É meia-noite e meia e provavelmente a vigésima vez que chego a uma cidade com a esperança de recomeçar a vida. Aos quarenta e três anos é, reconheçamos, tarde. Nunca se reparte do zero, evidentemente, excepto financeiramente: todos nós acumulamos uma bagagem à qual os americanos dão o nome, redutor, de “emocional” e um conjunto, mais ou menos rico – mas muito mais importante do que a dita bagagem – de silêncios, que levamos connosco onde quer que vamos. É por isso que o James Baldwin tem aquelas linhas fabulosas sobre o mundo, "sempre mais pequeno do que o viajante que nele viaja"; e é por isso que nos tornamos, com a idade, cada vez menos pacientes, mas cada vez mais tolerantes.
Há vários tipos de silêncio e várias receitas. Os meus são feitos de uma mistura - que varia, naturalmente, com o interlocutor - de medo, arrogância e esperança. Há outros ingredientes, claro, como o respeito, a liberdade, a indiferença, o embaraço, a cumplicidade. Cada pessoa deve escolher o seu silêncio – e os ingredientes que o compõem –, mas nunca se deve misturá-los, porque cada silêncio é diferente dos outros, e não são miscíveis: misturá-los é uma fonte garantida de misérias ou de chatices. Sobretudo, os silêncios não devem ter mentiras à mistura, porque mentimos a nós mesmos – e isso acaba mal, invariavelmente –. Há silêncios sólidos, e outros que o são menos; há silêncios que nos encurralam, e silêncios que nos libertam (enfim, espero).
Há silêncios de vários níveis: a primeira vez que fui a Barcelona fiquei em casa de amigos que conheci durante as vindimas em França. Ele era basco, pequeno e atarracado, falava espanhol e francês. Ela era uma alemã interminável, com uns seios enormes que eu por vezes via, nus, sobre a cidade, como duas luas abençoadas, e falava alemão e inglês. Compreendiam-se porque eram ambos estudantes na escola de mímica e mimavam todas as conversas, mesmo as mais triviais. Era agradável estar com eles, mas a magia perdia-se um pouco porque eu tinha que falar - não sabia, como eles, mimar o silêncio.
II
Os silêncios mudam, como o tempo ou o mar, rei de todos os silêncios. Hoje conto os tostões em Londres e bebo cerveja Courage, e tento reanimar uma libido moribunda. A libido está para a saúde como a construção para a economia. Os próximos anos vão ser uma travessia do deserto, mais uma. Para que uma relação funcione é preciso que os silêncios de cada um dos parceiros sejam compatíveis. E eu preciso de apanhar os bocados de mim que deixei espalhados por todo o lado, que as feridas se fechem e que esta impressão de não servir senão para beber whiskies (beber cerveja é uma adversidade, mais uma) me largue antes de poder sonhar com outros terrenos, outros corpos.
Uma vez conheci uma mulher pela qual me apaixonei. Um dia fui esperá-la ao aeroporto e vi todas as mulheres da minha vida, todos os aeroportos. E vi, como antes de morrer, todas as mulheres que esperei em todos os aeroportos, e apercebi-me de que ela se enganava de silêncio, como eu. Amava-a demasiado para lhe infligir o campo de batalha no qual a minha vida se tinha transformado. Amava-a muito; ainda a amo, de uma certa maneira, como amo todos os silêncios inexplorados, incompletos, frustrados. Mas ela detesta-me, odeia-me, e tem razão: outro silêncio mal interpretado, outro silêncio mortal, outro silêncio do qual portarei o estigma até ao fim. Há silêncios invioláveis, impossíveis de partilhar, e os meus são-no cada vez mais, angustiantes.
III
Escrevia estas linhas em Londres, e nessa altura não media a amplitude da devastação. Hoje, nestes comboios quotidianos (que em breve acabarão, eles também), ainda ferido, ainda só, tento “quebrar o silêncio”, recompô-lo numa memória de computador, na minha memória. Mas é difícil: quando se teve por única companhia, durante tanto tempo, um dado silêncio é difícil mudar: não se pode mudar de silêncio como se muda de camisa. Como não se pode mudar de dor, nem a dor.
