30.4.16

Diário de Bordos - Barillas Marina, El Salvador, 30-04-2016

A Besta ganhou..

Maldade, gravidade e outras comparações desajustadas

Uma das coisas que digo nos briefings a novos  (ou melhor, inexperientes) tripulantes é "não lutem contra a gravidade. Ela ganha. Usem-na. Vocês ganham".

Hoje pensei nisto a propósito do mal (aqui definido como má-fé, maldade, estupidez - se bem haja uma estupidez boa -).

Impossível.  "Não lutes contra o mal. Ele ganha. Usa-o. Tu ganhas". É mentira. Soa a falso. A maldade ganha sempre (sempre sendo curto e médio prazos. Depois disso o bem prevalece. O mundo hoje é melhor do que há cem anos).

29.4.16

Diário de Bordos - De Panamá a Barillas Marina, Aserradores, El Salvador, 22 a 28-04-2016

A noite está muito clara apesar de a lua se ter escondido atrás de uma camada de nuvens (Altostratus, para quem possa interessar). Pouco densa, o que explica a claridade.

Vamos a motor, como esperava. Há um bocadinho de vento (pela proa, é inútil dizê-lo) mas serve apenas de arrefecimento.

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Parece-me que consegui resolver os problemas com a tripulação. A ver. Mas uma coisa é resolver os problemas e outra ter prazer em navegar com eles. Não tenho. G. é um adolescente de cinquenta e oito anos (feitos ontem). Está numa situação difícil mas isso não explica nem muito menos justifica. Serve de circunstância atenuante, quando muito. Apesar de tudo prefiro R., brasileiro de Natal. É desconfiado e susceptível mas é frontal, directo, honesto. E cozinha bem, qualidade que não estraga nada antes pelo contrário.

Mas foi passada um linha e agora fazer marcha atrás e pretender que está tudo na mesma é inútil. Pelo menos parcialmente: para mim conseguir respirar ao lado de G. será uma grande vitória. Por enquanto não posso. O homem tira-me o ar. Só de o ver fico nauseado. É viscoso, melífluo, traiçoeiro como uma serpente.

Enfim, falta um mês. Um mês na Costa Oeste da América passa depressa. Hoje já viram uma baleia, mantas e os inevitáveis mas sempre agradáveis golfinhos. Eu vi uma barbatana que não identifiquei. Talvez um tubarão pequeno. Não sei.

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Estou de quarto, com vento fraco pela proa, mar chão, a motor numa noite calma, clara e fresca. Oiço o motor e o barulho da água. Estou triste, ansioso, febril, impaciente. Quero chegar a Los Angeles o mais depressa possível. Passe a auto-citação: é preferível estar no sítio errado com as pessoas certas a estar no sítio certo com as pessoas erradas.

Penso no que vou fazer depois, numa senhora que espera por mim na praia, nestes últimos seis anos, nos próximos seis ou dez ou vinte. " I do not fuck much with the past but I fuck plenty with the future".

É tempo de mudar de vida. Esta acabou. Já não me consegue mudar e esse deve ser o critério: muda de vida no dia em que a vida deixa de te mudar.

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Ontem fiz uma análise profunda aquilo que estou a fazer mal. Depois fui comprar mais comida e refrigerantes. Beber refrigerantes no mar é ainda mais estúpido do que bebê-los em terra. O açúcar desidrata e fica-se com mais sede. Mas são grandes e não sou pai deles. O M. bebia Coca-Cola ao pequeno-almoço. Il était con comme trois balais. Est-ce que ceci explique cela? Va savoir. Talvez a Coca-Cola seja uma consequência e não a causa.

Estes só se lembraram dos refrigerantes depois de os verem no Swan com quem passámos as eclusas.

O G. é bastante mais con do que o M. Já o R. não. É menos. Talvez na verdade a relação entre os refrigerantes e a connerie seja ténue ou inexistente.

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O mar é demasiado tolerante, já por aqui há uns anos o escrevi. É provavelmente isso que faz a sua grandeza.

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Para a travessia do Canal comprei uma caixa daqueles hamburguers horríveis. O ambiente a bordo era péssimo e a minha vontade de cozinhar nula. Temos de dar de comer ao piloto e aos linehandlers, mas não temos de lhes dar alta gastronomia. Além de que já recebi de um piloto um elogio que cobre todas as faltas de vontade, birras da tripulação e quejandos. "Esta foi a melhor refeição que me deram", disse o senhor quando atravessei num barco de que nem sequer era o skipper. Ia como linehandler, por causa dos cento e vinte dólares. Mas propus-me fazer o almoço e o armador - de quem não recordo nome, cara ou sequer o barco - agradeceu-me e foi assim. Improvisei uma porcaria qualquer e por sorte saiu bem.

Desta vez não estava com muita vontade de repetir a proeza, mas pelo sim pelo não desfiz os hamburguers e pus a carne a marinar em rum.

Quem acabou por fazer o almoço foi R. Uma feijoada tão boa quanto gargantuesca. Ontem comemos parte do resto ao almoço e ainda há para uma refeição. Se não for deitada fora, claro.

De maneira a carne ficou no rum ou este naquela dois dias. Hoje acrescentei pimenta, os sublimes cominho e paprika do marroquino do talho de La Línea, cebola picada e um pouco de curcuma, para equilibrar.

Com isto recheei dois pimentos verdes e duas courgettes que estavam na rede há pelo menos metade de uma eternidade. Cortei um bom pedaço de gengibre às rodelas, quatro alhos inteiros, azeite quanto basta e mandei tudo para o forno.

Ficou delicioso. Isto com boa carne e um humor melhor do que o meu agora vai tornar-se um standard da casa.

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Revi P., o meu agente no Panamá. Meu e de quarenta mil outros, claro. Apreciamo-nos mutuamente. Uma quase-amizade correspondida. Está velho. Teve uma infecção séria no pé e foi operado. Já não parece uma personagem de John le Carré mas continua um homem bonito, com um sorriso e um sentido de humor irresistíveis.

Espero voltar a vê-lo. É um dos laços que tenho no Panamá e mais uma prova - já há tantas... - de que nem tudo é mau nesta terra.

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Hoje apanhei dois bonitos. Tinha duas linhas fora, coisa que raramente faço. Mas queria mesmo apanhar um peixe, fosse ele qual fosse, para mostrar aos dois idiotas (isto é injusto. O R. está longe de ser idiota. Comporta-se como se fosse, o que é diferente) que me servem de tripulantes que sim, no mar apanha-se peixe e pode-se comer.

As discussões por causa da comida a bordo foram-se repetindo até que em Panamá fui às compras e trouxe tudo o que me pediram. Metade há-de ir fora, claro. Mas pelo menos ficaram satisfeitos. Não consigo perceber qual o prazer ou a vantagem que retiram de deitar comida fora, mas enfim. (Isto tão pouco é verdade. Percebo perfeitamente. O "abondanza" do Rei de Marrocos na Villa Sterne, uma versão rasca de potlatch - com a vantagem acrescida de que quem paga não são eles. Mas isso é um pormenor). Não sabem e eu não consigo explicar-lhes que no mar come-se o que há. A escolha é limitada pelo armazenamento (neste caso não se aplica, temos um camarote vazio) e pela capacidade de refrigeração. O nosso congelador não congela e só funciona bem quando vamos a motor. À vela consome demasiada energia. Temos montes de fruta e vegetais numa rede no salão, mas com estas temperaturas também têm a duração limitada. Ou seja: aquilo que eu pensava ser um trajecto à base de legumes, peixe e fruta transformou-se numa orgia de carnes, queijo e fiambre (ainda por cima merdosos) e Coca-cola, Sprite, Seven-Up. Nunca me tinha pedido refrigerantes, mas durante a travessia do Canal viram o barco ao lado bebê-los e hey, presto!, a ideia aterrou-lhes no cerebelo. (Mesmo assim estão longe de M., que bebia Coca-cola ao pequeno-almoço).

