e bebê-la, sobretudo, ao som desta música que tanto me fez amar. Dizem que tive uma vida do caraças e eu discordo (em primeiro lugar porque ainda não tive: tenho). Que sabem eles da D., que sabem eles das noites passadas a fazer amor a ouvir isto, que sabem eles daqueles meses em Dunkerque, que sabem eles da vida, da minha vida? O que lhes conto? Meu Deus, é tão pouco...

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As coisas para a saída do De Passagem precisam-se e devo deixar aqui um gigantesco obrigado ao J. O., que se ocupa da parte fotográfica da coisa. «Quatro coisas o interessavam: o mar, a luz, as palavras e as pessoas. O resto não passava de epifenómenos. Durante uma vida - ou várias - tentou misturar isto tudo», escrevi um dia. Pouco a pouco o puzzle completa-se, a mistura faz-se. (Devo aqui deixar também um agradecimento a uma senhora chamada Rita, cujo apelido não recordo, que foi a primeira a propor-me transvazar o DV para livro, usando essa frase como epígrafe. Disse-lhe que não, decisão que ainda hoje não sei se foi ou não correcta. Penso que sim, mas não tenho a certeza.)

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Keith Jarrett continua aos gritos, as hierbas vão baixando de nível, o domingo escoa-se tranquilamente. Amanhã o «meu» P. pega ao trabalho: os díodos do painel não estão bem, é preciso acabar a casa-de-banho e o traveller, maldito traveller, falar com o surveyor polaco, ir buscar a retranca, relançar o D. para que ele não adormeça noutro mega-iate qualquer, chatear o X. até ele me mudar a merda do Actisense, telefonar ao J. para o convencer de que não é preciso fazer mais buracos neste casco, telefonar à Blake & Sons a reforçar o e-mail... Este mês e meio de mar fez-me um bem inimaginável, mesmo que tenha tido custos inesperados no P., que gosta de me ter por perto. Olho para trás e pergunto-me como consegui passar aqueles anos todos longe do mar - e, sobretudo, o preço que paguei por eles. Sempre vivi do lado de fora de mim, é o que é. 

E agora pareço um comboio a chegar a uma estação que não estava no programa, não é? 

Agora?

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De Passagem vai ter um prefácio do António Cabrita, um posfácio do Manuel Monteiro e a crítica do João Rodrigues (se ele autorizar, ainda não lhe perguntei) na contracapa. Pense eu o que pensar de mim e do que escrevo, uma coisa é certa: nem toda a genta pensa o mesmo. Hallelujah.

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Quinta-feira estarei de novo em Genebra, ver os netos e passar o aniversário. O meu solipsismo parece uma câmara-de-ar furada.

Retratos possíveis

Ingeria, ingeria, ingeria. Comer, beber e fazer amor eram a maneira dela absorver a cidade na qual por acaso se encontrava.
- Como fazes para não engordar? - perguntei-lhe um dia.
- É fácil, - respondeu. - Cago tudo o que como e obrigo-os a usar camisa. Não fica nada cá dentro.

(Ela queria dizer "cago em tudo", provavelmente. Não falava português suficiente  para isso.)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 24-09-2023

Acabo no francês da calle Socorro. O caril é uma merda, mas isso já o sabia quando o encomendei e o vinho está quente, o que não deixa de ser uma surpresa mesmo sabendo que o homem está completamente aculturado. O caril não me ocupa muito tempo. Penso mais na idade. Isto é, nas mudanças que pouco a pouco vou apercebendo em mim e que atribuo aos quase (piada privada) sessenta e seis anos: esta falta de paciência para procurar sítios decentes para comer (decentes sendo: baratos, bons, simpáticos, bonitos, não muito longe de onde me encontro e que não exijam reserva), esta cada vez maior intolerância ao vinho tinto quente, a tolerância à comida medíocre. Uma parte é sem dúvida devido aos sessenta e seis; outra a não poder cozinhar há não sei quanto tempo (no A. S. cozinhei, mas não é a isso que me refiro). [O francês tem vinho fresco mas não tem mousse de chocolate. Nós, os pesquisadores da perfeição perdida temos cem por cento de êxito nas nossas pesquisas.]

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O Ultima Hora tem uma reportagem sobre a última «orientação sexual a sair do armário»: a assexualidade. Rompe, diz, «com os esquemas de uma sociedade obcecada pelo sexo» (a tradução é minha, mas como é pequena não corre muitos riscos de estar mal). Por uma razão que ignoro - não avancei muito no artigo - só fala de senhoras. Aparentemente não há homens assexuados. Por mim tudo bem, sou um rapazinho obediente e crente. Só não percebo por que raio de carga de água é a «última orientação»: ando a levar tampas desde os quinze anos de idade. A assexualidade feminina não me é de todo estranha. Há mais de meio século, acrescento.

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Mais um sintoma da idade galopante: este Outono está a saber-me que nem ginjas. Sol, céu azul, bicicleta BH Glasgow e uma temperatura mais do que aceitável (vinte e sete, para quem quiser saber). E eu que pensava que abaixo dos trinta não há vida possível. Vou baixar a fasquia para vinte e seis e acrescentar uma para as máximas. Ainda não sei aonde situar esta; assim que souber comunico-o aos meus ansiosos leitores.

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(Cont., provavelmente)

Adolescência

Dizem os homens do marketing - ou pelo menos alguns deles - que as lojas devem ter a música da adolescência do seu mercado-alvo. É possível. Não sei.

Mas sei que os blogues devem ter a poesia da adolescência do seu autor e que desse ponto de vista o DV tem andado relapso.

"Há que morrer no convés 

Há que morrer no convés Do seu previsto naufrágio. Tremem-lhe as tábuas aos pés, Cheira a presságio. Negros augúrios com asas Cruzam agoiros nos mastros. Os ventos sabem a brasas. Recusam-se astros. Já o Piloto que ruma A proa dos embaraços, Pressentiu que além da bruma Esperam sargaços. A agulha mentiu o norte, Mas o Piloto sabia. Quem busca as rotas da Morte Não de desvia! Não de desvia!"

Reinaldo Ferreira 

23.9.23

Preciosas, palavras Ou: violento protesto contra tantas coisas que se lêem por aí

Gostava tanto de palavras que se zangava quando as via mal empregadas. Desperdiçadas como nódoas numa camisa branca.  Há que manuseá-las com cuidado. São frágeis. Cristalinas, mesmo as mais opacas. Preciosas, mesmo as mais feias e pesadas. 

