26.5.05

"Pero nunca había silencio en realidade"*

O dia chegou ao fim e pousou - delicada, quase involuntariamente - um toro de madeira exótica na praia. Traz um homem agarrado, exausto. Está na água há muito tempo, vê-se pela roupa, esfarrapada, pela pele, carcomida, macilenta, estriada por uma longa estadia no mar. O homem está cansado mas inteiro - as gaivotas não lhe comeram os olhos, nem os tubarões as pernas.

Conseguirá andar, agora em terra firme?

- Não andei à deriva - explica. - Era a esta praia que queria chegar. Mas devia ter chegado há muito, muito tempo.

A praia chama-se Guincho. Fica a sul do Cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa Continental, o ponto que desta fica mais perto do meio do mar. O homem conhece a praia: dela saíu há anos, redonda como um ventre grávido, ventosa como um dia de raiva. Ainda sabe andar, verifica com satisfação: a água salgada não o dissolveu. Mal se tem nas pernas, mal suporta a luz, mas consegue andar, e ver.

Pensa que não tem passado, e que não há ninguém que o não tenha. "Trago comigo o passado como um saco vazio que levasse ao ombro". Sabe que tem família, algures, e amigos, que alguém ali perto o conhece. O ar está quente, imóvel, denso. "Hoje não há vento", pensa. "Só este calor, apaziguante".

Avança pela praia sem olhar para trás.

- É bom saber que ainda posso andar, e ver. Tenho as duas pernas, os dois olhos, e não tenho memória (ou ela não tem peso, ou ela pesa tanto que não se sente). Só vejo para a frente - do passado, só a sombra que à minha frente se projecta, esfarrapada e nua. Eu fui aquilo, mas agora sou outro, pior e melhor, mais velho e mais novo.


* - Antonio Muñoz Molina, in "Ventanas de Manhattan", Seix Barral, etc.

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