30.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 30-12-2023

Chego a casa à tarde ou deixo-a de manhã e esta vista magnífica é envenenada pelo naufrágio do barco que no outro dia ardeu e ainda ali está, meio afundado. O corpo da senhora que morreu já dele saiu, claro, mas a lembrança das chamas ainda me persegue. Perseguir-me-á sempre, foi horrível de ver ainda antes de saber que a senhora tinha morrido e depois ainda o é mais. Não há bela sem senão e esta magnífica paisagem, com St. Lucie em fundo, cumulus esparsos no céu, barcos fundeados a perder de vista, a promessa das viagens que um dia farei a partir daqui lembra-mo-lo todos os dias. Não há bela sem senão, meu caro. Tudo se paga e eu sei que sim, este dia na praia das Salines, esta chegada a casa, Gerry Mulligan e Chet Baker - Line for Lyons - a cerveja Lorraine fresca, os boudins créoles e as accras que comi no mercado ao meio-dia acompanhados por um punch comprado no mercado ao lado, a ideia de que tudo isto é simultaneamente fugaz e caro e - sobretudo - a de que deve ser partilhado, tudo isto, tudo isto.

Talvez seja esta a chave da solidão: não ter com quem partilhar esta magnífica vista, esta cerveja, esta dor, esta beleza, St. Lucie ao fundo atrás da qual se escondem os Deux Pitons. Há pessoas que vivem bem sendo capazes de armazenar o que vêem e vivem e há quem precise de não o guardar só para si. Há, sobretudo, pessoas - provavelmente nós todos - que por vezes precisam e outras não. A solidão é um estado de geometria variável, como alguns aviões de combate.

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Consegui finalmente acabar os Peligros de la Moralidad. Ainda não me é fácil ler e pergunto-me se isto ficará assim para o resto dos meus dias. Na dúvida continuo a comprar livros. Nunca se sabe.

Karyn

Karyn era conhecida como "A fantasma". Andava sempre vestida de branco, numa roupa larga e vaporosa. As saias - ou calças, ocasionalmente - tapavam-lhe os pés e dava a impressão de levitar a centímetros do pavimento. Era alta, magra e ruiva, fumava cigarros uns atrás dos outros por uma boquilha comprida e só bebia Campari com vinho branco. Não havia na cidade homem que não garantisse ter ido para a cama com ela, coisa inverosímil já que ninguém jamais a viu falar seja com quem fosse mais do que dois Campari seguidos. Enfastiava-se depressa ou tinha pouco a dizer?

Enfastiava-se depressa. As conversas de sedução maçavam-na para lá de toda a descrição. Quando via um tipo mais ou menos "comível" (gostava tão pouco de falar que abreviava palavras) insinuava-se, roupa branca a pairar-lhe à volta como uma nuvem, arranjava maneira de o sentar à mesa dela e observava-o. Começava pelas unhas: estavam cortadas, limpas e bem arranjadas? Se sim, passava aos sapatos. Se não, adeus, até à próxima.  Os sapatos estavam engraxados? Antes disso: eram sapatos ou sapatilhas? Estas não entravam em casa dela. Aqueles sim, se fossem da cor apropriada à hora do dia - castanhos à noite, pretos durante as horas laborais - fossem de atacadores e estivessem tratados.

Passados estes testes, cortava cerce a conversa de chacha. "Querido", começava. "Não percas muito tempo. Não gastes palavras. Se quiseres comer-me vem a minha casa jantar logo à noite. Não precisas de trazer nada, obrigado."

Quando eles chegavam - os que cediam, porque muitos punham-se a milhas imediatamente - eram recebidos por Karyn nua, conduzidos à casa de banho para um banho quente - sem espuma, só água - felados,  envolvidos num roupão branco e levados para a mesa. A comida vinha de fora mas ela nunca o dizia: ao contrário, fingia que estava a terminar de cozinhar. Quando eles se aproximavam dela e lhe tentavam tocar despachava-os para a mesa. "Senta-te e abre a garrafa que está na mesa, pode ser?" A pergunta era retórica, claro. Não havia muita margem, no tom de voz dela.

Durante o jantar falava-se pouco. Karyn explicava ao (às vezes) jovem que não valia a pena esforçar-se por lhe dar um orgasmo. Tratasse do dele e isso chegava-lhe. "Nada me tira tanto a vontade de ir para a cama com um homem como os interrogatórios pré-prandiais". A maioria dos rapazes que ela levava para casa não sabia o que isso significava e dos que sabiam eram raros os que identificavam a piada. Esses tinham direito a repetir a dose. Os outros eram postos na rua mal ela terminava o cigarro pós-coital. "Desculpa, mas nunca nenhum homem dormiu nesta cama e tu não vais ser o primeiro". Uma das coisas que me fez gostar dela foi a maneira que tinha de ser directa sem magoar as pessoas: tudo o que ela dizia parecia uma evidência, algo impossível de se duvidar. Quando se apercia de que o puto (às vezes mal tinham saído da adolescência) não tinha muito taco chamava-lhe um táxi. Aos homens mais maduros poupava essa generosidade. "Não precisam. Se não têm dinheiro que vão à pé. Não quero humilhá-los. Os miúdos estão habituados, recebem dinheiro dos pais. Os mais velhos não. Além disso são os únicos que me dão um bocadinho de prazer e não me apetece pagar-lhes isso."

(Cont.)

Nb.: Creio que já por aqui contei esta história ou uma semelhante. Se tal for o caso, peço aos simpáticos leitores que me desculpem. Quem ma contou foi um tio que já morreu e eu só a ponho na primeira pessoa (às vezes) porque gosto de me imaginar na pele desse tio, irmão mais velho da minha mãe, proscrito da família por ter fugido para Tavira com a criada da casa grávida até às orelhas.

Condenadas a desaparecer

Está ano termina com quatro coisas boas. Por ordem cronológica: o nascimento da minha neta, a viagem da Suécia até Cascais, a publicação do meu terceiro livro e finalmente a vinda para a Martinica. Não conto as más porque estão condenadas a desaparecer.

