3.6.04

Le Clézio

A tempestade passou, quase (obrigado, J.!) - "quase", quase é uma palavra que engana muito, vamos a ver amanhã - e eu estou doente com uma gripe ou uma constipação ou lá o que é, coisa que comecei por curar com dois ou três comprimidos, viva a química, meia de vinho e duas grappas no restaurante italiano onde fui jantar, chama-se Piccolo Napoli e fica na Rua dos Machadinhos, à Lapa, é um pequeno restaurante de bairro onde também comi uma lasanha que não estava má, enfim, e um vodka no Pop-Up, de quem aliás prometi não tornar a falar da barmaid, e passei a noite toda a pensar no le Clézio, na vontade que tenho de escrever uma frase como ele, enorme, uma duas três páginas numa frase só, que não é lapidar porque senão seria preciso um pedregulho incomensurável, e ninguem teria força para a atirar, nem aqueles selvagens do Nigeria que lapidam mulheres só porque elas têm filhos como se no Nigeria - que se lixe o Nigeria, hoje estou mais preocupado comigo, com o fim do mau tempo, ao qual sobrevivi mas não inteiro porque agora cada vez mais estas tempestades levam-me bocados da alma (e bem podiam levar bocados do corpo, sei lá, da barriga, por exemplo) e passei o jantar todo a transpirar como se estivesse com malária e a ver a clientela do restaurante, muito jovem muito Lapa muito jovem Lapa, à minha frente estava um casal que tinha como particularidade terem ambos o cabelo exactamente da mesma côr e não era pintado não, era a côr dele mesmo e era igualzinho, tão jovens, tão Lapa, tão bonitos que eles eram, estudantes universitários ou coisa assim.

Pourquoi pense-je à le Clézio? Provavelmente por causa da febre, não sei - a verdade é que li um livro dele tinha para aí uns 15 ou 16 anos e depois nunca mais li nada - ou porque a noite me parece tão unida, tão escorrida, tão unida na diversidade de uma tarde que começou como esta começou e acabou no escritório a escrever esta porcaria só porque tenho vontade de screver uma frase longa longa longa e de invocar Allah, Allah u Aqbar, será que amanhã o ciel de traîne va vraiment se dissiper? Será que amanhã poderei fazer face aos problemas habituais e não a esta merda deste ciclone que me ocupou anteontem e ontem e hoje e não sei ainda se amanhã - só sei que estou farto farto farto, as coisas passam-se e passam e levam-me bocadinhos da alma e no fundo eu só quero transformar-me num long fleuve tranquille e gostaria que estas cataratas por onde regularmene caio secassem de vez, ao contrário do teu olhar meu amor que tanto anseio por conhecer melhor e por poder dizer-te sim meu amor e lembro-me de ti quando te conheci, amanhã ou depois, lembro-me sempre dos dias que ainda não foram, só me lembro dos dias que anda não foram, dos outros esqueço-me, que queres, j'ai la tête qui est une vraie passoire et je ne me souviens que de ton sourire, mon amour futur, mon amour, que longe anda o Jean-Marie, que escreveu ele que eu tenha lido?

Nao sei, só me lembro, só me lembro da febre de hoje que está quase a passar, da vontade que tenho de beber mais um vodka, da vontade de te ter aqui ao meu lado, por baixo e por cima e ao lado e por baixo e por cima a olhar para mim e a dizer-me que sim, sim, amas-me, e o le Clézio que vá para o raio que o parta, on s'en foût de le Clézio, mon amour, on s'en foût de tout le corpus, de toute la littérature, on s'en foût de la doxa et on s'en foût de la lumière, esta luz que hoje parecia fundir o Tejo e a cidade numa só entidade, o Tejo parecia quase só um descampado azul clarinho da cidade que escorria para ele, visto da Lapa a caminho da farmácia, o Tejo vinha comigo e depois ficou à porta porque deixei de o ver. Se o le Clézio estivesse aqui estaria agora a encontrar uma mosca e a descrevê-la - quando afinal de contas não vi nem uma mosca hoje, no restaurante não as havia, só o casal e a mesa com as cinco ou seis recém-adolescentes que comiam pizza, e que depois encontrei a despedir-se afectuosamente à frente do portão de um condomínio qualquer, e com tudo isto a verdade é que o Cônsul ficou sem cavalo branco mas com um cão morto em cima (ainda bem que estava morto ele também, se não seria horrível), e eu para aqui estou com uma febre idiota e estúpida e extemporânea, e com uma vontade de ti, meu amor, de ti.

Tenho vontade de ti e é a ti que dedico este texto.

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