Alguns silêncios têm cores. Um dos meus silêncios favoritos é negro, negro como os cabelos de uma rapariga por quem me apaixonei há uns anos, numa praia de Moçambique. Estávamos deitados na areia, a olhar o céu e a falar – ela de Lanzarote, onde tinha nascido, de Londres, onde vivia, do trabalho, com o qual não estava contente. E eu falava-lhe das raízes, que teimam em crescer, e das quais é tão difícil fugir, às quais é tão difícil voltar; e de como é imperioso fechar as portas que deixámos abertas por muito que os anos tenham passado. O desejo subia em nós como a maré, ou como um copo que se deixa debaixo de uma torneira que pinga, em silêncio. Eu olhava-a, e via a mancha negra dos cabelos dela no branco da areia, e falava, falava, porque falar é o melhor silêncio, por vezes. Hoje está a chover, e a chuva é espessa e negra e brilhante como os cabelos dela na areia. Eu não sabia que estava apaixonado, e de qualquer maneira não queria estar apaixonado, porque não queria sofrer mais, nem fazer sofrer. No fim, como sempre, os silêncios levaram a melhor ao desejo: disse-lhe boa noite, acompanhei-a ao quarto do hotel, e fui deitar-me sozinho, dorido.
Agora é tarde, demasiado tarde. Já não estou apaixonado por ela porque o amor é como a chuva: por vezes deixa-nos molhados e frios, por vezes deixa-nos como a erva nos planaltos do Zaire, leves, brilhantes e abençoados. Os silêncios, como as chuvas e os amores, podem ser muito diferentes, mesmo se se assemelham imenso. Com essa rapariga falava espanhol, e uma língua que partilhamos com alguém é como uma casa. Cada casa tem cantos que nunca visitamos, silêncios. No “Leopardo”, esse milagre, o Príncipe diz: “uma casa da qual conhecemos todas as divisões não merece ser habitada”. Falávamos espanhol, mas eu não sei calar-me em espanhol – e só devemos utilizar uma língua quando podemos utilizar os seus silêncios. Já não a amo, como a chuva que parou e deixou as ruas molhadas, mas brilhantes; e gostaria que ela fosse feliz como uma paisagem africana depois da chuva.
Que fazer, para calar os gritos ensurdecedores dos meus silêncios? Escrever, talvez.
Londres, Neuchâtel, 2001
Há vários tipos de silêncio e várias receitas. Os meus são feitos de uma mistura - que varia, naturalmente, com o interlocutor - de medo, arrogância e esperança. Há outros ingredientes, claro, como o respeito, a liberdade, a indiferença, o embaraço, a cumplicidade. Cada pessoa deve escolher o seu silêncio – e os ingredientes que o compõem –, mas nunca se deve misturá-los, porque cada silêncio é diferente dos outros, e não são miscíveis: misturá-los é uma fonte garantida de misérias ou de chatices. Sobretudo, os silêncios não devem ter mentiras à mistura, porque mentimos a nós mesmos – e isso acaba mal, invariavelmente –. Há silêncios sólidos, e outros que o são menos; há silêncios que nos encurralam, e silêncios que nos libertam (enfim, espero).
Há silêncios de vários níveis: a primeira vez que fui a Barcelona fiquei em casa de amigos que conheci durante as vindimas em França. Ele era basco, pequeno e atarracado, falava espanhol e francês. Ela era uma alemã interminável, com uns seios enormes que eu por vezes via, nus, sobre a cidade, como duas luas abençoadas, e falava alemão e inglês. Compreendiam-se porque eram ambos estudantes na escola de mímica e mimavam todas as conversas, mesmo as mais triviais. Era agradável estar com eles, mas a magia perdia-se um pouco porque eu tinha que falar - não sabia, como eles, mimar o silêncio.
