28.5.17

Nocturnos

A história é outra: saí de bordo para beber um copo. K descobriu agora - a seis ou sete horas da largada, sendo essas horas nocturnas - que se lhe acabaram os comprimidos para a diabetes. Coisa completamente imprevisível, claro.

Felizmente a Internet e o Google estão sempre ao seu (meu) lado. Os comprimidos dele são os mesmos que os meus, excepto na cor e no nome. No resto são iguais, sendo o resto naturalmente o mais importante.

Este género de coisas ter-me-ia dado cabo da paciência não se desse o caso de ter saído de bordo com o telefone quase sem bateria e sem saber para onde ia. Apanhei um táxi que teve a gentileza de querer fazer-me ver uma grande parte de Cartagena. Essa era a vontade dele, mas por azar passou  à frente do Dower's Bar, exactamente o que eu procurava e a menos de quatro euros de onde eu o apanhei. O homem ficou, coitado, furioso. Mas acedeu a parar e aceitou magnânimo os vinte cêntimos que lhe deixei de gorjeta.

K está a bordo. Não bebe álcool, de qualquer forma: caiu no caldeirão quando tinha sete anos. Eu estou no Dower's, ao balcão, como se o Hopper estivesse ao lado do corcunda que está meu lado. Em espanhol corcunda diz-se jorodado. É jodido. (Aprendi com o Vilas-Mata e confirmei com o Hlasko. As coisas que se aprendem a ler são tão variadas e necessárias que só para as aprender valeria a pena ler).

O croquete do Dower's é o pior que até hoje comi entre o Pólo Norte e os trinta e oito graus de latitude Sul (nunca estive mais a sul). Acho que isso deve celebrar-se e peço mais um gin.

Mentira. Já o tinha pedido. O DV é uma obra ficcional com alguns traços autobiográficos.

Por exemplo: acabei de comprar um maço de cigarros. É o segundo que compro desde há muito tempo.

- Define "há muito tempo".
- Que se foda.
- A resposta está correcta.

A julgar pelo movimento e pela qualidade do serviço o Dower's Bar não tem muita concorrência nas proximidades. É provável que tenha acertado quando pedi ao taxista que parasse.

Ja gostei mais destes bares "nocturnos". A Sportive em Genève, por exemplo. O sítio onde estava há pouco, só homens velhos, disformes e bêbedos. Alguns bares de Lisboa, de Panamá... Enfim, que se lixe a geografia da noite. O Dower's fecha. Eu também. O resto é conversa de encher chouriços.

Amanhã de manhã largo e se tiver sorte tenho seis dias de mar. É nisso que me devo concentrar: seis dias no mar.

É tão pouco, não é?

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Ruas estranhamente desprovidas de automóveis e de graffiti.

Ou coisa que o valha

Não viria a Cartagena para conhecer o Snak Bar Confiteria Restaurante (sic) Ideal, é preciso começar por aqui. Muito menos se soubesse que ia carregar seis garrafas de água sem gás  (K., coitado não bebe água dos tanques), dois pacotes de flocos de aveia Quaker (um deve chegar. O segundo serve de esconjuro) e meio quilo (talvez) de merguez.

Mas vim. O Bar Ideal está dois níveis acima do Kantuki (não garanto) onde antes estava, três abaixo do beto e quatro antes do decente. Os boquerones são bons - a dificuldade do prato sendo equilibrar o amargo do vinagre e o adocicado do azeite - as croquetas de pollo idem, a televisão igualmente abominável e o vinho branco  (um homem não vive só de licor de hierbas) decente.

Amanhã de manhã largo. Resta saber a que horas. Será cedo: o gajo que controla esta merda - a haver tal personagem - deve neste momento estar cheio de pena de mim. Ou a pensar: este já deu o que tinha a dar. Vou deixá-lo seguir viagem.

Ou coisa que o valha.

Futuro, paz

Gosto de velhos bêbedos, feios, disformes.

Ou seja: estou em paz com o futuro. Só me falta começar a gostar de futebol. 

Diário de Bordos - Cartagena, Múrcia, Espanha, 28-05-2017

A questão agora é saber se conseguimos largar antes ou depois das seis. Eu aposto pelo antes; mas tenho dois adversários de peso: a Aemet e o Passageweather. A ver, como dizia o ceguinho.

Em attendant acabei num tugúrio, tal e qual o que queria. Velhos bêbedos, jovens (poucos) a caminho se serem ambos, televisão no futebol, tortilla de papas soberba, licor de hierbas idem, lugar feio para lá do descritivel. Gritos dos bêbedos a comentar as jogadas, não há uma única mulher - o lugar é demasiado deprimente -.

Seria, se eu estivesse em modo déprime. Não estou. Estou em modo humanidade.

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A história da relação dos espanhóis com o Wifi é triste. Parece uma daquelas relações "odeio-te mas tenho de viver contigo porque se não os meus pais matam-me" (sendo os pais a modernidade).

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Tentou seduzi-la abusando dos parênteses (não funcionou).

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O segredo de uma tortilla de papas está na cozedura das batatas. Não devem ser cozidas nem fritas, mas sim confitadas.

Pensem nisso.

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O equivalente espanhol - aparentemente - do CM chama-se La Verdad. Não li mais do que dois títulos: hoje lavei roupa, não a quero sujar toda outra vez.

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Há uma diferença entre o calor que pára à superfície da pele e o que nos aquece até aos ossos.

Por razões demasiado complexas gosto dos dois.

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Ninguém se devia embebedar sem ser em ambientes sórdidos. Uma grossura selecta não é nem grossura nem selecta.

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Amar sem ser correspondido é provavelmente a forma mais bonita de amar - pelo menos se bonita e verdadeira forem sinónimos -.


A reflectir

Se, na Suíça, alguém lhe vender a Torre Eiffel, o Jet d'Eau, a Ponte Sobre o Tejo ou a Estátua da Liberdade e o generoso e tolerante leitor comprar e pagar; se posteriormente se aperceber de que foi defraudado e não tendo vergonha apresentar queixa num tribunal; e se o dito Tribunal aceder a julgar a causa - seria pouco provável mas não impossível - o resultado do julgamento ser-lhe-á (ou pelo menos tem sido até agora) - desfavorável. A jurisprudência suíça acredita que algumas fraudes são demasiado evidentes e que quem nelas cai é porque quer.

Os apoiantes da dupla Costa & Centeno deviam talvez pensar nisto.

27.5.17

Chatices

Esta gente vive na rua. Ser homeless aqui deve ser um castigo. Têm a casa sempre cheia de gente, coitados.

Não tenho a certeza

Devia haver um limite de idade para as namoradas,  não é? 

Longe, perto

É a distância que me aproxima das pessoas. Quanto mais longe mais perto.

Pergunta com esperança

Já alguém elegeu as tapas património material da humanidade, ou coisa que o valha?

Perguntas com sentido

Nunca soube bem definir o amor. Acho que é indefinível, na verdade. Podemos quando muito conhecer-lhe as manifestações e avaliá-las - umas têm mais peso do que outras, mais significado, mais importância -. Por exemplo, em que lugar da escala colocar "adormecer a pensar em ti"? E "acordar a pensar em ti"? Ou "sem ti nada disto faz sentido"? Ou "cada minuto contigo justifica uma vida"?

Diário de Bordos - Cartagena, Múrcia, Espanha, 27-05-2017 / II

O café Taona é o meu sítio favorito em Cartagena. Há outro, numa das ruas perpendiculares a esta, que em breve irei procurar. Não recordo o nome: não gosto de sobrecarregar a memória com pormenores inúteis e como de qualquer forma aparentemente todos os anos estou em Cartagena basta lembra-me de onde é.

Gosto de Cartagena, claro. É impossível não gostar: uma cidade com boas maneiras, queira lá isto dizer o que quiser. Basicamente é isso: uma cidade com boas maneiras, calma, cheia de história - é decerto daí que lhe vem a gentileza - mais crescida do que Cádiz, menos racista do que Barcelona, lugar de bom gosto e boa educação. Há muitos anos a tripulação de um submarino inglês deu cabo da cidade, história de vinganças geladas. Foi a minha primeira vez cá, mas pouco me lembro dessa escala. As minhas memórias daqui são mais recentes. Já a atravessei a correr e já aqui me perdi; mas nunca desesperei, ao contrário de tantos outros portos.

(As boas maneiras podem ser enjoativas, peçonhentas ou simplesmente aborrecidas. Não é o caso de Cartagena).

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Não é a incompetência que suporto mal. É não se saber incompetente. Talvez seja por isso que suporto (relativamente) a arrogância que se sabe arrogante e justificada.

A distinguir do narcisismo, incompreensível (mas isto é coisa de homem feio).

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A viagem para Atenas eterniza-se. Há uma espécie de sinergia positiva entre o tempo (contrário) e as avarias (muitas). Excitam-se um ao outro. Das avarias trata o armador: "já gastei mais do que posso gastar"; do tempo trato eu: "o que não tem remédio remediado está".

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E é isto. Vou procurar o outro sítio de que gosto: o Taona está deserto, com uma breve excepção.

Diário de Bordos - Cartagena, Múrcia, Espanha, 27-05-2017

O Lagoon pode ser uma merda de um bote mas que anda bem ninguém lhe tira. Oito nove nós no fundo com quinze reais, agora quase dez com quase vinte, à bolina cerrada (ou aquilo que num cata passa por isso), mar ainda não formado mas já não para senhoras... Chapéu!

Estava combinado que em chegando o fim do dia o vento caía e rondava a Norte. (E o badanal só entraria lá para as duas da manhã). Do rondar a Norte tenho os primeiros sinais - há cada vez mais vagas e carneirinhos cruzados-. Já do cair tá quieto. Mas a verdade é que o Passage Weather tem andado um bocadinho adiantado. Pode ser que isto tudo aconteça para mais tarde.

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Aconteceu tudo como previsto. É tão bom. Até ajuda um gajo a esquecer-se de que anda a parar a cada árvore, como um cachorro com problemas de próstata ou de território. E que as baterias estão verosimilmente fodidas. E que o C.R., por quem já estou a desenvolver não diria um amor mas pelo menos um afecto sério está com problemas estruturais valentes.

