29.6.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 29-06-2019

Anda o diário atrasado. Muitas coisas de permeio e outras tantas de recheio. Como descrever uma casa demasiado mobilada, por onde começar?

Deixemos para trás o que para trás está, Dito. Esqueçamo-nos do que aí vem: conjecturas, castelos de cartas, bengalas apoiadas a guarda-chuvas, lebres coxas e tartarugas excitadas... O que anda não aconteceu não merece ser contado.

Fiquemo-nos então pela sala onde estamos: encontro com o Ivan às nove (mas chegámos ambos mais cedo...) para falar da plataforma do gerador. Compras no mercado. Fazer as compras num mercado é um acto de urbanidade. Os supermercados são para sub-urbanos, para campesinos e para tesos (tesos na cabeça, quero dizer. Na carteira estou-o eu e muito, mas na cabeça não. Há que teorizar sobre as diferentes formas de falta de dinheiro, por mim resumidas durante muitos anos como "Pobres sim, miseráveis nunca". Enfim. Detesto supermercados, pronto. Estou-me nas tintas para quem lá vai, se tem guito ou não, onde é que vive ou o que espera da vida). Prefiro comprar menos no mercado a mais no "super" (entre aspas porque é ironia, aquilo de super não tem nada excepto ser prático. E barato). Almoço em casa, seguido de sesta. Rosé na Sifoneria. Rosé no Abracadabra, tão injustamente arredado dos meus roteiros. Vai reintegrá-los. O francês dos crepes vendeu aquilo e agora quem lá está é um sul-africano porreiro, passe a redundância. Longo passeio de bicicleta pela ciclovia do litoral (o nome é uma invenção minha). Voltei para trás um bocadinho antes de S'Arenal (creio, não tenho a certeza). Caña no quiosque-cervejaria Alaska, que tem a melhor cerveja e a pior clientela de Palma. Casa. Antes de me deitar vou ter de tomar um duche, é a única chatice desta conjunção de calor e pedais. Anda um gajo a tentar reduzir o número de duches e catrapum, cai-lhe um Verão em cima. Mas devo dizer que a dependência está cortada. Já consigo sair de casa sem ter tomado um duche e - ó milagre - sem ter feito a barba. Detesto dependências, sejam elas quais forem. Por exemplo: a água. Comecei a beber água regularmente e agora não consigo parar. Já lá vão seis garrafas, em outros tantos dias. A vigiar.

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Os fragmentos todos de todos os livros que não li, mai-los que li juntam-se aos fragmentos todos de tudo o que vi, vivi, ouvi, disse; fragmentos ditos e não-ditos. Tudo isto num tropel à frente do portão da cerca, como as manadas de gado excitado nos filme de cowboys. Fragmentos de vinho: Sebastiá Pastor, o rosé de ontem (syrah e mantonegro, uma casta local. O vinho era sublime); o rosé da casa da Sifoneria (mantonegro e tempranilla); o do Abracadabra (Barahona, o menos bom dos três, se bem mesmo assim interessante). Tudo isto num atropelo, fragmentos engalfinhados uns nos outros, desvariados, asfixiados, exorbitados.

Fragmentos: a única forma de os controlar é dar-lhes de beber primeiro e depois levá-los a passear de bicicleta à beira-mar.

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Casa: escrever, música, duche, cama. Meia dúzia de nêsperas. Vinho tinto da Es 20, melhor e mais barato do que o da U. Camembert demasiado frio. Bach, pelo luth encantado de Hopkinson Smith.

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As bestas estão mais ordeiras. Touros de uma lide que me saiu na rifa e da qual não sei desembaraçar-me. Não sei sequer se quero desembaraçar-me dela.

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Comprei brevas, uma espécie de figos que não é bem figos mas se parece como se fosse e vem das mesmas árvores. Favor que devo ao autor dos Segredos del Mediterráneo, a quem estarei para sempre grato, não só por causa das brevas.

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Dias grandes, cheios, mobilados por um deus vesgo.

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Adenda: esqueci-me do chimichurri. O argentino do mercado faz um que cheira bem que se farta. Marinei as febras naquilo hoje de manhã, estavam a precisar de uma mudança de vida, demasiado tempo de frigorífico. Há bocadinho fritei-as. Voltaram para o frigorífico: cozinhadas não devem fazer mal. À espera em chimichurri tão pouco.

(É importante falar nestas coisas, tirar o excesso de móveis do caminho, começar por desemabraçar os mais leves.)

28.6.19

Palavras, insónia

Ao contrário do que pareces pensar, o que me impede de dormir não és tu. São as palavras que me provocam estas intermináveis e - nestes dias de calor- peganhentas insónias.

Isto é: as palavras que te quero dizer e tu não queres ouvir.

Equilibrista, respectiva vara e tu

Se por acaso um dia nos cruzarmos na rua, reconhecer-me-ás imediatamente: continuo o equilibrista de sempre. Terei nas mãos a longa vara que tinha quando me conheceste. De um lado os quereres, do outro os possos. Ver-me-ás a andar naquela estreita linha, os quereres sempre mais carregados do que os outros.
- Possível é aquilo que queres - explicar-te-ei se te deres ao trabalho de parar para me falar, - menos aquilo que os outros querem.
- Outros? Que raio vêm aqui fazer os outros?
- Nada, justamente.

Reconhecer-me-ás porque te levo sentada mesmo no meio da vara, no seu ponto de equilíbrio, no seu centro de gravidade.

Desfrutar a natureza

Vejo por aí muita gente a perguntar por sítios "para se aproveitar a natureza". Eu penso que o melhor sítio para um gajo desfrutar a natureza é na cama com uma miúda inteligente (e às vezes até mais burrita, coitada). Serei o único?

27.6.19

Visões

A rapariga à minha frente no Antiquari faz vagamente lembrar a Monica Belucci. Muito vagamente: ambas são morenas. Já o namorado evoca-me o Cloney.

(Espero que nem a Monica nem o rapaz do café leiam isto. Esfolar-me-iam vivo.)

26.6.19

Braille, desejo

Subo-lhe as mãos por debaixo das saias como se as coxas fossem frases. Não oiço o que me dizem: leio-o num braille feito especialmente para o desejo.

A esquina da água

Se por um momemto imaginássemos que as palavras são feitas de água:
- Seriam um rio?
- Um lago?
- O mar em dia de tempestade?
- O mar num dia sem vento?
- Um copo de água?
- Um balde que se despeja em alguém?
- O copo que se bebe sofregamente num dia de calor?

Tudo isto, sem dúvida e muito mais. Há uma incerteza que te espera ali à esquina: chama-se palavras.

(Para a T., com um beijo.)

Aparentes, parênteses

A cavalo no raio do dia. "Raio" não é uma praga, é uma descrição. O dia passa por ti como um raio em câmara lenta. Tu sentes-te como aqueles cavaleiros dos rodeos montado num touro selvagem (mas anestesiado). Tudo avança: a formação mantém impecável a sua forma quadrada, limpa, sem ruídos aparentes.

(Aparente é a palavra-chave e formação um eufemismo.)

("O fim está no princípio e apesar disso tu continuas". S. Beckett.)