Todas as palavras são precisas

É mais ou menos essencial resistir à tentação de proscrever palavras. Todas são precisas (em todos os sentidos do termo, porque as palavras, como as pessoas, têm sentidos). 

Aventuremo-nos, mon amour, pelos sentidos com palavras e gestos, com toques e carícias, com olhares e reservas. Sem reservas nada é possível. Nada se nos dá sem reservas, nem mesmo o vinho que quando é bom é "reserva" (mais ou menos. Isto não é uma aula de enologia).

Regressemos ao real, essa armadilha de onde pensámos que saímos na adolescência e na qual nos atascamos involuntariamente, no segundo grau por assim dizer, quando crescemos: eu gosto do real. A realidade fascina-me, intriga-me, inquieta-me e assusta-me. Não há forma humana de não gostar dela, de não ser atraído para aquele buraco de contradições e espinhos.

As palavras descrevem o real e imaginam o irreal? Isto discute-se - com palavras, não a murro. Acredito que elas fazem o futuro. Isto é: antes de ser, o futuro é palavras. Palavreado. Trinta e um de boca.

Interditar palavras - quase, por exemplo. Esperança. Solidão. Sofrimento. Sozinho - é uma forma injusta de amputar a realidade. E de seguida o futuro, que não sai incólume desta cirurgia. Omitir palavras é como impedir um dedo de fazer qualquer coisa.

Proscrever palavras é como dizer "dessa água não beberei". Fatuidade, claro. Cada palavra é uma gota de água e todas são precisas.

Leituras ocasionais

«L'A prise dans ses mains
  La belle
L'a prise dans ses mains
  La bite

L'a mise entre ses seins
  La belle
L'a mise entre ses seins
  La bite

Quand elle fut bien rouge
  La bite
L'a plongée dans sa bouche
  La belle

L'a plongée en sa bouche
  La bite
Et bouge bouge bouge
  La belle

La belle et la bite
Habille habille habille
La bête, la grosse bête
La bite et la belle
Dit bite ah bite habite
  Moi vite»

Louis Aragon, in 1929, Ed. Allia, Paris 2018 (Plaquette de 1929 com poemas de Benjamin Péret e Louis Aragon e com fotografias de Man Ray).

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 23-09-2023

Notícias do ecossistema 

Chega a hora da sesta, inexorável (ou inexoravelmente? Qual é a palavra-chave - sesta ou hora? Não sei.) E chegou o Outono, igualmente inevitável. Disfarçado de Verão, pelo menos durante o dia, que à noite não se disfarça de nada. É o que é. Ontem já tive de pôr o cobertor, mesmo antes de o Equinócio chegar, segundo uma das páginas consultadas. 

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As minhas incursões pelo ecossistema continuam mas apercebo-me de que agora têm um duplo sabor, como um gelado com duas bolas, uma amarga e doce a outra, uma quente e outra fria: reencontro e despedida, simultaneamente. Olá adeus, desta sim, estou de passagem. "Não és homem não és nada", repito-me sem parar, "se até ao fim de Novembro não estiveres fora daqui". É batota: quero ir-me embora amanhã de manhã cedo, antes de o Outono chegar em força, antes de o P. explodir em mil pedaços e cobrir esta cidade com um vasto manto de impaciência em micro-bocados de kevlar-carbono. Falta-me a retranca e o registo, convencer o J. W. de que não é preciso fazer um segundo buraco no meu casco adorado, teste de mar e ala, larga tudo. O resto é amendoins. Preciso de um quarto. Hoje comprei um aspirador Nilfisk, quero mudar da Kärcher, só para ver. Quero um quarto até a porra do P. deixar de ser um estaleiro. E até ter a casa de banho a funcionar, ou muito me engano ou vou precisar de uma tampa nova para a retrete, quem é que falou em carrocel? Porque é que não compraste uma tampa nova há cinco amos, quando mandaste vir as juntas? Porque estava boa. Quem é que disse que adora refits? Eu. Come e cala-te. Como e não me calo, esta merda tem de sair, atenuada é certo pelos mexilhões do Dino e pelo vinho branco e pela ideia de que podia estar noutro sítio qualquer. Mal por mal, antes Palma-a-calma, Palma acalma, como quando hoje vinha na BH Glasgow do Leroy Merlin e vi quanto me apazigua esta burra gigante que parece um cavalo a rolar suavemente pelas ruas bem pavimentadas.

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Venho ao Lo Divino. Foi efectivamente o Dino quem ficou com isto. Conheço-o da Fabrique. O mínimo que se pode dizer é que ficou em boas mãos. Está cheio, que bom é ver este restaurante assim. O Fidel não tinha vitello tonnato e de qualquer forma quero lá voltar «outro dia em que o mar seja menos tão sem vento», nas imortais palavras de João Miguel Fernandes Jorge. Um mar sem vento é pior do que um mar tempestuoso. O Divino é um excelente escolha para arribar. Segunda-feira chega o aspirador - o Leroy Merlin solucionou o cruel dilema de saber se levaria aquilo na burra ou se o mandava entregar: não se pode encomendar uma entrega depois de o artigo estar pago. Só antes. Que se lixe. Podia ser pior. 

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A cidade está cheia mas não a abarrotar. Está viva, como devem ser as cidades, as pessoas e o mar, de vez em quando. Fui à Bodega Belver e disse ao homem: «Há muitos anos que não via estaca casa tão cheia». Quase lhe arranquei um esboço, uma pálida sombra de sorriso. Quase.

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A Lua está em quarto crescente. Para um selenita exilado (ou será explanetado?) é a fase favorita: tudo cresce, no crescente. Até o optimismo (não digo esperança: é palavra quase proscrita, como quase).

22.9.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-09-2023 / II

O Outono está aí à porta e fui ao Google ver quando começa. Amanhã às oito e quarenta e nove suponho que da manhã e hora portuguesa (UTC menos um, ou seja às zero sete e quarenta e nove Greenwich, não percebo por que raio mudaram GMT para UTC ou melhor: percebo mas acho uma estupidez, se bem seja pequena e mais ou menos irrelevante). Ou às zero seis e cinquenta,  segundo outra página. Já nem na Internet se pode ter confiança, isto é dramático. Felizmente estou-me relativamente nas tintas para a hora do equinócio e posso viver bem com esta ambivalência. Sete e quarenta e nove, seis e cinquenta, mais minuto menos minuto não tarda vou a uma página astronómica - zero seis e quarenta e três. O mistério adensa-se. Já nem sequer é uma ambiguidade. É uma triguidade. Deixo a pesquisa por aqui e continuo o que ia dizer: este fresco é agradável e agora tive de fechar o albói, qualquer dia vence um cobertor e depois dois e eu aqui nesta angustiante incerteza: a que horas é o raio do equinócio amanhã? Quando começarei a ter de usar as camisas de manga comprida? Valerá a pena aderir ao bónus da 5 à Sec? A quem devo pedir uma indemnização pelas alterações climáticas? À Ford? À China? Aos farmeiros do mundo desenvolvido? Eles é que deviam pagar o cartão Privilégio da lavandaria, não eu, aonde (ou melhor, quando) é que já se viu ter de usar mangas compridas em Setembro, mesmo admitindo que estamos quase no fim dele, ou seja: mais um aniversário para mim, sessenta e seis, mais um seis e seria um número diabólico. Assim é bonzinho.

