29.4.05

There's no place

"There's no place left to go"..., canta o Nick Cave, - "excepto a casa onde agora habitas, a da memória" - acrescento sem querer.

26.4.05

Retratos imaginários

- Vou passear os cães, - dizia-me. Referia-se a um pastor alemão e a um filho doente mental, que caminhava de cabeça murcha e sorriso leal. - Como um rafeiro, - explicava-me desgostado.

Gramática do amor

Quero amar-te, escrever-te letra a letra, milímetro a milímetro de pele, pôr os pontos nos seios e no teu ventre um ponto final, parágrafo; quero escrever-te, amar-te, em cada olhar uma oração, em cada silêncio uma sílaba, em cada desejo um verbo; quero amar-te e escrever-te em versos livres que és a minha prisão favorita, a minha gramática, a semântica dos meus sentidos, o predicado da minha vida, o tempo do meu futuro, um presente que o presente me deu.

Quero amar-te e escrever-te em longas frases silenciosas todos os dias, todo o dia, e dizer-te que quero percorrer-te letra a letra, sílaba a sílaba, palavra a palavra, murmúrio a murmúrio.

22.4.05

Retrato

Um "chico esperto" que nem esperto era.

Adjectivos

Costuma dizer-se que a burocracia portuguesa é Kafkiana. No meu sector de actividade, não é. É doentia - no sentido em que é o resultado de uma mente doente, de um espírito doente.

Desabafo

Como se a amizade fosse coisa de somenos.

Diálogos possíveis

- Sabes, já cheguei a uma idade, e a um peso, em que o olhar é mais importante do que os olhos, a palavra mais importante do que os lábios que as pronunciam, a inteligência mais do que os cabelos que a cobrem.
- Pois, estás velho e gordo.

20.4.05

Incompreensão

Uma coisa que não consigo perceber: porque é que pessoas que nada têm a ver com a Igreja, que não são católicas e não pensam vir a sê-lo, estão preocupadas com a escolha do Papa? Confesso que este Papa tem para mim a importância que tem o meu primeiro biberon, as fraldas que molhei em pequenino ou o que vai Sócrates comer amanhã ao pequeno almoço.

Contudo, a esquerdalhada anda por aí aos saltos, a dizer que foi uma má escolha. Se fosse, deviam estar contentes: "se o eu inimigo está a fazer um erro, ajuda-o", dizia já não sei quem.

É como se eu me preocupasse com a escolha do novo Dalai Lama. Qu'est-ce que l'on s'en fout, du Pape...

Provérbio chinês

"Metade de uma viagem de 100 li", dizem os chineses, "não são cinquenta li; são noventa". E metade dessa metade, acrescento eu, não são noventa e cinco: são noventa e nove.

19.4.05

Diálogos possíves

- Porque é que estás a olhar para mim assim?
- Porque a acho muito bonita.
- O que tu queres sei eu.
- Não, não sabe: as minhas apreciações estéticas não se convertem imediatamente em pulsões eróticas.

Serviço Público / Lojas de Discos

Uma loja de world music, jazz e música clássica, com discos como "Calypso Is Like So..." de Robert Mitchum? E com o catálogo do Smithsonian? E com funcionários simpáticos, disponíveis e conhecedores? Sim, aqui:

MC, Loja de Discos, na Rua Tomás Ribeiro, 65, Loja C-01, 1050 Lisboa (Picoas Plaza). Tel.: 213 172 038; mcloja@mail.telepac.pt; www.discantus.pt. Tdos os dias das 10 às 22h.

17.4.05

Semântica teológica

O contrário de bom é mal, e o de bem é mau.

16.4.05

Personagens possíveis

Era filha de uma puta de Singapura e de um marinheiro grego, e maricas, que um dia de passagem no porto não encontrou miúdos, nem graúdos; atazanado pelo desejo foi com uma mulher. Não deve ter sido muito desgradável, porque continuou a vê-la cada vex que passava por lá.

- Uns anos depois nasci - disse-me. - Não sei como, com o que ele gostava de sodomia... deve ter-se enganado.

Nunca lhe perguntei como é que ela sabia que o pai preferia a sodomia, e ela nunca mo disse. Conheci-a num avião, um metro e quase oitenta de mamas gregas e de olhos orientais, a inteligência mais céptica e irónica que jamais me foi dado encontrar. Iamos os dois para Genève, onde ela era intérprete.

