Uma pessoa senta-se num restaurante. Comer um hamburger, beber uma cerveja. O restaurante é pequeno, familiar, conhecido da pessoa, que lá vai muitas vezes. Na rua, uma procissão ininterrupta de gente lembra-lhe que é verão: turistas, t-shirts, gelados em bocas que se arredondam para os receber, gulosas. Os gelados vêm do Santini: a história passa-se em Cascais. A pessoa está sozinha: “Agosto”, leu recentemente algures, “é o mês das piores solidões”. “Não é verdade”, pensa. "Não há solidões piores que outras. Há solidões que se aguentam sozinhas, e solidões que precisam de outras solidões para se manterem".
Solidões: a repetição da palavra faz-lhe vertigens. A pessoa está sentada. Afinal comeu um spaghetti bolonhesa. O autor (40 anos, magro, cabelo ralo, míope) não sabe o que fazer dela, nem com ela. Homem ou mulher? Que idade? Porque acabou a comer uma coisa diferente da que tinha planeado? Porque olha para o passante como se os conhecesse todos, ou quisesse conhecer? O autor interroga-se.
Solidões: a repetição da palavra faz-lhe vertigens. A pessoa está sentada. Afinal comeu um spaghetti bolonhesa. O autor (40 anos, magro, cabelo ralo, míope) não sabe o que fazer dela, nem com ela. Homem ou mulher? Que idade? Porque acabou a comer uma coisa diferente da que tinha planeado? Porque olha para o passante como se os conhecesse todos, ou quisesse conhecer? O autor interroga-se.
Na verdade não tem 40 anos, não é míope, não é magro. A pessoa, decide, é uma mulher. Ela sim, tem 40 anos e é magra, mas não muito. Fala com o dono do restaurante, e parece conhecê-lo bem. Combinam um almoço para o dia seguinte? Serão amantes? Conhecidos? Porque estão sozinhos, ambos? Ele chegou de bicicleta quando ela terminava o prato. A senhora tem os olhos vermelhos – o autor só agora se apercebe disso. Esteve a chorar. Tem uns olhos bonitos, azuis-claros, que contrastam com os cabelos negros. O autor pensa que o encarnado do choro fica bem com o azul das pupilas. Tem uma cara redonda, bonita, e tenta disfarçar as lágrimas, a voz que treme, a tristeza: mas a alegria é fingida demais. O dono do restaurante apercebe-se e esboça uma pergunta. Ela não quer, visivelmente, falar. Diz “boa noite!” e vai-se embora, bruscamente. O homem encolhe os ombros e vai para dentro.
Para onde vai ela? Noutro restaurante, numa rua ao lado, uma pessoa, sentada sozinha a uma mesa, olha para ela como ela, há pouco, olhava para os outros. É um homem, está sozinho. Não tem 40 anos. O autor não sabe que fazer de mais uma personagem. Decide deixá-las entregues a si próprias, todas, cada uma para seu lado. A mulher na rua, acompanhada por centenas doutras mulheres, algumas com gelados; o homem no outro restaurante, a comer um prato qualquer, provavelmente indiano; o dono do restaurante onde a história começou está na cozinha, a fornicar a cozinheira, uma ucraniana que, todas as noites, sofre em silêncio, e de pé, os apetites do patrão. "Agosto", ele vai pensando, "não é um mês diferente: é só mais quente, e esta gaja cheira mais a suor e a cebolas e a coentros. Tenho que parar com isto. Tenho que parar com isto". Esforça-se por acabar o mais depressa possível, mas os cheiros, a imobilidade total da mulher, a memória dos olhos encarnados da outra não o ajudam.
Pouco a pouco, o mundo do autor vai-se povoando. É uma maneira como outra qualquer de se sentir menos só, neste mês de Agosto solitário, quente e abafado. Há muitos anos começou uma longa relação neste mesmo dia de Agosto, mas não sabe como escrever sobre ela. “É sem dúvida mais fácil escrever sobre a ausência de relações”, pensou.
Contudo, a mulher decide aceitar o convite mudo do homem que olha para ela sentado na esplanada. Dirige-se a ele, olhando-o com medo, com coragem, com ironia?
- Tem lume? - Pergunta.
- Não.
- Não faz mal. A verdade é que não fumo. Posso sentar-me? – Senta-se sem esperar pela resposta.
-...
- Não diga nada. Não me diga o seu nome, nem a sua idade, nem porque me olhava. Ofereça-me um café, ou um whisky, o que preferir.