Não sou um gajo frugal (isto é um understatement) mas não preciso de alimentar o ego ou a auto-imagem com desperdícios.

Enfim, seja como for temos dois bonitos para comer. Cozidos, fritos e no forno com bacon, tomate, cebola e alho.

Cozido talvez não. Bonito não é grande coisa, seja como for. Mas alguma forma se há-de arranjar. Por agora estão no sal. Amanhã se verá.

Vou dormir.

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O dia está cinzento e o vento muito mais forte do que é habitual - onze nós (pela proa, claro). Calha bem. Ontem quase apanhei um escaldão e tenho a pele a arder.

Quem dera ardesse por outras razões.

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Continuo a motor. Quero chegar depressa. Para bolinar está perfeito porque não há mar. O S.B. chamar-lhe-ia um figo. Eu também, se estivesse para aí voltado. Não estou: o objectivo é chegar, não é navegar.

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Três homens num bote. Ou um adolescente e dois homens num bote. Adolescente mimado e estúpido, ainda por cima.

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Ao princípio R. parecia um gajo porreiro. Na verdade não passa de um gajo, nem porreiro nem antes pelo contrário. Pelo menos pôs a desconfiança e a falta de educação de lado e comporta-se normalmente. G. continua a víbora que sempre foi. Basta-me pensar nele para querer transformar-me naqueles animais que são inimigos atávicos das cobras e as mordem e partem em fanicos. Pensar que vou ter de o aturar mais um mês esgota-me.

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Que manhã tão linda. Navego com uma térmica fraquinha, ajudado pela corrente. Vamos à bolina cerrada, mas assim é uma sorte. Mar chão, o sol acaba de nascer e já aquece, mas não demasiado. O SB marulha suavemente, como se trocasse segredos com o mar.

Tudo é calma, luxo e voluptuosidade.

Daqui a pouco começo as tarefas do quarto das seis às dez: lavar a loiça da noite, limpar cockpit e salão, verificar fundos e motor. Quando sair de quarto faço o almoço : bonito cozido.

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Acabei por não fazer o almoço. R. antecipou-se e fez uma salada com feijão branco e salsichas frescas que ficou uma delícia.

Em contrapartida fui agraciado com uma daquelas vistas que me fazem adorar o Pacífico. Aproximadamente uma centena de golfinhos a outros tantos metros do barco. Meia dúzia deles faziam piruetas como se estivessem a treinar para um espectáculo num parque de diversões aquático. A dois metros do painel da popa e um de profundidade uma manta gigante. Fazia de envergadura quase metade da boca do SB.

A manta é um peixe lindo, majestoso. Uma vez nadei pertíssimo de uma, na Pool em Canouan. E vi várias vezes algumas a voar fora de água (voar devia levar aspas).

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Reescrevo isto em El Salvador, Barillas Marina. O essencial está correcto. Deveria acrescentar alguns pormenores. Não o faço. Prefiro falar de Barillas.

Não é bem uma marina. É bóias num rio e um parque manicurado para a casta possidente local. Os funcionários são adoráveis, simpáticos, sorridentes e prestáveis. Hoje rdeixaram-me usar os computadores do escritório  - já não têm a sala de computadores porque o wifi é ubiquo  -. Mangal por todo o lado e terrenos magnificamente tratados no meio (onde estamos, naturalmente).

Sou pouco fã destes parques para ricos mas às vezes sabem bem.

20.4.16

Diário de Bordos - Lago Gatun, Panamá, 20-04-2016

Dois dias depois do previsto estamos finalmente na linha de partida: o fundeadouro F, conhecido por amigos e família como "the Flats". O piloto deve chegar às quatro e meia, daqui a dez minutos. Mas não há relação entre o que deve ser e o que é. Os iates - particularmente os veleiros - estão  muito em baixo na lista de prioridades da ACP - Autoridade do Canal do Panamá, dantes conhecida por PCA. O Canal era americano. - Li algures que a arrogância, para usar um eufemismo, com que a ACP nos trata aumentou desde que isto passou para controlo indígena. Não sei. "Algures" é um guia gringo.

Ou seja: começa hoje a última perna da viagem. Já vai longa e pesada mas está etapa é a mais agradável. Excepto no que respeita a vento, que será sobretudo do porão.

Vamos parar na Costa Rica, na Guatemala e no México, antes de Los Angeles. Gosto muito do México  (ou pelo menos da parte minúscula que dele conheço), vou descobrir a Guatemala e revisitar a Costa Rica.

Nada mau, para quem gosta de viajar e de barco, ainda melhor.

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De braço dado com o S/Y SALSA. Ele é o grande do casal. Não tenho nada que fazer. É bom.

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Lago Gatun. Adoro este sítio.

Estar no lugar certo com as pessoas erradas é pior do que estar no lugar errado com as pessoas certas. A vida é feita de pessoas, mais do que de lugares.

18.4.16

Diário de Bordos - Panamá, Panamá, 18-04-2016

Regresso a Panamá, desta vez por razões profissionais: vou comprar as cartas para o resto da viagem. Comprei um "pacote de dados" e posso escrever no autocarro. Ajuda a passar o tempo. Viajo de pé, o que é chato. Mas a viagem é curta - pouco menos de duas horas se não houver tranque  - e barata. Por três dólares e quinze cêntimos não se pode pedir muito mais (pode. Alguns veículos têm televisão com filmes horríveis, ar condicionado a funcionar melhor do que este e amortecedores a ar (esta última informação devo-a a R., que me ensinou a distinguir o amortecimento a ar do de molas).

Este veículo é dos velhos. Um só piso, cadeiras estreitas, molas em vez de ar, ar cansado em vez de condicionado. Mas a velocidade é a mesma e não tarda estarei na Islamorada a comprar cartas.

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Hoje fiz as clearances (de entrada e saída. Em português diria " fiz a entrada e a saída"; ou "dei a entrada e a saída "). A burocracia é a mesma em toda a parte do mundo latino porque tem a mesma função: dar emprego a quem não sabe fazer mais nada ou, mais generosamente, não se importa de ser literalmente uma personagem camusiana toda a vida e se dedica com afinco a manusear o absurdo.

Faz alguns anos que não entro numa repartição pública portuguesa e se tiverem evoluído como os notários,  por exemplo, devem estar hoje radicalmente diferentes. As instalações da AMP em Colon trazem-me à memória as da função pública lusa de há alguns anos: feias, desmazeladas, maltratadas, sujas.

Como se todos soubessem que o que ali se faz não merece muito respeito, nem tempo ou dinheiro.

Enfim, consegui poupar umas poucas centenas de dólares ao armador, corrompi três pessoas (valor total: quarenta e cinco dólares. Corromper é um verbo demasiado forte) e amanhã largo para o Canal e depois Quepos, na Costa Rica.

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Tanta vontade tenho de estar no mar com uma tripulação porreira... Dou de mais e espero de mais das pessoas. O problema não é de modo nenhum novo mas há alguns anos que não estou numa situação em que ele tenha ocasião de se manifestar.

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Comprei as cartas em papel. É como deitar dinheiro ao mar.

Ou a um café. Um dia.

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Bebo um último mojito no Rana Dorada. Amanhã saio de Shelter Bay, se tudo correr - ou tiver corrido - bem. Os inspectores do Canal foram hoje fazer as medidas. Não tive nenhuma chamada, suponho portanto que não tenha havido problemas de maior.

Espero. Estou farto de urubus.

17.4.16

Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 17-02-2016

Atravesso terça. Em princípio, obviamente. No Panamá nem do passado podemos estar seguros,  quanto mais do presente ou do futuro.

