Um magnífico Cozido ao meio dia e um sublime Polvo à Lagareira ao jantar. Meus caros quilos, não vos preocupeis, estais para ficar. (A propósito, quem é que disse "belo como uma frase sem adjectivos")?
O contraste entre os dois restaurantes é saisissant, uma perfeita imagem do Portugal de hoje: uma tasca, bonita de tão feia, com uma cozinha que nem sequer é tradicional - é o que há, é a da casa (mas tem personalidade, tem uma "individualidade" - e eu aconselho-o, sem hesitar: "Beira-Rio", avenida 24 de Julho 84); e um restaurante bonito ("Nariz Apurado", rua da Esperança 100, tel. 213 960 653), com uma decoração cuidada, boa música, serviço perfeito por uma senhora que sabe o que é Fernet-Branca (se bem que o não tenham); a lista é parca e fraca de pouco imaginativa - mas o que lá está deve ser bom, a julgar pela sopa e pelo polvo, que estavam ambos francamente próximo do melhor que já comi - mas ao fim e ao cabo trivial, igual a milhares de outros por esse planeta fora (não me perguntem como, nem porquê: a objectividade não é o meu forte, nem o meu objectivo).
A mesa ao lado era um aniversário, com cerca de 22 ou 23 pessoas. Todas brancas, todas portuguesas, todas com um facies (ou melhor, uma aparência) totalmente desinteressante. Onde, no mundo ocidental, teríamos uma mesa assim? Em Espanha não: haveria duas mulheres lindas, dois monstros e três ou quatro que disfarçariam a sua banalidade com roupas idiotas; em França sim, sem hesitar; em Genève, a mesa teria pelo menos cinco nacionalidades e duas beldades, masculinas ou femininas; nos Estados Unidos sim, desde que não fosse Nova Iorque ou S. Francisco, Chicago ou New Orleans; na Alemanha... who cares? Porque havemos de passar o tempo a definirmo-nos em oposição aos outros? Qué vaya, hombre, !no jodas!
Um dia banal? Não, de modo nenhum. Comprei dois livros de Sophia de Mello Breyner Andresen, e os dois custaram-me menos do que muitos livros cem vezes piores. "E a porta da cidade é feita de dois barcos"; "Toma-me ó noite em teus jardins suspensos"; "Não te ofenderei com poemas /... / O teu mundo era simples e difícil / Quotidiano e límpido"; "Eu contarei a beleza das estátuas / ... / E falarei do rosto dos navios"; "Pelas tuas mãos medi o mundo". Versos destes, mesmo que misturados por vezes com outros mais datados, salvam um dia.
E depois há esta alergia, que deve ser a única coisa que me separa do homem de Neanderthal. Só com anti-histamínicos e vodka a rodos lhe consigo pôr cobro (mais uma aliada da dieta, sem dúvida).
Hannah pacienta, num canto. Sabe que não vai morrer (pelo menos para já), mas não sabe ainda se vai matar e safar-se, impedir um assassínio, ou acabar, tranquilamente, o seu caso com Daniel. Os filhos continuarão, serenos (menos Helena, claro, que é alerta, isto é, inquieta) a aprender vela; em breve começarão a namorar, e perceberão de que falam os pais quando falam de certas coisas cujo sentido até ali lhes escapava; Daniel juntará Hannah ao seu tableau de chasse, sem ver que naquele jogo quem ganha é quem perde, ganhar é empatar, perder é ganhar - nada é o que parece, e só um tolo toma o que é, ou parece, por significativo.
Ao som do Uri Caine, a alergia temporariamente debelada, o dia transita. O sol não imagina que passou uma linha, o meu figado pergunta-se porque llhe dou tanto trabalho, a "Creoula" continua à frente da minha janela e não sabe porquê, nem para quê. Lembram-se de como começa o "Homem sem Qualidades"? (Para a citação, fui ao Google - em francês, infelizmente):
"I. D'où, chose remarquable, rien ne s'ensuit.
On signalait une dépression au-dessus de l'Atlantique; elle se déplaçait d'ouest en est en direction d'un anticyclone situé au-dessus de la Russie, et ne manifestait aucune tendance à l'éviter par le nord. Les isothermes et les isothères remplissaient leurs obligations. Le rapport de la température de l'air et de la température annuelle moyenne, celle du mois le plus froid et du mois le plus chaud, et ses variations mensuelles apériodiques, était normal. Le lever, le coucher du soleil et de la lune, les phases de la lune, de Vénus et de l'anneau de Saturne, ainsi que nombre d'autres phénomènes importants, étaient conformes aux prédictions qu'en avaient faites les annuaires astronomiques. La tension de vapeur dans l'air avait atteint son maximum, et l'humidité relative était faible. Autrement dit, si l'on ne craint pas de recourir à une formule démodée, mais parfaitement judicieuse : c'était une belle journée d'août 1913.[...]"
Pois: a situação não é exactamente como a que Musil descreve, mas não deixa de ser comum, e de ter poucas consequências sobre o que se seguirá.
Lisboa moderniza-se, e Portugal imita-a, provavelmente. Uri Caine re-interpreta Wagner mas não me enche as medidas, e, três anos antes de eu nascer, Sophia de Mello Breyner perguntava: "E agora ó Deuses que vos direi de mim?" - Já tudo foi dito, meus caros, basta ir às boas livrarias, ou seleccionar os bons fornecedores. E o Cristo-Rei, coitado, aprova, amarelo e idiota - não pode, nem sabe, fazer outra coisa.
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