Qué vaya: cheguei a Cartagena um bocadinho antes do que pensava porque isto à vela anda que se desenha, o vento portou-se bem e agora estou outra vez em Cartagena, que é mil vezes melhor do que Aguadulce.

E mil vezes pior do que estar no mar a caminho de Atenas.

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É muito difícil explicar a pessoas adoráveis que por vezes se quer estar sozinho, não é? E que quanto mais o tempo passa mais são essas vezes. Felizmente algumas dessas pessoas entendem - e provavelmente partilham - este sentimento.

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Acho que é desta que mudo de vida.

25.5.17

Marcianos e previsões - manual de instruções

Aguadulce é uma cidade (ou aldeia ou vila) deprimente. Não é de espantar que hoje um (ou mais) marcianos tenham pegado em mim e me tenham posto no autocarro para Almería.

A coisa aconteceu pouco depois de eu ter passado em frente ao restaurante Del Carallo (tenho fotografias), cujo nome me leva irremediavelmente (mas supera) à Quinta Puñeta de Palma. Há muito muito tempo, vai para um século  (isto é, quando cheguei a Aguadulce) acalento o sonho de lhe percorrer a rua principal toda. Das minhas anteriores incursões já lhe conhecia uma parte, mas queria conhecê-la toda, na sua inteireza.

Pois hoje consegui. Não virei à direita onde costumo virar (isto é, onde virei hoje de manhã) passei à frente do mencionado restaurante, aí sim virei decididamente à direita (ler isto como se fosse o relato de um jogo de futebol,  sff) subi um bom bocado mais do que se tivesse virado antes e hey, ecco, presto, eis-me no princípio  (ou fim) da rua principal. Da qual constato que afinal conhecia noventa e nove por cento. Nesse momento (enfim, pouco depois) passou por mim e parou um autocarro dos que vêm para Almería (não há outros, disse-me o marciano que me pôs dentro dele antes de eu me aperceber sequer que estava em digamos Aguadulce).

Por isso escrevo agora estas linhas desajeitadas e cheias de parênteses  (honni soit qui mal y voit) na Vinateria La Cava, que recomendo de todo o coração aos leitores, tenham ou não sido postos aqui por um marciano benfeitor, bondoso, compatissant.

Uma taça de cava Gran Bach acompanhada por tapas soberbas custa três euros e qualquer coisa. Isto é, a taça inclui a tapa. Isto é, a Mojama - que em Lisboa no Sol e Pesca (ou Céu e Pesca? Ou Mar e Pesca? Ou Caça e Pesca? Não me lembro) custa (custou, a única vez que) cinco euros aqui custa metade de três euros e cinquenta cêntimos. Com o bónus não despiciendo de ser duas vezes mais.

Acresce ainda qua a Vinateria La Cava dá para uma praça que não tem automóveis.

Aqui fica expressa a minha eterna gratidão ao marciano. A dita praça fica perto da Bodeguilla e por consequência da Chakra. Hoje vou em missão espacial de reconhecimento.

Isto tudo e agora é hora de ir ver as previsões meteorológicas.

[Adenda: das quais não falo para não estragar o ambiente.]
[Re-adenda: a missão de exploração fica abortada. Com as taças de cava e respectivas tapas fiquei jantado.]
[Re-re-adenda: afinal a combinação cava + tapa custa menos de três euros.]

Diário de Bordos - Aguadulce, Andaluzia, Espanha, 25-05-2017

Comprei jornais: o Le Monde, excelente e socialista; e o El Mundo, menos socialista e quase tão bom. Agora vim para a cama lê-los. A Marina de Aguadulce é medíocre; a cidade também é fraquinha. Serve para as pessoas que vivem em prédios horríveis nas cidades passarem férias em prédios horríveis na praia. Assim o dépaysement não é tão brutal e elas sentem-se um bocadinho em casa. Consegui comprar um Kaspersky mas só chega sexta-feira. Não percebi bem porquê. Se calhar é só a caixa e o programa ele-mesmo chega amanhã. Não sei. Logo verei. Acredito no senhor da loja apesar de não ter percebido metade do que ele dizia. Ou ele falava muito depressa ou eu ouvia devagar. Estava com a atenção alhures, provavelmente. Na empregada do take away, cuja beleza (visível) e doçura (suspeitada) eram estragadas por um anel no nariz. Ou então na porra do vento, que não me larga. Tenho a cabeça que parece um ficheiro grib.

A verdade é que estou cansado sem saber de quê e isso aborrece-me. Tenho as pernas como se tivesse corrido duas maratonas e se ao todo andei duas horas hoje já é pelo menos o dobro do que penso ter andado. Uma hora no máximo e em bocadinhos curtos.

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O bar Mojito, sito na Marina de Aguadulce, não destoa do resto. É uma merda. Mas é o primeiro a abrir e dá para a praia onde as senhoras exibem generosa, orgulhosa e por vezes injustificadamente os seios e a criançada. É o nosso escritório. O critério de selecção das empregadas é discutível, pelo menos para quem ache que a beleza não é tudo (se bem não estrague nada, claro).

Já os empregados são mais simpáticos. Anteontem pedi um Mojito sem açúcar. Recebi uma bebida infecta. Disse ao empregado que aquilo não estava grande coisa e ele justificou-se dizendo que os fazia com 7-Up. 7-Up. "Não o quero, obrigado". Propôs-se fazer outro, que estava igualmente uma merda mas menos enjoativa. Deste não disse nada: achei simpático que o homem tivesse feito outro de moto proprio.

De manhã é aqui que venho ver as previsões meteorológicas e escrever disparates. A praia está deserta, a música é tão má mas menos alto do que à noite e o café bebe-se. As empregadas sorriem pouco mas quem as recrutou percebe de medidas. Deve ter trabalhado numa loja de soutiens (emprego com o qual sonhei muitos anos).

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E é isto. Parecendo que não hoje esperava chegar a Atenas e ainda estou a dez ou quinze dias; tenho uma tripulação porreira e não sei o que vou fazer este Verão excepto que vou passar umas semanas a Genève; os comprimidos cumprem maravilhosamente bem a sua função e está calor. As miúdas são giras; o Licor de Hierbas cada vez melhor. Descubro boa música e uma pianista excelente. Estou a ler um livro magnífico de um autor polaco chamado Marek Hłasko - outra descoberta -. Que mais pedir? Vento decente, talvez, mas isso é perder tempo porque o vento só faz o que quer e se há coisa que eu percebo é quem só faz o que quer.

24.5.17

Diário de Bordos - Aguadulce, Andaluzia, Espanha, 24-05-2017

A característica mais bonita da ignorância é poder terminar. Isto é, a ignorância nunca termina; mas a cada coisa, pequena que seja, que aprendemos recua um passo e esse passo atrás é das coisas mais bonitas, mais comoventes que conheço.

Desta foi a vez de descobrir um concerto para piano de Grieg. Até agora declarava, do alto da  minha ignorância, que não gosto do romantismo na música, com a excepção matizada de Beethoven (e também que duvido dos take away).

Pois hoje precisava de um sítio para escrever uns mails - que ainda não escrevi, de resto, mas não tardam - e estava com uma pequena fome, fome pré-prandial, fome-aperitivo e entrei num take away. Comecei por pedir umas tapas de almôndegas. Estavam para lá do muito bom. Seguiram-se-lhes um filete de frango. Idem. Um cozido (tudo isto sempre em tapas e acompanhado por cerveja, obrigado aos comprimidos, outra descoberta).

Tantas coisas inéditas e tão boas mereciam outras, que instilassem um bocadinho de dúvida e desassossego nesta manhã quente e preguiçosa (não totalmente: lavei o meu fato de mar) e achei que devia ouvir qualquer coisa que não conhecesse e da qual à partida não ia gostar. Calhou-me um concerto para piano de Grieg (a quem possa interessar: Klaverkoncert A-mol op 16 (1868) Edvard Grieg - Alice Sara Ott - DRSymfoniOrkestret-T. Dausgaard).

A ignorância quando recua fá-lo por vezes docemente; outras com estrondo, esmagadora. Hoje foi destas.

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É um todo, claro: ontem lavámos o bote, hoje lavei o meu fato de mar, está calor (se bem no take away esteja fresco, o ar não está muito forte, está sensato, inteligente, dá para perceber o calor mas não o sentir demasiado) a comida estava sublime, a cerveja... A cerveja. Graças aos comprimidos perdi o hábito funesto de não beber cerveja, ou pelo menos o ainda mais funesto de a beber com moderação. Aquelas duas pílulas diárias acabaram com isso.

Um barco lavado fica mais feliz. Não sei se já repararam nisso (pelo menos aqueles dos meus simpáticos leitores que navegam): um barco limpo fica contente e leve, sorri, fala-nos de outro modo. Efeito da esfrega, suponho.

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Nada disto me devia fazer esquecer que estou aqui parado por causa do maldito Levante, mas faz.

Quente?

São oito da manhã e já está um calor abafado, paralisante. Nem o vento o tempera. Antes pelo contrário, potencia-o, o calor deixa de ser estático e transforma-se num bafo quente.

Talvez a vida seja quente?

23.5.17

Feia?

Não se pode avaliar uma cidade sem se lhe ver o ou os mercados e feiras. Almería é indubitavelmente mais feia, caótica, vibrante, viva e apetecível do que Cádiz, demasiado burguesa para o meu gosto.

Talvez a vida seja feia, quem sabe?

Diário de Bordos - Aguadulce & Almeria, Andaluzia, Espanha, 23-05-2017

A verdade é que não tenho nada que fazer em Almeria. Ou pelo menos nada que não possa fazer em Aguadulce, a nove vírgula seis quilómetros (diz o Google Maps. Eu acredito).

Dois pontos: sentar-me num café, beber Licor de Hierbas, escrever, observar as pessoas, estar um bocadinho sozinho. É isso que faço agora mesmo em Aguadulce porque resolvi perder o primeiro autocarro que passou (não me apeteceu emborcar o licor e o café e correr). Verdade seja dita que Aguadulce é um buraco e o café não tem ninguém a quem observar. Mas tem vento - o mesmo que me fez parar aqui - e a paragem fica a dez metros. "Correr" era um eufemismo, uma metonímia, uma hipérbole.

Observar também. Penso nas mamas da senhora da praia e tenho a visão ocupada para o resto do dia. Repare-se que o problema não é só estético. Aquelas mamas eram um monumento, verdade. Mas eram também um mistério e sou mais atraído por estes do que por aqueles.