Ele não sabe o que há-de dizer. Não a quer ali: “as solidões de Agosto”, lembra-se, “são impenetráveis; ela não tem o direito de irromper assim na minha vida, na minha noite, na minha mesa”. Que faz?
Encomenda um café? Um whisky? Diz-lhe para se ir embora? Na cozinha do outro restaurante, o dono lava o membro no lava-loiça. A mulher sobe as cuecas – limpou o sexo muito rapidamente com um bocado de papel de cozinha – sem olhar para ele, sem uma palavra. “Diz-me qualquer coisa. Insulta-me, bate-me – tudo menos esses olhos que não vejo, essa boca silenciosa, essas pernas que se abrem como se tivessem uma vontade própria e não dependessem de ti”. Mas ela não diz nada.
O dono faz um café, e vai-se embora. A cozinheira prepara-se para fechar a cozinha – já só lhe falta apagar as luzes, o patrão vem sempre no fim, quando tudo está pronto e já só falta ir-se embora. No café ao lado, a mulher bebe um whisky. O homem acha-a bonita, mas decide ir-se embora. Quer ficar sozinho, luta contra o desejo. Ela apercebe-se e diz-lhe que se pode ir embora, se quiser, ou ficar – “desde que não me peça para o amar, ou não diga que me ama”. Vai-se embora.
O autor está sentado num bar na praia. Não sabe se a história que acabou de contar aconteceu há uma hora, um dia ou uma semana - não sabe mesmo se ela aconteceu de todo. Apetece-lhe beber whisky, muito. Um dos seus favoritos é o Dewar's 12 anos, que antigamente se chamava Ne Plus Ultra. Um amigo diz-lhe que não devia mencionar as marcas das bebidas, nem os nomes dos restaurantes onde as suas histórias acontecem. Pessoalmente, não estou de acordo: é como dizer o nome do local, ou a marca do carro, ou mesmo - porque não? - o nome da personagem. Um nome é um destino, e não é por acaso que as personagens desta história ainda não têm nome. Mas o autor hesita. Está sentado num bar, face ao mar, e ouve blues - Howlin' Wolf, supõe.
As personagens desapareceram, todas - umas para casa, outras para outros bares e lugares. "Uma casa", pensa, "não é um lugar: é uma etapa, uma escala, um poiso, um degrau numa escada sem fim, uma tenda no deserto". Como uma mulher: um ventre não é um futuro, é uma sucessão de presentes. Um dia acabam, esses presentes.
As personagens desapareceram, todas - umas para casa, outras para outros bares e lugares. "Uma casa", pensa, "não é um lugar: é uma etapa, uma escala, um poiso, um degrau numa escada sem fim, uma tenda no deserto". Como uma mulher: um ventre não é um futuro, é uma sucessão de presentes. Um dia acabam, esses presentes.
Ana foi para casa. O indiano encomendou-lhe um café e levantou-se, com um pedido de desculpas que lhe pareceu insuportável, de tão sincero. Ela queria fazer amor com ele, mas não conseguiu retê-lo. Queria dizer-lhe: "venha para minha casa. Faça-me amor, bem ou mal, deite-me numa cama ou encha-me de água a banheira, leve-me um whisky à cama, entorne-me a garrafa de champanhe no sexo e beba-o, passeie-me as mãos pelos dedos dos pés e a língua pelos sovacos, esfregue-me a cabeça na nuca, passeie-me a ponta do seu membro teso pela pele toda". Mas disse-lhe uma coisa desajeitada, pareceu-lhe, e ele levantou-se e foi-se embora, com um pedido de desculpa límpido, claro, frontal, doloroso.
O dono do restaurante, do outro restaurante, também se foi embora, mas para um bar de putas, pensa o autor. Não tem a certeza: que iria lá fazer, depois de uma foda na mesa da cozinha, por muito limpa que a cozinha esteja? A verdade é que a mulher não se mexe, não mexe um músculo, uma pálpebra, nem o tímpano se mexe, parece-lhe. Ele chega à cozinha, faz-lhe um sinal com os olhos, ela vira-se, baixa as cuecas, ele penetra-a, ele vem-se, ele retira-se, ela limpa-se com um bocado de papel. "Uma puta, pelo menos, finge". O autor concorda e leva-o para um bar de putas.
Falta o indiano. Quem é? Que foi ele fazer, depois de ter deixado Ana na mesa com um whisky e um pedido de desculpas?
