10.3.16

Diário de Bordos - Funchal, Madeira, Portugal, 10/03/2016

É como se tivesse um elástico amarrado às costas e cada vez que entro num porto esse elástico aperta e impede-me de sair. Aqui no Funchal o elástico foram dois:  primeiro o frigorífico e segundo uma maldita carta.

Hoje tudo indica que o último se parte. A carta já está no Funchal, aparentemente. (Digo aparentemente porque não acredito em nada do que o shipchandler onde a comprei diz).

E nós partimos logo que ele se parta, se possível para o Panamá; se não para St. Martin.

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A psico-rigidez é um fenómeno que me apaixona mas não entendo. Quando se manifesta num miúdo de vinte e cinco anos passa definitivamente para o mundo do para-normal; ou das aberrações, não sei bem.

Como funcionam aqueles cérebros, que são o contrário de tudo o que um cérebro deve ser? Cérebros anti-evolucionários...

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Uma equipa de futebol qualquer ganhou um jogo no estrangeiro e - diz a televisão a abrir um telejornal, mais coisa menos coisa - "trezentos adeptos dirigiram-se ao aeroporto para [a] acolher".  pelo que percebi eram três e meia da manhã. Amanhã aqueles desses trezentos mentecaptos que têm empregos passarão por heróis nas empresas e organismos onde "trabalham". Entre aspas. Quem trabalha não vai às três e meia da manhã para o aeroporto acolher equipas de futebol.

O pior é que não é só a abrir o telejornal que se fala disso. A coisa continua. Que seca! Felizmente o Facebook tem alguns excelentes disc-jokeys. Viva Bach. Viva o Facebook. Vivam o V. P., o F. C. et al.

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A distância é benéfica para um amor nascente. É um microscópio e um telescópio ao mesmo tempo. A ausência é transparente, a proximidade opaca (ou pelo menos o físico que a proximidade permite é opaco).

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Oito e meia da manhã. O café da marina começa a encher-se com as pessoas que aqui trabalham. São muitas: o Funchal tem inúmeras empresas de day-charter que criam dezenas de empregos. Infelizmente concentram-se todas em baixar os preços, em vez de encontrar forma de os subir.

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Cavaco Silva foi-se embora e a esquerda, que adora emprenhar pelos ouvidos exulta com Marcelo. Pergunto-me quem será o próximo alvo daquela matilha acéfala. (Passe o pleonasmo...)

7.3.16

Diário de Bordos - Funchal, Madeira, Portugal, 07-03-2016

É sempre assim, não é? E em tudo, não só na área da náutica "de recreio" (entre aspas. É um termo que leva a confusões). Tudo é uma mistura de boas e más notícias; o que varia é a percentagem de umas e outras. Hoje estava tudo a correr bem, melhor, óptimo. Até que resolvemos abrir o compartimento da balsa salva-vidas e vimos que a validade expira em Março. Em termos de segurança não é um problema, de todo. Podia já ter expirado há um ano que estaria tão seguro como estou com aquilo dentro da data. É uma questão de regulação. de filhos da puta que não têm mais nada que fazer se não duvidar das capacidades de outrém.

Sendo, claro, que outrém é quem lá anda. Os fdp ficam-se pelos escritórios.

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Isto dito esta escala tem sido um prazer desde que acordo até que adormeço. Apesar da ferida no punho - hoje fui mudar o penso e doeu que foi uma coisa estúpida - tudo flui, tudo corre como água num ribeiro tranquilo.

O trabalho está feito a um preço muito, muito abaixo do aceitável, o tempo está óptimo - escrevo este post em t-shirt e calções! - hoje vamos comer uma espetada ao Estreito, as previsões para a próxima travessia muito boas e outras coisas das quais este não é o sítio apropriado para falar.

Ou seja: mais um período que um dia vou ter de pagar (e me vai sair caro) mas de que agora tento usufruir tanto quanto possível.

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E é isto. Dias felizes têm poucas histórias. A felicidade é difícil de partilhar porque é muito chata.