Seria a senhora mãe das duas crianças? Se sim, a evolução está de parabéns, a genética também e a senhora, claro, que ganhou o primeiro prémio da lotaria DNA. Se não era mãe, seria a baby sitter? Se era mãe, aquilo seria uma escultura particularmente conseguida de silicone? Se sim o médico-cirurgião-escultor está de parabéns. Se não, voltamos à hipótese DNA natural. Podíamos elaborar em torno daquelas mamas quase um bom par de meses, um por cada uma. Ou ir falar com ela, claro. Apresentar-me e dizer-lhe "Há qualquer coisa nas suas mamas que me intriga e se há coisa à qual eu não resisto é um mistério - um par deles - pendurados no corpo de uma senhora como uma ponte do Calatrava (demagogia) ou as ogivas de uma catedral gótica (verdade)".

Bom, deixemo-nos de louvores, mistérios e questões. Vou a Almeria para não fazer nada que não possa fazer em Aguadulce, com duas certezas: a) Almeria é mais bonito; e b) vou gostar do trajecto.

Estas duas proposições foram escolhidas para contrariar aquele velho adágio que definia a navegação à vela como sendo o meio mais caro, lento e incómodo de ir de um sítio onde se está bem para outro onde não se tem nada que fazer. A verdade é que não estou bem em Aguadulce - parei aqui por causa do maldito Levante - e penso que talvez encontre em Almeria um sítio onde esteja melhor, sem mamas provocadoras (ou evocadoras?) ao léu. O autocarro para Almeria é rápido, frequente, barato e a julgar pelas aparências confortável. O C. R., que aqui me trouxe desde Guadaloupe pode ser isso e o seu contrário e eu opto pelo contrário.

Aguadulce é um buraco de férias atraente como todos os buracos de férias com a vantagem de estar vazio; Almeria é uma cidade andaluza bonita e imponente (tanto quanto me lembro). Prefiro as memórias antigas às recentes, as dúvidas às certezas, o imprevisto ao planeado. O que me provoca uma dúvida existencial: porque estou tão chateado por ter de parar aqui pelo menos dois e provavelmente mais dias?

Não sei e se soubesse não dizia.

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Gostaria um dia talvez quem sabe de encontrar um trabalho diferente.

A questão sendo, claro, se eu suportarei um trabalho no qual a expressão "se tudo correr conforme o planeado" não soe a anedota ou pelo menos não suscite um sorriso trocista, uma expressão dubitativa ou o desejo imediato de chamar uns senhores vestidos de branco.

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Um dia há muitos anos fui a uma caçada ao javali. O exercício (pelo menos no que me diz respeito, a mim e ao vizinho) consistiu em subir para uma árvore às cinco da tarde (estávamos na Savóia no inverno. Era noite) com uma espingarda e uma garrafa de aguardente local.

No dia seguinte, quando acordei comecei por assentar dois factos indiscutíveis: 1 - ainda estava em cima da árvore; e 2 - vivo. Não estava, contrariamente ao que julgara pouco depois de para ali subir, enregelado.

Desci e acrescentei uma terceira observação: ao lado das minhas pegadas de e para a árvore vizinha (ele tinha também uma garrafa de aguardente - diferente - e aquilo era a dividir por todos) havia umas de uma familia inteira de javalis.

Gosto desta história para ilustrar a minha forma favorita de ser turista: ir para um café e esperar que a cidade passe por mim, em vez de ser eu a calcorrear-lhe as ruas, quantas vezes geladas, inóspitas, escuras e só na aparência desertas.

A dificuldade reside na escolha de aguardentes - tem de ser uma que nos aconchegue mas não faça dormir -. Não sei se o Licor de Hierbas satisfaz o segundo desses requisitos e vou experimentar outra coisa.

Amanhã conto.

PS - A escolha do observatório é fundamental. A geladaria La Coquette é manifestamente insatisfatória. Tudo indica que não conseguiria sequer adormecer, se aqui ficasse. Só turistas e velhos (como eu serei em breve), o que é assustador.

No mínimo.

Simplicidades enganadoras

Não se pode dormir aqui quando se quer estar ali. Já ao contrário é possível: dormir ali querendo estar aqui.

Isto das assimetrias é maçador: à primeira vista parecem simples e depois um gajo vai a ver e têm a simplicidade do movimento circular das moléculas de água numa vaga.

21.5.17

Diário de Bordos - La Línea, Andaluzia, Espanha, 21-05-2017

Não é que seja grande fã de comprimidos,  sejam eles quais forem. Tomo-os quando tenho uma pistola apontada à cabeça,  mais ou menos. Mas tão-pouco sou cego e é impossível não ver a) as vantagem dos duas pílulas diárias que tomo na luta contra a taxa de coiso no coiso e b) que dois comprimidos são insuficientes desde que há licor de Hierbas no horizonte  (enfim, num copo à minha frente, com uma pedra de gelo, por favor).

É possível que tenha de começar a tomar três comprimidos diariamente, se bem não desejável. A ver, como dizia o ceguinho. Por enquanto mantem-se tudo assim como vai. Se for preciso guinar guina-se. Se não estaestragado não reparem e antes de ter a certeza de que está estragado pensa duas vezes.

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La Linea de la Conception é um buraco negro. Entra-se aqui e já não se sai, nunca mais.

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Descubro com insondável gozo um autor polaco do qual nunca tinha ouvido falar: Marek Hłasko. (Não sei como se pronuncia o ł, mas estou grato ao meu telefone por o ter). O livro que estou a ler chama-se Matar a outro perro (comprei-o em Espanha) e há muito tempo que não lia diálogos tão bons, eficazes, verdadeiros, capazes simultaneamente de soar verosímeis e conduzir a história.

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Talvez consiga sair esta noite. Dou um prémio ao diabo, se mudar o vento. Troco um Levante por dois Ponientes. (Isto é bluff. Troco um Levante por uma sombra de Poniente).

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Ainda para mais sabendo que daqui a dois dias estou de novo parado por causa da merda do tempo de merda.

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Parece-me que um Verão em Genève não será a pior escolha. Pelo menos não há vento de todo.

20.5.17

As cores do desejo

"Tenho de começar a pôr ordem no meu passado" dizia o macaco. O problema sendo que cada vez que olhava para trás as árvores organizavam-se em florestas e perdia a noção.

Isto é.

Perdia a noção de cada uma. Podia, claro, pensar em termos de florestas e não de árvores. Ou pelo menos começar pelas florestas.

"Isso seria como pentear humanos", concluía. Era um macaco irónico.

As árvores tinham os ramos e as folhas embrenhadas uns nos outros como cabelos. Era um macaco dado a associações de ideias. Começava no passado e acabava nos cabelos loiros do presente. As florestas adquiriram os olhos azuis dos cabelos em questão e a vontade de pôr ordem no passado era imediatamente substituída pela de desordenar os ditos cabelos, se possível numa cama.

Da qual cama voltava ao passado, apressado. No cimo das florestas as folhas adquiriam o tom dourado do desejo, a languidez própria do desejo satisfeito.

"Sou por natureza insatisfeito. A satisfação repele-me. Gosto do desejo e do que ele me dá, mas não consigo dar-lhe a lentidão que ele me pede".

Era um macaco estúpido.

"Vistas do espaço as minhas florestas desaparecem".

Voltava, porém, ao desejo como o pára-quedista volta à terra: com uma mistura de alívio e tristeza. "O desejo é uma floresta impenetrável". Gostava de jogos de palavras.

Por vezes voltava atrás e numa dessas vezes apercebeu-se de que.

A distância entre ele e as florestas do seu passado era sempre a mesma. Como se as trouxesse a reboque. Verdade que as florestas cresciam - de cada vez que pensava nelas tinham mais árvores - mas estavam sempre todas elas à mesma distância dele. Não desapareciam.

Ou seja.

Temos um macaco lúbrico, não muito inteligente, lunático, com uma certa apetência para os jogos de palavras e para um par de olhos azuis.

Temos um passado desorganizado, caótico, que não foge às leis da gravidade  (são duas: 1- tudo o que sobe tem de descer e 2- desce à mesma velocidade a que subiu. Isto é: chega à terra à mesma velocidade a que a largou) mas anda continuamente a testá-las.

E temos uma certa vontade de os fazer interagir. (Alguns diriam "necessidade" em vez de "vontade").

Há uma palette cromática: as árvores têm cores diferentes, tal como os seios das senhoras são seios e diferentes ou os cabelos ou tudo. "Ou até mesmo os desejos: todos iguais e não há dois iguais", pensou o macaco.

As florestas são habitadas e isso torna ainda mais difícil separá-las, classificá-las e ordená-las. De qualquer forma seria preciso começar por encontrar uma metodologia, uma colecção de critérios: a ter lugar a ordenação seria geográfica, cronológica, temática?

Enquanto isto tudo.

O sol e o vento divertem-se e mudam a cor das folhas. Variação ligeira, ora mais brilhante ora menos, ora mais para o verde e logo azul. Azul. Talvez o macaco devesse começar pelas cores. Seria mais fácil.

Como os livros para crianças.

Beliches, camas

Chegou a hora da sesta e passou. Agora é tarde, se bem não demasiado.

Alguém devia proibir camas vazias (já quanto a beliches nada a fazer. Foram feitos para estar vazios).

Diário de Bordos - La Línea, Andaluzia, Espanha, 20-05-2017

Duas mudanças importantes, a reter absolutamente, na vida económica, social e cultural de La Línea: o talho Pepe perdeu o seu empregado marroquino ("A coisa está difícil", explica-me Pepe, ele-mesmo. "Tive de o despedir. Demasiados impostos") Continua porém com os mesmos produtos, assegura-me. Os cominhos que lhe comprei parecem confirmar este último conforto.

E o café que estava ao lado, uma casa decente de e para aficionados fechou.

Refugiei-me portanto no Carzola, cujas ovas cozidas estavam muito boas e só tem o defeito da maldita televisão.

........
"EN AGUAS COSTERAS DE ALMERIA, GRANADA E ISLA DE ALBORAN, ESTE Y NORDESTE FUERZA 7 Y OLAS DE 2 A 3 METROS DESDE EL FINAL DE LA MADRUGADA DEL DOMINGO."

