20.12.06

Bestiário ontológico

- Cabra, cabra, cabra! - Ele sabia que não era verdade, mas não encontrava maneira de lho dizer: não se pode chamar a alguém "falsa cabra!", pois não? Isto é, "falsa cabra" é um elogio - algo paternalista, mas elogio, e ele estava chateado, e queria chateá-la.

- Paternalista não: serôdio - respondeu ela, meses mais tarde, quando, finalmente, se encontraram. Ele é um lagarto, coitado, desses que acabam debaixo das rodas de um automóvel ou atados pelas patas de trás dentro de um aquário que se enche lentamente, às mãos de um miudo sádico. Baixote, gordo, está sentado na esplanada da Suiça a beber Piñas Coladas, umas atrás das outras. A rua está juncada de bocadinhos da cauda dele, arrancados pelos mais variados bichos com que, ao longo de uma longa existência (é propositada, a repetição), se cruzou. Ainda tremelicam, muitos deles. Ela está dentro da fonte no meio do Rossio a gritar:

- Voglio una volta! Voglio una volta!

"Não é dentro de uma fonte que se grita voglio qualcosa", pensou o lagarto. É em cima de uma árvore". Mas logo se deixou de cinefilias: "uma Piña Colada", rememorou, "é uma mistura de rum, leite de côco e sumo de ananás em igual medida. Oxalá as cabras, e os lagartos, e o resto do jardim zoológico da existência, fossem tão fáceis de definir. Além de que, minha cara, ninguém dá uma volta sozinha".

O lagarto fartou-se dos Fairport Convention, e mudou para Wagner. Enfim, aquilo que Uri Caine fez a Wagner: "Je fus surpris à plusieurs reprises, à la fin du repas, par le soudain retentissement de mes ouvertures. Lorsque, assis à la fenêtre du restaurant, je m'en remettais à cette impression, je ne savais pas ce qui agissait sur moi de manière la plus enivrante: l'incomparable place, magnifiquement illuminée, envahie d'innombrables flâneurs ou la musique portant tout cela dans les airs, comme dans une glorieuse harmonie".

A cabra ("ainda é cedo para começar a tratá-la por «falsa cabra»: a história perderia em verosimilhança, e de qualquer forma não passa de uma intuição; vá la saber-se se é verdade", pensou o lagarto) tinha-se ido embora sem ele reparar. Entretanto, à mesa sentaram-se mais duas ou três bestas: uma cobra, uma vaca, um cabrão. A vaca era verdadeira, via-se-lhe pelos cornos e pelo olhar mortiço. Mas o cabrão parecia-se imenso com a cobra, e não só foneticamente. "Porra, já não me basta uma falsa cabra, agora tenho um verdadeiro cabrão, ou uma meia-cobra".

O lagarto não sabia o que lhes dizer, nem o que ouvir, nem o que fazer: ficar, ir-se embora, ouvir a Jeannne Lee e o Archie Shepp, insistir, mudar para outra bebida? A cara do cabrão (ou cobra?) não lhe era estranha, nem a da vaca. "Esta merda deste jardim zoológico..." não soube como continuar. "Que se foda o jardim zoológico!".

A cabra transformara-se em leoa, a vaca em falsa pantera e o cabrão em cabrão. Entretanto, um avião sobrevoa o deserto da Namíbia; em Macuto (não confundir com Maputo: é na Venezuela, perto de La Guaira) um marinheiro bêbado fode uma lontra num hamac; em Cape Town o imediato de um navio de pesca tem longas conversas com a chefe de uma rede de putas; no centro de África morrem alguns milhares de pessoas, como mosquitos; no Canadá, uma interminável mulher faz amor com o marido e tenta afastar da memória uma felação velha de meses, quem sabe, ou mesmo anos, que um dia fizera a um toiro enraivecido - ou revoltado? "Nunca o saberei"). No Porto, uma mulher (outra) sofre e finge que não; em Lisboa, no Rossio, um lagarto desorientado ouve a Ressurreição de Mahler; nas praias da Flandres francesa um velejador invencível tenta seduzir uma jovem, mas eterna, mulher; nas Honduras um passado espera o momento em que se vai realizar, finalmente; em Veneza, dois adolescentes fingem que são adultos. E em Maputo - Maputo um homem banal em coma psicológico profundo tenta morrer de sida, e nem isso consegue ("não deixa de ser uma forma agradável de procurar a morte", pensou o filho da puta do lagarto).

Está sozinho, graças a Deus. O mundo deixou-o: ele tornou-se o mundo. Mahler, que sabia duas ou três coisas sobre cabras, diz que a morte não é certa e faz uma sinfonia; a tarde esvai-se, num vermelho que não é bem sangue, mas podia ser. As Piñas Coladas acabaram. Tudo acabou, menos o tempo, a luz, e as palavras.

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