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Cada vez suporto menos a mesquinhez, a pequenez de espírito. É uma chatice mas não posso fazer nada.

Ainda menos a pequenez e a mesquinhez que se passeiam no mar, demasiado tolerante.

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Recentemente tomei uma decisão importante a respeito deste blog. Podem acusar-me de tudo menos de fugir à luta.

Avizinham-se tempos interessantes.

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Conheci C., adorável francês, músico amador (e por vezes profissional, creio) sensível sensato e bonito como só as pessoas em paz podem ser.

Convidou-me para ir a sua casa nos Alpes savoyards, não muito longe de Genève.

Espero sinceramente poder aceitar, um dia. Há privilégios de que seria pecado não beneficiar. E de caminho passar em Avignon e visitar os donos de um pequeno teatro que há muitos anos me fizeram um convite semelhante.

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A próxima escala será Quepos, na Costa Rica. Uma das chegadas mais bonitas da minha vida. O mistério não se repetirá, mas estou contente. Quanto mais perto de Los Angeles mais perto de Lisboa.

Rivalidades

Não é por o mar não aceitar rivais que os marinheiros não têm uma vida sentimental decente (excepto, claro, os que navegam em casal), ao contrário do que muitas vezes se pensa.

O mar aceita todas as rivais. Acolhe-as com prazer e depois esmaga-as, mastiga-as, digere-as e deita-as fora.

O marinheiro que se lixe.

16.4.16

Diário de Bordos - Cidade de Panamá, Panamá, 16-04-2016

Tarde em Panamá. Casco Viejo para começar. Bebo um mojito no Rana Dorada. É o melhor mojito que jamais bebi e está hoje igual ao primeiro, vai para três anos.

Venho para a esplanada. O ar está quente e húmido, denso como uma piscina de água ligeira. A Luz fez-me uma festa sincera. Nunca falei muito com ela - deve ter mais que fazer do que aturar marinheiros melancólicos, solitários e longe de uma casa que não têm - mas simpatizamos um com o outro. Eu com a eficácia dela e ela, provavelmente,  com o facto de eu não ser chato: encomendo (sempre a mesma coisa: um mojito sem açúcar - hoje ela recomendou ao barman que não se esquecesse desse pormenor -) bebo, re-encomendo, pago, agradeço e vou-me embora. E volto. Se calhar isso contribui para a simpatia, tanto a de um como a da outra.

Continuamos - estou com o R. - para o circuito habitual. Não é por acaso que gosto tanto dos Passos em Volta. Paradoxalmente não vejo isto como um regresso ao passado, um passeio do triste ou viagem pela memória. É uma espécie de futuro retroactivo. Já aqui estive, num momento particularmente difícil da minha vida e consegui construir laços com isto. Na altura não me apercebi, só agora o vejo. Posso voltar a Panamá quando quiser porque já aqui estive, porque já aqui fui o que sou. Em francês há um tempo verbal chamado futur passé (futur antérieur para os puristas, chatos et simili). É o meu tempo verbal favorito. Tão pouco por acaso, claro. O meu presente (a minha vida?) são uma mistura permanente de passado posterior e futuro anterior.

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Não gostei do Panamá quando cá cheguei porque estava mal e agora gosto porque estou bem. Il ne faut pas chercher midi à quatorze heures.

Mas talvez convenha aprender a olhar.
Isto é, a meta-olhar.

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Daqui a pouco voltamos para Shelter Bay. Táxi para Albrook, camionete para Colon, táxi para a marina.  Três horas de trajecto na pior das hipóteses,  duas na melhor e uma quantidade estúpida de dólares em ambas.

Enfim. Refuto o estúpida. Não há nada de estúpido em andar às volta do tempo.

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O Casco muda a um ritmo impressionante. A cada visita que faço está mais bonito. Restaurantes modernos, bares design, lojas de moda, mobiliário BCBG.

Qualquer dia de tão bonito fica infrequentável.

15.4.16

Continuações

Um dia sonhei escrever um livro que fosse a continuação do Passage to Juneau, um dos melhores livros de viagens que me foi dado ler. Saira de San Francisco com uma depressão monstruosa e com algumas coisas em comum com o livro.

Nunca escreverei esse livro mas vou fazer quase melhor: vou navegá-lo.

Descansa, super-homem

Esta necessidade de descanso tem que se lhe diga.

Um gajo já sabia que não é o super-homem (desde o fim da adolescência, uma vez percebido e digerido Zaratrusta). Depois vai passando por várias fases - não sou mas um dia serei; não sou mas vou tentar chegar o mais perto possível; etc. - e de repente dá por ele numa marina perdida da América Central, à entrada do canal do Panamá a pensar "olha a sorte que tive em não ser o super-homem".

Raciocínio, sintonia

Leio Morin e Tristram Shandy ao mesmo tempo. E ainda há quem se admire por eu ter um raciocínio circular. (Ou elíptico, vá. Hoje estou em maré de bondade para comigo próprio.)

História de sintonia, decerto.

Diário de Bordos - Shelter Bay Marina, Panamá, 15-04-2016 / II

As coisas, tenho-o dito e redito são como são e não como deviam ser ou quereríamos nós que elas fossem. Que me perdoem os revolucionários, activistas, optimistas e todos aqueles que acham que o mundo devia ser diferente.

Têm razão, é óbvio: o mundo devia ser diferente e que ele hoje é melhor do que era há cem anos é prova irrefutável de que quem tem razão são eles, esses a quem agora peço me desculpem por laborar neste erro: as coisas são o que são.  Para mim são. Podia se quisesse elencar aqui uma interminável lista de provas (circunstanciais, é certo) do que afirmo.

Dispenso. O dia de hoje é suficiente e não há revolução ou optimismo que me desconvença.

Sentir-me grato por estar em Shelter Bay, por exemplo. Quem diria? Ninguém e eu menos ainda. Comer no restaurante da marina em vez de comer a bordo. Estar exausto e não conseguir dormir, apesar dos dois execráveis rum punch (Katel, Tanya, Ona, où êtes-vous?) e cervejas e vinho branco que bebi, como se acreditasse que bebendo dormiria.

Sabia perfeitamente que não. Primeiro porque não bebi o suficiente e depois porque o que tenho não se dissolve em álcool. A irrefutabilidade de as coisas serem como são e não como eu queria que elas fossem - apesar de hoje elas terem sido como eu queria e não como seriam se fossem como são - não se apaga com uma cerveja Balboa, um vinho branco caríssimo para o que é ou dois rum punch baratos e maus.

O erro - se fosse honesto diria semi-erro - que cometi à saída de St. Maarten - a saber, uma mistura de fundos e informação - não teve as consequências dramáticas, trágicas que poderia ter tido. Não atravesso o Canal amanhã, prova de que Deus existe ou - mais honestamente - de que as coisas por vezes são melhores do que seriam se fossem como costumam ser; e acho que vou conseguir dormir depois de jantar - este restaurante era horrível; suponho que não tenha mudado; depois de um mau hamburguer e uma cerveja mais ou menos pouco há a fazer, sobretudo se o computador portátil tiver a bateria quase a acabar e o telefone idem -.

Ou seja. Está tudo a correr bem, demasiado bem. Não sei como desenvencilhar-me desta situação. Preciso de dinheiro, mas isso pode esperar até amanhã; de descansar, mas sei que mais tarde ou mais cedo vou conseguir dormir. Vou atravessar o Canal mas amanhã não será a véspera desse dia. Hoje terei descanso.

Pelo menos parcial, porque apesar de tudo as coisas não deixam de ser como são.