Lá me perdi outra vez. Amanhã arrumo o bote pela trigésima milésima ducentésima quarta vez, está quase vazio, este raio desta palavra (quase) pôr-me-ia os nervos em franja se os tivesse, por acaso não tenho graças aos meus pais que proibiam a palavra "nervos" e derivados em casa excepto se usada num contexto médico. Quase vazio. Estou farto de viver num estaleiro, mas vou aguentando.

Aonde é que eu ia? Equinócio, incerteza, quase, nervos, pais, vazio, estaleiro, ROC... Deriva, é o que é. Uma deriva completa. Resumindo: amanhã de manhã cedo o Sol passa para o outro lado do Equador e eu continuarei a viver num estaleiro pelo menos mais uma semana. Antevejo com luxúria o dia em que nada haverá a fazer no interior e mais ainda no exterior. Isto é,  mais luxúria. Testes de mar. Luz verde. Vamos. Larga tudo. Primeira escala: La Linea. Depois Las Palmas de Gran Canária. Chegada: Le Marin. O P. no Marin. Credo, senhores, preparai as garrafas de rum e as travessas de boudin e de accras. Mango Bay, j'arrive. E se não for preciso parar na Linea não se pára. Tudo em cima. 

A Botegga Bolognese multiplicou os preços por dois e diminuiu as quantidades na mesma proporção. Ao todo, quase quatro vezes mais caro. Fizeram bem. Quase (outra vez?) tinha vergonha de lá ir, quando uma pratalhada custava quatro euros e setenta ou noventa. Agora um mini-prato custa quase dez euros. Só a qualidade se mantém. E a simpatia do Hugo e da Silvia, claro. Para a semana vou lá comer uma carbonara, que tanto me falta. O Antiquari também subiu, parece-me. Não tenho a certeza. A seguir fui ao Eroski comprar manteiga - Primor, era o que havia de potável - e vim para bordo: pão com manteiga, fouet, queijo Gouda velho, vinho tinto, Eleni Karaindrou e Angelique Ionatos. O polaco já respondeu e já lhe enviei os papéis todos. Agora só falta esperar. Esperar. Estou tão farto de esperar como da palavra quase.

Vou entrar devagar nesta noite mas não te preocupes, Dylan: não é a do teu pai. A minha é passageira. Só dura até chegar o Outono.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 22-09-2023

Notícias do ecossistema 

A manhã foi passada a esvaziar o P. (outra, outra, outra vez), levar tudo para o armazém, fazer mais uma mini-triagem, trazer a BH Glasgow para Palma e reatar com o ecossistema. Mercat de l'Olivar. Desde uma recente troca no FB sonhava com uma carbonara como deve ser mas ainda não foi desta: o Hugo só recomeça com a melhor carbonara da galáxia (exagerando um pouco) na terça-feira. Refugio-me na lasagna e como as doses agora são pequeníssimas reforço com um ragu bolognese que ele faz como ninguém. Tudo isto acompanhado por um Chianti levezinho, fresco, bendito. Infelizmente ainda não há o limoncello da Silvia, isto sim uma profunda injustiça. Como no Arabay, o stand em frente: o Hugo não pode pôr cadeiras no balcão. A mulher do Arabay tem uma voz de furar os tímpanos a um crocodilo surdo, avisa-me de que à uma e meia fecha - ela fecha antes de abrir, diga-se de passagem - e deixa-me comer tranquilo. Já não há café de filtro, já começou a recolher bancos e mesas, o Cristian está com a loja vazia pela primeira vez desde que me sentei e eu estou em casa.

Aonde, se não?

ADENDA - O almoço acaba na Cati Xis (é o nome do stand, não da piquena, que desconheço) com três euros de tâmaras medjoul e gengibre seco sem açúcar  - ela ainda se lembra desta mistura ambígua, doce e picante, qual deles o melhor - e com duas hierbas secas no Morey - "só faltava que tivesses vindo cá para isso [pagar o vermute de ontem]". "Vim, mas já que estou aqui..." 

Se isto não é a minha casa (e se eu não sou a versão nómada do filho pródigo) eu não sei o que é. 

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Tudo isto rodeado de enxames de mulheres belas (das quais não sou a rainha-mãe ou abelha-rainha ou seja o que for). Palma-a-calma é um desafio para os sentidos.

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Diferença entre Palma e Lisboa: amo as duas mas só uma retribui.

21.9.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-09-2023

Notícias do ecossistema

A manhã foi passada a trabalhar, se tanto é que se pode chamar trabalhar a esta espécie de tango que consiste em avançar dois passos milimétricos, recuar um quilométrico e dar três de dimensões variáveis para cada lado. Talvez possa, por ausência de outra denominação possível. «Bater punhetas a grilos» seria injusto e «pedalar na maionese» insuficiente. Talvez «um cântico à fé», como o cântico para Leibowitz da minha adolescência, que tanto me marcou. Ou «um cântico à teimosia». Mas enfim, sejamos justos: dei dois milimétricos passos na direcção do registo. Vamos ver quantos andarei para trás amanhã.