Isto é aquilo a que se chama Eufemismo. Significa: Foda-se! (Em espanhol: ¡Joder, tío!; em inglês: Fuck!; em francês: Merde! Em holandês: Godverdomme!) Gosto particularmente da expressão holandesa. Pode repetir-se as primeiras sílabas várias vezes. O g pronuncia-se r: ródfa, ródfa, ródfa, ródfa e depois acabar-se como um longo silvo de alívio: fardoma. Ródfaaaaaaardoma!

........
O senhor da Cazorla não é a simpatia em pessoa, o que contrasta fortemente com os restantes empregados de café que tenho visto aqui. De vez em quando consigo arrancar-lhe um sorriso. Uma dessas vezes não ocorreu agora: pedi-lhe para baixar o som da televisão.

19.5.17

E assim por diante

Ao fim de três ou quatro horas a coisa pede-me para não a apagar. Acho que não está a ver o filme certo. Devia pedir-me para eu não a atirar ao chão, não a esmagar com as botas Caterpillar de um amigo, não lhe passar por cima com um tanque Sherman, não a bombardear com um míssil Tomahawk.

E assim por diante.

Installing Windows

Faz aqui falta um comentador desportivo, daqueles que consegue transformar o futebol numa coisa que quase dá vontade de seguir.

Incógnitas diferenciadas

Não sei se será admissível, quando chegar a minha hora de ir para o céu, dizer ao senhor que lá me vai acolher que hoje me engrossei por causa de um problema informático.

Ele poderá contra-argumentar que eu não estou completamente grosso - o que é verdade - e que o problema informático poderia ter sido resolvido noutro sítio. O barco, por exemplo. O tal senhor estaria cheio de razão.

Felizmente o céu não existe. Se existisse ficaria algures aqui pela Terra (num sítio que agradeço me seja revelado por mensagem privada).

Bombas, licores e computadores portáteis

Alguém pode sugerir a Asus a grupos como o Isis ou aqueles rapazes anti-capitalistas? A coisa, o processo, estava a trinta e um por cento há pouco. Chegou lentamente aos cem. Agora está em um por cento há pelo menos dez minutos.

Ou uma bomba na Asus - que já fez excelentes computadores, de passagem seja dito - ou...

Não sei. Neste momento só vejo à frente bombas e o seu antídoto: Licor de Hierbas, porfa.

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Adenda: se alguém me disser que agora o problema é a Microsoft eu denuncio-o aos ditos grupos.

Diário de Bordos - La Linea, Andaluzia, Espanha, 19-05-2017

O corpo já esqueceu os excessos licoristas de Cádiz. A cabeça não e a verdade é que tenho bebido muito pouco Licor de Hierbas, dádiva das ilhas Baleares ao mundo. Este período de luto está quase a acabar, espero.

Hoje descobri que o Bodegón Antoniño não tem net - ontem escrevi à mão porque o telefone e o computador estavam a carregar -; jantei umas tapas, muito mais perto do excelente do que do bom e vim para a Serrana, lá perto.

Já ouvira falar desta casa, mas nunca cá tinha vindo. Tem net, barulho, uma carta vasta e é grande. Aqui espero penosamente que o meu computador reinstale pela quinquagésima milésima vez o sistema operativo. Se alguém um dia pensar em comprar um laptop Asus atire-se da Boca do Inferno antes. Não morre, poupa uma data de massa e - sobretudo - poupa chatices e tempo perdido e até talvez engorde um bocadinho (acabo de encomendar uma segunda tapa de presunto totalmente inútil não fosse a má consciência de ocupar uma mesa à hora de ponta com um copo de vinho - e licores de hierbas, mas esses ao contrário da tapa não são inúteis).

Fiquei pelo menos a conhecer o Orujo, ao qual reconheço algumas qualidades, insuficientes para o pôr ao nível do mencionado licor.

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Já ao tempo que aí vem não reconheço qualidade nenhuma.

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A Serrana é uma casa barulhenta cujo presunto é sublime. Saboreio a minha segunda tapa do dito lentamente, como se o sabor fosse uma borracha para o barulho.

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A questão que me preocupa é: onde passar o Verão?  A confusão em mim é maior do que a da casa Serrana, difícil de imaginar e mais ainda de acreditar. Genève!, gritam alguns neurónios; Douro!, outros. Escócia  (Se se confirmar)! Grécia  (idem)!

Mértola, grito eu. Ou Burgau. Ou Trás-os-Montes. Madeira. Açores. Não preciso de muito: net, bom vinho e alguns petiscos. Uma empregada de café gira, se possível. Um computador que funcione. Livros. Tudo coisas que se conseguem em qualquer sítio.

Menos em mim, claro, que da palavra paz só conheço a parte que vem de incapaz.

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Enfim. O computador computa e eu bebo Licor de Hierbas. Parece-me um bom compromisso: cada macaco no seu galho. Felizmente comprei Paracetemol antes de vir para aqui, de modo a dor de cabeça pelo menos não crescerá.

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Hoje comprei um blusão de couro. Diz que é de carneiro. Parece que tem qualidades: não mancha quando chove. Provavelmente conversa de vendedor.

Fui mais sensível ao preço: cem euros por uma coisa de que de vez em quando preciso (se bem em Lisboa tenha um, mais bonito e clássico, passe a redundância). Se durar vinte anos, como espero, terá valido a pena. É macio e agradável ao tacto. Só isso já vale metade do preço.

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A continuar assim o reset do computador Asus vai durar uma quantidade obscena de licor. Felizmente tenho tomado os comprimidos religiosamente. Dois por dia. Se não aposto que explodiria.

Ou eu o a Serrana,  claro. Estou aqui vai para mais de uma hora e a coisa está a trinta e um por cento. Com sorte talvez mo deixem ficar para amanhã ou depois (vade retro, Satanas)

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Há homens que usam uma espécie de carrapito na cabeça e não só sobrevivem ao ridículo como parece não se aperceberem dele.

Ou é fraqueza de um ou inconsciência do outro.

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Alguém me pode explicar quem reclamou contra as mini-saias quando aquela inglesa cuja canonização deve estar para breve as introduziu  (no pun intended)?

18.5.17

Reservas

Alguém me sabe dizer o que é feito das enormes reservas de paciência que eu tinha? Levei anos a constituí-las, laboriosa e dificilmente e agora de repente foram-se.

Diário de Bordos - La Línea, Andaluzia, Espanha, 18-05-2017 / II

O telefone e o computador estão a carregar as baterias. Vim sentar-me cá fora, neste fim de tarde agora sereno. Pode ser que ainda saiba escrever à mão. (Demagogia. O problema nunca foi escrever à mão, é reler o que escrevi).

Sou cada vez mais sensível ao desgaste psicológico. Ignoro se neste contexto "sensível" é sinónimo de maricas, velho ou prosaicamente sensato. Mas é o que sou. Estou cansado; não só fisicamente. Exausto.

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O Bodegón Antoñito fca na zona calma e afastada do centro de uma rua pedonal. A rua é estreita e a esplanada - com o dobro da área do café - tem muitas mesas, todas elas de madeira. Daqui resulta que neste bocadinho de rua a luz adquire tons acastanhados, calmos, quase - mas não totalmente - mortiços. É o fim de um dia ventoso, mas sem o barulho, o movimento, sem luz, sem cheiros não se sabe se o vento caiu ou se simplesmente escolheu paragens mais animadas.

O movimento cada vez mais se confunde no meu espírito com agitação, confusão e fujo.

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Quando voltar para bordo espera-me o trabalhão de dobrar a roupa toda que lavei ontem em Cádiz e fazer o beliche (que na realidade é uma cama de casal, enorme e vazia). Prolongo portanto o meu diálogo com o destino, ajudado sem dúvida pelo vinho Sherry, pela cerveja e em breve, se Deus quiser, por uma taça de vinho tinto {não foi. Foi pelo rum].

Não é que seja a favor de misturas. Não sou. Isto é simplesmente sintoma da variedade de temas que tenho a discutir com o gajo que faz as coisas serem como são, em vez de como eu gostaria que fossem.

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Tudo se passa devagar. Dei um euro a um pedinte. Encomendei uma segunda caña. Acabei os camarões al pili-pili (se aquilo tem piri-piri eu tenho uma fortuna em diversos bancos). Está frio. O computador e o telefone carregam. O dia acaba. A fatiga fica. A luz esvai-se e muda de cor. Eu dialogo.

Tudo isto devagar, como aqueles actores de teatro que não sabem se hão-de continuar a agradecer os aplausos ou ir-se embora "com graça e majestade".

Opto pela "graça e majestade".

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Quando a cerveja [agora rum] acabar volto para bordo. O beliche sem lençóis e a roupa por dobrar. Aceitam-se apostas.

Diário de Bordos - La Linea, Andaluzia, Espanha, 18-05-2017

Das poucas coisas que aprendi fazendo o que faço ou mais provavelmente vivendo o que vivi há duas e só duas que me parecem importantes: a) um pássaro na mão vale mais do que dois a voar (por azar, não só vale como também é mais caro, claro); e b) tudo o que puder correr mal vai correr pior do que o pior que se espere.

Ou seja, de novo à espera de uma peça e à mercê da evolução do tempo. Devo dizer que percebo o armador: em Gibraltar a peça custa quatrocentos e alguns euros; ele tem-na em stock em Atenas. Faz todo o sentido fazer-me esperar em La Linea que a DHL me entregue aquela merda, tanto mais que a DHL garantiu que a dita merda (um motor de arranque) me seria entregue hoje ao fim da manhã.

Não foi. Só amanhã. A explicação é poderosa: o endereço - copiado da página na web da marina - estava incompleto. Há potencialmente duzentas e cinquenta marinas em La Linea, mas só uma está feita. A meio da tarde telefonei a confirmar que o endereço da marina era aquele. Uma marina é coisa que escapa facilmente ao olhar de um chauffeur de entregas, claro. Sobretudo se o endereço não tiver número da porta. Acontece que o tempo que para hoje era magnífico para amanhã e dias seguintes é uma merda (outra, diferente da primeira).

Recordo com um bocadinho de prazer a semana que já passei em La Linea à espera de tripulação primeiro e do tempo depois. Gostaria simplesmente de não a repetir, se fosse possível. Com a quantidade de portos que há por esse Mediterrâneo fora prefiro esperar ou num que não conheço ou noutro mais prazenteiro.