Para os outros, claro.

5.3.16

Diário de Bordos - Funchal, Madeira, 05-03-2016

Não sei por onde começar.

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Ontem a voltar para bordo escorreguei e abri o pulso esquerdo. Pus-lhe um bocadinho de mercurocromo, uma ligadura e fui dormir. De manhã ao mudar o penso o G. viu aquilo e exigiu que fosse ao hospital. Disse-lhe que sim, claro.

Que se lixe. Meia dúzia de pontos, quase. Que "não tenho cabeça". Que tudo e mais alguma coisa. Vou tirar eu os pontos, no mar. Não é a primeira vez, mas é a primeira que estou farto. Não me apetece voltar a ouvir enfermeiros e médicos contestar a minha maneira de lidar com o meu corpo. Que é meu, recordo; mas não só porque tenho uma tripulação pela qual sou responsável. Até agora temos tido uma relação mais coisa menos coisa harmoniosa, o corpo e eu. Não gosto que terceiros - e ainda por cima terceiros que não posso dispensar - metam o bedelho.

Estou a ponchas e a paracetemol. Podia ser pior.

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Hoje há um jogo de futebol e a única mesa livre é a que está mesmo por baixo da televisão. Passo os pormenores: só espero que a vela nunca chegue a este nível de atrasadice mental.

Já esteve mais longe, é certo. Mas perceber uma regata exige mais tempo e mais inteligência do que perceber um jogo em que vinte pessoas correm atrás de uma bola e duas tentam pará-la.

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Não tenho lido e a leitura falta-me. Comprei um livro do Silva Carvalho que foi uma decepção, um do Browne que é demasiado pesado para ler na cama, um de uma escritora açoriana que se lê em meia hora e o Hotel, de varela Gomes que já li e reli. Preciso ou de ir a uma livraria ou de me habituar a ler no computador.

Afinal tenho mais de cem livros no disco rígido externo. ("Disco rígido externo". Três palavras para designar uma coisa pela qual não daria um chavo só de olhar para ela.

Comme quoi les apparences...

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O futebol é uma coisa muito aborrecida de ouvir, mas na verdade não sei o que é pior: se ouvi-lo se ver as pessoas que o vêem. Estão todas de frente para mim e sinto-me como se estivesse no cinema a ver um documentário sobre a doença mental.

A única diferença é que os períodos de catatonia são muito breves e interrompidos por momentos de agitação irracional intensos, durante os quais os espectadores falam para a televisão e entre eles, indistintamente.

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Tenho uma instrução de G.: não perder o uso da mão direita. Espero que não. Que seria de mim sem ela?

4.3.16

Eternidade, morte

A eternidade só dura enquanto estamos vivos. A morte acaba com ela num instante.

Profundidade, racionalidade

- É preciso olhar para as coisas com profundidade e racionalidade", disse Watts. Estávamos num bar de putas em Gibraltar, um primeiro andar onde há muitos anos ouvi pela primeira vez Steeleye Span e aprendi a equilibrar copos pelo lado errado.
- Não. A profundidade é devastadora para a racionalidade, Watts. Só o sentimento é profundo. A racionalidade espalha-se. O sentimento mergulha.
- Tolice - respondeu. - O sentimento está para a razão como a punheta para uma foda.

Um das putas que estava connosco abanou a cabeça. "Porra! Só a mim é que me calha disto". As putas percebem bastante de amor porque o sabem diferenciar do sexo e nunca se casam. O bar era escuro e grande. Cheirava a cerveja, esperma, suor e calor. Nunca o vi com menos de duzentas pessoas, se é que um soldado bêbedo ou em vias de o estar conta como pessoa. Para mim sim. Havia pelo menos duzentos deles.

Watts é um revoltado. Não me admira: a racionalidade leva à revolta. "É preciso imaginar Sísifo feliz e livre", disse Camus nessa obra sublime e primordial que é o Mito de Sísifo. Só um sentimental percebe isto sem se revoltar.