Almocei na Cantina, que só não está pior porque pior é impossível. Mas acolhem-me generosamente toda a manhã e acho que lhes devo um sacrifício de vez em quando. O Alberto continua a máquina de trabalho que conheço há cinco anos, quase seis; o outro imbecil continua o outro imbecil (não lhe recordo o nome, mas imbecil chega perfeitamente. Aposto que os pais não lhe deram esse nome mas fizeram mal). Depois seguiu-se o Correo - é uma dessas instituições que não muda, graças a Deus - a adega Morey, que confirmou a sua entrada no meu universo (prefere que lhe pague amanhã em dinheiro a hoje em plástico e tem palos Garrott), o Claudio - nada a dizer senão que consegue fazer da canela um sabor de que eu gosto, coisa que devia ir directamente para o livro Guinness dos Recordes, cum lauda. Seguiu-se o resto da cidade, passo a passo - ainda não tenho a bicicleta. O elevador da Plaza Mayor já está a funcionar, consegui entrar no La Rosa sem esperar, vim ao Jaume, fui comer um cachorro quente ao gajo da plaça Drassana (primeira e de longe não a última vez) e agora regresso à Cantina, onde o único inconveniente é a voz invasiva e imparável do imbecil. O vinho tinto está à boa temperatura e a um preço mais do que correcto. O vento caiu, amanhã tenho de novo Radu, o day worker que hoje deu uma limpeza notável ao P. (e de caminho me encharcou os lençóis, mas isso trata-se) e amanhã vai comigo deixar coisas ao Ben (isto de ir levar e trazer coisas a este armazém ficará para sempre na minha memória como o meu momento Charlie Chaplin). Apetece-me um banho de imersão de vermute e as vinte e uma propostas do La Rosa (literalmente)  não me seduzem: ou são baratas e medíocres ou caras e não as conheço. O Jaume é um refúgio seguro: começo com um Rumbo e acabo com um Las Copas, sequência mais do que perfeita quando o rumo é justamente um ou dois copos.

Apercebo-me agora de que hoje faltou o outro imbecil, coisa que acho injusta: ficou este com a carga toda do dia.

Ou seja: a cidade está no seu lugar. Penso no P. e digo-me que está na altura de ter saudades dela, não de me regozijar porque estou de regresso.

20.9.23

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-09-2023

Regresso a Palma, ao meu labirinto, após mais de um mês de ausência. Não se deve escrever sobre o vulcão durante a erupção nem sobre tsunami quando a vaga rebenta na praia. Vá lá: chamar tsunami ou erupção a esta catadupa de emoções é claramente um exagero. É uma cascata, digamos assim. Ou melhor: um remoinho. Uma das cruzes está resolvida, falta outra mais uma dezena de pequenos crucifixos, de tamanho variável. Juntando estes aos da carcaça não se pode dizer que o quadro seja muito animador. Mas olhando para trás, para as paredes do labirinto, tão pouco se pode desanimar. Isto vai passo a passo, esquina a esquina, beco sem saída a beco com saida. Depende apenas da quantidade de curvas a dar e paredes a abater.

O traveller está resolvido, a casa de banho e o esgoto do poço da roda de leme também, amanhã falo com o engenheiro por causa do registo... Não sei se labirinto é a melhor analogia. Às vezes sinto-me num carrocel.

É preciso força para provar que este sentimento está errado e que a analogia está correcta.

ADENDA 

Força - e luz do dia. É preciso acrescentar «quase» a quase tudo. Juro que quando o carrocel parar deixo de utilizar a palavra «quase» para sempre (sem aspas ficaria «deixo de utilizar a palavra quase para sempre», o que seria manifestamente impossível).

........
P., BP., carcaça: devia acrescentar um vértice, prefiro quadrados a triângulos (e na volta estaria mais perto da verdade, vá lá saber-se). Ou cubos a pirâmides, qu'isto 'tá tudo ligado, óviste ó manguelas? Andas práqui com palavras de dois e quinhentos o quilo. Vai mazé vergar a mola, pá.

........
«Labirinto» e «nómada» são duas palavras facilmente conciliáveis, não são? São.

........

Exmos. senhores, 

Por uma razão obscura alguém me deu um número de telefone do «Gabinete do Utente». Na verdade foram dois, mas isso é irrelevante: poderiam ter sido trinta que o efeito seria o mesmo. Telefonar para um organismo português (seja ele público ou - menos - privado) é como telefonar para um buraco negro. As chamadas entram mas não saem. Os portugueses preferem as amálgamas e os ajuntamentos de pessoas que se vêem nas salas de espera dos hospitais a cinco minutos ao telefone. É uma opção e há que respeitá-la. Resta saber se respondem aos e-mails. 

No dia 14 de Setembro deste ano (é importante precisar o ano) um médico do Centro de Saúde de Cascais dirigiu ao hospital Egas Moniz um «Processo P1 completo» (aspas porque cito) a respeito de uma operação que devo fazer. Sei que quem decide a urgência da dita operação são os «triadores» (ditto). «Triadores» esses que nunca sequer falaram comigo ou viram o que se passa. Decidem a urgência baseados em intuições, suponho. Ou ausência de amigos com coisas mais importantes. Ou em função da posição da Lua no céu. Seja qual for o critério que os «triadores» usam - pode até admitir-se que sejam critérios objectivos, «científicos» (aspas porque ironizo) - penso que um bocadinho de transparência não faria mal a ninguém. Sobretudo para que pessoas como eu, que não têm amigos bem colocados e que devido ao seu trabalho viajam muito possam planear, por tenuemente que seja, a sua vida no futuro próximo. 

Este e-mail é um apelo nesse sentido: quanto tempo terei de esperar? Um ano? Dois? Um mês? Terei de passar esta magnífica oportunidade ao meu neto, que faz agora um ano e meio de idade? Qualquer informação seria bem vinda. A simples ideia de que o SNS não pensa que eu sou uma cabeça de gado - ou não me trata como tal, mesmo não o pensando - seria recebida com gratidão e alegria (por esta ordem). 

Cumprimentos,

Luís Serpa


(Descobri agora que tenho outro «processo» pendente há um ano. Já me tinha esquecido dele. Gostaria muito que o último fosse o primeiro e não fosse para a fila...)

19.9.23

"Sobre o amor marinho"

"Sou o teu mar, senhora minha.
e não me perguntes da viagem
nem do tempo da partida e da chegada:
só tens de 
esquecer os impulsos da terra
e obedecer às leis do mar
e entrar-me como peixe enfurecido;
racha o navio em dois pedaços 
e o horizonte em dois pedaços 
e a minha vida em dois pedaços"

Nizzâr Qabbâni in Um árabe é um árabe, é um árabe, um árabe, Breve  antologia de poesia árabe, Versões e traduções de André Simões e Joana Santos, ed. Contracapa.

[Livro comprado hoje na Snob, abençoado seja o Duarte que põe pérolas destas à vista de um pobre marinheiro que da Arábia só gosta da poesia e não percebe nada do resto.]

"Não somos uma ilha
excepto para quem nos vê do mar"

Qassim Haddad, idem ibidem.