Migalhas, sono

À noite és visitado por pequenas migalhas do dia, pequenas pedras que te picam os pés descalços, pequenos restos da côdea do pão que comeste na cama e agora te fazem comichão. Enquanto não limpares isso tudo, enquanto não varreres o dia e sacudires bem os lençóis não conseguirás dormir. O dia que aí vem quer uma superfície limpa, brilhante, na qual ele possa escorregar com a graça de um surfista, entrar em cena em grande estilo.

É um chato e um pedante, esse amanhã, pensa que é o rei do mundo, a última praia antes da próxima glaciação, é ele quem vai resolver os problemas todos deste mundo e do outro.

Depois, o mais provável é acabar como hoje acaba: migalhas tão duras que nem os pássaros as querem. Nem o sono, quanto mais os pássaros. 

29.12.23

Ciência, moral

"Se tiverem de escolher entre moral e ciência, as pessoas escolherão a moral."

Pablo Malo, Los peligros de la moralidad, ed. Deusto, Barcelona 2021.

Um dos livros mais importantes que li nos últimos quinhentos anos. Devia ser traduzido e publicado em português e ser distribuído gratuitamente pelas escolas secundárias do país. 

(O mesmo se poderia dizer do medo, mas isso são contas de outro rosário.)

Em defesa da gravidade e outras liturgias

A música mudou para Paul Desmond: Glad to be unhappy. Não há melhor forma de definir este ambíguo estado em que ando há semanas: tudo avança lentamente - mas avança; anda tudo louco com os preços e não há outra forma de lhes escapar senão ficar em casa a ouvir - por exemplo - Paul Desmond; chove cada vez menos, a tal ponto que a chuva é agora a bênção de sempre; refresca o ar, limpa-o e faz crescer esta vegetação que dá ideia de crescer só de pensar em água. A paisagem é linda e a provável mudança em breve para outro apartamento menos bem situado não me aflige muito: duas semanas aqui encheram-me o cesto para três meses, no mínimo. Sei - daquele saber calmo e relaxado a que Mitterrand (ou o seu publicista, um tipo famoso nessa altura em França) chamaram força tranquila - que no fim todas as bolas cairão no seu devido lugar. Basta segui-las com o olhar, não me agitar demasiado - não agitar nada, na verdade. Ir fazendo as coisas da mesma forma que os planetas seguem a sua órbita ou a mulher que amamos se apaixona por nós: devagar, até o contrário lhe ser impossível. (Isto não é uma aula de astronomia, relembro. Nem de sedução. Para isso leiam o Kepler ou o Baudrillard.)

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Há qualquer coisa de especial numa terra que me faz não me importar de guiar. É simples e fácil de definir: chama-se gentileza. As pessoas aqui são de uma gentileza ao volante de que só tenho comparação na Venezuela dos anos setenta. Conduzem como doidos em anfetaminas, mas param para nos deixar passar, não buzinam, tudo flui como se os automóveis fossem imunes à agressividade. Preferiria uma bicicleta, é verdade, mas esta vista paga-se com uma subida para a qual já não há pernas. Sorte tenho e muita que ainda haja olhos.

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T. foi ter a sua primeira entrevista para um trabalho. Acha três semanas muito longo para encontrar um trabalho. Eu não acho, mas isso serve de pouco: tem de aprender por si.

Um abraço ao D.

 Bom, continuemos então a conversa com o D.

Fui à cozinha encher um copo de rum, optei pelo rhum arrangé que comprei no mercado e parti o copo para onde o vertia. Não podendo atribuir a culpa a Pedro Passos Coelho (a minha vertente esquerdista desapareceu ao mesmo tempo do que a última era glaciar) atribuo-a à senhora que preparou o dito rum. Já a culpa de não poder discutir estas coisas in persona com vinho em vez de rum é sem sombra de dúvida de Marcelo Rebelo de Sousa, do neto do sapateiro ou de Luís Marques Mendes, à escolha.

À minha frente o dia escapa-se para Oeste, como lhe compete, deixando uma mescla de cores que vai do cinzento ao laranja. Ahmad Jamal toca um concerto em Paris e o rum volta a ser o da Maison la Favorite, que tanto aprecio e cujo nome acho perfeitamente justo. E regresso - em boa companhia - à noção básica e pré-covidiana de que não, as pessoas não sabem forçosamente o que é melhor para elas mas têm o inalienável direito de se enganar.

Acredito também, cada vez mais, naquilo que escrevia em 2008, passem-me a auto-citação: «o quarto poder mudou-se para o quarto do Poder». Desta vez com provas: a Covid foi uma liçâo que só não aprende quem não quer.

O laranja acentua-se e o cinzento também. Os cumulus cumprem o seu duplo dever: a) lembrar-nos de que estamos nos trópicos e b) conferir dramatismo à cena. (Sim, eu sei, há cumulus em todas as latitudes, mas isto não é uma aula de nefologia.)

Regresso à minha inescapável propensão popperiana: gosto de conversar, que distingo intuitiva e quase violentamente de endoutrinar, catequizar, evangelizar, convencer. Sou contra todas as formas de proselitismo, mas poucas coisas há de que goste mais do que de uma boa juta intelectual. Se possível com vinho tinto ou rum.

28.12.23

Como as coisas mudam, meu Deus!

Se há coisa que detesto são aqueles posts a comparar o que era com o que é. Claro que as coisas mudam e o que dantes era assim hoje é assado e amanhã será cozido.

Isto dito, não consigo deixar de me fascinar cada vez que me lembro de que ainda há meia dúzia de semanas se queria levar uma miúda ao castigo tinha de lhe declarar amor eterno e para lá da eternidade, prometer uma caterva de filhos e um anel no dedo mal a coisa acabasse e hoje dizer-lhe que a amo é a maneira mais rápida e eficaz de a pôr a milhas.

Terei sido eu quem mudou, ou elas?