Luz, tijolos

A luz derrete-se no silêncio do fim do dia. Avanças titubeante pelo meio da rua e pensas "os meus erros são a minha vida"*. Cada passo que dás é um erro que o próximo não corrige. Assim constróis uma vida: erro sobre erro, tijolo sobre tijolo, dia sobre dia.
- Tijolos burros - gritas.
- São os teus.

* - (Beckett)

Dias

Que dizer dos dias, quando eles se fazem sem mim? 

Tu, caminho

Enquanto não perceberes esta verdade simples, inelutável: pouca importa de onde és, só conta para onde vais; e por onde. Não andes pelos pântanos, nem pelos caminhos demasiado batidos. O alemão falava dos altos, dos cumes. Caga nisso. O caminho és tu, está em ti. Se queres andar em frente olha para dentro, se queres ouvir o mundo ouve-te primeiro. Desde que consigas levantar um pé e pô-lo à frente do outro sem te enlameares: avança. Tens em ti uma carta do mundo, tens em ti um mundo sem carta, uma carta da qual tu fazes o mundo. Avança. Olha para dentro, para trás, para a frente, para onde quiseres, desde que sejas tu a querê-lo e não um palerma qualquer. Avança, zigzagueia, zagzigueia, dá curvas, faz circunvalações, anda à roda, às voltas, aos círculos, aos turbilhões, ao que lhes  quiseres chamar: mas avança. O caminho é teu, és tu que o fazes.

É fazendo-te o caminho que te fazes.

(Para o meu filho T.)

24.6.19

Reedição - Se eu quisesse

Hoje fui engraxar os sapatos. Engraxar os sapatos é um acto de civilidade. Devem ser engraxados uma vez por semana - semana de uso, note-se, que é, naturalmente, diferente da semana de calendário. Se considerarmos que um senhor deve ter pelo menos dois pares de sapatos (refiro-me, escusado é perguntarem, a sapatos pretos de atacador. Sou contra o uso na cidade  durante as horas de trabalho, de outro tipo de sapatos, sejam eles sapatilhas, sapatos de vela, ou até mocassins, mesmo que pretos) dois pares de sapatos, dizia eu, usados alternadamente, cada um desses pares deve ser engraxado uma vez de quinze em quinze dias.

Pessoalmente, aconselho o senhor que engraxa sapatos no British Bar, ao Cais do Sodré. Receio muito o que vai acontecer, quando ele, que já não é novo, longe disso, morrer, coitado. Devo dizer que não é só ele que me leva ao British Bar: o beer shandy, os croquetes e ter sabido, já lá vão uns anos, que era o bar favorito do José Cardoso Pires são outras das razões. O British Bar é um sitío muito selecto, tem uns empregados correctíssimos, e o beer shandy, feito com verdadeira ginger beer é único, na nossa cidade. Ainda por cima fica ao lado de uma loja de jornais onde posso comprar quotidianamente o Financial Times; e uma vez por semana o Shipping News.

Reparei que trouxe os mocassins pretos. Compreende-se: é um dia quase feriado e eu sabia que estaria sozinho no escritório. Os mocassins não devem ser usados no trabalho, já o disse, creio. Reservo-os para as compras de sábado de manhã, para a Missa de domingo e para os jantares em casa do meu cunhado, de quem não gosto muito (uma vez até levei mocassins castanhos para jantar em casa dele... Castanhos! Mas depois reparei que muito mais do que ele, era eu que estava pouco à vontade e não voltei a repetir a graça).

No meu escritório temos pessoas que se vestem de todos os modos e feitios – alguns até vão de sapatilhas para o trabalho. Não lhes digo nada, claro, mas faço-lhes ver que desaprovo inteira, frontalmente. Felizmente não há mulheres – enfim, há só uma, mas é uma senhora de idade, secretária do patrão (já o era do pai dele), e não comete faltas de gosto, como deixar as alças do soutien à vista. Também verdade seja dita, raramente a vemos, nós, os que trabalhamos no rés-do-chão. É uma empresa de shipping: tratamos de tudo o que se relacione com o transporte marítimo de cargas secas – desde o fretamento de um navio até ao transbordo de um contentor, fazemos tudo.

Sou o responsável pelos cálculos de demurrage: são os fees que debitamos aos nossos clientes pelas estadias nos portos mais prolongadas do que o acordado. É um lugar importante: o demurrage pode contribuir com uma fatia significativa do lucro de uma operação; muitas vezes, será mesmo a única fonte de proveitos, quando, por exemplo, se acorda um preço e entretanto os preços do frete subiram, por causa de uma guerra ou um tremor de terra (a mim nunca aconteceu, felizmente, mas é do conhecimento de todos os que trabalham em shipping). Não é de admirar que o patrão – enfim, o filho do patrão, para mim ele será sempre o filho do patrão – me tenha confiado este lugar no dia em que o pai morreu. Antes disso, estava no frete, mas é um lugar muito aborrecido porque as regras nunca são muito claras e estamos constantemente a ser enganados.

No escritório, um dos grandes temas de conversa, para além do futebol e dos carros são as férias. Há os que preferem ir de carro porque, dizem, “fazem as férias que querem: de Lisboa a Florença e volta em dez dias, com passagem por Paris (“Não vejo nada? Mas eu já saí daqui com a intenção de não parar. Em Florença, por exemplo, vi os monumentos todos. Só não entrei em nenhum.”) e os que preferem o avião: “o carro já não compensa. Vais a Paris 3 noites 4 dias, ida e volta, por 70 contos” (este ainda fala em contos, coitado). Eu não: todos os anos vou a Benidorme, duas semanas em Agosto. Sem falhar, há vinte anos. Aquilo já não está a mesma coisa, claro – mas para quê mudar? Os outros sítios também já não são o que eram há vinte anos. E é barato, além disso: camioneta, meia-pensão, uma cerveja de vez em quando e não gasto mais de 450 euros. Isso sim, são férias, mesmo se por vezes a praia está demasiado cheia. E tive que mudar de pensão: a que usei durante dez anos estava perto da praia e ficou muito cara.

Cá em Portugal, uma vez por semana, ando a pé: apanho o comboio da linha de Cascais e vou andar no Paredão. É muito bonito (aí sim, levo as sapatilhas brancas). Parece que estamos em férias: aquele mar todo, tão azul e as velas dos barcos à vela. Muitas vezes vejo navios fundeados à espera de piloto. Não quiseram entrar para não pagar as taxas de fim-de-semana. Cada vez que os vejo pergunto-me quem terá feito os contratos de fretamento. Será que o demurrage inclui os fins-de-semana?

Não sou avarento, ao contrário do que dizem os meus colegas do escritório: tenho cuidado com o dinheiro, é tudo. Tenho as minhas poupanças no banco (vou deixá-las a uma instituição de caridade se me acontecer alguma coisa antes de tempo, longe vá o agoiro). Não desperdiço. Odeio o desperdício. Até no emprego: recusei o computador novo que o filho do patrão me quer oferecer há não sei quanto tempo – para quê? Uma calculadora, uma folha de papel e um lápis chegam perfeitamente para fazer o meu trabalho (“oferecer” é uma maneira de dizer, claro: o computador é dele). Os meus colegas riem-se de mim, eu sei, pela calada.

Mas não me importo: se eu quisesse, seria feliz. Sei o suficiente de demurrage para abrir uma universidade; conheço as regras do bom gosto e da boa educação, sou culto, tenho um pé-de-meia no banco e uma vez por ano vou de férias. Sou conhecido de todos e todos me respeitam. Bastava eu querer, e seria o homem mais feliz da terra.

