Naquele dia, o pata-roxa voador picou com um bocadinho mais de força e esbarrou na porta de vidro do castelo, fechada a sete chaves. Era preciso, contudo, muito mais do que um pedaço de silicone e meia-dúzia de chaves para lhe alterar a determinação, e a direcção. Tentou outra vez.
Ao fim de alguns anos ficou tonto, e pensou que talvez fosse boa ideia encontrar uma solução alternativa. Conseguiu: em vez de bater à porta (ou contra ela, mais precisamente), lembrou-se de a abrir com um raio de luar. A ideia era boa, claro: todos sabemos o poderoso efeito que a luz da lua tem nos porteiros dos castelos e nas princesas que neles mandam. Falhou, contudo: na véspera a lua fora ao bordel, e o raio saíu-lhe torto e fraco.
- Pata que a pôs! Pata que a pôs! - O pata-roxa voador gritava no meio da planície, onde, acreditava, ninguém o ouvia. Mentira: ao longe, um bando de pardais, periquitos e bêbedos coxos observavam-no e regozijavam-se barulhentamente. Exultavam.
O que há de interessante no pata-roxa, a sua única característica digna de nota, é ser ele um parente afastado do tubarão; é um tubarão mutante, por assim dizer. Este era duplamente desviante (o termo é muito mais apropriado) porque voava - embora mal - e tinha um bico pelo qual absorvia chá de ervas por uma palhinha.
A receita do chá tinha-lhe sido dada por uma bruxa loira, linda, que ele encontrara quando aprendia a voar, agarrado a uma vassoura emprestada. A vassoura era uma merda, mas a bruxa encheu-se de simpatia por aquela espécie de híbrido e levou-o para casa, onde lhe deu aulas de vôo, com sucesso, e de realismo, com um insucesso flagrante.
Morava na capital das bruxas, uma cidade chamada Floguilópolis, onde ele se passeava enquanto ela ganhava a vida a pretender que o tempo não existe. Para as bruxas, é verdade, o tempo não existe: tudo é só hoje, ou só amanhã, ou só ontem. Mas para todos os outros o tempo existe, e tem um nome: chama-se morte.
Um dia fugiu. Voou durante horas, dias, semanas, meses, sofreu vidas inteiras de pesadelos, e acabou por aterrar numa palmeira grande, gorda, com uns bigodes que tinham a forma de um violino cortado ao meio. A palmeira produzia côcos enormes, do tamanho dos tomates do Papa (os quais crescem sem parar há, pelo menos, 200 anos - antes disso, é sabido, esvaziavam-se regularmente. Como tudo, a Igreja melhora à medida que se afasta da princípio). A palmeira, gorda e feia, era generosa e albergou o nosso herói exausto.
Quando o viu recomposto encheu-o de sumo de palmito fermentado e falou-lhe num castelo com portas de vidro onde morava uma princesa rica, bonita, e sedenta de amor.
- Aqui vou, de novo equivocado - lamentava-se à quadragésima nona tentiva. - Porque mora essa princesa num castelo inacessível, se está sedenta de amor? Porque não sai, e vem comigo voar ao luar? - (Foi quando se lembrou de utilizar o raio de luz da lua, sem se lembrar que até os satélites têm vontades próprias, e imprevísiveis).
Morreu afogado em Bach, nas Suites Inglesas, mais exactamente, tocadas por Glenn Gould para a Sony.
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