17.9.23

O velho problema da assimetria dos referenciais

Uma frase que tinha permanentemente presente era aquela velha história do "amar alguém é amar os seus defeitos". Por isso, quando conhecia uma mulher que lhe parecia interessante mostrava logo o seu pior lado. "Assim", acrescentava para si próprio "os próximos encontros só podem ser melhores".

Infelizmente as raparigas não conheciam a máxima dos defeitos e a estratégia não funcionava: nunca havia "próximos encontros".

Simbiose, vida

Às vezes penso na vida. Depois penso nela - andem sempre juntas, a vida e ela, numa relação simbiótica, quase siamesa. A cada vez apetece-me mandar a vida para o raio que a parta,  como se fosse possível separá-las, como se pudesse ficar com uma sem a outra, como se sem a outra uma pudesse sequer existir.

16.9.23

Imposto, idade

A idade é um imposto progressivo que a vida nos cobra quando passamos um determinado limite, que só ela sabe qual é. Ou quando passamos determinados limites, que sabemos perfeitamente quais são. 

Diário de Bordos - Lisboa, 16-09-2023

É andar que me põe em contacto com o mundo. Na minha bicicleta pedalo de um lado para o outro e só vejo os pontos de partida e de chegada. O que lhes fica entre continua-me opaco, quase inacessível. De carro nem quase é. 

Hoje vinha a pé pela avenida da Liberdade (sem relação com uma certa obra literária) e vi uma marca que só conhecia de nome: Max Mara. Casacos a mil e quinhentos, mil e setecentos euros. Pus imediatamente a Max Mara na lista das marcas a esquecer, pensei "Haja quem" e continuei a minha caminhada. Um pouco mais abaixo vejo a Zegna*. "Sobrecamisas" a dois mil duzentos e cinquenta. Entusiasmo-me com o termo sobrecamisas, que não conhecia e deixo a Zegna onde sempre esteve: marca para "eles". Doismilduzentosecinquentaeuros por uma camisa. Digam outra vez, de um só fôlego. 

E ainda há quem não goste de caminhar pelas ruas de uma cidade!

* - A Zegna conheço. Um dia em Genebra vi ali uma gravata que achei bonita. Nessa altura usava gravatas bonitas. Entrei e perguntei o preço. O senhor que me atendeu respondeu e quando eu recuperei do choque disse-lhe "A Zegna mudou de segmento de mercado? Isto era uma marca tão barata..." "Isto [em itálico acentuado] nunca foi uma marca barata, Monsieur."

........

O Cascais Remo está cheio e tenho de esperar cá fora, apoiado em Favaios sucessivos. Comigo espera um grupo de  oito bimbos. A cada duas palavras dizem três palavrões. Falam, surpreendentemente, de futebol. Aposto que se eu vivesse na Idade Média teria pela igreja católica o ódio que hoje tenho pela porra da bola.

(Cont., se Deus quiser.)

Dispersas ressacado-matinais

A coisa piora: já não basta a televisão, ainda tem de ser CMTV e audível. Esse canal não é aconselhável a quem está de ressaca. Tremores de terra, prisões, crime e julgamentos... Porra, comparada a isto tudo, a ressaca perde a importância que inegavelmente tem. 

O que levará um homem adulto (velhote, mesmo) a vestir-se com roupa de futebolista?

Torto, Cockpit, Procópio (o Alexander estava fracote e os Irish Coffees sublimes), Snob: Lisboa é uma cidade eminentemente amável, sublime de generosidade, correctamente dimensionada. Tudo isto vai desaparecer um dia (ou nós, depende). É como as conquilhas: melhor aproveitá-las hoje, que amanhã não sabemos.

Um cântico a Lisboa, minha terra madre.

Não fui fazer as análises. O médico pensaria que se enganou e passou as receitas a uma destilaria.

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ADENDA menos matinal e menos ressacada

Regresso à pastelaria Monte Rei, sita na rua (ou avenida) Pascoal de Melo para almoçar. A Monte Rei é a melhor pastelaria de Lisboa. Não fosse o raio da televisão seria a melhor do planeta, ex-aequo com a Versailles (que não tem televisão, louvada seja).

Aconselho especialmente os rissóis de camarão, receita da Mãe do senhor que os fez e mos serve com o sorriso mais encantador de toda a hotelaria nacional e internacional e a sopa do dia (enfim: de hoje. Mas aposto que as dos outros dias são igualmente boas).

Reitero o cântico a Lisboa. 

15.9.23

Diário de Bordos - Lisboa, 15-09-2023

Vou cortar o cabelo a uma dessas «barbearias» hindus, paquistanesas ou afegãs, não sei bem. Ponho aspas a barbearia não porque não o sejam - são-no e boas (pelo menos as duas que frequento) - mas porque suspeito fortemente que aquelas lojas têm mais funções do que cortar cortar cabelos e fazer barbas. Gosto de tudo, a começar pelo preço, pelo silêncio dos barbeiros, pelas ajudas que dão ao meu sistema imunitário (cada vez que vou a uma coisa daquelas toma conhecimento com alguns milhões de bactérias, das quais muitas serão uma novidade). Hoje olhava-me para e pelo espelho e lembrei-me de quando era raro ver-me reflectido noutros vidros que não a ocasional montra. Nessa altura cortava o cabelo uma, duas vezes por ano e só nessas ocasiões me via durante algum tempo. Ou seja: uma ou duas vezes por ano era uma novidade para mim próprio. Agora, que aumentei drasticamente o ritmo das idas ao baieta e mudei outras coisas, vejo-me todos os dias. Sinceramente, não sei se fiquei a ganhar com a mudança.

........

Andava há que tempos à procura da palavra e só agora a encontrei: labirinto. Que farei com este labirinto, podes explicar-mo em meia dúzia de palavras? Como entrar nele?  Construí laboriosa, metódica, cuidadosamente um labirinto mas fi-lo a partir do lado de fora. Agora quero visitá-lo, percorrê-lo, desafiá-lo, corrigir o que fiz mal e estou fechado no exterior.

Só temos uma oportunidade, não é? É. Consolo-me dizendo que antes um labirinto do que um corredor a direito ou um quarto sem janelas.

........
Luta contra a burocracia portuguesa «electrónica». Acabam por me dizer que tenho de ir à Loja do Cidadão mais próxima. As minhas experiências nesses lugares não são propriamente muito encorajadores, mas como é um passeio de vinte minutos a pé vale a pena arriscar. Andar por esta cidade é sempre um prazer.