23.6.19

Degraus

O que me tem matado ao longo desta longa vida é a ideia de que abaixo do melhor só há o pior. Como se entre os dois houvesse um abismo, um deserto, uma terra de ninguém infrequentável, inabitável, como se houvessse apenas dois  degraus na escada da vida, separados pela eternidade.

Envelheço e aprendo que entre eles há o tempo e mais alguns: aqueles que fomos fazendo, vivendo.

22.6.19

O meu dia e eu

Que fazer de um dia durante o qual nada se fez, excepto duas ou três coisas? Falamos das excepções com prazer ou com desgosto? Não dizemos nada? Antes isso.

Gosto de dias assim: passam por nós e nós por eles e nada se passa, como quando dois estranhos se cruzam nas escadas rolantes e trocam um olhar. Nunca mais se lembrarão um do outro.

Fala-me

Falasses-me tu metade do que eu queria que tu me falasses e passaria o dia a pedir-te para te calares.

21.6.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 21-06-2019

Diário de bordo, versão simplificada:

Engine hours departure - 720
ATD CVPA 210619/0958
ATA Sta Ponça 210619/1152

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- Fica tudo dito, não fica?
- Quase tudo, domingo há mais.

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Resolvi começar a beber menos álcool. Não que bebesse excessivamente, mas bebia muito. Hoje, por exemplo, enquanto a Vermuteria Vi.xet (pronuncia-se vichet) não abria fui à Can Joan de s'Aigó e bebi uma água com gás e um chá verde.

A água ainda vá que não vá, só as peço com gás para disfarçar o preço absurdo da água engarrafada. Mas o chá, senhores. O chá... De pacote, feito com água a ferver, sem qualquer controlo do tempo de infusão. Se os estabelecimentos de restauração começassem a fazer chá como deve ser a luta contra o consumo excessivo de álcool seria muito mais fácil. Entre um chá de merda e um bom copo de vinho (neste caso, de vermute) não há hesitação possível.

Que saudades tenho da minha parafernália para o chá: termómetro, ampulheta, bule como deve ser, chá fantástico de uma loja na Casa da Guia - infelizmente desaparecida, entretanto... Aqui ainda não lhe encontrei equivalente, se bem tenha a certeza de que o há.

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Um casal de jovens turistas chega de bicicleta à Can Joan de s'Aigó, ao mesmo tempo do que eu. Vem de guia (telefónico) na mão. Penso que demorei um ano e tal a descobrir a Vi.xet e essa pastelaria, ponto de encontro da burguesia palmense desde, diz um lindo painel de azulejos, 1700 (ficam na mesma rua). Descobri-os porque um dia tive o impulso de fazer um trajecto que faço frequentemente indo por ruas diferentes das habitais.

Compreendo porque detesto guias, nunca os uso, ou muito raramente; nem a porcaria dos sites como o Tripadvisor me fazem mudar. As cidades devem descobrir-se devagarinho, devemos deixá-las vir ter connosco e não correr freneticamente atrás delas.

(Refiro-me às cidades. Não são únicas, eu sei.)

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Programa para sexta-feira à noite: hibernar e ouvir Voyage Magnifique de Maria João Pires ao mesmo tempo. (Ou a Hélène Grimaud. Ou a Marta Argerich... Depois estarei a dormir, com a santa autorização do P.)

20.6.19

Guerras

Esta guerra foi longa, ainda não está resolvida e tem aspectos um bocado idiotas. Traz-me à memória outra muito mais longa, a única - ou pelo menos uma das poucas - que lamento vivamente ter ganho.

Passou-se no Burundi e o tema era as tarifas sobre os produtos de ajuda humanitária: tudo o que recebíamos pagava uma taxa de importação, relativamente elevada como sempre em África. Já em tempo normal não sou grande adepto de tarifas; aplicá-las a produtos cuja finalidade era ajudar pessoas que estavam numa situação horrorosa parecia-me o cúmulo do cinismo.

Vai daí, comprei uma guerra. Uma guerra a sério, nada como esta. Um dia tive uma reunião com o director da Alfândega - para quem não sabe: a alfândega em África tem um estatuto quase sagrado, é a única prova tangível que aqueles países têm da sua soberania. O senhor tinha sido Ministro das Finanças, sabia realmente do que falava. Era educadíssimo e falar com ele foi um prazer. Infelizmente não chegámos a um acordo. Ele queria manter as tarifas.

A guerra teve episódios rocambolescos, alguns indescritiveis outros cómicos. Durante a reunião com o dito ex-Ministro das Finanças ouvi uma coisa que me ficou gravada: "Isto não tem nada de animal. Os animais não fazem comércio".

Ganhei-a de uma forma que às vezes me faz corar de vergonha. Estava a perder. Todos, incluindo o representative queriam manter as tarifas; ninguém queria aboli-las. Foram quatro meses de gritos, lutas quase físicas no aeroporto, telefonemas, cartas (no princípio da minha estadia o e-mail era inexistente) . Até que um dia achei que ou perdia ou ganhava e resolvi ganhar. O meu senhorio era a eminência grise do sistema, Controlava tudo, era uma espécie de manipulador-em-chefe do país.  Arranjei um jantar com ele - morava numa casa muito perto da minha e  por vezes organizámos um churrasco ou um jantar. durante o qual ele tentava extrair-me informações e eu tentava fingir que não percebia.

Organizei o jantar e aproveitei a primeira deixa para lhe dizer que estava desesperado e a pensar seriamente ir-me embora. Podia ele imaginar que os produtos humanitários pagavam direitos de importação? Revoltante! (Sintetizo muito: a conversa foi longa).

Dois ou três dias depois recebíamos uma nota do Ministério das Finanças a isentar os produtos humanitários de taxas alfandegárias. O representative ainda arranjou maneira de manter algumas, mas oitenta por cento das tarifas foram abolidas.

Só alguns meses depois de sair do Burundi percebi que foi uma estupidez: os países precisam daquele dinheiro e se não lhe vier das tarifas virá de outro lado qualquer. É até hoje a minha maior vitória e a que menos sentido faz.

Ensinou-me a avaliar as guerras e as vitórias de outra  forma.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-06-2019 / II

É preciso começar por dizer tantas coisas que um gajo perde-se nos meandros dos começos. Talvez a primeira seja: percebo perfeitamente as razões da marina. O P. entrou ali para ficar dois dias, depois uma semana, depois um mês, depois dois meses e está lá há mais de um ano. Isso eu percebo. O director / gerente / seja o que for da marina chegou a um ponto em que diz "eu quero ver estes gajos fora daqui, ponto final parágrafo". Até aqui, tudo bem.

Onde tudo deixa de ir bem é na má-educação do senhor e - muito pior - na sua falta de profissionalismo. São duas coisas que não perdoo, não aceito, não quero aceitar. Se em vez de me chatear no cais o homem tivesse escrito um e-mail o P. estaria noutra marina há muito tempo. Se ele tivesse sido educado comigo - admitidamente difícil para um gajo que vem do exército - idem. Assim, vai averbar uma vitória muito pírrica: amanhã vou-me embora nos termos que eu defini e não ele.

