26.10.04

Carta ao filho - II

Meu querido filho,

há muito tempo escrevi-te uma carta. Se calhar nunca ta enviei, se bem que a tenha publicado aqui no Don Vivo. Não me lembro; tão pouco é importante.

Nela, falava-te da diferença que há entre verdades e opiniões, e de como devemos aprender a desconfiar das primeiras; delas, e daqueles que com elas nos acenam (e aqui até poderíamos utilizar o verbo francês assener). "As verdades", dizia-te nessa carta,"são transitórias; as opinões são válidas muito mais tempo". E dava-te o exemplo de Aristóteles, cujas verdades científicas agora só para a história da ciência têm interesse, mas cujas opiniões filosóficas ainda hoje são tão válidas como no dia em que foram concebidas.

Hoje, contudo, o objectivo é outro: falar-te da vida, da morte ("um bocadinho precoce, não?", pensarás do alto dos teus 16 anos) e do que levamos de uma para a outra.

A verdade (passe o termo, que é uma comodidade de linguagem), é que de nós na morte fica pouco: ossos, os que com sorte resistirem aos vermes, e obra, se a tivermos feito. Tão pouco te falo da obra, hoje: deixar uma é penoso, difícil, aleatório; e só o poderemos escolher como objectivo se, justamente, não o escolhermos: tem que nos ser imposto, termo - e opção - com que não simpatizo muito, porque nem de uma obra gosto de ser o títere (títere talvez seja uma expressão demasiado forte, mas é o que, por vezes, me sinto). Não. Deixa, se puderes, de lado o sonho de uma obra, e concentra-te no resto, naquilo que verdadeiramente levamos, e cá fica, quando desta vamos para melhor: saúde, dinheiro, amor, as três tetas das cançonetas de treta.

O amor - a actividade, nobre e legítima, de dar e receber prazer, de receber prazer porque se o dá, é, provavelmente, a mais importante das três - e está frequente, se bem que não inevitavelmente, ligada às outras duas. O amor deve servir para dar prazer, não dor: e se tiveres que escolher entre sofrer e fazer sofrer, escolhe o primeiro: mais sentido e mais valor terá o prazer que deste.

O dinheiro é dos três o tema mais difícil, e importante, muito. Só os idiotas, os ricos, os incapazes e os sábios orientais dizem o contrário. Mas o dinheiro só é importante se não for um ojectivo, e sim um meio; e se teu só fôr nominalmente, porque dele devem, também, beneficiar os que te rodeiam, amigos ou não. Repara que o inverso não é verdade: viver do dinheiro dos outros não é só doloroso, é sobrtudo ignóbil - por muito que tenhas dado antes, por muito que venhas a dar, os outros não se lembrarão, nunca, do que tiveres dado: só o que recebes, ou pedes, será recordado. Ao contrário do amor, que é bom se fôr dado e recebido, o dinheiro só é bom se for dado. Não esperes retorno: não penses que dando-o os outros se lembrarão quando for a tua vez de precisar: não é verdade, infelizmente, salvo raras excepções. Mas é bom dá-lo porque, justamente, não o podemos levar connosco, porque o dinheiro é um meio, não um fim, e porque, como as verdades, ele é transitório, passageiro, breve.

Resta a saúde: desta, pouco há a dizer. A porção dela que podemos controlar é ínfima - de quem nos antecedeu herdamos o que a quem nos sucederá deixaremos, mais coisa menos coisa. Não são uns cigarros a mais, ou uns whiskies, que mudarão o quadro fundamental. Trata dela, é o meu conselho, mas sem exagero: não ponhas o bem-estar ao serviço do corpo: antes põe este ao serviço daquele. Usa o corpo como usas o dinheiro: para os outros, e dele cuida e guarda o suficiente para poderes dar mais do que recebes.

Falei-te de três coisas que são, a meu ver, das coisas importantes que fazem e definem a nossa vida, que são o que de nós cá fica, o que connosco passa. São os três pés do tripé no qual assenta a independência, ou, se preferires, a liberdade. E essa é a única coisa, a única, pela qual vale simultaneamente a pena viver e morrer: viver a todos é dado; viver, ou morrer, livre não. E viver sem ser livre, ou independente, não é viver, é vegetar.

E quando te falo da liberdade, falo-te de todas as liberdades: sê livre das verdades dos outros, como das tuas, e do seu dinheiro, das suas doenças, das suas fraquezas e das sua forças.

Sê livre, meu filho, porque só livre se é, ou pode ser, soberano.

Teu pai,

Luis

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