Sem esquecer que quero mesmo chegar a Atenas o mais depressa possível e preferiria, se me fosse dado preferir, não esperar em lado nenhum.

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Estou furioso, no café da marina onde a televisão passa um jogo de futebol e um imbecil grita e comenta com uma voz rouca, desagradável, patológica, gritante, agressiva e penso que sou um imbecil ainda maior do que o que comenta e se excita com o jogo. Chatear-me com os erros dos outros é uma perda de tempo; com os do destino é uma idiotice perfeita. Mais vale ir para o Bodegón Antoñito, na esperança de que não haja imbecis aos gritos (esperança patética, claro; ou pateta) e conversar com o destino com a ajuda de um copo de vinho agora e uma tapa ou duas depois.

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As tapas ficam para depois: fomos almoçar à Bodeguiya. Acho que isto diz tudo. Se não diz devia dizer e só demonstra o fraco cronista que sou.

Onde estamos

Têm uma vida, ao contrário de mim.

Refiro-me aos meus de resto adoráveis tripulantes, que mal chegam a terra parecem extensões em osso e músculo dos respectivos telefones portáteis.

Não precisam, como eu, de estar onde estou para ser. 

17.5.17

Serviço público - restaurantes Cádiz

Largamos daqui a bocadinho para Gibraltar e seria uma injustiça faze-lo sem antes mencionar o restaurante Garum, outro dos locais meritórios de Cádiz.

Fica na Calle Plocia, 6. Só abre para almoços, excepto aos fins-de-semana.

Cádiz por vezes dá-me a impressão de ser como La Coruña: deve ser difícil encontrar um mau restaurante. (Difícil mas não impossível. Encontrei um).


Diário de Bordos - Cádiz, Andaluzia, Espanha, 17-05-2017

Acordo com uma monumental dor de cabeça. A visita do Sobral e as vitórias do papa Chicos e de um clube de futebol foram dignamente celebradas com Licor de Hierba, bebida de origem baleárica e alcance global.

Tudo começou ao almoço, no restarante Casa Lazo. É uma casa digna, espanhola, que serve com simpatia e eficiência "Jamones & Chacinas selectas, Carnes Nacionales, Productos de temporada" (verbatim), tudo isto acompanhado por um excelente Rioja Crianza e digerido com um Jerez e - lá está - Licor de Hierba. (A Casa Lazo fica na calle Barrié, 17, Casco Antiguo se por acaso alguém por aqui passar).

Depois fui esperar a abertura da livraria para o café La Fabrica, onde a receita de Licor de Hierba, simpatia e eficiência se repetiu várias vezes. Depois dos livros começou uma deambulação pela cidade à procura de discos de Paco Ibañez. Não encontrei, mas reencontrei uma cidade da qual gosto bastante, onde as pessoas são amáveis e comi (hoje de manhã) um dos melhores croissants da minha vida (no Café Le Poème, ao lado do mercado, pertença de uma senhora francesa, os croissants são um poema de verdade).

O resultado foi esta dor de cabeça mais chata do que pastilha elástica na sola dos sapatos e a confirmação de que Espanha é um país porreiro, vivo (o nome deste blog tem uma longínqua origem nessa vivacidade, de resto), contagiante e que se o homem me chatear muito em Lisboa é para Espanha que mudo, se bem não para Cádiz porque não se pode viver numa cidade onde não há lojas de discos.

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Largamos amanhã de manhã, devido ao tempo e tempo. Em princípio será a última escala antes de Atenas.

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Perdi uma série de posts sobre a condição de marinheiro. Um deles estava giro, consegui reproduzi-lo parcialmente. Os outros também conseguiria, se quisesse.

16.5.17

Posts perdidos

O marinheiro está sempre entre a Scila da solidão e a Caribdis do mar. Prisioneiro livre, homem livre preso.

Comoção

Portugal ganhou um festival da canção e o papa-franciscos foi a Fátima. De tão emocionados que estamos o N. e eu decidimos apanha uma narsa. Não é por mais nada: tanto o Salvador-coiso como o coisa-franciscos merecem a nossa comoção sincera.

Temos para isso estado a beber Licor de Hierbas cada um no seu lado, mas em breve uniremos esforços.

Inseguranças múltiplas

Luto contra o sono post-prandial com a ajuda de um Licor de hierbas. Aliado inseguro, no mínimo. Eu sei. Mas que fazer? Continua a ser um dos meus licores favoritos; e Espanha um dos meus países. A livraria só abre às cinco e meia da tarde.

Se não houvesse licor de Hierbas estaria a lutar contra o sono? Nada é menos seguro.

Analogias desgarradas

Não vou descrever o almoço - seria uma versão gastronómica de kiss and tell -, mas posso fazer uma analogia: tomar os comprimidos que tomo e não fazer almoços destes seria como uma senhora tomar a pílula e não aproveitar para uma quecazinha de vez em quando.

Diário de Bordos - No mar, entre Horta e Cádiz, 09 a 16-05-2017

Sol e vento. O mar está feliz. Ontem tivemos de novo direito a um arraialzinho, só para não esquecermos como é. Hoje a coisa compôs-se; amanhã, se as previsões estiverem correctas, vai deixar de haver vento. Vou passar perto de Sagres para ter net. O problema como sempre é o Levante no Estreito. Mais uma vez segundo as previsões vai durar até quinta: ou seja, arrisco-me a ter de passar dois ou três dias em Vila Real, Cádiz ou Barbate à espera. É uma chatice de todos os pontos de vista: quero chegar a Atenas depressa.

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Ainda está frio, um frio estúpido, inconveniente, maçador. Mas pelo menos uma coisa melhorou: agora tenho frio quando me dispo. Já não tenho calor como tinha quando as roupas estavam encharcadas.

Já o mar continua caótico e desorganizado.

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A verdade é que a viagem está a correr que não se dá por ela. Ainda ontem largámos de Pointe-à-Pitre e há bocadinho da Horta. Às vezes parece que só daqui a um século chegaremos a Atenas, mas não. Amanhã ou depois de amanhã, vá lá. E até chegarmos ainda temos umas belas portas para atravessar: os estreitos de Gibraltar e de Messina, o canal de Corinto... Vai ser um instante. E depois Genève, Porto, Lisboa para me encontrar com o Celso e com a Andréa. Vai ser um bom Verão, vai sim senhor.

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Chamada à ponte. K. quer rizar mas ainda não aprendeu a fazê-lo sozinho. Rizo na mesma: o cagaço é sempre vencedor. Dispensa razão e justificação.

De qualquer forma estava acordado, por causa justamente da rajada que o levou a chamar-me.

K. é fraquinho tripulante, mas enfim. A verdade é que estou mais do que compensado com o N.

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Pelo menos temos o mar do vento: arrumadinho, organizado, certo. E o vento também, vá lá. Mas da nebulosidade e da temperatura mais vale não falar. Mudam segundo a segundo.

A meteorologia é como a psicanálise: há sempre uma explicação para tudo. Apareceram cirrostratos vindos do nada? Isso pode querer dizer que a) amanhã vem uma depressão; b) amanhã vem uma alta pressão; c) amanhã fica tudo na mesma. Qual das opções escolher? As três, claro. Uma delas estará certa e a meteorologia explicará porquê. O mesmo aconteceria com qualquer das outras.

Isto dito: não nos podemos queixar. O CR avança bem, quando não há núvens aquece num instante, a roupa e o camarote estão secos, o mar contente. Depois de amanhã estaremos perto da costa de Sagres e terei sinal para descarregar as previsões meteorológicas. Pode ser que o Levante se tenha ido deitar...

………..
Retratos rápidos
- E que faz ela agora?
- Oh, está bem. Encontrou um marido e deixou de precisar de andar por esse mundo a partir corações para se sustentar afectivamente.

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De todos os elementos apaixonantes da navegação a gestão dos "e se...?" (what if no original) é provavelmente o melhor, mais interessante. Navegar é gerir erros - uma regata é ganha por quem comete menos erros, não por quem navega melhor - e os "e se...?" são talvez a maior fonte de erros.

Até agora tenho baseado as minhas decisões nas previsões do Passage Weather, que se têm vindo a revelar quase correctas. Por vezes um desfasamento no tempo, outras na longitude (não temos variado a latitude). Neste momento estão absolutamente erradas. Questão de tempo? De posição? Não sei. Mas posso aproar a Cadiz mantendo o plano original de passar perto da costa portuguesa para ter previsões actualizadas. Que acontece se o Levante se confirmar? E se não houver Levante? E se o Levante entrar mas mais tarde do que a previsão que eu tenho? E se, se, se?

Tenho gasóleo que chegue para chegar a Gib e daqui a menos de doze horas terei previsões actualizadas. Até lá, construo cenários sabendo que não passam disso mesmo: cenários. Como dizem os ingleses, é preciso um plano para se poder não o seguir.

A outra coisa apaixonante (enfim, pelo menos para mim) da navegação é ser uma actividade que implica todos os sentidos.

E ainda há quem ache um exagero esta minha comparação permanente da navegação e do amor...

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Sendo que uma andorinha ferida, magoada, só, triste continua a ser uma andorinha. A tristeza, a dor, a solidão não passam de epifenómenos, estados passageiros, marginais, quase secundários.

O importante, o centro é o ser-se. Um pouco como estar no mar: és o centro de um círculo para lá do qual só há hipóteses, cenários, ilusões.

Sê como uma mina é uma mina: por mais que se escave nunca dela se sai. Antes pelo contrário: é cada vez mais mina.

Ama como se nela cavasses, vive, sonha. Navega. O mar é a mais infinita mina. Navega. A tristeza, a dor, a solidão desfazem-se como a esteira que deixas. Nada são.

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Passeia pelo amanhã como pelo ontem: ambos são feitos hoje.

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O mar é o prolongamento infinito de ti, ser minúsculo sem princípio nem fim.

O mar e as palavras, claro.
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Pensa nesse corpo que te falta. Pensa no mar ao teu lado.

Vês?

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É-se marinheiro como se é cego de nascença: por fatalidade e não por escolha.