À chegada convidei-a para jantar, e ela disse-me que tinha o namorado à espera. Convidei-o também. Ele revelou-se fraco bebedor. Depois do jantar, deixámo-lo a vomitar contra um poste de electricidade.

- Vamos para tua casa - disse-me. - Naquele estado de nada me serve.

Penélope - não é o seu nome verdadeiro, mas é assim que lhe chamarei - tinha uma visão utilitária, e egocêntrica, da vida; nunca seria capaz de dizer, por exemplo, "naquele estado de nada serve", ou "coitado, vamos levá-lo a casa". Fomos para minha casa.

Aubaine

Constipado até ao cerebellum, aproveito a ausência total de paladar para beber mau vinho e comer um chouriço deplorável e assado. Não tenho paladar! Quelle aubaine, para quem não quer festejar.

Certezas (Ou: nada de novo debaixo da Lua)

O que nunca foi nunca será.

15.4.05

Serviço Público / Restaurantes (Paris)

(Ou: a Paris dos parisienses)

Le Beau Violet - minúsculo restaurante corso, onde se come deliciosamente bem - 92, rue des Entrepreneurs, 75015 - 01 45 78 93 44;

Cana'bar - uma pequena tasca adorável, barata, perto dos teatros de Montparnasse - 22, rue Raymond Losserand, 75014 - 01 43 22 92 15;

Le Ciel de Paris - Tour Maine Montparnasse, 33 avenue du Maine, 75015 - "barato" não é exactamente o qualificativo para este restaurante (onde crítica avisada diz que se come muito bem) - mas que tem a melhor vista de Paris, disso não há dúvidas. No 56º (ou 59º?) andar de um dos prédios mais altos da cidade - 01 40 64 77 64;

Restaurant Créole - Armelle et Henry - Cozinha das Antilhas Francesas e da Guiana - 3, rue Audran (métro Blanche ou Abbesses), 75018 - 01 42 52 36 97;

Brasserie du Commerce - rue du Commerce (não tenho números), 75015 - uma grande e bonita "brasserie" típica, onde se come bem num quadro bonito.

Bar "Le Baroudeur" - não é bem um restaurante, mas é em Paris..., mais precisamente na praça das Abbesses. Qualquer bar com esse nome beneficia de um preconceito favorável, mas este merece-o - ou melhor, confirma-o - inteiramente. 01 46 06 00 79

Ratatouille

Beringelas
Courgettes (de casca fina. Se tiverem a casca espessa, descascar às tiras).
Pimentos encarnados
em igual volume, cortados aos cubos.

Alourar em azeite, SEPARADAMENTE. Quando bem dourados, pôr numa panela de fundo espesso com um pouco de azeite, cobrir e deixar cozer. Estando os legumes quase cozidos, juntar um ou dois tomates frescos (esta etapa é facultativa).

Uma vez cozidos, juntar alho e salsa picados, sal e pimenta.

É bom. E muito melhor no dia seguinte, frio.

(Receita de S.S., provençal verdadeira, e bela).

10.4.05

Tri-terapia

Um ventre e dois seios: eis o melhor ansiolítico e anti-depressivo que conheço.

(Este post é um plágio - reconhecidamente grato - deste post do Somatos).

8.4.05

Papa

Mais de metade das pessoas que foi ver o Papa não seguiu, provavelmente, aquilo que ele disse - nem à letra, nem à sílaba, nem mesmo à palavra.

Porque lá foram, então? Provavelmente porque estão fartos de relativismo.

5.4.05

Foi por isso

Foi por isso que hoje ele saíu do escritório mais cedo do que o habitual, de gabardine e chapéu Borsalino na cabeça, apesar do sol e do calor plácido do fim da tarde. Os prédios da Costa do Estoril, até ao forte de S. Julião, estão entre o côr-de-rosa e o laranja - uma côr que apesar de ser frequente nos dias de verão nunca deixava de o encher de um amor profundo por aquela baía. Duas raparigas, ambas na casa dos 30 anos, passam por ele.

-É bom, acordarmos às 3 da manhã com o desejo dele todo dentro de nós, não é? - perguntava uma.

Não ouviu a resposta: elas iam em sentido contrário e já estavam demasiado longe. Podia ter-lhe respondido que é bom, acordarmos às três da manhã e ter onde pôr o "desejo". Mas elas já iam longe, e tinham - pelo menos uma - quem lhes satisfizesse a noite. Mais tarde lembrou-se que talvez não tivesse sido "desejo" o termo que ela utilizara.