27.12.23

Post bem-intencionado dirigido às escolas de jornalismo

Estou a ler um livro absolutamente imprescindível (meço as palavras) chamado Los Peligros de la Moralidad. O autor é Pablo Malo e a editora Ediciones Deusto, Barcelona. Não tenho querido falar muito dele aqui por duas razões:

a) Ando a lê-lo há muito tempo e preciso de o reler;
b) Quero guardar uma recensão para o Página Um, se tanto é que eles vão aceitar uma crítica de um livro ainda não publicado em Portugal.

Isto dito, acabo de encontrar uma passagem, no último capítulo, que me parece necessário mencionar. A tradução é minha, pelo que se lhe deve dar um desconto.

«Sobretudo, deve admitir-se que nenhum dos sistemas funcionais deve ser integrado no sistema social por intermédio da moralidade. Os sistemas funcionais devem a sua autonomia às suas funções individuais, mas também a um código binário individual. Por exemplo, a distinção entre o verdadeiro e o falso no sistema científico ou a distinção entre o governo e a oposição num sistema político democrático. Em caso algum os dois valores de estes códigos podem misturar-se [hacerse congruentes] com os dos valores do código da moralidade. Não queremos que o governo seja declarado bom e a oposição estruturalmente má ou, pior, o mal. Isto seria a sentença de morte da democracia.

Este livro devia ser de leitura obrigatória nas madrassas (perdão, escolas) de jornalismo.

26.12.23

Diálogos possíveis

- É da eternidade que te falo.
- Da? Só uma? Eu conheço pelo menos duas.
- ...?
- Há a eternidade de enquanto espero por ti e a de quando estivermos juntos. São duas.
- Iguais?
- Não. Uma é negativa e a outra positiva.
- És parvo. As eternidades não se adicionam. Se fosse como dizes seria uma adição algébrica de soma zero.
- E são. Quando estivermos juntos a eternidade transmutar-se-á em infinito. O tempo transformar-se-á em espaço.
- E o amor, no meio disso tudo?
- O amor preencherá esse espaço. 

25.12.23

Coisas, conversas

O princípio das coisas é relativamente simples e pode condensar-se em dois pontos:

a) As coisas são como são;

b) As coisas começam aonde começam e nunca acabam, como as viagens, os grandes amores, os bons livros e as noites que não têm fim.

Ou seja: um dia, daqui a muitos anos, poderemos definir aonde começou o nosso amor. Hoje ainda é cedo. E um dia - outro, diferente - poderemos saber porque não acabou esse amor, começado simplesmente com a expressão de um desejo: não te conheço, mas quero conhecer-te. Não te amo, mas quero amar-te. Não sei quem és, mas quero saber.

Amar é - ou começa por ser - uma projecção no futuro. Sou aquilo que fizeres de mim, és aquilo que fizer de ti. Um Lego que começa sem sabermos as peças que temos na mão. O resto interessa pouco, minha querida. Não passa de um conjunto de epifenómenos, arrumado em categorias definidas por terceiros: a família, a sociedade, os padres, a escola. A palavra-chave, meu amor, é terceiros. Antes deles há os primeiros e os segundos. Esquece estes. Nós somos os primeiros. 

O resto é conversa e segundos.

Pastéis de nata e opções políticas

A capacidade de nos ligarmos a alguém, seja por laços de amizade ou de amor, de respeito ou admiração quase desapareceu. Ser comunista, liberal, socialista ou democrata-cristão não é muito diferente de gostar de pastéis de nata ou detestar cozido à portuguesa. Muito mais importante é a pessoa que está por detrás da ideologia. 

O amor que nos une

Deixemo-nos de tretas, minha querida. Pode ser? Perguntas-me o que é o amor. Não sei. Não faço ideia. Talvez um par de mamas num par de mãos,  não?, se essas mamas forem as tuas, tão bonitas e minhas as mãos, tão calosas e brutas. Talvez uma coisa direita e voraz noutra húmida, quente e esfomeada. Talvez essa fome seja aquilo a que chamas amor, não achas? Ou talvez aquilo que endireita o que se endireita só de pensar em ti. Talvez seja isso esse amor de que não páras de falar. Eu sou mais fazedor do que falador, que queres? Também verdade seja dita que não te tenho ouvido muitas queixas. Antes pelo contrário. Podes duvidar de tudo em mim, menos dessa capacidade de transformar em actos as tuas palavras. Encontrámos uma maneira consensual de partilhar o amor: tu falas nele e eu faço-to. De cada um segundo as suas possibilidades, como dizia o outro, essoutro de que tu tanto gostas e eu tão pouco. 

Assim vamos indo, rumo ao amor científico, um grama por sílaba. Ou um minuto, se preferires. Por isso falas tanto nele, não é? Tantas sílabas, tantos minutos. Eu pensava mais em gramas de mamas, mas as mulheres são holísticas,  avaliam as coisas na sua globalidade. Vamos a isso. Perdamo-nos na vastidão da globalidade. Encontremo-nos no fio tão grosso do amor que nos une.

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 25-12-2023

O T. está bastante melhor mas ainda longe de estar bom, de maneira a véspera de Natal foi exactamente igual às outras vésperas todas. Fiz uma versão bastante tropicalizada de Coq au Vin que o jovem cavalheiro dispensou e fui para a cama. Gosto deste ritmo de deitar cedo e cedo erguer, acordar com esta vista magnífica, duche, pequeno-almoço, desesperar porque é feriado e há tanto que fazer.

Sou demasiado bicho-do-mato para ligar muito a estas celebrações colectivas e demasiado ateu para me interessar pelo nascimento de um senhor que nunca vi. Às vezes sinto a falta daquelas grandes reuniões de família, é verdade, nas quais me aborrecia de morte mas de que hoje vejo a utilidade. «Nada é simples e tudo se complica», como sempre. Basta viver os dias como eles se vão apresentando, traçar uma frágil linha entre o abulismo total e o voluntarismo (ou a sua ilusão), tentar navegar essa linha sem a romper - e escrever uma lista de tudo o que tenho para fazer, que no fundo, no fundo, bem espremido se reduz a duas coisas: logística - nova casa, novo carro, comunicações - e SD, SD, SD.  Daqui por duas semanas o P. vai integrar a mistela e a «pequena intervenção cirúrgica» introduzirá um pouco de ritmo. Mas até lá é isto: logística e SD, SD e logística. 