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Só o mar tem esta infinita capacidade de dar sentido à tristeza, de lhe demonstrar a falsidade, a precariedade, a falta de fundamentos. No mar a melancolia faz parte dos sentimentos aprazíveis, é uma das formas do bem-estar.

Ser feliz e melancólico é um círculo que se fecha: um horizonte.

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O azul feliz do mar, o azul do mar feliz: o mar azul do (homem) feliz.

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Estar de quarto é uma comunhão. Deixa-se de estar numa embarcação para se estar com a embarcação. Ou para se ser a embarcação.

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Um marinheiro está ausente quando está  terra.

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É mais fácil dizer "amo-te" do que ouvir: os outros são uma prisão maior do que nós.

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Esta dor no cotovelo - que sei agora trata-se de um "cotovelo de tenista" - parece-me particularmente injusta, a mim que não olho sequer para uma raquete de ténis vai para quarenta anos.

Não, não é injusta que quero dizer. É merecida. Faz-me lembrar a dor no pé com que andei não sei quantos meses até que uma visita ao médico e quatro injecções (caríssimas e dolorosas) lhe puseram termo.

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A Lua entre o cheio e o minguante; mar chão - o vento é novo e ainda não teve tempo de se formar -; vinte toneladas de plástico lançadas a oito nós e meio contra a energia que as fazem mover-se (e que se desloca ela à mesma velocidade*); céu limpo - uns cirrus estratificados ali, dois ou três altos acolá, um cumulus perdido aqui; temperatura agradável, refrescante, excitante, revigorante; um navio que se desvia e né passa pela popa sem que eu tenha de me chatear, chamar pela rádio ou iluminar os trapis com uma lanterna. Se isto não é magia eu não sei o que magia é.

Assim de repente não me ocorrem muitas maneiras melhores de passar uma noite. Talvez uma e uma só. Talvez. Seja como for ambas são raras, duram pouco e devem ser apreciadas ao seu justo valor.

* - para os entendidos: oito a nove nos de vento real, quatorze quinze aparentes. Vamos a fazer oitos nós a vinte e cinco graus do aparente.


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A travessia do Atlântico vai acabar amanhã em Cádiz ou Barbate se lá conseguir chegar. É tudo menos garantido. Quarta-feira começa a do Mediterrâneo. De permeio, um dia de Levante. Tinha imaginado esta escala em La Linea, três ou quatro dias. Cinco dias de paragem na Horta, um calendário apertado, o vento, um barco em condições propensas à avaria alteraram-me os planos.

Planos? É como imaginar que o homem da corda bamba consegue prever para que lado ela vai andar e quanto a cada passo. Não consegue, claro. Sabe onde ela está amarrada a cada extremidade e é um pau. Isso e esperar que os nós não se desfaçam.

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Vamos a cinco nós, seis nos intervalos. Vento zero. A ideia é esperar em Cadiz que o Levante passe. A algumas milhas daqui estão alguns trinta nós de Leste. Metade disso de Oeste já me satisfaria, mas o senhor que trata dos ventos não se preocupa muito com a igualdade, a justiça e esses conceitos que quem vive em terra inventou para fingir que tem algum poder ou tempo livre.

São coisas da gente de terra nas quais não me imiscuo.

15-05-2017

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Eu se a vós fosse em nada acreditaria do que ides ler. Ou do que aqui vai escrito, melhor dizendo. Que sei eu do que lereis?

10.5.17

A sombra de uma sombra

De entre os vários tipos de reacças que nunca compreenderei sobressaem os ludditas. Estou a quatorze milhas da terra  (S. Miguel, para quem estiver interessado. Mal se vê, sombra de uma sombra) e tenho net!

(Agora acabou. Mas há bocadinho tinha e estava mais longe... Vá lá consegui descarregar o ficheiro do Passage Weather, passá-lo para o computador e confirmar que a passagem do Estreito vai ser um arraial de tareia).

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Portugal era uma ditadura colonialista que sugava as suas colónias até ao tutano, as oprimia e impedia de ser democráticas.

Factos esses que podem ser facilmente comprovados ao ver a riqueza, pujança económica, liberdade e democracia das ex-colónias hoje, quarenta anos depois da libertação.

Angola, por exemplo, vem imediatamente ao espírito quando se pensa nisto. E Moçambique, a Guiné...

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Seis nós de VMG. Limite inferior do leque do admissível. Preciso de sete para não apanhar Levante no Estreito.

Que fazer?

9.5.17

Voltei

De certa forma é pena que mar em português não seja feminino, como em francês. Se fosse, agora poderia dizer "Voltei para a mar".

8.5.17

Lã, dentro

Está frio, um frio horrível, parece que vem de dentro para fora e volta para dentro multiplicado por dez ou cem e nada nos resta se não agasalhar-nos mas não se pode vestir camisolas de lã por dentro da pele, pois não? 

Gota de água

Calma, levanta-te devagar, o dia ainda mal começou, está ali fora à tua espera, não começa sem ti.

Vais passar por ele como gota de água num tecido impregnado de impermeabilizante, redondo e transparente. 

7.5.17

Diário de Bordos - Horta, Faial, Açores, 07-05-2017

Devagar - demasiado devagar, mas quando não o é? - a lista de afazeres vai diminuindo. Só faltam as duas coisas mais importantes e algumas das menos. Terça-feira largamos, salvo tremor de terra, tsunami ou ataque de cachalotes.

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Um Amel atracou a nós e fez alguns riscos no casco, nada de especial. O que me desagradou profundamente foi não terem passado um cabo a terra. Estava vento - o que de resto explica os riscos - e o mínimo teria sido passarem um lançante a barlavento. E deixaram as defensas muito baixas.

Hoje de manhã fui falar-lhes dos riscos. Começaram por negar mas depois lá aceitaram. A seguir mencionei o lançante. É o mínimo. Emberlificotaram-se (eram franceses, claro) em explicações.  Encomendaram ao Harry, que me está a tratar das vigias o trabalho de polimento dos riscos, mas veio a bordo explicando-me que "não queria que eu mandasse refazer o meu casco todo". Isto um gajo que no meio dos emberlificotanços me disse que navegava há quarenta anos. "Comecei aos quatro ou cinco".

São franceses, claro. Custa-me dizer isto - por um lado detesto generalizações, por muito necessárias que sejam; e por outro alguns dos meus melhores amigos são franceses - mas se há raça que devia ser proibida de navegar (excepto em competições como a Vendée Globe) são eles.

O idiota não percebeu que bastaria ter dito "desculpa" para eu me marimbar nos riscos do casco, no lançante, nas defensas e na sua (deles todos) profunda ignorância. E que devia aprender a não medir os outros pela sua miserável bitola.

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Mais não sei quanto tempo no galope do mastro. Fiz um lais de guia que se desfez e agora vamos com cinquenta metros de filaça e um chumbo de pesca dentro do pé do mastro.

É por estas e por outras que não me chateio com os erros dos outros: reservo essas fúrias para os meus, tantos que são. 

6.5.17

A mayonnaise dos dias: a) receita

Sono e sonho, passado e futuro, memória e esperança: misturar, agitar vigorosamente durante sessenta anos, consumir à medida que se vai fazendo pois guarda-se mal.

Quase retrato

Exibicionista que em vez de mostrar a pila mostra a alma. 

Na praia

Hoje não fui jantar ao Peter. Fui jantar fora. Fomos ao Genuíno, em Porto Pim porque há muito que eu queria conhecer o senhor e tivemos sorte, ele estava lá exactamente como eu o imaginava: verdadeiro e amável, simpático e modesto, seguro de si e inquieto. Os velhos marinheiros acabam sempre por se encontrar. Frente ao mar, esse traço de união infinito, universal, o maior da história.

E eu hoje ali tão comigo, tão a pensar quando terei o bote pronto, quando encontrará a solidão um traço de união para mim, para que serve a saúde se sem ela se pode também viver, como teria a minha vida sido se eu quisesse (era o Fernando Pessoa que sofria de uma doença da vontade?)

Isto é,  se eu tivesse querido. Agora não quero nada se não que a vida me leve a uma praia e por lá me deixe a dormir ao sol, tranquilamente como se nada mais restasse do que esperar pelo mar, ele que se faz esperar porque sabe esperar como ninguém.

Uma praia deserta cheia de música, miúdas bonitas e rum.

Rir

Despenteado, desbarbeado, desduchado. A única coisa lavada em mim são os lençóis (voltaram hoje da lavandaria), alguns sonhos, menos memórias e mais esperanças.  Enfim todas: não sonho com futuros sujos. Sonho com coisas simples como fazer a barba, por exemplo. Ou conseguir que o meu cabelo permaneça perto do crânio, do que é notoriamente incapaz. Coisas simples, percebes? Um sorriso teu por exemplo entrevisto pelo canto do olho; um monte de coisas tuas perto de outro monte de coisas minhas.

Bebo à vida. Rio à vida. 

5.5.17

Memorandum

O azul do mar feliz.

Diálogos quase imaginários

- E tu podes beber isso?
- Claro que posso. Dei duzentos dólares ao meu médico e agora ele deixa-me beber tudo o que quero.

Das vantagens adicionais

Uma das vantagens de ser homem é que quando estamos muitos juntos durante muito tempo não temos as regras todos ao mesmo tempo.

Diálogos interiores

Um diálogo interior na Horta poderia assemelhar-se a qualquer coisa como:
- Vamos jantar fora?
- Não me apetece sair.
- Ok, então jantamos no Peter.

Mais

É preciso tiranizar as ideias, torturá-las; extorquir-lhes o que têm e não têm.

29-04-2017
Hoje entraram finalmente os ventos de Oeste. Estamos na autoestrada. Com um frio de rachar, mar entre o verde e o cinzento, cor de enjoado, mas vamos pela alheta. Já era tempo.

Pré-filtro do motor de bombordo mudado. Há muitos anos que não via tanta nhanha num filtro. Na Horta vai ser preciso limpar os tanques de combustível.

........
O mar parece que está de trombas, dá vontade de lhe dizer "se estás chateado vai-te embora", mas claro que quem está chateado sou eu, que queria mais calor e aquele azul do mar feliz.

(Olho em volta e exclamo "é tão bonito...")

Quarta ou quinta estamos na Horta. Com sorte largo domingo. Antes vai ser difícil, há muita coisa para fazer. Dali até La Linea é um salto e ecco, presto, Mediterrâneo, dar um abraço ao Saverio em Reggio e o canal de Corinto e a moussaka da mãe do K. e a doce Atenas e depois logo se vê.