II
Os silêncios mudam, como o tempo ou o mar, rei de todos os silêncios. Hoje conto os tostões em Londres e bebo cerveja Courage, e tento reanimar uma libido moribunda. A libido está para a saúde como a construção para a economia. Os próximos anos vão ser uma travessia do deserto, mais uma. Para que uma relação funcione é preciso que os silêncios de cada um dos parceiros sejam compatíveis. E eu preciso de apanhar os bocados de mim que deixei espalhados por todo o lado, que as feridas se fechem e que esta impressão de não servir senão para beber whiskies (beber cerveja é uma adversidade, mais uma) me largue antes de poder sonhar com outros terrenos, outros corpos.
Uma vez conheci uma mulher pela qual me apaixonei. Um dia fui esperá-la ao aeroporto e vi todas as mulheres da minha vida, todos os aeroportos. E vi, como antes de morrer, todas as mulheres que esperei em todos os aeroportos, e apercebi-me de que ela se enganava de silêncio, como eu. Amava-a demasiado para lhe infligir o campo de batalha no qual a minha vida se tinha transformado. Amava-a muito; ainda a amo, de uma certa maneira, como amo todos os silêncios inexplorados, incompletos, frustrados. Mas ela detesta-me, odeia-me, e tem razão: outro silêncio mal interpretado, outro silêncio mortal, outro silêncio do qual portarei o estigma até ao fim. Há silêncios invioláveis, impossíveis de partilhar, e os meus são-no cada vez mais, angustiantes.
III
Escrevia estas linhas em Londres, e nessa altura não media a amplitude da devastação. Hoje, nestes comboios quotidianos (que em breve acabarão, eles também), ainda ferido, ainda só, tento “quebrar o silêncio”, recompô-lo numa memória de computador, na minha memória. Mas é difícil: quando se teve por única companhia, durante tanto tempo, um dado silêncio é difícil mudar: não se pode mudar de silêncio como se muda de camisa. Como não se pode mudar de dor, nem a dor.
Alguns silêncios têm cores. Um dos meus silêncios favoritos é negro, negro como os cabelos de uma rapariga por quem me apaixonei há uns anos, numa praia de Moçambique. Estávamos deitados na areia, a olhar o céu e a falar – ela de Lanzarote, onde tinha nascido, de Londres, onde vivia, do trabalho, com o qual não estava contente. E eu falava-lhe das raízes, que teimam em crescer, e das quais é tão difícil fugir, às quais é tão difícil voltar; e de como é imperioso fechar as portas que deixámos abertas por muito que os anos tenham passado. O desejo subia em nós como a maré, ou como um copo que se deixa debaixo de uma torneira que pinga, em silêncio. Eu olhava-a, e via a mancha negra dos cabelos dela no branco da areia, e falava, falava, porque falar é o melhor silêncio, por vezes. Hoje está a chover, e a chuva é espessa e negra e brilhante como os cabelos dela na areia. Eu não sabia que estava apaixonado, e de qualquer maneira não queria estar apaixonado, porque não queria sofrer mais, nem fazer sofrer. No fim, como sempre, os silêncios levaram a melhor ao desejo: disse-lhe boa noite, acompanhei-a ao quarto do hotel, e fui deitar-me sozinho, dorido.
Agora é tarde, demasiado tarde. Já não estou apaixonado por ela porque o amor é como a chuva: por vezes deixa-nos molhados e frios, por vezes deixa-nos como a erva nos planaltos do Zaire, leves, brilhantes e abençoados. Os silêncios, como as chuvas e os amores, podem ser muito diferentes, mesmo se se assemelham imenso. Com essa rapariga falava espanhol, e uma língua que partilhamos com alguém é como uma casa. Cada casa tem cantos que nunca visitamos, silêncios. No “Leopardo”, esse milagre, o Príncipe diz: “uma casa da qual conhecemos todas as divisões não merece ser habitada”. Falávamos espanhol, mas eu não sei calar-me em espanhol – e só devemos utilizar uma língua quando podemos utilizar os seus silêncios. Já não a amo, como a chuva que parou e deixou as ruas molhadas, mas brilhantes; e gostaria que ela fosse feliz como uma paisagem africana depois da chuva.
Que fazer, para calar os gritos ensurdecedores dos meus silêncios? Escrever, talvez.
Londres, Neuchâtel, 2001
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.