O olho direito está definitivamente a seguir o caminho do esquerdo. Daqui por uns meses lá terei de ir ao IMO outra vez. Vá lá que o tratamento é simples: uns tiros de laser e está feita a coisa. 

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Há neblina no horizonte e a vista da varanda ficou quase monocromática. Vários tons de cinzento. Daqui a pouco virá o Sol e a mistura será de vários tons de azul com vários tons de verde salpicados com o branco dos cascos e dos cumulus

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Estou ansioso por ir passar uns dias às Grenadines. E outros a St. Martin...

23.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 22 e 23-12-2023

22-12-2023

Detesto a relação estúpida que os portugueses têm com o saber. Há muitos anos, um então jovem professor de História na faculdade de letras de Lisboa (corrijam-me se estiver enganado, não me lembro da faculdade) chamado Daniel Perdigão (ditto) dizia-me que somos o único povo que tem um ditado que menciona os «burros carregados de livros» e que despreza os «doutores da mula russa». Eu próprio fui vítima disso aquando da minha breve passagem - sublinho breve - pelo esquerdismo. O meu Pai, que me incentivara toda a vida a ler, desde a mais tenra infância, acusava-me de «cultura livresca». Como se só o saber empírico contasse. Paradoxalmente, a mesma desconfiança se aplica a quem tem muita experiência numa determinada área. Qualquer coisa que ele diga tem sempre uma razão por trás. Um interesse, uma causa escondida. Não é «o que é que este gajo sabe?», é «o que é que este gajo quer?». Não se valoriza o saber e portanto faz-se tudo o que se pode para não o pagar.

Lembro-me sempre, quando converso com portugueses, daquela máxima não sei de onde: «se você acha o saber muito caro, experimente a ignorância».

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O Mango Bay está transformado numa pálida sombra do que foi. Acontece. A entropia é a norma geral da vida, se bem por vezes abra excepções. 

Não acredito naquela treta do não se regressar a um lugar aonde se foi feliz. Aqui no Marin fui feliz, infeliz, assim-assim e tudo o que lhes fica de permeio. O Mango não é o que era? Paciência. A entropia funciona, mas a neguentropia também. Outro aparecerá.

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23-12-2023

Não é difícil extasiarmo-nos com esta mistura de planteur, ti'punch, calor e simpatia da senhora que me serve isto tudo com calor, se bem do outro, do humano. Vir a Fort-de-France na véspera de Natal foi o erro que eu esperava. Uma hora e vinte para fazer um trajecto que normalmente se faz em metade do tempo, mais vinte minutos para estacionar, ruas pejadas de gente. Já as compras de Natal foram despachadas num abrir e fechar de olhos, se bem desconfie que os jovens destinatários dos presentes venham a pensar que foi mais com eles fechados. Amanhã veremos.

[Pelo sim pelo não completei-os com outros comprados aqui no Auchan, que tem uma secção de brinquedos, creio que «especial Natal». Não sei. Amanhã veremos as reacções. Estou pronto a apostar singelo contra dobrado que se vão esquecer deles no aeroporto.]

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Desta vez almoço no mercado. Chez Carole, para futuras referências (as accras são óptimas, o colombo nem por isso). Carole faz-me incrivelmente lembrar a Anouk R., uma Anouk que tivesse ficado um bocadinho mais no forno e tivesse sido esticada em altura. O mesmo fácies e a mesma atitude, a mesma electricidade. Está sozinha no restaurante, faz o serviço e a cozinha, serve-me um planteur correcto e um ti'punch com açúcar em vez de xarope de cana. Reclamo e aponta para a garrafa de rum que pôs na mesa: «sou a única que ainda põe a garrafa na mesa» (a garrafa estava quase vazia). Não me surpreende muito, de passagem seja dito. Já em Palma o Aurélio deixou de pôr garrafas de vinho com o menu. «Eles bebem-nas todas», explicou-me. Carole diz a mesma coisa.

Isto é: voltamos a oitenta e quatro, quando se comia pessimamente nesta ilha. Há doze anos comia-se invariavelmente bem. Agora há que escolher. A teoria do pêndulo a funcionar. 

Carole e eu brincamos ao flirt. Adoro estes jogos de que ambos saímos vencedores: no flirt só perde quem não sabe que nada há a ganhar se não uma comunicação infra-verbal, uma comunicação baseada naquela magnífica frase que ouvia a bordo da marinha mercante: «ah, se tu quisesses e eu pudesse...» Era sempre dita no sentido homem - mulher. O homem pode, a mulher quer. As feministas deviam fazer umas viagens a bordo de alguns navios, suponho, No flirt todas as combinações são possíveis. A igualdade é total. Ah, Carole, se eu quisesse e tu pudesses... Se eu quisesse e tu também... Se ambos pudéssemos, se ambos quiséssemos... Não aconteceria nada, claro. O fim do flirt é o flirt.

Quando nos despedimos ela oferece-me a mão, não para um passou-bem mas para um toque, para que as nossas palmas se encontrem abertas, como nas carícias. O flirt torna atraente a menos atraente das mulheres, o menos atraente dos homens. Talvez seja isto a vitória: a metamorfose.

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T. está horrivelmente doente há dois dias. Hoje tentei convencê-lo a irmos ao hospital mas não consegui. Pactuámos com um «amanhã, se isto continuar assim». Não me posso queixar: sou igual. Só que agora sei melhor a estupidez que é. 

Infelizmente é daquelas aprendizagens que cada um de nós deve fazer per se.

Hubris, religiões e outras infantilidades

Deixando de lado quaisquer considerações, não consigo deixar de pensar que o choradinho nacional - enfim, lisboeta - sobre os recentes desaparecimentos de uma barbearia, uma livraria e um café deixariam um novaiorquino de boca aberta.