Provavelmente. Mas pelos outros não falo. Já por mim é penoso que chegue.

Diário de Bordos - Funchal, Madeira, 05-03-2016

Cafés pedantes há-os em todo o lado. Este onde agora estou não difere dos outros: música horrível, decoração a condizer, símbolo "wi-fi" à porta, visível e "moderno".

O vinho é horroroso, a wifi lenta, da música não volto a falar, a iluminação execrável.

Verdade seja dita: para fazer o que tenho de fazer (escrever disparates e publicar outros já escritos) está mais ou menos em consonância. A música não é pior do que uma frase minha, coisa que aliás seria difícil; a clientela pouco difere (apesar de mais bonita) e do resto "on s'en fout.

On n'est pas d'ici. Demain on s'en va".

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É um prazer voltar ao Funchal. Há uma nonchalance nesta cidade que todas as outras deviam invejar. Ou emular, melhor ainda.

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No mar:

Doze nós de vento pelo través e o SB entra em modo voo. Cinquenta e três milhas em seis horas. [Duzentas e duas foi a conta das vinte e quatro].

Lua em quarto minguante, mar de senhoras. Um bocadinho de frio, claro. Mas nada que umas camadas de roupa não resolvam.

E o mar. Não sei como explicar. Alguém se lembra do líquido amniótico? É parecido sem ser igual e igual sem ter nada que se pareça.

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"Quem não sabe beber vinho bebe mijo", dizia o meu Pai quando eu chegava a casa visivelmente grosso. Estragou-me bebedeiras durante quase trinta anos, mas quanta razão tinha. Embebedamo-nos para nós e não para que os outros vejam que estamos bêbedos.

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Os homens magoados deviam aprender a viver sem magoar os outros. É impossível, eu sei. Que graça teria estar magoado sozinho? Seria como estar apaixonado e não ter uma namorada.

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Se eu fosse Nietzsche escreveria um livro ao qual daria o título de Genealogia do Mau Gosto. Infelizmente não sou. Ele preferiu escavar a moral.

Percebo-o? Não sei. Balanço entre a moral e a estética como um mastro entre duas vagas.

Metáfora

Hoje à noite Meme Diouf comeu o lápis com que o desenhei. E comeu a borracha também, não fosse o diabo tecê-las. Assim não o posso apagar. Ignoro onde mora, mas deve ser mais para o lado do sonho do que do da memória. Vi-o perfeitamente: um rapazinho magro - muito magro, um traço só porque não sei desenhar e quando tenho de o fazer tento ser o mais simples possível. Um traço só. Quem vê que imagine o resto -, sentado num muro (ditto). Pareceu-me que estava a comer o lápis, mas isso é uma dedução: tinha uma coisa qualquer na boca e nem o lápis nem a borracha estão no seu lugar, onde religiosamente os deixo há anos. Alguém os tirou de lá.

(Devo dizer que desenho tão poucas vezes e tão pouco de cada vez que o lápis e a borracha eram os mesmos há uma eternidade.)

E não estão noutro lugar qualquer. Nada. Desvaneceram-se. Desapareceram.

Não sei quase nada do Meme Diouf. Africano, 15 anos, perdeu os pais numa daquelas guerras com que os países de África insistem em provar que a modernidade lhes chega às arrecuas e um dia caiu-me num sonho (tenho quase a certeza que não saiu da memória) para se sentar num muro e comer-me o lápis.

Pergunto-me porque o terá feito. Estaria com fome? Para se vingar de o ter desenhado tão magrinho? Por curiosidade? Ignoro.

Meme Diouf engoliu o lápis. Um traço sentado em cima de outro traço com um traço la dentro. Não o posso desenhar mais. Resta-nos (a mim e a si, leitor, que isto da escrita é como o tango) imaginá-lo: olha-nos, mas será que nos vê? Sorri, mas de onde lhe vem o sorriso?

Um traço que engole quem o fez. Bela metáfora, não é?