O grande problema, no fundo, é viver num país do terceiro mundo, ter aspirações a serviços do primeiro e haver cada vez menos corrupção de baixo nível. «Eles» reservaram-na para eles e não deixam o peixe miúdo comer também. Recordo com saudade o tempo em que ia uma vez por mês a uma conservatória qualquer de Ponta Delgada com uma nota de cinco contos metida entre duas folhas de papel azul de vinte e cinco linhas. 

[ADENDA: Loas são devidas a quem loas merece. A minha visita à Loja do Cidadão correu maravilhosamente bem. A pequena corrupção desapareceu (ou talvez seja eu que não sei fazê-la funcionar), mas a tradicional afabilidade portuguesa mantém-se. Bem hajam os funcionários das três instituições - três - que me atenderam e resolveram tudo o que havia a resolver.]

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Somos todos iguais, excepto nas bactérias: as minhas são boazinhas, as dos outros fazem-me mal.

...... 
"Sem advogados não há justiça", diz um painel gigante na parede da corporação dos ditos. Contribuindo assim para reforçar a ubíqua confusão entre justiça e direito, duas coisas diferentes. Se o não fossem, os advogados seriam dispensáveis. 

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(Cont.?)



13.9.23

Desprezo

P. diz que eu desprezo os cruzeiristas. Neguei veemente: às vezes mentir é legítimo. 

12.9.23

Estética e mitologia ao largo de Carreço

Venho desde a Suécia a ver eólicas em todo o lado. Ele é no mar, em terra, no cimo de montes... em todo o lado. A poluição visual destas coisas é horrenda. O catolicismo pelo menos fez catedrais,  sempre são bonitas e homenageiam decentemente quem querem homenagear. Estas porcarias não passam de um tributo àquela grande, infinita frase: "não avançamos para a verdade. Mudamos de dogmas, é tudo".

O C. F. diria que cada século tem os preitos que merece. Não concordo. A nossa época não é pior do que a Idade Média, longe disso. Escolheu mal os seus mitos, simplesmente. 

(Em terra está um banco de nevoeiro espesso como um guardanapo de pano num restaurante de luxo e mesmo assim ainda consigo ver alguns daqueles monstros no topo de um monte. Daqui a pouco chego a um campo deles no mar. Maldito seja para sempre quem anda a poluir o mundo com estas coisas.)

PS - acabo de escrever isto e vêm golfinhos brincar com o barco. É verdade que ao fim de milhão e meio deles um tipo perde um pouco o entusiasmo pelos bichos; mas pelo menos servem para me lembrar que nem tudo o que é bonito desaparece forçosamente. 

9.9.23

Diário de Bordos - A Coruña, Galiza, Espanha, 09-09-2023 / II

Consegui finalmente vir jantar ao Viñedo de Tito, uma casa que por qualquer razão tinha na memória, provavelmente inventada. Gosto destas memórias, coisas que repescamos nos esconsos da outra, da verdadeira e nunca sabemos de que campo são. O sítio é como esperava: uma tascazita pequenita, cujo dono é o Tito ele mesmo, as porções demasiado grandes para a fome que tenho e a comida (pelo menos a julgar pelo bife que comi) bastante boa. É difícil imaginar a senhora que cozinha fazer comida má, de passagem seja dito. Deve ser a mulhet do Tito. E a empregada filha deles, imagino, apesar de ter um bom palmo de altura mais do que o putativo pai. Não menciono as portentosas mamas da rapariga porque acho de mau gosto e machista reduzi-la a elas, mas realço-lhe a simpatia, a eficácia e o sorriso, contagioso como todos os bons sorrisos - se bem aposte que o meu é menos belo. 

O Viñedo de Tito vai juntar-se ao Trastero, ao Almacen do qual o "Vermute preparado" é uma maravilha, ao Ó Sampaio aonde almocei - e provavelmente à grande maioria de cafés, bares e restaurantes desta cidade: são todos bons, recomendáveis, adoráveis.

Chove e vai chover a semana toda: não há bela sem senão. 

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O Tito simpatizou comigo e serve-me uma dose de orujo do tamanho de um copo de água. Há uma espécie de comunicação infra-verbal entre pessoas, um bocado como quando sintonizamos uma rádio na frequência exacta. 

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Fenómeno esse que pouco a pouco vai acontecendo com o P. Conheço-o bem (pelo menos na área restricta em que estamos agora), aprecio-o (em terra mais do que no mar, mas hoje pensava que já mudei bastante e não tarda terei paciência para as hesitações dele, que no fundo são compreensíveis. O que na verdade me chateia é ele não me ouvir tanto quanto eu penso que devia. Maldito ego...)

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Algo me diz que esta noite vou precisar de Rennie's. Maldita azia...

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O Viñedo de Tito tem uma televisão mas prefiro olhar para as miúdas da mesa ao lado. São giras, ligeiras como a térmica da tarde no Mediterrâneo. Que fiz eu dos meus vinte anos?, começo por pensar. De seguida mando calar o pensamento, por vergonha e pudor. 

À pergunta desta manhã,  "deixamos uma vida por viver?" acrescento uma resposta: "Vida por viver não sei, mas mulheres por amar sim, deixamos muitas. Cada vez mais, à medida que elas vão crescendo." E nós envelhecendo, claro, mas isso são contas de outro rosário.

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Já só falta pagar. Amanhã o Tito estará fechado? Aberto? Não sei. 

Está, mas só de manhã. De passagem, meu caro. De passagem. 

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Acabo no Tarabelo para beber um Ribeiro turbio ("a única maneira de resolver uma tentação é ceder-lhe", Oscar dixit) e de passagem (lá está) leio La Voz de Galicia, jornal regional s'il en est.

Vem-me imediatamente à mente a canção de Lou Reed sobre viver numa cidade pequena. Eu venho de um país pequeno. Nada se pode fazer contra isso.

Vidas inacabadas

No Facebook da Galileu vejo um livro de que nunca ouvi falar: Elogio do Inacabado, de Agustina Bessa-Luís. Penso imediatamente na vida: alguém morre podendo dar a sua vida por terminada? Ou será, como penso, que todas as vidas estão inacabadas, que todos deixamos sempre alguma coisa por fazer? 

No extremo, outra vida por viver...

Diário de Bordos - A Coruña, Galiza, Espanha, 09-09-2023

Chegamos à Coruña debaixo de uma carga de água - estamos na Galiza - e atracámos com o barulho de uma horrenda música vinda não sei de onde - estamos em Espanha, aonde o barulho está para a vida social como o oxigénio para o ar. 

