2.1.04

Casa do Largo

Numa outra vida fui jovem oficial da marinha mercante. Um dia dediquei-me a calcular se poderíamos, em vez de água do mar, usar whisky para lastrar o navio. A resposta é "não". Ou melhor, “nem sempre”. Sobretudo quando o navio vai vazio (gosto desta aliteração. O termo técnico correcto é "leve"; a expressão mais bonita é a francesa: "lège". Un navire lège. É bonito).

Lastra-se um navio quando ele está leve, ou incompletamente carregado. Serve para manter o hélice dentro de água e para lhe assegurar a estabilidade. Pelo contrário, uma alma necessita de lastro quando está carregada - e o whisky, justamente, alivia-a.

É por isso que vou à Casa do Largo: tenho whisky em casa, claro, mas desta vez enganei-me e comprei uma marca horrível. Não lhe consigo tocar. Espero poder usá-lo para cozinhar, ou para marinar cascas de banana no caixote do lixo. A Casa do Largo, em contrapartida, tem bom whisky. De facto, é um dos melhores bares do mundo.

Como tudo o que é bom, como todos os corpos bonitos, a Casa do Largo tem uma ou duas verrugas. Enfim, três. Num corpo feminino, numa face, uma verruga tem uma função: chamar a atenção para o que a mulher considera ser a parte mais bonita do seu rosto; não é raro, antes pelo contrário, ver-se uma verruga perto de um nariz perfeito; ou de um olhar profundo. As verrugas da Casa do Largo têm exactamente o mesmo objectivo.

Uma delas, a mais antiga, é a música, que é horrorosa - mas está perfeitamente adaptada ao sítio. É uma simbiose, e não consigo imaginar a Casa do Largo com outra música (agora escuto, por exemplo, uns madrigais do Gesualdo: que me teria acontecido, que lhes teria acontecido, na Casa do Largo?). De resto, já o Buñuel dizia (e eu subscrevo inteiramente) que num bar não deve haver música. E que diferença há entre a má música e a ausência de música?

A outra verruga da Casa do Largo é um dos empregados: não posso dizer qual, porque me poria veneno no whisky. - Pero, ¿qué importa? – também tem um dos melhores barmen do universo.

A função de barman é nobre e difícil: é preciso saber quando se pode falar e quando se deve ficar calado; é preciso ter a noção que certas contas devem ir para o congelador e lá ficar, nobremente, por muitos e largos meses (será daí que vem o nome da Casa?) – mas que não devem nunca, sob pena de descrédito total do bar e insulto definitivo ao cliente, passar do congelador para a lareira. É necessário saber ouvir e não gostar de falar, falar mesmo quando não se quer e não ouvir mesmo que se queira; é preciso ser transparente e ser denso; humilde e pedagógico; amigo e fornecedor. E um dos barmen da Casa do Largo – também não posso dizer qual, porque ele não gostaria - é isso tudo, completamente. Tarefa complicada. Não sei se serei um bom barman: aspiro a ser, um dia, proprietário de um bar, o que é infinitamente menos complicado e menos sublime.

A terceira verruga da Casa do Largo é a televisão: está lá desde um recente campeonato de futebol, e ainda incomoda menos do que as outras, porque são inúmeros os sítios de onde se pode não a ver.

Em contrapartida, a Casa do Largo tem incomparáveis vantagens: em primeiro lugar é um sítio lindo, e bem situado; depois, não tem mulheres – deve ser o único bar de Portugal que não tem mulheres. Assim, quando lá levamos a nossa namorada todos os homens presentes, e mesmo aqueles que não estão lá, olham para ela com inveja e luxúria (digo isto sabendo que hoje ouvi risos femininos -e jovens-, e que isso me acontece cada vez mais. Não faz mal: estou a falar da Casa do Largo tal como era. Seria?).

No inverno a Casa do Largo tem uma lareira e no verão um terraço. Durante o ano todo tem um magnífico barman. As nossas namoradas são mais do que bemvindas e apreciadas ao seu justo valor, porque não têm concorrência. O whisky é servido de uma forma fluida e discreta. A decoração é perfeita, e imutável, Allah U Aqbar. As tostas de carne assada dão vontade de jejuar só para lá poder ir e comer muitas. Que se pode querer mais?

Poder, um dia, ir para lá viver, suponho. Ou os madrigais do Gesualdo quando se volta para casa, e um computador para escrever estupideses.

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