Hoje li um post no FB segundo o qual tudo isto é orquestrado. «Um projecto global de dominação» (aspas porque cito). Orquestrado? Por quem? Por amor de Deus, alguém manda no tempo? É este tipo de conceitos que ajuda a explicar a maravilhosa gestão da Covid e a ideia genial da «Covid-zero» (aspas para não rebentar de riso) - por sinal, materializada e explicitada por um ditador mas aprovada por tantos por assim dizer «democratas» (ditto). Quando eu era adolescente (isto é, há meia dúzia de semanas) estava em voga a expressão «reduzir alguém à sua insignificância». Continua a ser muito necessária, por difícil que seja aceitarmos que nós não temos poder sobre a maioria das coisas que o governa. 

A necessidade de acreditar na infinitude do poder do Homem, como se «quero, posso e mando» fosse extensível a todas as áreas da vida é uma ilusão infantil, uma crendice que as religiões fizeram o favor, ao longo dos séculos, de delegar num deus qualquer. «Eu não posso, mas Deus pode» revela-se, nestes tempos a-religiosos (ou melhor, de micro-religiões) uma atitude mais adulta e mais racional do que o conspiracionismo vigente.

Adenda: isto dito, os compradores desses edifícios são idiotas, porque manter as lojas torna a cidade muito mais interessante, mas isso é outra história. 

21.12.23

Os diferentes léxicos da troça

Aqui na Martinica chamam «piments végétariens» às malaguetas que não são picantes. Se isto não é troça não sei o que é.

20.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 20-12-2023

Bom, comecemos então pelo fim, que é aonde começam verdadeiramente todas as histórias: hoje encontrei tinta para as canetas. Só havia uma marca - Waterman - e duas cores: azul «serenidade» e preto. Escolhi a azul, apesar de duvidar da serenidade que trará à minha escrita. De maneira agora tenho quase tudo. Só me falta um carta SIM da Digicell para ter rede e uma ligeiríssima operação cirúrgica para que tudo esteja na linha, por assim dizer. Espero duas respostas para um apartamento e que o S. D. se encha de clientes, coisas que acontecerão em breve, se Deus quiser. Ao contrário de Lisboa, o Marin ama-me.

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Comprei um rhum arrangé no mercado. É uma espécie de sobremesa líquida com um bom conteúdo alcoólico e muita fruta.  Bebo-o de vez em quando, quando chego a casa e me pergunto por que troquei isto tudo? Isto é: nada nos cai do céu, nada nos sai do mar (excepto eventualmente a felicidade e algumas baleias de bossa, mas isso são contas de outro rosário) e para chegar tive de vender o B. P., de trabalhar no P., de fazer não sei quantas horas de mar, de galère. E muitas horas de mar, de avião, de bom, mau e assim-assim, de amores, desamores e re-amores. Sinto-me como se estivesse no topo de um castelo de cartas, de um baralho em que não há duas iguais. Sessenta e seis anos de desequilíbrios... É obra, há que reconhecer.

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O Marin transformou-se numa armadilha para turistas. Ainda não encontrei o meu lugar mas sei que tenho um à espera. Tactear é a primeira obrigação do recém-chegado. Lamentar-se não entra sequer na lista.

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Tenho a data da exposição na Passevite: sete de Junho. Ponham na vossa agenda, põem, por favor?

Reggae, evolução e planteurs

Dois planteurs «maison» (isto é, ainda longe da receita canónica), a vista sobre a baía, uma improvisação culinária que recebeu os aplausos do fiston (isto é de ser mencionado no CV) e a música de Bob Marley. De rum, de belas vistas tropicais e de comer bem sempre gostei; mas relembro com vergonha quando não gostava de reggae. Claro que hoje posso disfarçar e dizer que há reggae e há Bob Marley e são duas coiss distintas. É verdade. Mas a verdadeira verdade é que eu tão pouco gostava de Bob Marley.

E ainda há quem seja contra o progresso ou não acredite na evolução.

Receita - Planteur

O planteur é uma espécie de bebida mágica que inclui tudo o que as Antilhas têm de bom: rum, sumo de frutas e canela. Dir-me-ão que parece pouco, mas não é. É muito. De momento estou a fazer uma versão simplificada: rum branco, rum ambrée, polpa de um maracujá, sumo de laranja, de goiaba e de manga.

Em breve farei a «verdadeira» (aspas porque isto de verdades nestas coisas é muito relativo. Cada planteur tinha a sua). Mas vão-se ficando com esta, vão treinando.

PS - Chama-se planteur porque era a bebida dos proprietários das plantações de cana. A versão anglófona leva três runs em vez de dois e chama-se rhum punch.

19.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 19-12-2023

O velho debate sobre a supremacia da Martinica ou de Saint Martin está resolvido: Saint Martin. Uma ilha aonde não se encontra tinta para canetas não pode ser senão um lugar de passagem. Por muito linda que seja - é, muito. Claro que não é amanhã que a tinta das minhas quatro canetas vai acabar. Terei tempo de chegar a Marigot antes de isso acontecer. A preocupação é de ordem teórica. Ou teológica, se preferirem. Em Marigot podia escolher entre várias cores e marcas. Aqui não sabem sequer o que é uma caneta (enfim, exagero. Só uma vez tive de mostrar uma porque a vendedora não sabia a que me referia quando lhe falava de plume).

De resto, as coisas seguem o seu caminho. O S. D. não estará pronto tão cedo, ao contrário de mim - depois de amanhã tenho a primeira consulta séria em vista da resolução de um problema somático que o nosso querido SNS não pode resolver antes de as galinhas terem dentes e eu não ter vida. Em casa tenho rum, comida, livros e calor, para além do filho, que ainda é filho apesar de já ser uma pessoa. Isto é, tenho tudo aquilo de que necessito, para já. 

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Comprei dois livros do Aimé Cesaire, história de me refrescar sobre a negritude. Interessante interessante seria alguém fazer uma «negritude» actual, agora que não há colonizadores. Mas que assim de repente me ocorra só uma senhora nigeriana se meteu por essas vias. Ainda não tenho o livro, mas é daqueles que está no tapete rolante há tempo suficiente para dele sair num ápice.