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Esta cidade encanta-me, apesar da maldição das televisões nos cafés. Ontem vi pela primeira vez um concerto com aqueles ecrãs gigantes de cada lado do palco. Foi na praça Maria Tita, cuja beleza está mais ou menos ao nível da da Plaza Mayor em Palma. O palco era gigantesco, os artistas pareciam formigas mas os ecrãs davam-nos a vê-los pormenorizadamente. A música era assim-assim - rock pesado, mais ou menos honesto - chovia a rodos mas as pessoas assistiam animadamente, debaixo de chapéus de chuva enormes (parece serem a norma aqui). Hoje andei à procura de um café para escrever e acabei por assentar arraiais neste, Ó Sampaio, uma cervejaria perto da marina cujas mesas são feias, a empregada mal-disposta, o vinho a copo bom e o caldo que o empregado - este alegre e simpático - acaba de me trazer bastante bom. Nunca como nesta escala o aspecto caleidoscópico da Coruña me foi tão visível. Desde o início desta viagem que não via tanta gente na rua, sorridente debaixo dos chapéus de chuva a comer polvo debaixo de um dilúvio (enfim, debaixo dos toldos nos quais diluviava copiosamente).

Diário de Bordos - No mar, golfo da Biscaia, 06 a 08-09-2023

A Lua mingua, como lhe compete. Só aparece tarde à noite. Entro de quarto às cinco da manhã e o cenário está iluminado, ao contrário do negrume que era às onze, quando fui para baixo. Andámos um bocado aos ziguezagues aqui pela Biscaia fora, fruto das indecisões do P. Medo e ignorância juntos não dão bons resultados. Enfim, amanhã de manhã fazemos uma escala para bancas em Ribadeo e depois vamos para a Coruña (espero). O problema de P. é uma depressão que está ao largo de Portugal: tem medo que a coisa entre pelo golfo dentro e nos fulmine com badanal. Digo-lhe que a) é pouco provável que a baixa venha directamente para Leste, b) daqui lá vai encher e c) de qualquer forma podemos sempre abrir se for caso disso. Que não! Rumo directo à Coruña nem pensar nisso. O bote parte-se em bocados (P. é hiper-mega-ultra-super cauteloso com as coisas e esconde o casal medo-ignorância por baixo da picuinhice). A isto acresce o problema do combustível. Disse-lhe para comprar dois jerrycans em Roscoff, mas a sugestão foi descartada. Resultado: escala para bancas em Lorient, ziguezagues na Biscaia, bancas em Ribadeo (aonde, de passagem seja dito, não me importaria nada de passar um dia ou dois, para desenjoar da Coruña, que já parece daquelas paragens obrigatórias nas quais os autocarros têm de parar quer haja pedidos para o fazer quer não). [ADENDA: trocar a Coruña por seja o que for? Só não digo que estava bêbedo porque no mar não bebo senão água...]

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Queixa à organização: ontem os Gémeos viam-se perfeitamente, à esquerda da Lua. Agora só se vê o Castor. Onde paras, Pollux? Em contrapartida, Vénus lá está, fiel ao posto. Oríon já deve ter saído da água: creio que lhe vejo as guardas. Não tenho a certeza. O manto diáfono dos cirros esconde a verdade dos astros. A verdade astrológica, por assim dizer. Ou astronómica, mais verosimilmente.

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Parabéns à organização: a temperatura sobe. Já não preciso de gorro e o casaco de mar está meio aberto. Não tarda posso tirá-lo. 

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Não há um pum: nem de vento nem de luzes no horizonte.

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Há uma relação inversa entre a ignorância e a certeza. Quanto menos se sabe mais seguro se está. A ignorância é uma droga reconfortante e apaziguadora. Por isso é tão penoso reduzi-la.

A beleza e ausência das coisas

«As coisas estão com bom aspecto», murmuras-me ao ouvido. Não sei a que «coisas» te referes e pergunto-te: «Que coisas? O que ou quem são as coisas? Como distinguir as coisas que "têm bom aspecto" das que o não têm? Pelo cheiro? Pelo tacto? Pela visão?» Passo em revista tudo o que não tem «bom aspecto» e concluo: é o mar que confere às coisas o bom aspecto que lhes atribuis. Dois dias no mar e tudo fica com um «aspecto» como novo. Ou invisível. Tudo desaparece debaixo destes movimentos desordenados do A. S., deste cinzento meio azulado que vejo pela escotilha do camarote, desta dúvida: valerá a pena desenrolar pano? Durante quanto tempo terei a maré a favor? O mar abraça-te e nesse abraço abafa tudo o que não lhe pertence. É a essa ausência que chamas "coisas" e atribuis "bom aspecto".

Dispersas climáticas

Comigo o clima não se altera. Só piora. [A confusão entre meteorologia e clima é propositada, acrescento hoje nesta Coruña que ora está cheia de sol ora de chuva.]

Tivera uma vida tão assimétrica que até as rugas eram diferentes de um lado e do outro do rosto.

5.9.23

Diário de Bordos - no mar, a sul do Raz de Sein, França, 04-09-2023

A motor desde a Suécia até aqui - ou mais além, que previsões boas para velas nem vê-las. P. acha isto bom tempo. Eu acho-o detestável. Ou melhor: quase detestável. Antes no mar a motor do que em terra. Largámos hoje de Roscoff e vamos parar em Lorient. P. tem medo de atravessar a Biscaia de uma vez. Tenho pensado muito no que leva este género de malta a comprar veleiros em vez de uma lancha. Não faço ideia. Enfim, faço mas a verdade é que me estou nas tintas. Só quero é chegar a Lisboa, ser operado e ir para Palma tratar do P. que bem precisa de mim. Não percebo como há que goste do tele-trabalho. É como gostar dos sábados e dos domingos, os dias mais chatos da semana. Vê-se bem que são os do fim, os de quando a semana está cansada. Trabalhar à distância é uma seca. Acaba por se passar o tempo todo ao telefone. Vá lá que o P. pára em todas as árvores.

........

Outra coisa que contribui para a detestabilidade do tempo é o frio. Hoje consegui passar o dia de pólo e calções, mas mal a tarde começa a metamorfosear-se em noite entra um briol tal que parece um muro a desabar-me em cima. 

Frio e sem vento? Ir para as Caraíbas este Inverno não me parece sequer uma opção. 

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Pouco ou nenhum vento e maré com um coeficiente não muito elevado (setentas): a passagem do Chenal du Four e do Raz de Sein foi uma brincadeira de crianças. No Chenal consegui convencer o P. a deixar-me vir juntinho à terra por causa da corrente, mas no Raz nem isso foi preciso. O cagaço é um sofrimento para o acagaçado e uma tortura para quem o acompanha. 

