Sobre um post no Cataláxia:
Caro Rui,
com o seu post você toca em dois pontos mágicos da minha relação com Portugal. Permita-me umas observações:
a) Burocracia - Ando há muito tempo para fazer uma compilação das coisas que me foram feitas pelos diferentes Institutos Marítimos com quem, ao longo dos anos, fui lidando. Coisas indescritíveis - não porque sejam difíceis de descrever, nas porque não sei como as tornar credíveis. Paradigmática, para mim, foi uma exigência feita por pessoas inteligentes e respeitáveis de pôr chumbo num catamaran para lhe reduzir a estabilidade - com o objectivo, honorável, de a tornar conforme aos parâmetros legais (a lei foi feita para monocascos, e os multis têm, naturalmente, muito mais estabilidade).
Tão pouco conheço a razão de ser desta palhaçada (seria o termo, se não tivesse as consequências que tem): não penso que haja uma só; deve haver várias. A preguiça é uma delas - muito recentemente o director de um dos departamentos do Instituto aconselhou-me a registar um barco (mais um caso difícil) em França, porque ele depois o registaria em Portugal. Se o fizesse directamente em Portugal "arriscava-me a que [fosse] muito difícil": Quando, à beira da apoplexia, eu lhe disse que é em Portugal que pago os meus impostos e que tenho o direito de exigir de funcionários públicos portugueses que façam o seu trabalho, ele limitou-se a sorrir. Outra causa são os benefícios financeiros: aquela gente ganha muito dinheiro - colocam-nos obstáculos intransponíveis, e depois constituem sociedades com parceiros a quem nos aconselham a entregar o processo. A questão do poder também tem a sua quota-parte: a nossa sociedade é muito hierarquizada, muito atenta aos aspectos formais do poder - e os funcionários descarregam a sua frustração e exercem a sua vontade de poder no elo mais fraco da cadeia; - o que nos leva a perguntar: porque é o consumidor o "elo mais fraco"? Como sociedade rural que somos, as relações pessoais são importantes - não somos exigentes porque aquele senhor conhece o meu pai, é amigo da tia e trata por tu o papagaio da avó. Não sei como é no sector dos health club - imagino que seja semelhante - mas as histórias do sector marítimo são africanas, não são de um país europeu.
Uma coisa interessante: o funcionário que fez exigências marcianas (gosto demais de África para a chamar aqui) no caso do catamarã que acima menciono (o barco era novo. Fez uma época de trabalho em França e veio trabalhar para Portugal. Demorou três anos, três anos, a ser homologado cá para fazer aquilo que fazia perfeita e legalmente em França - e levou a custos equivalentes a mais de vinte por cento do preço do barco (sem contar o dinheiro não facturado; refiro-me apenas a custos directos, "fornecimentos e serviços terceiros"), esse funcionário, dizia eu, foi promovido a chefe de um departamento. Sim, promovido. A explicação que me deu o sócio privado de uma das empresas que atrás referi, a quem entreguei "o processo", claro, é que tinha sido promovido para "se tornar inofensivo". Isto abre algumas pistas sobre o funcionamento da funcão pública portuguesa - e abre uma avenida de cepticismo sobre as reformas da dita cuja.
b) Bancos: começo com uma pequena anedota - o primeiro empréstimo bancário que tive na vida foi obtido Suiça - e foi-me feito sem garantias porque "os portugueses pagam sempre as suas dívidas", como me explicou o gerente bancário a quem apresentei o projecto (reconheço amargamente que deixou de ser verdade: a burocracia portuguesa ganhou mais uma batalha na sua guerra contra a actividade produtiva e deixou-me incapaz de pagar o empréstimo nos termos acordados).
Os bancos portugueses têm uma grande explicação para a sua ineficiência: a falta de um quadro jurídico adequado, a falta de um sistema jurídico que funcione. É verdade. Mas fale com um quadro superior de um banco, e ele mostra-lhe por A mais B que está perfeitamente a par dos disfuncionamentos do sistema e dá razões para todos eles:
"Só ligam a nomes, não ligam a projectos": é verdade - a razão é que no caso do projecto correr mal eles têem uma alavanca na família que pode facilitar o reembolso do crédito;
"São avessos ao risco": é verdade - mas a) nâo podem mexer nas taxas de juro e exigir taxas mais elevadas para projectos mais arriscados, como qualquer banco em, por exemplo, Inglaterra faz (esta não verifiquei: o que é que os impede de aumentar a taxa de juros?); e b), se ganham dinheiro com créditos imobiliários, porque se hão-de maçar com taxas de risco mais elevadas, que nem sequer são mais remuneradoras?
O que me traz à memória uma história gira que liga os bancos e os centros de decisão nacional. Ou duas histórias, semelhantes: numa, uma empresa da construção civil que pertencia a uma grande empresa francesa foi comprada pelos seus quadros - e no dia segunte tinha telefones de todos os bancos com quem mantinha relações a informá-la qe as linhas de crédito deveriam ser saldadas e seriam suspendidas. Outra, muito semelhante mas ao contrário: uma grande empresa também da construção civil que havia sido informada pelos bancos (o plural é propositado, foram vários os bancos envolvidos) que as linhas de crédito iam acabar recebeu, logo a seguir à sua recente aquisição por uma empresa espanhola, telefonemas desses bancos informando que afinal as linhas de crédito continuavam abertas...
E assim por diante. Eu também não sei, e gostava de saber, quais as razões históricas que nos levaram a esta situação - mas confesso-lhe que estou extremamente céptico sobre a possibilidade de mudança. Não porque sejamos mais estúpidos do que os outros, evidentemente, mas porque as raízes são tantas, tão diferentes e antigas, a resistância à mudança tão imbricada na maneira de ser, que me parece difícil, muito difícil, mudar seja o que fôr. De pacotes Delors em fundos estruturais lá nos vamos aguentando...
Cordialmente,
Luis
PS - um político moçambicano com quem comentava a burocracia do seu país (uma das heranças lusas), dizia-me: "Luis, todos nós sabemos que a burocracia está a empatar muito o desenvolvimento de Moçambique. Mas não podemos fazer nada agora, porque acabar com a burocracia exigir-nos-á que tripliquemos os salários da função pública, e não temos dinheiro para isso". Terá havido cálculos semelhantes por cá? Penso que não: um dos problemas é que nem toda a gente na função pública é corrompível. Seria muito melhor que fosse: pelo menos as coisas far-se-iam, e o seu amigo já teria os health clubs a funcionar.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.