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Do meu apartamento - melhor, da mesa aonde escrevo e tomo o pequeno-almoço e por vezes o almoço ou o jantar - tenho uma vista sublime. Questão de sorte, claro, como foi o de há onze ou doze anos. Posso zangar-me com esta ilha por causa da tinta para as canetas de tinta permanente, mas ela não me retribui a zanga. Antes pelo contrário. A única coisa de que me posso queixar agora é dos preços, mas pronto, basta-me não levar isso muito pessoalmente.

(Cont.)

Escolhas, ilusões, certezas

A ganhar a vida preferiu ganhar uma vida. Ainda não sabe se a ganhou, mas sabe que a vai perder.

18.12.23

Definição - poupar

Poupar consiste em viver hoje mediocremente para se poder viver mediocremente amanhã.

17.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 17-12-2023

A minha ideia de tratar primeiro da logística obteve resultados mitigados: as comunicações (leia-se «rede») e a tinta para as canetas tiveram de ficar para amanhã, segunda-feira; em contrapartida encontrei o bloco-notas Clairefontaine sem o qual as ideias não fluem e a mão se paralisa, coitada. O soma também está por metade: ontem um problema ficou resolvido e amanhã dou o segundo passo para tratar do outro, por sinal o mais importante, o que estaria pendente da boa vontade do SNS, «o melhor do mundo» como dizem tolos e socialistas - passem-me o pleonasmo, por favor.

De maneira a vida nos trópicos organiza-se à maneira dos trópicos: pouco a pouco. Em contrapartida, o duche frio pela manhã, a manteiga pronta a ser barrada cinco minutos depois de sair do frigorífico, o vizinho de baixo que pára espontaneamente para me dar boleia, os planteur (agora a um preço infame) e os ti'punch (ainda acessíveis), a gentileza de toda a gente com quem nos cruzamos ou interagimos - isso é imediato. 

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A distância que separa o fim de um dia do dia do fim é a mesma que vai de agora a daqui a bocadinho, Resta definir «bocadinho» e em que plano o situamos: no metafórico? No primeiro grau? Não sei. Venho ao Indigo, um sítio aonde raramente vinha antes e ali encontro o melhor planteur até à data, ao preço habitual: onze euros! Onze euros por um planteur? Está tudo doido. Vou ter de comprar os ingredientes e fazê-lo em casa, mas não é a mesma coisa. Como toda a gente sabe, uma bebida num bar é diferente da mesma bebida em casa.

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Numa mesa perto da minha dois idiotas metem-se com a empregada, que é jovem e bonita. São grosseiros, as piadas não têm graça nenhuma, são grasses como dizem os franceses. A miúda lá vai respondendo o melhor que pode, tentando não ser malcriada. O «bocadinho» leva-me imediatamente a uma cena de há quarenta anos, dois jovens marinheiros em Calvi a flirtar com uma jovem e bonita empregada de mesa. Não éramos grosseiros e as nossas piadas tinham piada, mas isso não impediu o patrão de sair da cozinha com uma interminável faca na mão e nos pôr na rua - depois de pagar, claro.

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Hoje é dia de passeio pela ilha. pelo que (cont.)

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(Continuação.)

O passeio pela ilha consistiu numa volta à metade sul da dita, com paragem em casa da S., minha cunhada (há ex-cunhadas?). Demasiado verde, demasiado bonita, demasiadas curvas, demasiado espanto; muito amor paterno-filial, um grande prazer com o P. C. - gosto de pessoas que se escondem, que não se dão a ver nem à décima quinta vez - um péssimo almoço e um óptimo proto-jantar no Indigo. O dia termina em casa com um rum La Favorite e o Lamento d'Arianna. Sei que tudo isto terá um fim, mas isso não me preocupa. Antes pelo contrário: limito-me a esperar conseguir sugar cada mili-segundo porque a felicidade é como a navegação - um dia bom paga dez maus e quanto mais eu puder viver momentos como este mais capital-felicidade terei para enfrentar a inevitável factura.

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Amanhã: Fort-de-France para tratar do soma e do que resta da logística. Parece-me um bom mix. A forma e o conteúdo. Sinto-me como a jovem tartaruga que saiu da praia e chegou finalmente à água do mar: aquela travessia da areia pareceu-lhe, estou certo, uma eternidade. E o que a espera não é outra. São muitas. 

(Aos sessenta e seis anos, com a carcaça a degenerar a olhos vistos, o gajo atreve-se a pensar que ainda tem uma eternidade ou duas pela frente. Conhecendo-o como o conheço, sou capaz de acreditar que sim, tem. Eternidades, breves, curtas, mas eternidades.)

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Troco Monteverdi por John Field, cortesia do Youtube. Troco um rum por outro, um dia pelo que se lhe segue. Troco tudo menos tintas: isto tem um método, um sistema, um dispositivo, um objectivo, um alvo, mas as cores são sempre as mesmas: azuis, verdes e o dourado do rum, quando não é branco. Sou um gajo de vistas longas e palettes reduzidas.

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Penso nas pessoas que me levaram do azul ao verde: a Helena R., a Rosa C., o Henrique P. dos S. (com métodos diferentes, apresso-me a esclarecer). Não me lêem, mas deixo-lhes aqui na mesma a minha vénia de gratidão. Eterna, transversal a todas as vidas. Creio que foi Adorno, mas não tenho a certeza, quem disse que cada artista cria os seus predecessores. Qualquer coisa do género, a citação está longe de ser verbatim. Hoje pensava nisto, perante a explosão de verdes, a bruta beleza e força desta natureza: desde o choque da chegada a Quepos, desde a viagem ao longo da Tramuntana com a T., desde a viagem de hoje ando para trás, para as viagens de jipe na Zambézia, para os dias no Panamá e a vida dá uma volta e aqui estou de novo hoje, mistura mal cozida de ontens e amanhãs - porque estes hojes fazem e farão parte deles, só por isso, apesar de não se misturarem bem, precisam de tempo. 