(E se Deus quiser vai ver o pagamento de Junho no cu de Juno, mas isso é outra história. A questão é: esperemos até amanhã, porque só conta quando está lá fora, contrariamente ao que dizem futebolistas, pornógrafos e banqueiros, para quem só conta quando está lá dentro. A falta de educação paga-se, a de profissionalismo ainda mais.)

Na verdade tenho tudo pronto para sair amanhã: o mecânico, um semi-rígido para nos acompanhar, bombas de fundo testadas e a funcionar, baldes, lugar na marina à chegada. Tenho um marinheiro competente e um mecânico igualmente. Tenho um bote que me parece ok na generalidade. Tenho - sobretudo - uma vontade, difícil de quantificar, de mostrar àquele palerma que é um palerma, coitado, por muita dificuldade que ele tenha em aperceber-se disso.

(Elocubrações não custam nada, pois não? Mas é o que está em cima da mesa. Domani vediamo, signori. É com este status quo que me vou deitar; não tenho a certeza de que seja o melhor companheiro de cama. Pessoalmente preferiria outra companhia na cama mas isto é o que se arranja.)

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Ou seja: se amanhã estiver em Santa Ponsa a minha derrota foi muito parcial; se não estiver, é preciso ir a meças.

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Hoje fui beber uma cerveja (enfim, uma unidade de cervejas) ao Café España; depois fui jantar ao Ca na Cinchilla, um Pa amb Boli que ali é dos melhores de Palma. Em ambos os casos fiquei na esplanada, a ver passar a cidade.

As cidades: estão a duzentos metros um do outro e a pelo menos três andares no elevador social.

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(Tenho de confessar uma coisa: não sei se a minha euforia de agora me vem da ideia de que amanhã estarei na água. É possível).

19.6.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 20-06-2019

Confesso que tenho hesitado entre classificar isto como prestidigitação ou milagre, mas tendo para milagre. Parece-me mais apropriado, por um lado; e como milagre é melhor do que como preestidigitação, por outro: a minha caneta Kaweco reapareceu, muito gostaria eu de saber como. Sei onde e quando; como, não.

A coisa conta-se em duas penadas, mas se não se importam conto-a em três: há um café em Palma chamado La Palma à frente do qual deixo a minha bicicleta, todos os dias (é naquela zona que estaciono o carro). No La Palma faço muitas vezes a transição entre o dia e o seu fim: "inventei" uma bebida (aspas porque é manifesta mentira, consiste em sumo de laranja e vodka) chamada sumo de naranja natural mejorado e acontece-me de vez em quando ali parar antes de pegar na bicicleta para regressar a "casa" (aspas porque é um manifesto exagero).

Hoje foi um desses dias: cheguei, pedi à T., a dona, uma senhora que tem a voz mais irritantemente aguda que eu já ouvi numa mulher e é simpatiquíssima um sumo de laranja melhorado e esvaziei a mochila para cima da mesa: computador, rato e seu tapete, bloco-notas. Escrevi os e-mails que tinha a escrever, telefonei os telefonemas, bebi um sumo e depois outro, escrevi um disparate ou mais, tendem a sair em grupos e venho-me embora. Isto é, arrumo a mochila para me vir embora. Pus tudo lá dentro até que a certa altura vejo-me com o estojo da caneta na mão.

Juro que foi assim mesmo: o último objecto que faltava pôr na mochila era o estojo de canetas. Não o vi quando esvaziei o saco (literal, não metaforicamente); não o vi enquanto esteve em cima da mesa comigo à frente a trabalhar; não o vi até ao momento em que de repente o vi, na mão.

Se isto não é um milagre não sei o que um milagre é.

(Com a Kaweco - a melhor caneta que até hoje me passou pelas mãos - escrevo este post no bloco-notas. Logo à noite será transcrito para o blogue, durante uma noite de insónia - mais uma, esta com a grande e discutível vantagem de ser completamente desnecessária e injustificada - enquanto bebo rum Almirante, um atrai-sono melhor do que muitos outros mas dispensa receitas e é barato. Que circunvalações, meu Deus.)

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Hoje (ou ontem, pouco importa) esclareci dois mistérios: as simpatias do Aurélio (do quiosque Los Maños, um estabelecimento que recomendo a plenos pulmões) e a do Ismael, do café Acal, em Puerto de Andratx, há um ano o meu escritório: o Aurélio é de Huelva e o Ismael de Granada. Ver maiorquinos assim de afabilidade, cordialidade, simpatia e outras qualidades humanas andava a parecer-me estranho há muito tempo, mas agradava-me pensar que eram uma excepção à regra.

Em conversa, a U. pergunta-me:
- ¿Pero tu tienes la certeza que quieres pelearte con un cabrón de un mallorquin de Andratx que está en aquel lugar por todo menos por que sabe lo qué hace?
- Quero. Não procuro guerras mas só as evito até o isso raiar a cobardia. Aí entro.

Não é que não tenha medo. Só os imbecis não o têm. Mas não sei viver com medos não resolvidos, seja para que lado for.

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Agora é resistir à tentação do óptimo, inimigo do bom; e à da soberba, inimiga de uma salutar e ligeira pedantice.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 19-06-2019

Exemplo  nº um milhão, trezentos e cinquenta e quatro mil, oitocentos e noventa e seis de uma das razões pelas quais adoro esta vida e estou ao mesmo tempo farto dela (ou seja: isto não é uma vida, é um vício): a primeira parte do problema - arranjar massa - está resolvida. A ante-primeira - arranjar um lugar noutra marina, o que em Junho em Mallorca é mais difícil do que fazer entrar um elefante no Elefante Branco - já estava resolvida. Havia lugar em duas marinas, com prazos e preços diferentes. Mas enfim, pelo menos tinha onde aproar. Hoje fui confirmar numa das marinas - a minha preferida, por ser mais barata e ter prazos de estadia mais alargados - e aquilo que estava reservado para amanhã passou para domingo; o que estava agendado para terça-feira passou para dia um de Julho. A outra marina tem uma vantagem: é mais perto de Puerto d'Andratx - e duas desvantagens: custa o dobro e só lá posso ficar pouco tempo. Ou seja, vou ter de passar três ou quatro dias (nada garante que a coisa não volte a mudar, no outro sentido) em Santa Ponsa antes de vir para Calanova. Mais quatro dias e um balúrdio (enfim, não é um balúrdio, é só muito dinheiro inutilmente gasto). Poder-se-ia pensar que isto só acontece nas Baleares, mas não é verdade. Acontece em todo o lado, em todas as marinas. Aposto que a astronáutica tem menos factores incontroláveis do que a velhinha navegação marítima.

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Entretanto, a luta com o clube continua, agora com outros temas. Tolero tudo menos a cobardia (a estupidez não é uma questão de tolerância. É que ela dá-se mal comigo).

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Quem me visse agora pensaria que acabei de fazer um parto. Por miserável azar, visualmente não se nota.

Notícias da frente

A primeira parte da crise está ultrapassada. Deixo aqui o meu obrigado a quem ajudou. É um obrigado especial, muito especial, para lá de especial: não há melhor engano neste mundo do que descobrir-se que não se está sozinho e que quem está ao nosso lado hoje é quem sempre esteve. Em princípio, amanhã saímos de Puerto de Andratx, que tem pelo menos o mérito de ter roubado a Cascais a posição no primeiro lugar do pódio do concurso "Pior Marina do Mundo". Cascais passa para um honroso segundo lugar - face ao CVPA qualquer competição nessa área empalidece. O terceiro lugar - bastante distante - vai para Shelter Bay (distante porque muitas das coisas que tornam a marina detestável não são culpa da gerência. Aliás por vezes hesito em dar-lhe um lugar no pódio).