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Mar "piscina para senhoras", Lua em perfeito minguante, a costa a duas milhas, frio suportável desde que adequadamente vestido ("Não há frio. Há insuficiência de roupa"), boa visibilidade. É como se estivesse numa piscina gigantesca, ao longe as luzes do bar. Difícil pedir melhor, difícil não agradecer a existência de uma máquina: sem ela estaríamos num porto.

Loucuras, derrotas

Como se não tivesse chatices que cheguem, o louco do M. C. ligou-me hoje. Que pôr-me em tribunal. Acho que aquilo já não é só ganância. É incapacidade de lidar com uma derrota.

Bastante relativa, na verdade. Perdi e perco muito mais do que ele.

3.9.23

Diário de Bordos - Roscoff, Bretanha, França, 03-09-2023

Nova árvore, nova paragem, mesmo tempo de merda. Um Verão a dormir sob dois sacos-cama, dois, nevoeiro e temperatura que até agora raramente passaram dos vinte e dois graus centígrados. Parece que amanhã isto vai mudar e a temperatura chegará aos vinte e sete. Isso sim! A acontecer será uma alteração climática digna de nota.

........
Uma navegação que parece um charter. P. não gosta de balanço, nem de vento forte. Como o compreendo! A única coisa que me escapa é porque raio não compram (está longe de ser o único) um barco a motor ou uma autocaravana. Numa navegação normal já estaria pelo menos em La Coruña. E mais perto do meu P., que tanta falta me faz.

........
Uma coisa é certa: tanto o P. como o S. são gajos porreiros. Uma vez passadas as irritações iniciais e aprendido a lidar com ele (P. O S. é fácil) a coisa vai, bastante bem. 

.......
A marina de Roscoff é grande e recente - pelo menos os edifícios. Logo à tarde alugarei uma bicicleta para ir dar um passeio. Só estive aqui uma vez, numa escala do Tour de France à la Voile - e não vi nada da vila, escusado será dizê-lo. 

Mas o que vejo daqui - granito e nevoeiro - traz-me à mesa numa travessa esta Bretanha que tanto me seduz, apesar do tempo. 

........

(Continuação)

Aluguei uma bicicleta e fartei-me de pedalar por estas ruas que são bonitas quer haja sol, lua ou nevoeiro como hoje. Gosto do aspecto austero destas casas de granito com telhado de xisto (ou telhas pretas, não sei), casas que conheço por dentro e sei quão confortáveis podem ser no Inverno, quando as paredes já aqueceram e nos abraçam com o calor enquanto lemos na biblioteca, copo de vinho tinto ao lado e a boca ainda cheia do sabor da manteiga salgada a derreter-se no pão quente. Gosto destas correntes, destas marés desmesuradas (a amplitude hoje aqui é de nove metros), destas rochas que nos obrigam a ser marinheiros, a saber navegar sob pena de acabarem a servir-nos de espeto.

2.9.23

Mediações, electrónica

Estes gajos passam o dia com o nariz nos ecrãs dos aparelhos (dos quais, de resto, não percebem patavina, mas isso é outra história) porque não sabem ver o filme que os rodeia. Não sabem sequer que é um filme. Tem poucas personagens: o mar, o vento, as nuvens, o que se vê e não se vê, o que se ouve,  o que se cheira. Porém, a história que conta é complexa: fala do que aconteceu, do que acontece e do que vai acontecer. É difícil destrinçar tudo isto: as personagens falam todas ao mesmo tempo, são obscuras. Eles não as ouvem: a sua relação  com o exterior não passa pelos sentidos, mas sim pelos aparelhos electrónicos. 

Hoje tenho o filme iluminado pela Lua, cheia há poucos dias. Mar chão - vamos a motor, como sempre desde a Suécia (salvo meia dúzia de horas antes de Klintholm).
....
(Cont.?)

Fantasias por fantasias, antes as sólidas

A necessidade que o homem tem de mitologias e fantasia começa a ser percebida. São tão fundamentais como as gorduras animais, os hidratos de carbono e o álcool (os pilares de uma vida saudável, como toda a gente sabe).

Ora é forçoso reconhecer que a religião católica fornece fantasias de uma riqueza inexcedível. Ele é mulheres virgens que dão à luz, um tipo que transforma água em vinho - abençoado seja -, anda sobre a água e ressuscita depois de morto, mulheres que se transformam em estátuas de sal, um tipo que constrói uma arca e salva os animais todos da criação. O outro que vai para o estômago de uma baleia... Sei lá, aquilo é um nunca mais acabar de histórias cada uma mais fantástica do que a anterior. 

A modernidade devia pensar seriamente nisto, comparar os seus mitos com os da santa madre igreja e reconhecer-lhes a inferioridade. Se precisam de acreditar em fantasias, meus caros, acreditem naquelas que têm o selo do tempo. Não ponham a palerma da miúda sueca no mesmo pedestal do que Santa Teresa, por exemplo. Está a milhas.

1.9.23

Diário de Bordos - Fécamp, Normandie, França, 01-09-23

E a chuva, perguntar-me-ão? Bem, muito bem, felizmente: não pára. Não é fórmula, é literal: a porra da chuva não há maneira de parar. Talvez exagere, eu sei (coisa raríssima em mim): ontem ao fim da tarde não choveu durante mais de uma hora e agora abrandou bastante. Pode ser que a acalmia dure uma hora ou duas. A largada está marcada para hoje ao meio-dia, mas não sei se vamos conseguir. Espero que sim.

Escrevo numa pequena padaria desta pequena cidade, embalado pela música do francês: a loja parece ser bastante popular, os clientes são como a chuva lá fora: não param e cada um deles troca umas palavras com a senhora padeira, que a todos responde com um sorriso de orelha a orelha (sorriso esse que não a impede de me dizer que se eu quero mais manteiga terei de pagar um suplemento à minha «fórmula pequeno-almoço», de passagem seja dito). Estou parado em Fécamp, um porto da Normandia, no norte de França. Já aqui estive várias vezes, mas só desta abandonei a zona da marina. A cidade é muito bonita, casas de aspecto nórdico - P. diz que poderia estar na Irlanda - e o centro não tem aquele ar plastificado do centro de Cuxhaven, por exemplo. Ou de Scheveningen. Ou seja: entro num mundo mais próximo do meu, aonde as coisas são para ser usadas e não só vistas.

(Cont. ?)