16.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 16-12-2023

Dia de vir ao médico.  Nove pessoas à minha frente. Até o consultório abrir não há bicha. Depois abre e cada um encontra o seu lugar na ordem de chegada. A fila forma-se para inscrevermos o nome numa folha que o médico vai consultando a cada paciente que sai. As pessoas estão concentradas nos seus telefones. Ninguém fala. O senhor ao meu lado tecla sem parar mas não tem o telefone no silêncio e o ruído é irritante. É o único, felizmente. 

A linha na qual inscrevi o meu nome indicava nove e quarenta e cinco como hora para a minha consulta - o doutor atribui quinze minutos a cada consulta, a primeira coluna é a das horas, esta organização parece-me perfeita, tudo se compõe. As duas maleitas que me trazem aqui - uma recente outra já mais velhinha - têm os dias contados. Quando receber a informação do SNS sobre a data da operação já terá sido feita. É uma boa ideia de exportação para Portugal: doentes. Isto é, os doentes que o SNS não consegue tratar debaixo do seu programa "Consulta a tempo e horas" (não é piada. É assim que vêm tituladas as folhas que recebo do centro de saúde) podiam ser enviados para países dos quais os respectivos SNS fossem menos dados a troçar das pessoas. Continuo a ter vontade de me vergastar por não ter tratado disto em Cuxhaven mas é mais uma questão de desporto do que de real zanga: as razões que me levaram a fazê-lo eram sólidas e de pouco serve agora remexê-las. Já só tenho cinco pessoas à frente. O médico respeita a duração das consultas, pelo menos na média. Ou seja, ainda tenho uma hora de espera. Uma hora e quinze. Vou beber um café, se estiver algum aberto. Se não estiver, não bebo mas apanho um bocadinho de ar.

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Falta uma semana para o Natal. Não parece. Este ano foi parco em prendas.

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Afinal o médico não respeita a média de duração das consultas: recebeu-me uma hora antes do previsto. Foi rápido, eficaz, simpático e fiquei livre de uma das chatices. A outra é mais complicada e vai exigir uma viagem a Fort-de-France. Não é uma surpresa e a sublime vista que tenho da mesa de onde agora escrevo apazigua tudo e mais alguma coisa.

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Convivência com o filho: um gajo pensa que tem uma filho e descobre que tem uma pessoa. Pelo menos é boa, valha-me isso.

13.12.23

Diário de Bordos - Le Marin, Martinique, DOM-TOM França, 13-12-2023

O problema é que vivemos no passado, meu caro. O plural não é majestático: o mal é comum. Ainda me lembro de quando chegava ao aeroporto de Fort-de-France e o trajecto para o Marin era feito de taxico (abreviatura de táxi colectivo) e custava entre vinte e trinta euros, consoante a quantidade de passageiros, a hora e a capacidade negocial. Quando não havia taxicos, atravessava-se a rua e levantava-se o polegar. Em quinze minutos no máximo estávamos num carro - que tantas vezes se desviava ou prolongava a viagem para me deixar na marina. Hoje, no aeroporto, há táxis e taxímetros. Face aos oitenta euros que o taxista no aeroporto me disse que a viagem ia custar, resolvi apanhar um carro para Fort-de-France e de lá um taxico para o Marin. O taxista dissuadiu-me. Por um lado era pouco provável que encontrasse um taxico para o Marin dada a hora. A senhora aonde bebi o planteur de chegada já me tinha dito a mesma coisa. Por outro, se apanhasse um táxi seria ainda mais caro e se fosse de autocarro só teria um lá para as sete da tarde. "Vou deixá-lo na estação dos autocarros, a viagem custa-lhe dez euros em vez de trinta e você num instante está no Marin e muito mais barato". É muito difícil não se gostar da Martinica. Quase tanto como lembrarmo-nos de viver no presente. 

Claro que esta teimosia em não pagar oitenta euros para ir do aeroporto ao Marin pode discutir-se. Acabei de esportular duzentos e cinquenta para vir em «class Caraïbes» em vez de classe gado, na qual comprei o bilhete. Mais oitenta não fariam uma mossa por aí além. Uma amolgadelazinha, quando muito. A verdade, a verdadeira verdade é que prefiro andar de taxico ou de autocarro. Não por manias de ser viajante ou de apreciar a cultura local ou tretas semelhantes. Não. É porque simplesmente gosto desta gente, devo muitas horas felizes à Martinica e por muito ansioso que esteja de ver o meu filho - estou - quero dizer a esta terra que sou, de novo, dela. Sou um deles, com tudo o que isso implica. Por exemplo, pagar doze euros e dez cêntimos em vez de oitenta e antecipar com ânsia o momento em que me vou sentar no Mango Bay e beber outro planteur, o da chegada - chegada. 

Tudo isto - refiro-me à modernização, a que eles dão o nome enganador e embalador de progresso, ao fim dos taxico no aeroporto, aos taxímetros, ao fim do tripulante que nos anos oitenta contratávamos por meia dúzia de francos para limpar e cozinhar e ajudar nas manobras e dar cor local à viagem - é inevitável. Duvido é que seja melhor - excepto claro no caso do mencionado tripulante. Hoje são deckhands e skippers - mas a tentação da modernidade é irresistível para muita gente, sobretudo se está em lugares de poder (a imposição dos taxímetros foi obra da mairie, disse-me o senhor que me deixou na paragem dos autocarros em vez de me levar para Fort-de-France). Nada se pode fazer, se não regozijarmo-nos com as horas felizes que o passado nos deu e prepararmo-nos para aquelas com que o presente nos presenteia ou o futuro nos trará.

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Jantar no Mango Bay com o fiston. Passo os pormenores. A felicidade ou é global ou não é. 