Ou seja: neste momento, o autor tem Ana em casa, o dono de um restaurante (cujo nome ainda não inventou) num bar de putas, um indiano à deriva e uma cozinheira ucraniana fodida, literalmente fodida. Senta-se, frente ao mar, e ouve blues, Howlin' Wolf. Pensa no que deve fazer das suas personagens. No que deve fazer da sua vida, talvez; no que deve encomendar a seguir, mais prosaicamente; como dizer à empregada que quer ir para a cama com ela, de tal maneira que lhe dê a ela vontade de dizer que sim; que nome dar ao indiano, e ao dono do primeiro restaurante; pergunta-se se Ana é o nome correcto para aquela personagem; e se a história tem um fim, ou um princípio.
Ou seja: neste momento, o autor tem Ana em casa, o dono de um restaurante (cujo nome ainda não inventou) num bar de putas, um indiano à deriva e uma cozinheira ucraniana fodida, literalmente fodida. Senta-se, frente ao mar, e ouve blues, Howlin' Wolf. Pensa no que deve fazer das suas personagens. No que deve fazer da sua vida, talvez; no que deve encomendar a seguir, mais prosaicamente; como dizer à empregada que quer ir para a cama com ela, de tal maneira que lhe dê a ela vontade de dizer que sim; que nome dar ao indiano, e ao dono do primeiro restaurante; pergunta-se se Ana é o nome correcto para aquela personagem; e se a história tem um fim, ou um princípio.
A história tem princípio e fim, claro. Uma história acaba, ao contrário de um corpo, uma casa ou um período de felicidade. Uma vida acaba, também, mas deixa sempre um traço, uma consequência, um epitáfio, quanto mais não seja. A memória.
Ana está em casa. Recomeça a chorar. Não suporta a solidão, não suporta ter enganado Luis, o dono do restaurante, que agora se recusa a ouvi-la, não suporta ter-se oferecido daquela maneira ao indiano e ainda menos suporta ele tê-la recusado. Luis era marinheiro, passava muito tempo fora de casa. Ana costumava mandar-lhe fotografias dela nua, em poses mais ou menos sugestivas. “Para que”, dizia-lhe, “possas comparar as putas que andas a foder com o que tens em casa”. Auto-retratos, explicava-lhe Ana, feitos com a máquina em pose. Mas um dia, no canto de um espelho não era um tripé que segurava a máquina: era Ricardo, um dos amigos de Luis.
Ana era bonita, grande – tudo nela era grande: os olhos, a estatura, a personalidade, o sorriso. Tinha um corpo bem feito, equilibrado, o que é raro em mulheres grandes. Ao ver a fotografia, Luis ficou devastado: como qualquer marinheiro, ele sabia que a mulher o podia enganar; mas nenhum pensa que ela o faz verdadeiramente. Imaginar aquele corpo, no qual se sentia como no mar, nas mãos de um amigo, a oferecer-se-lhe... “Será que ela faz com ele o que faz comigo?” – a pergunta não lhe saía do espírito. A ideia que ele também a enganava – se bem que não fosse verdadeiramente um engano, pois ela “sabia” – ainda contribuía mais para a sua raiva, para o ódio que sentia por ele, pela marinha, pelo ex-amigo. O pior era não conseguir sentir fosse o que fosse contra Ana. Ele queria odiá-la realmente, chegar a casa e bater-lhe, fazer uma cena, barulho, móveis a voar pela casa toda, portas a bater – mas a sua imaginação saltava directamente para a reconciliação, na qual ela lhe pedia perdão, para a carta que Ricardo lhe escreveria a dizer que tinha sido um engano, um erro, uma vez só.
Nada disso aconteceu. Quando chegou dois meses depois a casa estava vazia; Ana tinha-o deixado de vez e estava a viver sozinha; Ricardo encontrara um emprego em Angola, no mato. E ele continuava “o impotente emocional que sempre fui”. Não sentia ódio por ninguém excepto por ele próprio. Não sei bem se os cornos crescem e ficam ad eternum na testa que os viu nascer, ou se, como todas as outras coisas, crescem e se vão embora, um dia, deixando a dita testa pronta para outros. Não sei. A verdade é que Luis deixou o mar, e abriu um restaurante ao qual deu o nome de Blue Marlin, onde come a empregada ucraniana e se detesta por isso. O ódio de Luis por si mesmo é o pilar central da sua personalidade, e ele faz tudo o que pode para o alimentar quotidianamente.
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