Este post é uma homenagem sentida ao Othon, amigo de todos os navegadores, grande escultor, radioamador e um grande, grande homem.
A oficina dele era o ponto de encontro de toda a gente que navegava. Quem tinha vontade podia sentar-se e aprender a fazer scrimshaw, arte difícil que requer muito jeito e muita paciência. Othon tinha-os, em muito grande quantidade. O que ele não tinha era jeito para hipocrisias, salamaleques e o resto. E quando esta história se passa, ele já sabia que tinha a maldita doença que, poucos meses mais tarde, o levaria.
Um dia vem do continente uma delegação de deputados do PCP, partido de que o Othon não gostava nada, mas mesmo nada. Alguém lhe pedira para os receber na sua oficina, e ele não queria. Ms acabou por ceder perante a insistência do funcionário público que, inconsciente ou ignorante, lhe fizera o pedido.
Quando os senhores chegaram eu estava lá, a comprar qualquer coisa para a Sandra. Entraram todos, cinco ou seis, e desfizeram-se em elogios à arte do Othon, para eles paradigma provavelmente da arte popular, etc.
É preciso imaginarem o atelier, um espaço nem muito grande nem muito pequeno, cheio de malta dos barcos a trabalhar em peças simples, e mais malta dos barcos à volta do rádio, e mais malta dos barcos a percorrer o atelier à procura de qualquer coisa, e mais malta dos barcos que lá ia só para dizer olá ao Othon - muitas vezes tinham tido longas conversas por rádio e queriam conhecê-lo. E o Othon a todos dava atenção, a todos respondia, a todos ajudava.
A delegação do PCP estava, no mínimo, fora do contexto. Mas o chefe da dita, um senhor muito conhecido, insistia em tecer rasgados elogios ao Othon e ao trabalho do Othon. Ele eram "magnífico!", ele eram "que beleza!", ele eram "que arte!" - e o nosso amigo a perder, visivelmente, a paciência.
Até que a visita chega ao fim, e o Othon, açoriano até à medula - e, como todos os açorianos, fundamentalmente generoso (sim, isto pode co-existir com o post abaixo) - oferece uma das suas melhores peças ao deputado. Mas o representante do povo não quer, e depois quer uma peça mais pequena, e depois, para horror do Othon, insiste em pagá-la. Ele queria uma peça pequenina, mas não senhor, estava fora de questão que o Mestre (era assim que ele tinha tratado o Othon durante toda a visita, o que ainda o enfurecera mais) lhe oferecesse a coisa, ele queria pagá-la.
E aí, siderado, eu vi o Othon ir à prateleira onde estavam uns golfinhos feitos em série por um dos navegadores de passagem, coisas pequenas feitas com os restos dos dentes e que só serviam para dar treino aos improváveis aprendizes, tirar um, vendê-lo ao deputado por dez vezes o seu valor (e ele percebeu, que eu vi). E quando o senhor se ia embora, ainda a desfazer-se em elogios - só que agora nitidamente menos entusiastas - o Othon responde-lhe: "ainda bem que gosta. Mas agora não vá lá para o continente dizer que fui eu que fiz isso, está bem?"
Praticamente ninguém falava português no atelier, ninguém se apercebeu de nada. O deputado quase que tropeçava ao sair. E o Othon voltou a concentrar a sua atenção em nós, seus amigos, e no seu trabalho.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.