Bebo um whisky para descontrair, penso nestes dois últimos dias e pergunto-me como será a minha vida quando deixar de ter momentos destes. como tanto quero (e quero, realmente). Que recordação deles ficará? Foram tantos, tantos... (Uso o passado sem querer. Isto é, sem pensar. Querer quero. Quem me dera que sejam passado para sempre, todos eles).

18.6.19

Planos

O plano original era engrossar-me devagarinho; acabei por não-me-engrossar devagarinho, o que é quase a mesma coisa. Agora vou deitar-me e não-dormir, já que o plano era deitar-me e dormir.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 18-06-2019

Vamos começar pelo princípio: perder é perder é perder. Perder é não ganhar. Perder é melhor do que não ir à luta, mas é pior do que ganhar. Ganhar é melhor.

Hoje perdi um round na luta contra a marina, uma das lutas mais absurdas em que me vi envolvido; e perdi a minha caneta Kaweco. Por muito habitual que seja, não deixa de ser enfurecedor.

E ontem perdi tempo a comprar um par de sapatos decentes, mas isso é anedótico: um gajo vai para uma reunião na qual é cilindrado, mas pelo nenos vai de sapatos novos (e bonitos, apesar de baratos).

Perdi mas não me apetece deitar a toalha para o ringue, por mais que me apeteça. Foda-se, já vi pior e não cedi.

(E já vi pior e perdi.)

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Fiz algumas fotografias do céu de Palma: há sempre uma fenda nesta cidade, uma fenda onde menos se espera.

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Recomendo vivamente o Door 13, apesar do nome. A continuar assim vai tornar-se um dos meus bares favoritos, tous lieux confondus.

Já é.

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Às diferentes categorias de amigos, é urgente acrescentar uma: a dos amigos de quem já o éramos antes de os conhecermos.

17.6.19

-te

L. disse-me que gostava da imagem "pendurar o silêncio "; eu também. Imagino um senhor de chapéu e gabardine chegar a casa e pôr tudo nos cabides: primeiro o chapéu, depois a gabardine e por fim o silêncio. Só nesse momento diz olá à mulher e dá um beijo aos filhos. Como se vivesse em dois mundos, o mudo e o outro. Todos vivemos, todos somos personagens de Beckett sem o saber: "Porque em mim sempre houve dois bobos, entre outros, um que não pede outra coisa senão ficar onde se encontra e outro que imagina que mais longe estaria um pouco menos mal". "Sim, acontecia-me esquecer não somente quem era, mas que era, esquecer-me de ser". (Molloy).

Mas em vez de pendurar o silêncio podemos pendurar-nos nele: passageiros de pé num metro ou no eléctrico, cada um agarrado ao seu silêncio, braço no ar, olhar curto... o eléctrico dos silêncios.

São todos, até que um dia damos um abraço e apercebemo-nos de que por engano - por engano, por acaso, golpe da sorte - estamos abraçados a uma palavra, a um verbo reflexo.

De onde caem as palavras?

O dinheiro não cai do céu, dizem os especialistas. E as palavras, de onde caem? Do céu não é, com certeza; do inferno tão pouco (com menos certeza). Talvez da mistura desses dois, a que nos momentos benévolos chamamos vida e nos outros desespero.

16.6.19

Memória, Calder

Há muitos anos recebi um disco de presente. Era rock soviético,  chamava-se "Pelas vagas da minha memória" (creio. Estou longe de ter a certeza. A minha memória sempre foi vaga, nunca precisou que lho lembrassem).

Penso nisso agora porque me parece que a memória é uma mistura de vagas e de circunvalações. Vagas sem ritmo, circunvalações irregulares: por exemplo, lembro-me de que a música era fraquinha, tenho uma vaga, muito vaga ideia da capa, lembro-me de que uma das palavras era Pamiat e não estou seguro de nada disto.

A miúda que mo deu - uma jovem actriz muito bonita - queria compará-lo aos Beatles, ou aos Rolling Stones? Nao sei. As vagas da minha memória perdem-se numa vaga praia chamada tempo, uma praia muito longa, cheia de curvas e becos sem saída. Até as vagas nela se perdem, chegam e não saem, rebentam em vagas mais pequenas, rebentam outra vez e por aí fora, sem fim.

Na volta, vamos a ver e a praia são as vagas. Não há areia nem rochas nem nada: só vagas e mais vagas carregadas de memória.

Só memória. Circular, elíptica, espiral. Estátua invisível. Mobile de Calder permanentemente em desequilíbrio. 

Verdade

No fundo, trata-se apenas de se ser honesto, dizer a verdade. Chamar amor ao que é amor, vinho ao vinho, noite a este ralo pelo qual o dia se esvai como vinho estragado pela pia. Ser honesto: mentir com sinceridade, dizer que está frio como se estivesse mesmo frio (está), dizer que estás aqui como se não estivesses alhures (não estás e estás), dizer que basta dizer para que o que se diz seja verdade.

Verdade: o que seria se o que é não fosse.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 16-06-2019

O termo soberba é preferível a pedantice? Não sei. Sei que quando decidi tornar o DV público a motivação foi "pior do que o que por aí anda não será de certeza". Seja por soberba, seja por pedantice continuo a pensar o mesmo. Mas é só meia pedantice, verdade seja dita: pior não é, mas melhor tão pouco. É o que é e isso é tudo o que é, como dizia Popeye de si próprio: "sou o que sou e é tudo o que sou".

Quero que se lixe, na verdade. Tento fazer o melhor que posso, não ser demasiado piegas e não fazer demasiados erros de português: a língua é a única regra à qual se deve obedecer sem hesitar. Não há outra, com a possível excepção de "não matarás o próximo". Note-se: aceito perfeitamente que não se respeite uma norma gramatical, desde que se saiba que se está a desrespeitá-la. E que faça sentido, que melhore o texto. Se for só para fazer género ou para ser original mais vale meter o desrespeito pelo cu adentro, porque nem desrespeito é. É só ignorância ou vaidade, outra forma de dizer pedantice ou soberba.

(No fundo, dos três prefiro soberba. É a mais bonita e ninguém ousará dizer de mim "ele é soberbo", como dizem - erradamente - "ele é pedante".)

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Passei o dia em casa - isto das marés baixas não é só desvantagens. Li, escrevi e cozinhei - como se estivesse a bordo, com a breve excepção de um passeio de bicicleta depois da sesta. É uma sorte ser apreciador de prazeres estáticos. O nómada imóvel? Talvez antes O nómada abúlico, não?

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Tentei ouvir rock, outra vez. Bruce Springsteen. Não há maneira: o rock é uma seca. Não se pode ouvir de per si, deve ter um objectivo: dançar, gritar, explodir, o que for. Mas ouvir só para ouvir: não. É maçador como ver uma barata a tentar escapar. (Ás vezes consegue, não é?)

Passei para o Brel: pelo menos percebo as letras, não tenho de as ler.