É tão bonito, não é? É.

Rebellite allergique

À bas la nalité!

Esparsas

Não é preciso ser uma luminária em arquitectura naval para se saber que quanto mais larga uma embarcação mais desconfortável. Um cata é por definição largo e portanto desconfortável (pelo menos no mar. Numa marina ou fundeado a história é outra). Daqui decorre que quanto maior for o cata mais desconfortável é. O O., que generosamente me transporta da Guadeloupe para Atenas é grande, largo e desconfortável. Com a merda de mar que temos tido então pior ainda.

Não me lembro de ter feito uma viagem com o mar tão desorganizado, tão caótico, tão cruzado durante tanto tempo como esta.

........
Alguns sinais de que a coisa está preta, molhada e fria:
- Um gajo chega ao camarote depois do quarto, despe-se e uma agradável sensação de calor espalha-se-lhe pelo corpo a cada peça de roupa que tira;
- O mesmo gajo põe uma camisa de gola alta que comprou em Guimarães e umas meias igualmente altas para dormir;
- E apercebe-se de que o lugar da fruta também precisa de cobertura, aquilo parece que caiu geada da grossa. Tem as nozes que parecem tremoços e o resto semelhante a um pepino de pickles mirrado e engelhado (não me refiro a pickles russos, nada de devaneios. Picklezinhos).

Como se

A culpa é minha, claro. Comecei a pensar como se já tivéssemos chegado e o mar não gosta de como ses. Tinha acabado de escrever que a travessia tinha tido "peripécias, mas não incidentes e muito menos acidentes" quando as duas vigias do casco do camarote de vante de bombordo se foram. Foram-se. A grande (quase um metro por quase meio metro) desapareceu por completo; a pequena ainda teve a simpatia de aparecer a bordo. Pela primeira vez na vida fiz uma reparação destas de emergência. Pranchas de madeira, espumas, tudo escorado por umas portas que por acaso tínhamos a bordo, água a entrar a jorros. Um buraco de metro e meio quadrado a menos de um metro da linha de água.

Para Atenas vamos de contraplacado marítimo no costado. Como se fosse acrílico.

Fragmento

Je commence à développer des allergies, ce qui m'inquiète car chacun sait que les allergies sont l'antichambre de la mort. La vie est anti-allergique. Aujourd'hui, par exemple, j'étais chez Peter avec mes équipiers et soudainement je fus envahi par une vague de banalité. Un vrai tsunamis banalité. Je me suis retrouvé noyé, submergé, couvert par une banalité omniprésente, toute puissante. J'ai d'abord paniqué (enfin, presque. Ce qui chez moi tient lieu de panique) et ensuite pensé à Brando. "L'horreur! L'horreur!". Il aurait tout aussi bien pu dire "la banalité! La banalité!"

Il me fût difficile de sortir de cette hypnose, ce vertige, ce gouffre de banalité dans lequel je me suis retrouvé comme un noyé pris par un courant dont il connaît l'existence mais ne soupçonne pas la force.

Ils sont partis. Je me suis retrouvé seul et ai commandé un autre gin juste pour faire chier. Faire chier qui?, me demanderas-tu. Je ne sais et ne veut pas savoir. La vie, peut-être. Ce mélange de tinnitus et diabète qui m'empoisonne les rêves et ne donne même pas de sens au passé. La banalité, peut-être. Putain de banalité sans-fils, iPadée iPhonée iFoutue banalité. L'horreur, quoi. La peur.

Diário de Bordos - Pointe-à-Pitre - Horta, 18-04 a 05-05-2017

Largámos há quarenta e oito horas, aproximadamente. A tripulação está amarinada; cada um encontra o seu ritmo e o seu lugar a bordo. A nossa longitude é maior do que há dois dias: por estibordo temos um muro intransponível e é preciso contorná-lo. Depois espera-nos uma longa descida com ventos de popa ou pelo través – isto se as previsões meteorológicas e as estatísticas estiverem correctas. Estatisticamente a verdade é que nesta altura do ano os alísios deviam vir mais de Sul e não vêm; vêm de Nordeste, que é para onde queremos ir.

O azul do mar é provavelmente a cor mais bonita que conheço. Por muito que diga que quero deixar o mar – e quero – é impossível não reconhecer nesta paisagem a “minha” paisagem, o meu mundo, as minhas cores, o meu lugar. É impressionante pensar que quando olho para o mar é para mim que olho e apesar disso gosto do que vejo.

Durante o dia – das seis da manhã às seis da tarde – os quartos são de quatro horas; à noite de três. Cada um de nós faz todos os dias pelo menos uma viagem Lisboa – Guimarães e uma outra Lisboa – Porto num comboio que não tem carris, nem passageiros. Durante os quartos estamos sozinhos; por vezes aparece alguém na ponte para nos fazer companhia ou para apanhar um pouco de sol, mas fora esses momentos o quarto é o momento da comunhão com o barco, o mar e o vento. Alguns passam depressa, outros não. Como a vida, porque cada quarto é um bocadinho de vida: ontem olhava para Oríon, que está pelo través de bombordo e pensava quanto a queria ter pela popa, ou quanto gosto de a ter pela proa – e quão bonita é ali, com Sirius a guardá-la –. De tempos a tempos o alarme do piloto automático, em modo Vento apita: “não te distraias demasiado com Oríon ou contigo”, parece dizer. “Pensa em mim”.

Não se pode mentir ao mar. Podemos mentir a quem quisermos – cônjuge, patrão, amigos, fisco ou até a nós próprios –; mas ao mar não.

200417
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E depois nestes dias da tristeza faz-se como se faz com o vento: mareia-se a alma e segue-se para onde se pode, o mais perto possível de onde se quer. Zangar-se de nada serve. De resto: com quem?

O cotovelo rir-se-ia, se fosse com ele. Dos outros não vale sequer a pena falar: nada em mim ouviria os meus bramos, se por acaso me viesse a tão inútil como pouco provável vontade de os dar a ouvir, tão bonitos, tão mudos. Como o vento pouco se importaria, se eu me queixasse desta interminável bolina sem fim à vista. Uma semana, daqui a doze miseráveis horas.

(Verdade seja dita - a verdade dita alivia - que o cotovelo está assim há muito mais tempo; e a culpa é minha, só minha e não de um intrincado, caótico e incontrolável sistema atmosférico com milhares de variáveis).

240417

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Amanhã é o 25 de Abril e eu mais preocupado com as eleições francesas, cujo resultado me chateia desconhecer.

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O vento foi-se, de todo. Vamos devagarinho a motor, mil e duzentas rotações para não assustar o gasóleo. O objectivo é chegar à longitude dos Açores com os tanques a meio. Se o vento voltar até amanhã e não voltar a falhar conseguimos. Se não, vamos ter de parar nessas ilhas demasiado bonitas para uma escala curta.

As núvens estão paradas como numa fotografia. Nem amanhã teremos vento.

230417
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O sol nasce. A Oeste o céu tem uma estreita faixa alaranjada. Os cumulus, ainda escuros, sobressaem, dão-lhe profundidade, compõem um quadro a três dimensões. A Leste não: é tudo plano, uniforme, duas dimensões, só manchadas pela relativa claridade de algumas núvens mais altas, cirrus estratificados ou talvez altus.

A Lua está muito pequena, uma unha limpa (ou suja) de luz; a seu lado Vénus levantou-se vigorosa e ardente.

Não estou a ir para onde quero - ainda não apanhámos os ventos de Oeste e por isso vamos para Norte - mas a calma deste quadro é toda-poderosa. Tenho na boca o sabor do café que há pouco bebi e na memória a lembrança de uma miúda por quem devia ter-me apaixonado há alguns anos. Está frio mas não muito - é mais uma ausência de calor do que frio propriamente dito -; o vento cai outra vez; há dois dias que anda assim, entre o fraco e o nada. Deixo-o cair: sei que nem o barulho dos motores conseguiria dar cabo desta calma galáctica, profunda, misteriosa porque vem de (ou provoca, não sei) um sentimento que me nasce (ou vai para) uma região de mim (ou do universo) que desconheço. Pior ainda: não quero conhecer.

Dissolvo-me nestes sete nós de vento e mar correspondente, neste frio que não é frio, nestas cores que mudam a cada segundo: deve ser a esta mistura que chamo mistério e devido a ela que o sentimento de paz, calma, harmonia, sintonia, dissolução, plenitude me parece misterioso.

Não é. É simples: os fragmentos de mim - a memória de uma rapariga que devia ter amado, o frio que o não é, o prazer de sentir o O. avançar apesar do pouco vento, a indiferença por não estar a ir para onde quero - tudo isso se cola numa emoção simples, primitiva, primária da qual desconheço o nome. Calma, paz, harmonia, sintonia, dissolução, plenitude são apenas nomes, avatares insuficientes e desajeitados para descrever o que sinto.

Pouco me importa. A cada frase olho para o céu - que agora está claro - para as nuvens a Leste - já tingidas de laranja - para as vagas curtas, pacíficas deste mar que corresponde perfeitamente ao vento que as provoca -. Os cumulus estão baixos e escuros; os cirrus altos e claros. O horizonte perfeitamente definido a toda a volta. Em breve a temperatura subirá e eu deixarei, talvez, de pensar na miúda que devia ter amado e não amei, com quem hoje sonhei e que ficará para sempre associada a este nascer do sol, a esta calma, paz, harmonia misteriosas: aquilo-a-que-não-podemos-dar-nome.

O sol aparece no horizonte; daqui a pouco o meu quarto acaba. O céu está a três dimensões para onde quer que se olhe.

Eu também.

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Hoje sonhei contigo. Fomos dormir juntos, mas tu pediste-me para não fazermos amor. Eu disse que sim, claro, na esperança de que mudasses de ideias. Não mudaste e não fizemos. Quando acordamos disseste-me "tenho um namorado. Só queria ver se o amava o suficiente para dormir contigo e não fazer amor. Amo".

Reconstruo o sonho duas horas depois de acordar, de quarto na ponte, o sol a nascer. Está frio mas não muito, o horizonte para Oeste vermelho-alaranjado e para Leste ainda escuro, :um cinzento quase azul, quase violeta, como se tivesse vergonha de não ser negro. Ou medo de o ser.