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Estamos em Abril e Shelter Bay está cheia. Hoje até vi miúdas com menos de sessenta e oito anos. Muitas e giras. Tinham todas a mesma T-shirt, o que me faz pensar que estavam no mesmo barco e que quem quer que seja que as tenha recrutado tem bom gosto. Nunca vi mais de três garotas jovens nesta marina simultaneamente e mesmo essas eram do tempo da minha saudosa Nike, que valia por duas.

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A cerveja está quase a acabar. O hamburguer era horrível. As coisas são como são, mas isso nem sempre significa que são más. Penso em Espinosa: somos nós que as tornamos boas ou más, consoante.

Estou-me nas tintas. Não o bastante para dormir assim que chegar a bordo mas pelo menos que chegue para pensar que o sono e o descanso não estão longe.

Devia ter ficado mais dois dias em Sint Maarten, essa é que é essa e o resto conversa. Não fiquei. Que se lixe. As coisas são como são. Eu não. Sou o que estou "e é tudo o que sou". Hoje, por exemplo, sou um homem cansado, com problemas que me sobrevoam como urubus e apesar de tudo consegue encontrar harmonia nisto tudo.

Questão de entropia, aposto. Ou de resignação, aposto mais ainda.

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Um dia começarei uma nova carreira: escritor, fotógrafo e barman. Três novas carreiras, como um chapéu espanhol.

No jodas. O meu universo próximo consiste em dormir, acordar amanhã,  não ter rigorosamente nada que fazer se não descongelar o frigorífico, continuar a digerir a raiva que tenho ao G. - está cada dia mais fácil - e pensar que qualquer dia estou numa praia perto de Lisboa a tentar convencer uma jovem senhora de que sou um homem decente.

Sou. Não foi fácil porque as coisas etc. mas sou.

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Um homem decente dorme, não escreve disparates.

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Equilíbrio delicado e difícil, não é? Entre o que as coisas são, o que aceitamos que sejam e o que fazemos para que não sejam.

Antepassados

Isto aconteceu na África do Sul, não me lembro se em Jo'burg se no Cabo. Era uma festa, uma manifestação pública. Lembro-me mal das circunstâncias.

Recordo perfeitamente que estava no hall de um hotel com um tipo pouco mais velho do que eu - eu andaria pelos quarenta e poucos e ele pelos quarenta e meios. Era um gajo grande, de óculos, publicitário. Tinha um sentido de humor fascinante e a repartida rápida dos publicitários. Conheceramo-nos dois ou três dias antes e estávamos frequentemente juntos.

Naquele dia o programa incluía danças tradicionais e o hotel estava cheio de grupos das diferentes etnias que compõem o país, vestidos com os respectivos trajes.

De repente damos de caras com um sujeito enorme, imponente, numa roupa tradicional feita de palha, cores vivas, uma espécie de saia encarnada e montes de colares a cobrir-lhe o peito. Parecia estranho porque estava sozinho, afastado dos restantes membros da sua comitiva. No emaranhado de colares, brincos e múltiplos artefactos que lhe cobriam a cabeça segurava um telefone portátil.

O publicitário olhou para o senhor, olhou para mim e disse-me: "Calling the ancestors".

Diário de Bordos - No mar, 07-04-16 a Shelter Bay, Panama, 15-04-2016

Antes de mais nada: a ver se percebo porque gosto tanto deste país de que gosto tão pouco.

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Não há ansiedade, mortal que seja, que resista a três dias de mar. Esta resistiu, mas é hoje uma sombra do que foi à largada de St. Maarten. Amanhã desvanecer-se-á, espero.

Que erro incompreensível! Acho que posso dar cursos de auto-sabotagem. Ou então, mais simplesmente, é o meu inconsciente a obrigar-me a fazer o que ele quer que eu faça e eu só entrevejo ou duvido ou hesito.

Logo se verá. Por agora só posso apreciar a beleza destes dias e lamentar o vento mais fraco agora que vou à popa do que foi das duas vezes que fiz este trajecto no sentido contrário, à bolina.

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Traga-me um noite estrelada, por favor. Mexida não. Talvez cozida. Bem cozida.

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Isto eram tudo ideias para desenvolver, mas parece-me que vão ficar para depois. A viagem correu bem, finalmente. Agora tenho um pequeno problema para resolver, mas que é isso comparado com o que poderia ter sido?

6.4.16

Diário de Bordos - Cole Bay, St. Maarten, Antilhas Holandesas, 06-04-2016

Pela primeira vez desde que cheguei a St. Maarten hoje trabalhei bem, muito, metódica e eficazmente. Acabei de colar os patches e pus um slide na grande, lubrifiquei a calha do mastro, pus protecções nos vaus e aparelhei o pano.

Quando estava a pôr um dos rizos, no fim disto tudo, cansado (devia dizer exausto...), caí e a cabeça passou-me a centímetros de um corrimão de aço que ma teria aberto em dois. Ou pelo menos feito uma boa mossa. Como se isto não fosse suficiente caí em cima dos coxins do poço que estavam dobrados. Ou seja, uma queda de quase dois metros acabou numa gargalhada e numa celebração da sorte.

Que também a tenho e quando a tenho vem em doses duplas ou triplas, em baldes muito maiores do que os baldes de merda que me calham tantas vezes. É por isso que estou vivo, não é?

Viva a vida! Que se foda a morte.

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Do resto não falo hoje. Logo se vê, como diria o ceguinho.

5.4.16

Karen Dalton, quase

Volto a Karen Dalton como a uma droga ("Não se ouve Karen Dalton, injecta-se", escrevi creio ontem e hoje é ainda mais verdade). Faz parte de um grupo restrito de cantores capaz de nos fazer ver o abismo.

E quase ter vontade de lá estar.


4.4.16

O livro da tua pele

Escrevo e cada letra é uma porção da tua pele. Faço frases inteiras percorrendo-te os membros um a um, o ventre, os olhos. Toco-te um seio, a "coivara dos dedos", analogia tão bonita que ardo só de a evocar, um lábio, um dedo do pé, o joelho e uma página escreve-se.

Estou na laguna. Mastros, Karen Dalton - uma descoberta musical que me faz perguntar como é possível? - alísios, rum Mount Gay, uma largada para breve. Como descrever-te tudo isto?

Pele infinita.

Karen Dalton - It Hurts Me Too

Diário de Bordos - Cole Bay, St Maarten, Antilhas Holandesas, 04-04-2016

Segunda-feira é provavelmente a pior música ao vivo do Lagoonies e em breve terei de me ir embora. O que é pena, porque hoje foi o primeiro dia de relativa descompressão desde que cheguei. Encontrei um tripulante - isto como sempre é para ser tomado com pinças. Até o ver no convés a largar os cabos não acredito em nada - e consegui levantar a pouca massa que tinha no banco aqui em St. Martin. (Chamar banco àquilo é um exagero de boa vontade, mas enfim). A verdade é que fui armado apenas com o passaporte e a senhora, simpaticamente, disse-me "não tenho de procurar o seu número de conta, mas vou fazê-lo". Encontrou-o, foi de uma simpatia inexcedível - isto na Banque Postale, um organismo cujos funcionários fazem os seus colegas públicos portugueses passar por modelos de colaboração e empatia - disse-me quanto lá tinha e hey, presto!, fui almoçar ao Arhawak. Que tinham chegado umas bavettes da Argentina e o tinto não estava mal de todo e a ucraniana toda sorrisos e o Jean-Paul é um tipo com quem eu simpatizo até à medula e que se lixe. A bavette estava realmente uma maravuilha, o tinto e a ucraniana ditto (o raio da mulher está igual hoje ao que era há cinco anos quando aqui vim pela primeira vez. Como é que as nórdicas fazem? Verdade seja dita tem pouco por onde envelhecer).

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Trabalho de uma maneira desorganizada, sem plano, ao acaso, como se estivesse perdido. Não estou, mas gostava de estar.