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Experimentei uma especiaria chamada Sumak. É muito usada na Turquia. Abençoados sejam os turcos e sobretudo o Ch., que me falou nela. Mai-lo argentino do Mercat, o homem percebe mais de especiarias do que eu de música (isto é ironia. Até uma criança de seis anos percebe mais de música do que eu, desde que consiga cantar um Parabéns a você afinado).

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E é isto. Deixemos o dia escorregar na sua palidez, na sua tibieza, como se estivesse no mar a um largo com força três: sem solavancos.

Como diz o Dylan que agora oiço: "Não penses duas vezes, está tudo bem", mas sem ironia: está realmente tudo bem.

15.6.19

Queima-te

Noites labirínticas, muito mais do que transição entre dias. (Há uns tempos dirias que os dias são a transição entre noites.) Labirintos nocturnos incendiados pela sombra do dia, isso sabes. Mas - que dia? Hoje, amanhã, aquele longínquo no qual te apaixonaste por uma jovem actriz russa? Que sombra, que dia?

Que incêndio, que labirinto?

Noites hesitantes. Tacteias o caminho entre flores, não as queres esmagar. A luz perde-se nos corredores do labirinto. Não tem saída nem - descobres agora, aterrado - entrada. As portas fecharam-se e não foram substituídas por outras abertas. O fogo crepita: deixaste o silêncio perder-se contigo, lado a lado, de mãos dadas.

O labirinto é hipnótico. Leva-te a uma praia no Algarve, a outra em Moçambique ou no Rio de Janeiro, a todas em cujas areias esperaste pelo mar. A um pinhal. A um veleiro que navega por brisa ligeira, levemente, no Sul da Irlanda, nos Açores, no Mediterrâneo, nas Caraíbas.

É noite, alguém algures te ama. Há um labirinto em fogo no qual ignoras se já entraste, que te ignora, indiferente. É noite, tu perdes-te, o dia afasta-se de ti em vez de se aproximar.

Há algures um labirinto que te espera quando esta noite se apagar. Apaga a luz, apaga o silêncio, deixa apenas o crepitar das chamas do tempo que arde, sempre ardeu. Não te queimes.

Queima-te.

Da série "Segredos del Mediterráneo" é a melhor coisa que me caiu nas mãos e à frente dos olhos em muito tempo

""Sabes? Naquele momento, sozinho ali em cima frente àquele mar tão bonito e vazio, senti que era um deus". Talvez seja isto que invejamos a estes homens, aos últimos homens livres. Invejamos-lhes os presentes que recebem da sua liberdade."

Da série "a inutilidade da maravilha só é comparável à maravilha da inutilidade"

"Pontífice (...) era un cargo herdado dos etruscos e referia-se a um sacerdote que tinha a seu cargo toda a parafernália e os rituais necessários para que se pudesse construir pontes de forma segura, porque os etruscos consideravam os rios sagrados e construir pontes era um processo carregado de simbolismos."

In Segredos del Mediterráneo, de Lluís Ferrés Gurt, ed. Juventud.

A tradução é minha; espero que o maravilhamento seja de todos.

Nb: não sei se há conhecimentos inúteis. Sei que alguns são deslumbrantes e este é um deles. Os Papas da religião católica foram buscar o seu qualificativo aos construtores de pontes. Isto não chega para refazer de mim católico,  mas que me faz gostar um bocadinho mais da crença faz.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 15-06-2019

Há dias disse que o bar Rita é um dos poucos locais maiorquinos onde sou recebido com manifestações visíveis de prazer. Não sei o que é muitos, mas apetece-me citar aqui o Aurélio, do Mercat del Olivar, onde antes de chegar já tenho um vermute à espera (exagero mas pouco); o Claudio da loja de gelados do Carrer Sindicat - a minha aversão aos doces esvanece-se pouco a pouco. Este ano já comi alguns três gelados, o último dos quais agora mesmo no Fluffy Fruits (não liguem ao nome, se por acaso um dia vierem aqui). O Claudio tinha o melhor café de Palma, a milhas de todos os outros, Arabay incluído (e acessoriamente o mais barato, a um euro). Ainda tem, graças a Deus. Mas à lista de coisas "o melhor de Palma" acrescento agora o gelado de pistaccio. Vai fazer a quantidades de gelados que como anualmente disparar exponencialmente. O estimado senhor Santini que me desculpe, mas creio que em termos de gelados de pistaccio encontrou quem o bata aos pontos.

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Dia calmo: em casa a ler, ouvir música, dormir, cozinhar, escrever. Fui ao Mercadona fazer compras: vem aí nova maré baixa e é preciso estar preparado. Comprei cavalas, que comi cozidas. O que sobrou vai para mayonnese, amanhã.

É sempre mais fácil saber o que fazer dos restos de comida do que dos de vida. Uma coisa é certa: tanto uns como outros ajudam a enfrentar marés baixas e badanais.

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Oiço Hildegarde von Bingen na cozinha, enquanto preparo o jantar. Joe, o miúdo que entrou hoje para o cinco vem ter comigo: "Como se chama essa música? Gosto muito desse género, de gospel..." (as reticências ficam porque ele estava visivelmente à procura de uma continução). Ajudei-o: "Isto é da Idade Média".  O puto já me era simpático porque hoje à tarde, logo a seguir a ter chegado, veio ao quarto dizer-me que tinha trazido muitas cervejas e podia servir-me à vontade. É uma atitude que não é frequente nesta malta - de certa forma compreensivelmente, estão à procura de trabalho, a concorrência é rude e não sabem quanto tempo terão de viver das reservas.

14.6.19

Punhal, janela

Vou fechar a janela, se não te importares. Pouco ou nada me interessa o que vai lá fora. A noite sem ti parece um punhal espetado na barriga, uma avalanche que se desfaz com fragor por esta encosta abaixo. Não quero saber de nada: nem por onde andas nem por onde andarias - andaríamos - se aqui estivesses. Deixemos este estúpido silêncio lá fora, pendurado na brisa que agora ajuda a arrefecer o quarto. Quando a janela estiver fechada deixará de haver brisa, silêncio, noite.

Não haverá nada senão esta mistura de sono e sonhos que me fazem acreditar: sim, um dia voltarás, um dia abrirás os olhos, um dia serás o punhal que agora me revolve o ventre.

13.6.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha (et al.), 13-06-2019

Mértola

A alta sociedade mertolense reúne-se no café Bom D+, sito ao mercado. Não é surpreendente: tem a melhor vista da vila e acessória (mas não despiciendamente) as únicas caipirinhas que até hoje achei excelentes fora do país de onde provêm. Isto é um assunto sério: qualquer viajante sabe que certas coisas não são exportáveis. O vinho verde. A retsina; a caipirinha; o Painkiller; (as três primeiras têm excepções. O quarto infelizmente não).

Pois bem: a alta sociedade mertolense não me parece grande apreciadora de caipirinhas - sou o único a bebê-las, assim mesmo no plural. Mas sabe apreciar uma belíssima vista, um serviço sorridente e eficaz e interessantes conversas sobre a colocação de tijolos, os horários de trabalho e os hábitos sexuais de algumas pessoas, para mal delas ausentes.

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O restaurante Tamuje está cheio. É a segunda vez que isto me acontece. Sentir-me-ia em Nova Iorque, não foram as caipirinhas da Natália: destas, só aqui ou no Brasil (e mesmo assim depende. Já lá as bebi piores).