Gostei muito do sonho: fiquei orgulhoso de mim - não me senti magoado por ter sido "usado" - e feliz por ti. Levantámo-nos, vestimo-nos, beijámo-nos e despedimo-nos. Só depois me lembrei de te dar os parabéns por teres um namorado, mas foi aí que acordei e já não consegui.

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Polinizador de matrimónios

- O meu nome é Florêncio Augusto e sou especialista em salvar casamentos.
- Salvar casamentos? O senhor está a brincar comigo? Você está envolvido em cinco casos de adultério e diz-me que salva casamentos?
- Sim, senhor doutor. É que elas andam comigo uns meses - não muitos: dois, três, com algumas chega aos quatro - e apercebem-se de que o marido é melhor.

Não só melhor do que eu - isso vêem logo, passado um mês - mas o melhor que vão arranjar. E assim salvo o casamento. Sou um polinizador de matrimónios..

Também acontece elas - enfim, as senhoras - andarem comigo para chegar à conclusão de que o casamento delas não serve. E vai daí separam-se e casam com outro. Ora um casamento que não funciona mais vale desfazê-lo, não acha? É começar um novo. Sou um polinizador, é o que lhe digo, meu caro.

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A paisagem no mar é mais variada do que a maioria das pessoas pensa: começa pela noite, claro, com estas estrelas todas, nas quais nos perdemos ou podemos perder-nos horas sem nos cansar. De dia há o mar, que nos diz o que aconteceu ao longe e o que está acontecer perto de nós. Às vezes, simpaticamente também o que está para vir. Com as núvens passa-se exactamente o mesmo, ou quase: dizem-nos o que está e o que vem, e às vezes o que foi. Quem não se deliciou com a nebulosidade caótica de uma post-depressão, quem não agradeceu aos cirrus o aviso de uma outra que está por chegar? Quem não se contenta com um céu cheio de cumulus, as nuvens do statu quo, quando está contente com a situação actual ou se enfureceu com esses mesmos cumulus quando quer outra?

O céu e o mar são grandes contadores de histórias, livros abertos que basta saber ler, jornais com notícias atrasadas, do dia e de amanhã na mesma página.

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260417
Revejo-me a navegar na Mancha há quarenta (quase) anos: um tempo de merda, mar caótico, vento que um gajo não sabe se é carne se é peixe, riza desriza e volta a rizar.

O que mudou? Tudo. O barco é incomparavelmente maior e melhor, não estou sozinho, tenho mais experiência...

E mais quarenta (quase) anos, puta que os pariram, um a um.

Estou estoirado, morto, derreado.

E já que estamos nos cumprimentos e delicadezas: puta de noite a que passei antes do quarto. Saltos, barulho, solavancos. Parecia que estava no trampolim de um circo de bêbedos.

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Comprei mais um par de sapatos Foreva, apesar da má experiência com o último. Até escrevi ao departamento de marketing, mas eles não ligaram nenhuma. Devem estar habituados às críticas. A verdade é que a loja fica mesmo à boca do Metro e entre comprar um mau par de sapatos conhecidos ou passar uma horrível hora a entrar e a sair de lojas cujas marcas ou não conheço ou excedem largamente o orçamento sapatal (e das quais algumas a qualidade deixa tanto a desejar como a das outras) preferi o diabo que conheço.

O sacrifício de entrar em lojas não é linear e directamente proporcional à quantidade de lojas que se visitam. É exponencial: à segunda loja a dor é três vezes maior, à terceira seis, à quarta deixa de ser mensurável.

Tenho-os usado todos os dias porque está frio e o tempo uma merda indescritível.

Enfim, é quase certo que terei de parar na Horta. Em breve poderão testar solo nacional.

260417
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O vento cai, levanta-se, corre, anda, mas rondar está quieto. Porra, de tanto lado de onde pode vir por que raio de carga de água tem de ser SE? Norte, Noroeste, Sudoeste, Sul... tudo menos o que está, ESE que é exactamente para onde eu quero ir.

Ou quase: o mais provável é pararmos nos Açores. Mas para o vento que está tanto faz. Nada muda: faço NE e é um pau. Piloto automático, gerador, combustível: as razões acumulam-se. Se bem do piloto tenha um bocado de medo: se for realmente o Fluxgate, como penso, tenho ali para uma semana. (Mas seguir sem piloto está fora de questão. A ver vamos, como dizia o nosso amigo ceguinho).

Hoje mudo a hora. A primeira de seis mudanças. Felizmente é no bom sentido: menos vinte minutos de quarto a cada vez (e quarenta de descanso, mas desse temos em demasia).

Sacana do mar está desorganizado, caótico, chato. Vá lá que agora melhorou um bocadinho, mas ainda estou longe da popa ou do largo com a qual sonhamos todos desde que largámos. É preciso ter azar: segundo o Pilot's E e SE são os ventos menos frequentes nesta área neste mês...

N. está a revelar-se um tripulante fantástico. Que diferença faz dos atrasados mentais da última travessia. K. é encantador. Não tem metade da experiência que o E. disse que tinha, claro; mas é boa pessoa, prestável e - nada despiciendo - parece-me bom engenheiro.

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Vamos para a Horta, aos èsses, como marinheiro jovem hesitante em casa de meninas.

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Se alguém quiser fazer um diagnóstico do estado de uma embarcação de recreio tem um método eficaz à disposição: pô-la uma semana à bolina com força quatro ou cinco permanente.

Nós vamos quase a caminho da semana e meia. Começo a conhecer o bote e a achar que merece o nome.

Não que seja uma surpresa. Não é. A haver surpresa seria no outro sentido: para um barco com sete anos de charter nos costados até está em muito boas condições. Mas o armador vai ter que gastar uma boa pipa de massa para o pôr em condições. A C C, que o operou nestes sete anos não o vendeu por acaso.

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Chama-se a isto um dia em cheio: primeiro partiu-se a adriça de genoa. Foi preciso arrear a grande para ter uma adriça para a cadeira. Mal pus o pé no convés rebentou um moitão do carrinho da grande. Entretanto o motor de bombordo juntou-se ao gerador e recusa-se a trabalhar (problema de tanques sujos, muito provavelmente). Enquanto estava a subir ao mastro passou por nós um navio de guerra, um abastecedor. Ficámos todos com a impressão de que ele tinha abrandado para esperar por mim pendurado no mastro (passámos perto. Tive de zigzaguear para lhe passar pela popa). De modo fui agradecer-lhe à VHF e aproveitei pedi previsões de tempo. A senhora fez-me uma descrição impecável do tempo que está e despediu-se. "Espera, espera: aqui para Norte de nós está um anticiclone. Pode dar-me o seu centro, por favor?" "Sorry, Sir, mas não posso dar essa informação". Porra, isto é que é um segredo de Estado, o centro de um anticiclone... Não percebi de onde era. O nome parecia qq coisa como Shaba e o código no casco era I 88. Quando chegar a terra vou tentar encontrá-lo.

Enfim, isto é.

Que a próxima escala vai ser a Horta é uma certeza; a ver se o motor de estibordo ainda carrega as baterias hoje à noite e amanhã de manhã, para ter um tempo mais calminho para a mudança de filtros; e sobretudo a ver se não se parte mais nada e a reparação provisória do carrinho da grande se aguenta. Vasto programa, para o qual só a esperança é chamada a contribuir.

(Já agora: velhos são os trapos. Ainda cá estou para meia dúzia de curvas).

Passado o pequeno intervalo publicitário retomemos o programa: vamos com nove dias de bolina. Assim de repente chega, não? Ou é para repetir a proeza do Bernard aqui há trinta e tal anos que foi da Martinique à Horta à bolina? Isto com os ventos favoráveis é como com o aquecimento global: só os há onde eu não estou.

Sacana do navio de guerra não me sai da cabeça. Não me pode dizer onde está o anticiclone. Será por ali que saem os mísseis nucleares?

Ainda bem que a urgência não era saber o resultado das eleições francesas...

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O pior é que olhando para trás: sim, foi um dia bom. Um dia em cheio. Temos tudo reparado, os dois motores estão a funcionar (por obra e graça do Espírito Santo, salvo seja, mai-la uma ajudita provável da gravidade), Temos água e comida e amanhã aposto que entra um vento mais decente do que esta porra deste ESE e daqui a oito dias estamos no Peter a beber um gin e a comer um prego.

Eu disse um gin.

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Uma tripulação porreira e a sua vida muda, não é? É.

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Pode ser que esteja enganado, mas nesta coisa de a AI substituir postos de trabalho quer parecer-me que o lugar de skipper numa embarcação de vela vai ser dos últimos a desaparecer. O que, de passagem seja dito, abona pouco em favor da inteligência do dito skipper.

270417

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A única vantagem destes dias de pancada é que passam a uma velocidade incomparável. Ontem foi o dia todo a nove - dez; hoje passou dos nove para os oito e agora está quase nos sete: quase. Cada vez que sonha lá chegar - ou eu sonho que lá estamos - subimos de novo para os oito.

Dizer que estou farto não exprime totalmente o que sinto; mas tão pouco quero exprimir todos os meus sentimentos, excepto o da gratidão pelos dias que passam depressa, pela excelente tripulação que tenho (o K. é fraquinho mas é uma simpatia; o N. é um dos melhores tripulantes que tive nestes últimos anos), por estar quase a chegar à Horta e ao Peter - amanhã é aquele dia mágico em que podemos dizer "chegamos depois de amanhã" -.

Estou ansioso por chegar. As mazelas do O. doem-me como se fossem minhas. Quero começar a tratar delas. (Talvez devesse antes dizer "doem-me como se não fossem minhas": de mim não trato com tanta vontade).

E estou ansioso por me apanhar no Mediterrâneo, incrível que pareça.

Hoje é dia do trabalho e continuo sem saber o resultado das eleições francesas.

010517

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Três Beaufort a menos durante toda a travessia não teria feito mal, antes bem. Teria sido mais confortável, teríamos demorado o mesmo e estaríamos mais secos, é tudo.

Um gajo sabe que está a levar um arraial de porrada quando o vento baixa para trinta nós e parece que deixou de haver vento de todo.

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A meteorologia é uma ciência de excepções em busca de uma regra.