12.12.23

Livro de Bordos - Paris, França, 12-02-2023

O senhor ao meu lado no Orlybus é português. Deve ter pouco mais de sessenta anos. Fala com os vizinhos da frente, num francês parisiense fluente e totalmente isento de sotaque português. Aparentemente é algarvio. Pelo menos comprou um apartamento no Algarve. Diz uma quantidade prodigiosa de disparates, que alterna com banalidades igualmente prodigiosos. Trabalhou nas obras, tem um joelho artificial, foi operado em Portugal num hospital privado, "nós que tínhamos o melhor sistema de saúde do mundo. Destruído em dez anos". Antes disso falava da chuva: sempre no princípio do mês durante uma semana, porque é Lua cheia. Ainda não chegámos à política mas aposto que vota Chega ou FN.

Tento não ouvir a conversa. É doloroso conciliar isto com a ideia de que o homem é um animal racional. A menos, claro, que se dê um vasto leque sintáctico a racional. 

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Consegui um hotel na minha querida rue Daguerre. Há quanto tempo não venho aqui? Mal reconheci o terminal de Orly. Durante quase um ano passei por aqui quase duas vezes por mês. Mas fui há muito tempo.

(O senhor algarvio tem boas bases de latim, diz agora. Não é o único latinista que conheço que trabalhou na construção civil, note-se - enfim, o LM não era latinista. Mas era culto, mais culto infinitamente do que este senhor.)

Denfert-Rochereau. Estação terminal. Para mim é a inicial. Paris começa agora.

9.12.23

Sangue, suor e sílabas

Escrevo pouco, eu sei: tudo o que escrevo sai-me da pele, suor feito sílaba, degrau de uma escada sem fim.

Só me falta perceber se a escada sobe ou desce.

Bolas no ar

O Livro das bolas no ar tem uma prodigiosa capacidade de regeneração. Mal se lhe arranca uma  folha outra aparece, tão complicada ou mais do que a que acaba de perder.

Sesta, eu, eus

Adormeço à sombra do sono, feito formiga por baixo do embondeiro. O dia dissolve-se - o que foi e o que virá. Há sempre dois, o de antes e o de depois. Penso no Plaisirs minuscules do Delerm e nesta sucessiva acumulação de prazeres, alguns dos quais minúsculos, nesta sucessiva acumulação de dúvidas, algumas das quais maiúsculas e pergunto-me quando, se, haverá, terei, algum dia uns sem as outras, minúsculos mas absolutos prazeres sem reticências, pontos de interrogação, passados ou futuros. 

Não sei sequer se saberia degustá-los, a havê-los, como se montasse um puro-sangue ou pilotasse ou cata da America's Cup.

Por exemplo: o almoço foi parcialmente magnífico. A magnificência pode ser parcial? O prazer pode ser absoluto? E eu, serei um dia capaz de não ser eus?

8.12.23

Sugestão (resignação)

A partir de uma certa idade, amar alguém consiste simplesmente em suportar-lhe os defeitos e já não, como até aí,  em amá-los.

A minha sugestão é: evite essa idade.

7.12.23

Rios, vidas

É sempre à ideia de rio que regresso. Vai da nascente até à foz, muda e é sempre o mesmo, recebe afluentes e perde-se em meandros, tem água doce, salobra e salgada, cascatas, quedas, margens que ora o oprimem ora o deixam perder-se na vastidão da preguiça,  serve de fronteira entre países ou regiões, irriga planícies que sem ele seriam estéreis. Que rio seria, se a vida fosse um rio? Amazonas? Congo? Nilo? Zambeze? Mississipi? Ou um desses pequenos rios de província que começam e acabam sem história, cuja grande utilidade é lavarem a roupa as lavadeiras, entre duas coscuvilhices?

É sempre ao rio que regressamos. É sempre em nós que o rio desagua.

Imbecilidade, vantagem

A grande vantagem da imbecilidade é que só acontece aos outros.

Amor, fases

O amor tem três fases. Na primeira vêem-se as qualidades; na segunda os defeitos. Na terceira, escolhe-se entre umas e outros.

3.12.23

Causas, linchagens

Quantas das pessoas que são contra a pena de morte (e outras causas "justas" da actualidade) participam alegremente na linchagem de terceiros nas redes sociais por delito de opinião?

Salsa, tango, vidas e lugares

Venho com a tripulante jantar ao 7 Machos. Na inevitável televisão - aqui menos do que em Lisboa - passa a habitual salsa. Vejo as pessoas dançar e penso que prefiro esta música (na verdade, esta dança) ao tango. Fluidez vs. rigidez, graça vs. razão. Claro que se em vez de estar no 7 Machos estivesse num bar de Buenos Aires - Baires para os íntimos - ou de Paris, de Lisboa, de Madrid e talvez até quem sabe de Palma preferiria o tango, essa geometrização do sentimento. Até já me aconteceu gostar de fado (música, não a danca, que de resto não existe), na extinta Adega do Ribatejo aonde chorei rios. Cada música tem o seu momento, o seu lugar. Como cada vida, não é?

Do futebol e outras coisas, se por acaso

"Só conta quando está lá dentro" não é provavelmente a frase mais elegante da língua portuguesa. Mas de que é a mais certeira restam poucas dúvidas. E de que deve ser a mais respeitada e obedecida tão pouco.

(PS - vem do futebol, se por acaso.)

Vida, trenó

- Devia deixar-me deslizar pela vida como um trenó puxado por cães - muitos cães - numa paisagem gelada, ora branca ora verde e castanha das árvores, ora lisa e silenciosa ora acidentada e caótica...

- Desculpa-me interromper-te. Não é isso que fazes?

1.12.23

Obsessão? Nem pensar nisso

M. anda esfuziante. Arranjou uma namorada. Encontrei-o recentemente no café e perguntei-lhe como é que era a miúda. 
- É gira. Tem umas mamas muito bonitas, pequenas mas bem feitas...
- Porra, M., não é das mamas que quero saber. Estou a perguntar-te como é que ela é. 
- Não sei. Ainda não vi o resto.

Notas do caderno de um misantropo

- O desinteresse pelo futebol corta-me de uma boa parte da nossa sociedade. Acho que devia começar a aprender mais sobre esse desporto.

- E aprenderes a desinteressar-te das outras coisas, não te parece mais apelativo?