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Lisboa

Não sei que dizer. Há dias em que falar desta cidade é como para um feto falar da placenta: que há, fora dela?

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Viagem para Palma

Vim com passageiros da Blablacar. Há pessoas que não valem uma vírgula, não há? Nâo por serem más, mas por não serem nada.

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Valência

Fragmento: "Numa esquina vejo um café que tresanda a clássico. Entro e o cuidado com que guardam os vinhos, os queijos e outros produtos expostos dizem-me que acertei no sitio. As mamas da criada cimentam isto tudo: "Alta charcuteria, Casa Adrián, desde 1944"...

(Agora devíamos um pensamento silencioso ao gajo que inventou os soutiens. De todos os vários desafios à gravidade são os mais excitantes, os únicos verdadeiramente úteis, louváveis)."

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Ferry para Palma

A habitual mistura de camionistas, camionistas e chauffers de camião com alguns turistas. Gosto de ver as manobras dos camiões: no fundo somos iguais, nós e eles. A água faz de nós seres um pouco mais sofisticados, talvez. A estrada nunca educou ninguém.

11.6.19

Vem por aqui

Se eu te dissesse "vem por aqui" e tu respondesses "não, vem tu por aqui" poder-se-ia pensar - poderíamos pensar, os dois - que estávamos a dizer a mesma coisa, que o teu "por aqui" é igual ao meu.

Tu e eu sabemos que os nossos "por aqui" são diferentes; forçoso é reconhecer, porém, que o não sabemos empiricamente. Nunca os experimentámos. Limitámo-nos a aceitar aquilo que as aparências nos sugerem e as aparências não só se enganam mas também enganam,  voluntária e dissimuladamente.

Talvez um dia devêssemos deixar a superfície das coisas e mergulhar conjuntamente nos "nossos caminhos": o pior que se pode fazer a uma aparência é demonstrar-lhe a falsidade; a melhor forma de demonstrar uma verdade, a mais violenta e apaixonante é vivê-la.

7.6.19

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 07-06-2019

Vim jantar ao bar Rita; agora tenho de me ir embora. Uma mesa de espanhóis (odiar-me-iam se me lessem; maiorquinos é o termo correcto) é capaz de assustar uma manada de elefantes enraivecidos. Comi as melhores croquetas de camarão de sempre e uma ensaladilla deliciosa. O bar Rita é um dos poucos locais de maiorquinos onde sou bem recebido. Isto é: as pessoas manifestam prazer por me ver. Nos outros não manifestam nada, nem prazer nem ausência dele. Refiro-me a bares: hoje tive mais uma pega com a marina. Vou-me embora dali mal regresse de Mértola.

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Há dias fui jantar a um peruano. Disse ao homem para escolher um prato que me desse vontade de lá voltar.

Trouxe-me arroz de marisco. Estava bom, sem dúvida,  mas é difícil impressionar quem conhece o do Pina. Foi um jantar neutro: o peruano não perdeu um cliente e o Pina manteve um fiel. Pena estar fechado à segunda-feira: iria lá só para mostrar ao peruano a diferença entre um arroz de marisco e um arroz com marisco.

São tão diferentes como um dia de sol e um dia sem chuva.

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Não tarda recomeço a comer em casa. Como estratégia para perder peso, comer menos e beber mais não funciona. Deixar de beber um número par de bebidas é insuficiente: três é um número ímpar e passar de dois a três copos de cada bebida não serve de nada para quem quer perder peso. Vai ser preciso quantificar, coisa que imensa gente faz.

Seja como for, não cairei na armadilha do meu Pai: substituir whisky por chá está obviamente votado ao fracasso e à troça pública, como lhe aconteceu.

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Caí da bicicleta, pela segunda vez em duas semanas e terceira desde que aqui cheguei, vai para um  ano e um quarto. Desta vez a queda foi tão inócua que nem chateado fiquei.

O que me enfureceu, já depois, foi não ter sequer ficado aborrecido. É preciso  evitar a banalização das quedas.

O motivo foi o mesmo: de repente as minhas bicicletas começaram a andar mais depressa e as ruas de Palma mantiveram-se escorregadias. "Nem a luz páram", pensei hoje. Quanto mais um tipo armado em Eddie Merckx numa Panther de duzentos quilos e contra-pedal.

Pelo menos a queda de hoje foi para o lado direito. As outras foram para o esquerdo. Infelizmente não consegui endireitar o cesto, está todo torcido. Espero encontrar um método mais suave para o fazer voltar à forma inicial, que isto de cair é muito aleatório. 

6.6.19

Dicionário Khazar, exemplar feminino

Conheço pelo menos uma pessoa (uma, só uma) que tem a sorte de ter lido o Dicionário Khazar, de um autor serbo chamado Milorad Pavić.

Passei um dia relativamente estúpido (relativamente está ali só para relativizar, espécie de redundância redundante mas útil, para me lembrar de que o dia podia ter sido muito pior: todos os dias podem ser piores). Essa pessoa - a quem de resto dedico este post, apesar de merecer muito melhor - conhece os Balcãs e disse-me um dia que almeja ler o Dicionário no original serbo.

Não aspiro a tanto. A versão francesa chega-me perfeitamente e chegou-me recentemente às mãos. Está aqui ao meu lado; se eu tivesse juízo estaria a lê-la em vez de escrever disparates. Isto dito: C., o meu exemplar é feminino.

(Adenda, para quem não sabe: imaginem um livro escrito em conjunto por Borges e por Vila-Matas; exponenciem-no à potência dez; injectem-lhe uma mistura de LSD, álcool e cocaína (em micro-doses, só um cheirinho de cada); banhem-no numa mistura lúdica, irónica, culta e furiosa. Leiam. Releiam. Leiam outra vez. Repitam ad infinitum.

Digo isto, mas não toco no livro para aí há vinte anos. Não sigam o meu exemplo.)

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 06-06-2019

Tudo é suave em Palma, excepto a beleza das mulheres. É verdade que não chega ao exagero de Genebra, cidade em que até as feias são bonitas. Aqui só algumas o são. Mas é uma beleza muito mais selvagem, mais abrupta, mais brusca. Ainda não sei explicar porquê; talvez por muitas deles estarem de férias, mas não tenho a certeza.

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Fui beber uma cerveja à Llotja (o quarteirão e o café). Não é sítio onde vá muitas vezes, aquela mistura de turistas e yachties-que-não-vão-ao-Corner é maçadora (e a cerveja cara).  Mas é forçoso reconhecer-lhe a graça; mais ou menos como ir à Suiça quando ainda era frequentável, ou ao Nicola, do outro lado da Praça. Basta não ir muitas vezes.

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Acabo com uns boquerones no Bar Dia, um resistente. Não tenho nada contra a modernidade; só lamento que seja tão igual, tão monótona. O bar Dia resiste. Talvez fosse igual a todos os outros, quando a Llotja era a lota, local de encontro de pescadores, peixeiras e fauna acompanhante. Hoje não é igual a mais nenhum: é feio, barato e come-se bem, que é para o que foi feito.

5.6.19

Distância

Amávamo-nos à distância: adormecíamos todas as noites encostados à ausência um do outro.

Descrição do silêncio

"No hay silencio aquí
Sino frases que evitas oír.

...

(Haz que no muera 
sin volver a verte.) "

Alejandra Pizarnik, Estar, in Extracción de la Piedra de Locura.