O chapéu, Borsalino de marca, é castanho e de feltro espesso. Foi-lhe deixado pelo pai, que morreu há pouco. Enche-o de calor, tal como a gabardine.

II

Por isso hoje saíu do escritório mais cedo, de chapéu Borsalino na cabeça e gabardine; as pessoas com quem se cruza estão de T-shirt, e falam de amor, de desejo, de como é bom não estar sozinho. Ele sabe-o; por isso, cada vez que chove em Madrid põe o chapéu e a gabardine, porque continua a amá-la. Há pouco mais de um ano ela dissera-lhe que não o queria ver, "nunca mais!".

- Nunca mais! Cheiras a morte, pareces um andaime de lágrimas. - Era espanhola e ele chamava-lhe Negra, por causa dos cabelos pretos como um dia de chuva. Quase todas as semanas ia a Madrid vê-la. Desde a separação continuava a ver o boletim meteorológico de Espanha, e vestia-se como se estivesse com ela, naqueles braços franzinos mas fortes, como se tivesse a seu lado o sorriso vivo dela, como se tivesse com ele o desejo que ela lhe despertava, quando voltavam para casa depois de uma noite de copos e riso e conversa e reencontro.

III

Está calor; a luz enche os prédios da Linha com uma côr que ele vê todos os dias semelhantes ao de hoje, mas na qual não reparava há muito tempo. As pessoas passam por ele, falam de amor, da vida, de tudo e de nada, fazem planos para a noite, ou para amanhã, sábado. Ele pensa nela, no restaurante onde se conheceram através de um amigo comum, na paixão súbita que sentiram um pelo outro, naquele ano e meio em que se tinham visto quase todas as semanas, nas longas caminhadas que faziam quando ela vinha a Cascais ou ele ia a Madrid, no seu riso, que saía dela como uma onda que se enrola antes de chegar à praia. Há um ano que o deixara, um ano negro como negros eram os cabelos e luminosos os olhos, o olhar. Um ano de solidão, um ano perdido - "estar sozinho é como viver metade", pensava. "Tudo é metade, excepto o sofrimento, que é a dobrar".

As pessoas passam por ele; algumas riem-se da gabardine, e do chapéu, um verdadeiro Borsalino; no largo da Câmara Municipal um casal disputa-se. Ele está dentro do carro e ela, de pé do lado de fora, diz-lhe:
- Não te vás embora, John, não te vás embora. É uma estupidez, o que estás a fazer. I didn't mean what I said. - Falava metade em português, metade em inglês.
- Devia ter feito isto há mais tempo - responde o homem. E arranca bruscamente com o carro, deixando-a ali especada, magra, loira, vazia.

Está calor. De vez em quando pensa que só ouve fragmentos dos diálogos, que nada sabe daquilo que o rodeia. A sua vida é um fragmento, ele próprio não passa de um fragmento. Não conhece ninguém, nunca foi a um bar beber um copo quando ela não está cá. Não sabe sequer o tempo que fará amanhã em Cascais - só conhece a previsão para Madrid. Não é de onde está, como a roupa que traz.

Quando chegou ao alto da Avenida D. Carlos I despiu a gabardine, e juntamente com o chapéu atirou-a ao mar.

3.4.05

Retrato imaginário

Por generosidade pura, pensavam elas, ele abandonava-se a todas as que o demandavam.

Mas para ele era uma surpresa, a cada vez renovada. O que elas tomavam por generosidade não passava de curiosidade.

Opção 2:
Para ele era uma surpresa, a cada vez renovada, que alguém o quisesse. Ele acedia, não por generosidade, mas por gratidão.

2.4.05

Anacletices

Com as habituais indigência e desonestidade intelectual, Daniel Anacleto Oliveira escreve no Expresso sobre a revista Atlântico. Termina dizendo: "Moral da história: ao contrário do que dizem, é possível viver sem o mercado. Basta ter os amigos certos". Daniel Anacleto Oliveira sabe do que fala, mas engana-se de alvo: onde se podia viver com os amigos certos em vez do mercado era nas economias que ele defende. Mais: nesses países os amigos certos eram essenciais.

A direita portuguesa pode ser tudo o que se quiser - mas a esquerda não lhe fica atrás.

Tristeza

Há um lado cansativo na tristeza que a torna insuportável, tanto quanto a tristeza ela-mesma.