Ontem Jim propôs-me levar o C. para Cascais e depois ficar a tratar dele na Europa. Talvez seja a isto que chame estar perdido.

Não é. Já estava assim antes do jantar de ontem, com Jim e quatro ou cinco amigos daqui, aquilo a que em francês se chamaria les vieux de la vieille, gajos que ganharam dinheiro a traficar erva nas Caraíbas dos anos setenta e oitenta, que conhecem isto por dentro, por fora e por todos os lados e com quem eu sei que poderei contar muito mais do que com quem quer que seja.

A proposta de levar o C. para a Europa chega para me provar que nem tudo foi tempo perdido na minha vida. Falta a aprovação da senhora, que a priori não está muito seduzida pela ideia.

A ver vamos.

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Segunda-feira é realmente um mau dia aqui. Devia ter ido logo para a "varanda". Agora está tudo ocupado, natural e obviamente. Vou para bordo. Prefiro não ouvir música de todo a ouvi-la má e aos gritos.

2.4.16

Diário de Bordos - Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 02-04-2016

Venho ao lado francês. O objectivo era procurar um tripulante, mas perco-me num Planteur (a versão francesa do Rum Punch), num copo (ou dois) de rosé, nesta calma absoluta: não há barulho de motas ou carros a acelerar, o empregado não vem perguntar-me de cinco em cinco minutos se está tudo bem (está). Até o vento parece ralentir.

Esta - já aqui o devo ter dito algumas vinte vezes - é uma das coisas que me faz gostar de St. Martin: poder mudar de país em dois driver stop, please (faço questão no please. A norma dispensa-o). Um vai da marina até à Rotunda; o outro desta a Marigot. Dois dólares e cinquenta cêntimos, dois Driver, stop, please e muda-se de mundo.

Daqui a pouco vou às accras da Cisca, aos boudin créole e a um ou dois (se houver) crabe farci. Depois volto para bordo. Sem tripulante mas de alma cheia. (Não que tenha a alma na barriga. Não tenho, ou não tenho só. Mas rima com calma e dizer "volto para bordo de calma cheia" não funcionaria...)

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Gosto de Marigot, mas tenho a alma noutro lado, noutra praia. Quero chegar depressa a Los Angeles. Que estranho, não é? Estar aqui e ali e querer estar acolá e ser daqui e querer ser dali... Como se o mundo fosse uma pastilha elástica com a qual se fizessem balões que não rebentam.

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Mar. A viagem até ao Panamá vai ser rápida. Já a fiz duas vezes no sentido inverso, à bolina. Agora vai ser uma longa descida à popa. Vou fazer em oito dias o que da primeira vez me levou quinze e da segunda um mês - incluindo quinze dias na Jamaica, é preciso dizê-lo -.

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A ferida do pulso está quase fechada, quase tratada, como se o corpo tivesse decidido, ele também, concentrar-se no que é essencial e deixar de lado o que não o é.

Sobrevivi a quase todas as feridas que me fiz ou fizeram. Ou a todas, se considerarmos que ainda estou vivo. Cicatrizado, mas vivo.

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[Adenda]

Acabei por voltar de gipsy. Gosto desses táxis clandestinos que me deixam entrar a fumar e não me obrigam a pôr o cinto. Pago cinco dólares em vez de dois e meio, mas demoro menos de metade do tempo, não páro de cinco em cinco minutos e o homem só me diz para apagar o cigarro quando este está no fim. Não sei se fez de propósito, mas que foi elegante foi.

Que noite tão boa, tão St. Martinienne...

Talvez, sim

Talvez isto seja a vida. Ou uma vida. Navegar barcos, repará-los nos portos, beber uma cerveja numa esplanada anódina de St. Maarten porque o Soggy tem a música demasiado alto e o Lagoonies está longe, ser reconhecido na rua aqui, em Palma, em S. Luís ou em Bocas del Toro, conhecer uma embarcação como se conhece uma casa ou a mulher amada.

Não sei. Talvez.

Ou talvez seja antes descobrir a mulher amada, ser reconhecido na rua da aldeia, reparar a bicicleta, beber um galão frio com uma torrada no café da esquina enquanto se lê os jornais do dia, pedalar a bicicleta pela cidade de onde se é ou de onde se quer ser, como se é do mar nessa outra vida que não sabemos se é uma ou só a aparência de uma.

Um homem do mar pode viver em terra? Talvez. Mais do que um homem da terra pode viver no mar.

O mar dá-nos essa capacidade plástica de ser de onde se está, tarefa dificil para o terreno que é de onde veio, como se um pequeno acidente geográfico fosse suficiente para contrabalançar a duvidosa influência da Lua ou a mais do que certa existência de outros continentes, outros mares, céus diferentes e não necessariamente melhores.

Talvez não haja uma só vida, haja vidas que se alternam como as fases da Lua ou os períodos de hibernação dos ursos, que dormem metade do ano e comem mel e turistas e trutas a outra.

Talvez.

Talvez tu existas, meu amor e a vida seja isso que está no teu sorriso ou nos teus cabelos tão densos, quase impenetráveis como algumas vidas.

Talvez.

Sim.

Em caso de dúvida respondo sim: o não nada muda, é uma certeza, o não já o temos e fugir não foge. Já o sim é preciso ir buscá-lo, lutar por ele.

Sim.

Aceite-se portanto que sim há uma vida ou várias vidas e todas elas convergem para ti como naqueles desenhos pirosos de um sol atrás de uma nuvem com os raios a projectar-se em todas as direcções.

Isto é,  nós vamos contra as nuvens, não a favor delas. Os raios convergem, não divergem. Atrás daquelas nuvens há uma vida, à frente também. Uma é feita de barcos, azul ultramarino, tripulantes esgrouviados, cerveja e esplanadas numa espécie de paraíso tropical.

A outra - melhor - do que quisermos que seja.

1.4.16

Diário de Bordos - St. Maarten, Antilhas Holandesas; Atlântico, 10-03 a 01-04-2016


De novo em St. Maarten, de novo no Lagoonies. Cada um tem a casa que pode. Tenho sorte: as minhas são as mais bonitas do mundo.

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A travessia correu mal. Outra vez problemas com a tripulação. Claro que isto não pode ser só culpa deles. Alguma tenho também. Sei qual é: com a idade comecei a trocar a enorme dose de paciência que dantes tinha por uma igualmente grande de tolerância. Não sei se fiquei a ganhar com a troca, mas é irrelevante: nem eu fiz de propósito nem posso (ou quero) inverter o processo.

Há qualquer coisa de arrogante nesta mistura de tolerância: "sê o que queres ser" com falta de paciência: "mas não me chateies".

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Algumas notas de durante a viagem. Confirmo que não consigo conciliar a escrita e a navegação. Por um lado problemas físicos (fáceis de resolver, verdade seja dita); por outro de disponibilidade mental. Vão mais ou menos em bruto. Um dia terei tempo (e paciência?) para as editar.



Alguém cujo nome não recordo descreveu o avião como uma terra de ninguém. As viagens aéreas teriam segundo esse autor essa estranha característica (o "estranha" é meu, creio. Não me lembro o suficiente do texto para ter a certeza) de nos fazer passar de um país a outro por intermédio de um território vazio, neutro, morto (e mortal, pelo menos de aborrecimento). Nada mais verdadeiro.

Escrevo no poço de uma embarcação de vela na qual saí ontem do Funchal com destino a Panamá na melhor das hipóteses ou St. Martin se não.

Vou demorar três ou quatro semanas a chegar e vejo quão diferente é o mar. Não é uma terra de ninguém: é de todos. Não é neutro e muito menos vazio. O mar vive e nele se vive, mexe connosco literal e simbolicamente, mata e faz viver.

