6.1.04

Aniversário

Tem sido dificílimo escrever esta história. Nunca me sai bem. Esperemos que este novo medium ajude. A verdade é que de Ngozi eu pouco me lembro: a côr, que era castanha, ou antes encarnado escuro. E do pó que se entranhava em todo o lado, por todo o lado; quando viajávamos embrulhávamos a roupa em sacos de plástico antes de a pôr nos sacos, malas, mochilas: de nada servia. E lembro-me da primeira vez que vi um campo de refugiados: não consegui impedir-me de chorar, e senti-me embaraçado.


No dia dos meus 37 anos eu estava em Ngozi, no norte du Burundi. Tinha lá sido colocado por duas ou três semanas para substituir um colega, doente. O ar tinha a consistência de gelatina, por causa da tensão: os Tutsis já se tinham ido embora e os Hutus estavam relativamente bem instalados nos campos novos que tí­nhamos aberto para eles - não queria utilizar os campos que tinham servido para os Tutsis. A resistência Hutu organizava-se, e volta e meia aparecia um morto no campo por razões inexplicáveis (isto para além, claro, dos que apareciam mortos por razões imediatamente identificáveis). Embora o problema das granadas não fosse tão grave como em Bujumbura (Buja, daqui para a frente) de vez em quando ouvia-se uma explosão.

A última festa do pessoal do humanitário tivera lugar havia seis meses, precisamente por causa de uma granada, felizmente sem consequências. Aquleas granadas eram péssimas, só faziam barulho - mas cumpriam o seu objectivo principal, que era desestabilizar. Em Buja, a tensão era muita, também; mas outra, melhor. Resolvi propôr a organização de uma festa, com o pretexto do meu aniversário. Sugestão aceite com um entusiasmo (para quem gosta de understatements).

Os preparativos foram dignos de um filme: o primeiro passo foi escolher o local; tinha que ser grande, suficientemente afastado da rua para evitar as granadas, e fácil de guardar pelo exército. Depois, houve que tomar precauções quanto à data: começámos por proclamar alto e bom som que a festa teria lugar no sábado. Falávamos nela a torto e a direito, pela rádio, onde quer que nos encontrássemos. Uma semana (ou talvez menos) antes fomos avisando pessoalmente todos os convidados que a festa seria na sexta feira e não no sábado. Prova que as precauções funcionaram foi que no sábado apareceram-nos ainda duas ou três pessoas que não tinham ouvido falar da "mudança" de data.

A seguir veio a parte da logística: fazer vir de Buja tudo o que tinha de vir, e encontrar em Ngozi fornecedores para o resto - sempre dizendo-lhes que era para sábado, mas que ví­nhamos buscar as coisas na sexta por uma questão de organização. Um colega meu, Mauritaniano, encontrou um grupo de mulheres muçulmanas, e ofereceu-se para fazer um mechoui mauritaniano, segundo ele muito melhor, incomparavelmente melhor do que o mechoui argelino ou marroquino. Era difícil falar com ele porque tinha estado numa prisão da Mauritânia durante sete anos e perdera a capacidade de falar a um ní­vel de som normal: falava muito baixinho, num murmúrio, inaudível. Por sorte o padeiro também era muçulmano e emprestou-nos o forno para os três carneiros que as senhoras tinham levado dias e dias a preparar - sexta-feira era o seu dia de folga, até calhava bem.

De Buja vieram as bebidas, aperitivos, e alguns convidados. De Ngozi, o resto do acessório e o principal: a necessidade de deixar sair um pouco de pressão, de descarregar tensões, de afogar medos, frustrações e demónios. O mechoui estava, como prometido, fabuloso, a música bem escolhida pelo DJ improvisado, e as pessoas lançaram-se à comida, à bebida e à pista de dança com uma sofreguidão indescrí­tivel. Eu andava pelo jardim a levar cerveja aos soldados: primeiro, porque eles pediam; depois, porque já estavam bêbados e eu queria fazer com que eles caí­ssem inconscientes - o que só consegui lá para as três da manhã.

O ponto fraco da casa era uma varanda, muito perto do muro do jardim; tínhamos pedido para não ser utilizada. Foi-o, claro. Mas a certa altura deixei de me preocupar com isso. Deixei de me preocupar com tudo, de resto: às seis da manhã os últimos convidados dançavam em cima de uma mesa, e eu fui directamente para o escritório, ressuscitado.


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