Encostos

Se te espalmares lentamente - lentamente - contra a noite talvez ela se transforme em dia. Ou ao contrário: esparrama-te contra o dia e verás uma noite luminosa e límpida florescer. Tudo não passa disso: simples vontade de te encostares ao que amas.

Pré-associação em defesa dos idiotas

Ser idiota não é um grande problema, tem até algumas vantagens. O único aspecto desagradável é estar-se sempre tão sozinho. As pessoas inteligentes não querem perder tempo connosco, naturalmente.

Talvez nós, os idiotas devêssemos criar um movimento como aqueles que defendem cães, gatos, deficientes, refugiados, mulheres batidas, mulheres que batem, cegos, gagos, touros, vacas, frangos, a erva dos prados, as árvores, loiras, frígidas, lésbicas, maricas, alcoólicos, toxicómanos, zarolhos, carecas, impotentes...

Não há quem não tenha defensores, apoiantes e seguidores, com a notória excepção dos idiotas, a minoria mais maltratada de sempre.

Poder-se-ia até pensar em criar um partido dos idiotas, como há o dos animais. A questão sendo, claro, o critério de admissão. Dado que a maioria das pessoas é inteligente, o partido dos idiotas teria uma vocação minoritária. Contudo, cada inteligente considera que a maioria das suas relações é idiota, o que faria do partido dos idiotas uma organização maioritária, claramente em contradição com a sua vocação inicial. Teríamos de reservar o direito de admissão. Só idiotas comprovados, eleitos por um sistema de bolas brancas e pretas em comité fechado. Uma das perguntas seria: quantos idiotas conhece e por quantas pessoas V. é considerado idiota? Quem conhecesse mais idiotas seria aceite: só um idiota reconhece os  outros idiotas e consegue descortiná-los, escondidos atrás de uma capa de inteligência. 

Linhas

Só há uma linha perfeita: a do horizonte. As outras não passam de meras pretendentes, com a possível excepção da do Equador.

PS - E a Linha de Sombra mas essa tenho de a reler, para ter a certeza.

Diário de Bordos - Puerto de Andratx, Mallorca, Baleares, Espanha, 05-06-2019

Estamos na fase da montagem: os objectos mais comprados na ferretaria Seguina são parafusos, porcas e anilhas.

A excitação é visível, palpável e todos a sentem - até as bicicletas andam mais depressa.

4.6.19

Uma bicicleta vazia pela encosta abaixo

Não sei "por que palavra começar, por que desordem". Portanto não começo. Deixo-me ir neste fluxo de luz que se alaranja, trânsito a acalmar, dúvida que reage a isto tudo sem saber como reagir. Dúvida que se enrola em si própria como uma videira narcisista, serpente surda indiferente à flauta.

Deixo-me ir neste fluxo, bicicleta vazia pela ladeira abaixo sem cair, ligeira e triste mas direita.

Levantar cedo, em louvor de

Tenho de estar em Peguera às oito da manhã, buscar coisas para bordo. Pedalo pela Rambla deserta, fresca e bela e penso  "as ruas acolhem melhor quem as pisa primeiro".

3.6.19

Amor, anticorpos

A melhor forma de nos defendermos de bactérias e vírus é expor-nos a eles. Pergunto-me se apaixonarmo-nos não será a melhor defesa contra o amor, um mecanismo semelhante ao da criação de anticorpos.

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 03-06-2019

A bicicleta Panther avança depressa e silenciosamente por baixo do túnel de árvores da Rambla. É uma óptima burra apesar do peso e do contra-pedal, ao qual tenho uma certa dificuldade em habituar-me. É cedo, o ar está fresco sem estar frio, a bicicleta avança como água numa superfície impermeável, o sol levanta-se atrás de mim e parece empurrar-me. Vou buscar o carro e vou para o STP, o único sítio de Palma pelo qual trocaria o meu quarto apesar do cheiro, do tamanho e de ser no "segundo andar". Uma tenda no meio do STP... Penso em Hugh Hefner a olhar para as miúdas da revista mas num instante  ponho os pés na terra: para estas só posso olhar. São tantas, tão bonitas, ali tudo à vista porque estão varadas a pintar, reparar lemes ou aparelhos propulsores, trocar de quilhas. que sei eu?

No STP entrego uma máquina que comprara na sexta-feira, a massa volta para o banco e vou para bordo. O I. voltou de Inglaterra. Discutimos o trabalho do dia; é bom ver que agora já só falamos em montar peças, já não se desmonta nada, estamos a construir, a pôr no sítio, a discutir as opções de montagem. Dali vou para o café Acal, que é há um ano o meu escritório. Recebem-me alegremente, tentam adivinhar se hoje vai ser um americano ou um sumo de laranja...

Que fazer de um dia que começa assim, se não vivê-lo? Chego a casa às cinco da tarde. Ou seja: cinco minutos depois de acordar.

Por mais que se tente pensar na morte e no Menière e na diabetes eles repelem-nos, não é?

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A minha estratégia para perder peso sofreu um revés. Comer menos e beber mais não funciona, pelo menos no curto prazo.

1.6.19

Segundo andar, pronomes

Cada vez que voltava a casa via a luz do segundo andar acesa, qualquer que fosse a hora. Já amei uma miúda que vivia no segundo andar e mantinha a luz acesa, "para não te perderes", explicava-me. Infelizmente queria dizer "para não me perderes", eu não percebi e perdi-a. 

Ossos ao sol

Sentei-me ao sol numa cadeira em cima da rocha. Não havia um grão de areia ente os raios de luz e os meus ossos: era como ser crucificado por milhares de pregos embebidos numa droga qualquer que não só eliminasse a dor mas acrescentasse prazer, em micro-doses.

Dos ossos a luz transitava directamente para a medula, daí para o corpo todo e depois voltava ao sol, passando pela terra à minha volta. O sol é um dissolvente, o melhor de todos.

Estar, o verbo

Olhava para a vida como para as fotografias que tirara trinta anos antes: "eu estive aqui". Olha para a mesa, ouve as conversas, responde mecanicamente o mais das vezes e pensa "eu estive aqui". Esteve em todo o lado.

Como se o verbo não tivesse presente do indicativo. Só pretéritos: perfeito, mais-que-perfeito, imperfeito. Estúpido verbo este, tão incompleto. 

Diário de Bordos - Palma, Mallorca, Baleares, Espanha, 01-06-2019

Hoje fui à praia, um sítio aterradoramente bonito chamado Cala Lombards. O E. tem lá uma casa até terça ou quarta-feira, de modo nem sequer foi preciso ir para a areia, para o meio daquela gente toda. Um mergulho e um rum pré-prandiais, almoço no chiringuito, rum e mergulho pós-prandiais. É aflitivamente fácil gostar disto: o sítio é lindo e naquela casa um gajo sente-se como num barco que não se mexe.

Estou em terra há demasiado tempo, é o que é.

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Auto-diálogo matinal:
- Se fosse dado a essas coisas, a minha santíssima trindade seria Eric Tabarly, Leonard Cohen e Alejandra Pizarnik.
- Que fazes de Borges, Yourcenar e Beckett?

Aprendo assim a distinguir entre amor e fé, entre razão e sentimento? Talvez não aprenda, mas lá que confirmo confirmo.