Talvez seja por isso que chegar de barco a um sítio qualquer é tão diferente de chegar por outra via qualquer: antes de chegar, entre a partida e a chegada mudou-se de vida, mudou-se a vida, mudámos nós. Chegamos diferentes do que largamos porque o mar nos fez viver.

No mar não se pode ser ninguém.

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Esta sexta-feira passou num instante. Apanhámos finalmente vento, se bem ainda um pouco variável. E vimos orcas. Um par delas, aos saltos perto do barco. Foi a primeira vez que vi orcas tão perto.

Enfim, penso que são orcas. Parecidas eram, mas no Funchal vi uma das empresas de observação de baleias anunciar "False killer whales".

A averiguar. Que eram bonitas eram. Resta saber se são verdadeiras ou falsas.

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São onze da noite. Vou amurado a bombordo, com quinze nós de vento pelo través. Decidi ir para Sul: tenho uma depressão bastante cavada na proa e arrisco-me a apanhar porrada da grossa. Como sempre o SB avança bem. Sete oito nós nas calmas, sem esforço aparente, elegante como um bailarino em pontas.

A noite ainda está fria, mas nada que se compare às anteriores. Não se vê a ponta de um chavelho. Que raio, para quando as doces noites tropicais? E melhor ainda: para quando as doces noites tout court? Apre que nunca mais é Maio...

E é isto. Com o problema da electricidade aparentemente resolvido o dia foi-se que não o vi passar.

E o quarto. Falta meia hora e é como se ainda agora tivesse começado. Há dias assim: parecem minutos.

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Hoje mudei o penso. Está a evoluir bem. A pomada antibiótica tratou do princípio de infecção que tinha aparecido. Terça-feira devo poder tirar os pontos.

É todavia forçoso reconhecer que o espanto do enfermeiro da clínica que foi chamar o médico era justificado. O raio da ferida é feia.

(E o médico do hospital que coseu esta porcaria bem podia ter dado um ponto ou dois mais).

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Não há um pum de vento outra vez. Vou esgotar esta noite e amanhã um dos dois dias que tinha de reserva de combustível.

Ou seja: vou mesmo ter de parar em St. Martin.

É uma chatice, mas verdade seja dita: há-as muito piores.

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Uma hora depois de ter escrito isto o vento apareceu e com ele a esperança de poder não parar em St. Martin.

A noite chega, encantada e encantadora: com mar chão mesmo à bolina o SB faz seis nós em dez de vento real.

Já saímos dos trintas de latitude. Estamos nos vinte - e muitos, é certo. Mas é nos vintes que estão Câncer e Capricórnio, não é? É. E muito antes do primeiro teremos calor e alísios -.

Por enquanto calor só durante o dia. E de alísios nada. É como se estivéssemos numa estrada no campo à espreita da primeira entrada na auto-estrada.

Sabemos que há uma mas não quando. Entretanto vamos andando: a estrada é bonita e vai na boa direcção.

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À bolina, claro, ou não me chamasse eu Luís Miguel Serpa. Não é muito surpreendente, verdade seja dita: ainda estamos nos vinte e muitos de latitude. Devemos estar a apanhar o limite Sul de uma depressão monstruosa que atravessa o Atlântico lá para cima. Quando acabarmos de nos cruzar deve entrar Norte, o vento que espero nos levará até aos alísios.

Por enquanto não estou preocupado: estamos no rumo, o mar continua quase de senhoras, o SB avança bem. A questão é saber se entre o Sudoeste que tenho agora e o Norte do fim da depressão terei muito tempo de Oeste. Mas como é uma pergunta cuja resposta só chegará em "tempo real" deixo-a para quando sua majestade o momento real chegar. Por enquanto para a frente é que é o caminho.

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Outra vez o maldito motor. Ponta de vento. Pus de lado a ideia de chegar ao Panamá. Chegar a St Martin já vai pedir duas ou três acrobacias com o combustível e com a comida (esta menos, é certo. Entre o que temos e que vamos pescar vai chegar).

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No Funchal há dois shipchandlers. Um fica na Marina e deve ser evitado, excepto por quem gosta de ser enrabado ou, dito de forma menos popularucha, enrolado, enganado, roubado, expoliado, embarretado e por aí adiante. O outro fica na rua em frente e é o que vou usar da próxima vez que por ali passar.

A qual gostaria fosse muito em breve, verdade seja dita.

Esta viagem tem sido rica do ponto de vista das escalas: Palma de Mallorca, La Linea, Funchal, St. Martin se não conseguir evitar lá parar...

Ate me custa pensar que quero evitar St. Martin mas quinze dias em Palma, mais de uma semana em La Línea e quase uma no Funchal são paragens a mais. Dos cem dias que tinha já lá vão quase metade e ainda não estou no Pacífico nem nada que se pareça.

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Que noite sublime. Fossem todas assim e a vela seria mais popular do que o futebol. (Felizmente não são e nunca será).

A Lua em quarto crescente mesmo por cima de mim e ao lado de Órion. Vento Sueste dez onze reais entre a amura e o través de bombordo. Mar calmo, de senhoras. Raras nuvens: a visibilidade é perfeita. Vejo as estrelas, o horizonte a toda a volta, a esteira do SB, que ligeiramente adornado "pula e avança" como se quisesse, ele também, recuperar o tempo que perdemos.

Volto a ter esperança numa ida directa para o Panamá. Não é impossível.

À popa por bombordo tenho um planeta que penso ser Marte [era Júpiter]; a estibordo a Ursa Maior. Do mesmo lado para ré do través a Polar. Ligeiramente para vante e mais altos os fiéis Gémeos.

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Hoje tirei os pontos. Está um bocadinho infectado mas nada do outro mundo. Carreguei-lhe com a pomada antibiótica e deixei-o ao ar livre um bom bocado. Confesso que estou farto desta ferida. Ainda por cima vai deixar uma cicatriz horrível. Que estupidez foi aquela queda.

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Por muito multicultural que se seja há sempre coisas que não lembram nem ao diabo, quanto mais a um pobre diabo como eu.

Hoje deixei um salpicão cortado às rodelas para comermos como snack. B. não lhe tocou: não sabia se era para comer cru ou se tinha de ser cozinhado.

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Aqueles dos meus leitores que paciente e generosamente me lêem há algum tempo lembrar-se-ão talvez da minha constante preocupação com os sapatos. Por razões de peso - peso literal, aquele que as balanças dos aeroportos medem, os meus ombros portam quando tenho de andar com o saco às costas e a minha carteira desconhece - só tenho um par de sapatos (para além das botas de mar, claro).

Esses mesmos leitores, coitados, leram a minha desilusão com a marca Foreva, a fraude que foi o calçado Land Rover comprado no Panamá, a alegria que me deram uns sapatos adquiridos em Sitges, em saldos, cuja marca esqueci.

Tenho de me render à evidência, pôr o patriotismo sapateiro no armário de onde nunca, de resto, devia ter saído e reconhecer a superioridade dos nossos vizinhos espanhóis no que respeita ao fabrico de calçado.

Porto presentemente sapatos da marca Zara Man que me foram oferecidos há quase um ano (nove meses, para ser preciso) por uma jovem e bonita senhora que se apiedou pelo estado do par que trazia à chegada a Lisboa. No limite do praticamente novo ou até para lá - ou seja, inutilizável -.

Pois bem: os sapatos Zara Man têm-se aguentado como há muito tempo não via. Três hurras e um hip à Zara, man. Só agora, ao fim de nove meses de uso quase constante deixaram de estar novos. E ainda deve faltar um valente par de meses (ou mais porque em breve chegarei às latitudes descalças) para entrarem na fase praticamente novos - na qual se manterão, aposto, um largo período de tempo -.

Deixo aqui expressa a minha gratidão à jovem senhora (a quem de passagem desejo as maiores felicidades e que o seu namorado actual tenha sapatos decentes) e à Zara Man.

(Não são infelizmente muito apropriados para andar a bordo. Mas como disse em breve estarei nas latitudes descalças e isso deixará de ser um problema.)

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Leio Derrida pela primeira vez (a minha relação com as modas, quaisquer que elas sejam é difícil e baseada numa assincronia absoluta). O livro é um conjunto de dois textos que ele apresentou num congresso de escritores (ou coisa que o valha). O primeiro (do qual estou bastante no início) chama-se Cosmopolitismo e estuda a ideia de uma rede de cidades livres (villes franches no original) na qual seriam acolhidos todos aqueles que nelas procurassem refúgio.

Que ideia tão bonita! Cidadãos acolherem outros cidadãos, seus semelhantes, seus iguais!, sem a interferência de políticos, ONG, padres, freiras ou mullahs. (Devo confessar que ainda não cheguei à parte onde ele explica o conceito. Por enquanto só o vi mencionado como um desiderato. Mas é assim que o imagino).

A imigração é um direito e um problema, eu sei. E os políticos terão sempre uma palavra a dizer, obviamente. Mas a ideia é sedutora.

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"Quid est in territorio est de territorio". É no On Cosmopolitanism que leio esta frase, da Idade Média.

Idade Média? Ao privilégio de ter alguma da música mais bonita que jamais foi feita junta-se agora o de um dos princípios mais belos jamais formulado.

Durante muitos anos vivi pensando que o meu país é aquele onde estou. Aos poucos fui mudando: o meu país é Portugal e eu um nómada que o leva comigo para onde quer que vá. Agora vejo que há mil anos alguém resumiu o problema de uma forma sublime. Se estou aqui sou daqui. Se não quero ser daqui vou para de onde quero ser.

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Saio de quarto com uma noite completamente diferente. Em menos de uma hora o céu cobriu-se e o vento subiu um grau na escala de Beaufort. O AV já não pula: avança desabridamente.

Com a velocidade o vento aparente foi mais para vante, claro, e agora estamos num ângulo um pouco mais fechado. Mas o mar continua calmo e depois destes dias de calmaria a velocidade é um prazer infinito, inesgotado, lindo como estava a noite há pouco.

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Bolina cerrada! Vá lá que pelo menos não tenho de fazer bordos (e há vento).

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O mar perdeu a ingenuidade. Está formado, claro. E com este vento de merda quase não avançamos.

O SB bem se esforça, verdade seja dita. À mais pequena rajada parece que salta. Mas a milagres ninguém nem nada é obrigado. E não é com doze nós de vento na amura e o mar dos vinte de hoje de manhã que lá vamos.

Esta porcaria devia rondar a norte. Espero que o faça depressa. Cada dia me parece mais difícil ir directamente ao Panamá.

Ainda por cima ontem perdemos um montão de água doce da forma mais estúpida possível: alguém deixou uma torneira entreaberta numa casa de banho. Quando liguei a bomba a água começou a escorrer e só demos por ela quase quarenta minutos depois. Alguns cem litros para o galheiro. É difícil dizer a raiva que sinto.

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Pronto. Foi-se a última gota de esperança de não parar em St. Martin. Tive de mudar o tanque de água. Ou seja, temos duzentos litros. Dá para duas semanas à vontade e três apertado. St. Martin à vontade (temos estado a gastar um pouco mais de dez litros por dia) e Panamá apertado. Não posso arriscar. Dois dias parado e fico sem água doce a bordo.

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Quinta-feira 17/03

Dir-se-ia que a viagem começou hoje...

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A ideia de Derrida é totalmente irrealista. Mas é linda. Adoro inteiramente: o irrealismo de uma ideia nunca foi suficiente para me afastar dela.

Adiro igualmente à sua opinião sobre o perdão: só o que é imperdoável pode ser perdoado. Um pouco como a liberdade de expressão, que só se aplica ao indizível.

Derrida diz ainda que o perdão "político" não é o verdadeiro perdão. Este é pessoal, da vítima. Se a vítima morreu o perdão morre com ela, porque ninguém se pode pôr no lugar dela para perdoar.

Acho que se pode extrapolar e aplicar o conceito à solidariedade: sou contra os impostos redistributivos porque a solidariedade é minha, não do Estado e este não pode ser solidário em meu nome.

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B. é uma espécie de prodígio de rigidez mental num corpo jovem e um sorriso desafiante. Hoje disse-me que não bebe café porque não quer tornar-se "numa daquelas pessoas que precisam de café para começar o dia". Explica-me que em toda a sua vida bebeu um café "por engano". Perante o meu olhar interrogativo continua: "alguém me fez um café e eu fui demasiado polido para recusar".

Não gosta da minha cozinha. "Demasiada carne de porco". Em cada o seu prato habitual é "legumes cozidos". Come muito pouca carne.

(G. partilha a opinião sobre o porco. Eu também).

B. é um tripulante adorável. Sério, não pretende saber mais do que o que sabe e o que sabe faz bem. Gosta de governar e muitas vezes desliga o piloto. Governa bem, concentrado, atento. Antecipa as guinadas e não usa demasiado leme.

Se eu tivesse um bocadinho mais de paciência puxaria um bocadinho por ele. Infelizmente não tenho. A minha paciência foi toda substituída por uma inesgotável carrada de tolerância.

Não julgar os outros, não esperar nada deles, aceitá-los como são é uma forma de arrogância, não é? De distância, de afastamento.

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O vento voltou e com ele a esperança e o bom humor. Dia 30 ou 31 estaremos em St. Martin (agora já não há dúvida).

Vou para a Lagoonies Marina. Se St. Martin é a minha casa o Lagoonies é o meu quarto.

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Comprei uma quantidade enorme de enchidos e de porco, sobretudo entremeada. Está tudo farto, eu incluso.

Quero poder fazer compras todos os dias, se possível num mercado. E ir ao cinema. E escrever no meu computador sem ter de me preocupar com a bateria. E andar na minha bicicleta Vitus Turbo azul, tão linda que até me dói só de pensar nela.

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Não bebes café, não bebes chá... És um asceta, B.

B. não sabe o que é um asceta. G. tão pouco. Quando lhes explico, G. declara que a filosofia é aborrecida. Tento hedonismo. Também desconhecem.

Foi por coisas como esta que há muitos anos parei de fazer vela. Algo me diz que desta não estou muito longe.

É curioso. Costumo dizer que não sou um intelectual que navega; sou um marinheiro que sabe ler.

Mas os intelectuais tão pouco me aceitariam como um deles: os meus conhecimentos são básicos, primários, insuficientes.

Entre duas águas, dois mundos, duas vidas. Só quando morrer me integrarei verdadeira e definitivamente.

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Vinte e três graus e vinte sete minutos de latitude. Entramos geograficamente nos trópicos. Frios, demasiado frios; e tristes. Os dias passam depressa mas eu quero chegar mais depressa do que eles passam.

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Fiz pão. Não vai ficar grande coisa, mas enfim. O próximo será melhor.

Talvez.

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Pouco a pouco os marcos que costumo usar nas viagens grandes aproximam-se: 1317 milhas até à chegada (metade da viagem na carta); 40 graus de longitude (longitude mediana); 1000 milhas até ao destino (menos de quatro dígitos).

A seis nós, seis e meio vamos mais devagar do que poderíamos ir e mais depressa do que já estivemos: passámos dias de nem cem milhas fazermos.

Chegamos no fim do mês. 31 de Março ou 1 de Abril. Está quase. Mais dez dias. Se passarem tão depressa como os onze que levamos vai ser um abrir e fechar de olhos.

A Lua está quase cheia. O planeta que tem ao lado é Júpiter, creio. B. mostrou-me há pouco uma aplicação que tem no telefone chamada Google Star, ou Sky. É um mapa das estrelas hiper bem feito.

Vou poder reencontrar muitas das estrelas que conhecia quando navegava com sextante e depois esqueci: Fomalhaut, Arcturus, Capella, Pollux, Alderaban...

Gostava de saber o que é feito do Gérard, astrónomo amador e gago que atravessou comigo o Atlântico em 83 ou coisa que o valha. Todos os dias, de manhã e à tarde me preparava as observações com quatorze ou quinze estrelas (normalmente preparam-se sete).

Enfim, preparavam-se. Sextante agora é para saudosistas e militares americanos, que vão reaprender a usá-lo não vão os terroristas deitar abaixo a rede GPS.

Espero que não seja amanhã a véspera desse dia. Se Deus existisse o GPS seria uma das provas da sua existência.

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Hoje passamos dois marcos importantes: o meridiano mediano da viagem (40 W) e a metade da distância na carta (1317'). O próximo é as mil milhas: a distância passar de quatro para três algarismos. O seguinte é a chegada.

O dia está lindo, temos tido vento (se bem não tanto quanto eu gostaria. Mas enfim, melhor do que nada) e a energia só hoje começou a dar sinais de que pode vir a haver um problema. Até aqui temos conseguido fazer doze horas entre cada carga de baterias.

Ou seja: tudo estaria bem no melhor dos mundos não fosse esta vontade de chegar.

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Mais uma pega com G., que começa seriamente a implicar-me com o sistema. Se não aguenta a privação de tabaco não deixe de fumar.

Excedido, disse-lhe que não preciso dele para nada (é verdade é ele sabe-o). Quando acordei a minha casa de banho estava limpa de brilhar.

G. tenta compensar as suas deficiências em navegação com as limpezas, mas desta vez excedeu-se. Se há coisa que detesto é graxistas, lambe-cus e afins; além disso ele sabe - porque eu lhes disse - que não quero que eles limpem a minha área do barco - do meu camarote e da minha casa de banho trato eu. (Admitidamente estava bastante suja mas chateia-me gastar água - que boa desculpa- a limpar uma coisa que sou o único a usar e a sujar).

Para compor o ramalhete: não me acordou para o quarto.

Resolvi fazer pão. A noite está sublime: quinze nós de vento, lua cheia, o S. B. calmo, tranquilo como um corredor de fundo. De maneira fiz pão. No poço ao luar. A raiva passou - passam sempre e depressa, de qualquer forma - e de manhãzinha haverá pão para quem estiver de quarto.

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Estamos quase a chegar - falta uma semana, se o vento não nos pregar grandes ou prolongadas partidas - mas o calor não está à nossa espera.

Está coisa do aquecimento global tem que se lhe diga. Quanto mais não seja, o dinheiro que já se gastou com aquilo daria para aquecer o planeta três vezes e não andar aqui um gajo cheio de frio nos vinte e um (e muitos) de latitude. Norte, acrescento porque ainda ontem foi o equinócio.

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Os chineses têm um provérbio segundo o qual metade de uma viagem de cem li não são cinquenta li. São noventa.

Hoje chegamos a essa metade final: vamos passar a marca das mil milhas. Isto é, a partir desta noite vão faltar menos de mil milhas para a chegada. Uma semana, à velocidade que temos vindo a fazer.

Largámos do Funchal faz hoje duas semanas. Foram longas, mas passaram depressa. Espero que esta última passe igualmente depressa.

Estou ansioso por chegar. Nada tenho em comum com esta gente. Nem o mar: o meu é diferente do deles.

G. está na sua quarta travessia do Atlântico e hoje estava espantado por haver ondulação de duas direcções diferentes. Que vêm estes gajos fazer para aqui?

Chatear-me é só parte da resposta, não é a resposta toda.

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B., o homem que não conhecia a palavra asceta (verdade seja dita que G. tão pouco) não sabia que se pode fazer queijo de ovelha.

E ri-se quando eu falo de queijo de ovelha como se eu fosse de outro planeta.

Queijo de ovelha.

Não sou eu quem vem de outro planeta.

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Daqui a duas horas é sábado. Quem pensava que nunca mais era sábado enganou-se redondamente. Com vinte, vinte e cinco nós de vento o SB voa.

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Entro de quarto à meia-noite e provavelmente terei de rizar, por causa do pano. Está colado contra os brandais como uma t-shirt molhada contra as mamas de uma senhora bem provida.

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Mais uma conversa com G. Não será a última, tenho a impressão. Pelo menos lá reconheceu que terá sido "inutilmente rude".

O problema foi o tabaco; mas não só. O homem é um diabo e vou ter de o aguentar mais dois meses.

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"Fez-me sentir que não sou parte da tripulação". B. referia-se ao aprovisionamento no Funchal, que não foi muito bem feito. Por uma razão qualquer eles não perceberam que estavam ali para escolher as coisas de que gostam e queriam comer durante a viagem, eu excedi-me na carne de porco e nos enchidos e ao fim de uma semana eles já não podiam ver entremeada no forno com farinheira. Ainda por cima B. é meio vegetariano...

O sacana fez-me chorar. Tenho como principal prioridade fazer uma tripulação unida, fazer que todos se sintam bem e dizer-me aquilo foi como se me espetasse uma faca.

Em St. Martin vamos corrigir isso, B.

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Mais una dias e a Lua estará em Quarto Minguante. Por agora ainda está bastante grande e ilumina suavemente a noite. A Ursa Maior já está de cabeça para baixo. O vento mantém-se nos dezoito vinte, vinte e cinco nas rajadas e o SB voa, claro. Cheira-lhe a casa.

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As coisas com o G. parecem melhorar. Engoli alguns sapos e ainda não pus tudo para fora. Só em St. Martin, depois de ele ter fumado um cigarro (ou um maço deles, mais provavelmente) e bebido umas cervejas é que vai ouvir o resto.

O fdp arruinou-me a viagem. Uma travessia atlântica num veleiro não são nem o momento nem o local certos para se deixar de fumar.

Passámos há bocadinho a marca das quinhentas milhas. Amanhã a esta hora faltarão trezentas e cinquenta. Depois duzentas e depois estarei em casa.

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O G. está mais ou menos controlado. Agora é a vez do B. Verdade seja dita que hoje fui um bocadinho bruto com ele. Ainda estava furioso com a história de ontem à noite: vinte nós de vento à popa e eu pendurado no mastro porque o cabo do lazy-bag estava entalado no moitão. Peço-lhe para ir ao pé do mastro dar-me um bocadinho de folga e diz-me que não!

E eu lá em cima, agarrado com uma mão, vagas de três metros, o mastro de um lado para o outro. Ainda me engasgo só de pensar nisto. Depois lá consegui desenrascar aquilo e vim para baixo exausto.

Hoje saiu-me, claro, e o menino fez birra. São quatro da tarde e ainda não saiu do camarote.

Que raio de vida esta! Só me apetece mandar isto tudo para o c... e ir para casa.

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B.: aquela cabeça é um poço de certezas. Tentar encontrar uma dúvida ali dentro seria como procurar um prato de spaghetti alla bolognese numa escultura do Miguel Ângelo..

Que tristeza!

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Medo? Claro que tenho. Só os idiotas não têm medo. O medo alerta os sentidos, aguça o pensar e ajuda a fazer as coisas mais depressa e melhor.

Um gajo aproveita-se do medo e deita-o fora quando já não precisa dele. O contrário é coisa de cobarde, não de homem.

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O B. acaba de me dizer que desembarca em Marigot. Que bom. Não suporto cobardes, não consigo conviver com eles.