18.12.06

História

A história é a de uma pescada que se revoltou, um dia, contra o anzol. Encontrou, claro, um jornalista pronto a entrevistá-la, e pensou que a sorte tinha chegado. Não chegou. O jornalista era, afinal, um jogador de futebol coxo e careca que passava os dias a beber Campari com vinho branco e sumo de laranja, e a engatar pequenas nas casas de chá. A pescada não se apercebeu de nada - quando chegou à superfície faltou-lhe um bocadinho o ar, coitada. Uma cabra não-carnívora (não comia carne, só peixe e vegetais) engoliu-a viva, escamas e tudo. O sol escarrapachou-se em Oríon, as Três Marias aproveitaram para ir ao carrossel, a Lua escondeu-se para mijar encostada a uma árvore celeste e Canopus, a alpha de Carinae, continuava a enganar-se na cor: ora azul, ora vermelha, tremelicava como uma mão que leva à boca um último copo.

O céu estava, escusado é dizer que gosto de aliterações, escuro. O navio balançava, creio, nas Filipinas, ou ao largo do Yang Tsé (lembro-me de águas castanhas, de um céu negro como um Irish Coffee bem feito, de uma russa pela qual chorei dias e dias, de uma solidão pesada como frio).

Navegávamos para sul, e ela estava a bombordo: princípio de noite, quem sabe. E de repente o navio ficou quieto, imóvel, e foi ela, Canopus, que se pôs a mover-se no céu imóvel também. Eu estava na ponte, sóbrio, (juro) como uma esfinge, e nada, nada, nem o passado, nem o futuro nem o presente se movia - excepto aquela estrela, que ainda há pouco eu observara ao sextante (gosto da expressão inglesa: "reduzira" - "reduzir" uma estrela, ou um planeta: trazê-lo ao horizonte. Que bonito).

E todo o mundo, todo o universo, girava em torno daquela puta daquela estrela. "Girar" não é bem o termo: oscilava. O universo inteiro -e todas as minhas certezas- oscilavam com uma estrela que mudava de cor como uma mulher muda de opinião. Eu estava na ponte, sozinho como hoje estou sozinho em casa a beber Irish Coffees marados, e via Canopus aos saltos no céu, coitada.

Depois parou, ou caiu na realidade. Pouco antes tínhamos, quem sabe, abalroado uma canoa de pescadores, dessas que se passeiam pelo mar sem luzes, e pouco antes tínhamos deixado a terra, e pouco depois não haveria nada mais, porque no mar não há nada - só há tudo, mas esse tudo não se pode contar, porque parece muito pouco.

Excepto, claro, para uma pescada revoltada, na ponte de um graneleiro no Mar da China: o mar é tudo, minha querida, porque no mar é nada. Anos mais tarde fui outra vez para sul e voltei do sul, num casco velho, e lento, como alguns sonhos. Pesquei na Namíbia, transportei cimento na Venezuela, naveguei no Lago Tanganika, fugi dos hipopótamos no Rio Inkomáti, e do amor nas praias do norte de Moçambique.

Nada, minha querida, que não pudesses ter vivido. O anzol é doloroso, a falta de ar asfixiante, e as cabras muitas, seja Deus agraciado. Mas nada se compara a Canopus aos saltos no mar da China, a um velho tramper a caminho da sua última viagem, a um passado cheio de futuros.

"I do not fuck much with the past, but I fuck plenty with the future", grita a Patti Smith. Fuck, dear, fuck: love isn't possible, anyway, is it? Possible yes, perhaps, but desirable? I wouldn't bet, you bitch , eu não apostava nada contigo, nem uma punheta, nem isso mereces, mas eu perderia com certeza.

Foda-se Canopus, a Lua e Oríon, fodam-se as Três Marias e o mar da China, foda-se o futuro, e o passado. Fodam-se os tubarões em Cape Town e as enfermeiras em Luderitz, foda-se a morte na Baie de Seine, foda-se a morte no Zaire, foda-se a morte no mar, fodam-se os ciclones no Atlântico, fodam-se as mortes todas que já vivi, foda-se o amor no Brasil, foda-se Bukavu, Bujumbura, Ngózi e os refugiados, foda-se Tegucigalpa, foda-se o amor e o desejo, fodam-se as gajas todas que não fodi e as que sim, fodam-se, fodam-se, fodam-se.

Não gosto de dizer asneiras quando escrevo. Tão pouco gosto de escrever asneiras quando digo. Espero a vida como uma personagem do Hopper espera o tempo. Espero-te como a luz espera o espaço. Merda: mariquices. Evita mariquices e sentimentalismos de sopeira, sim? Espero-te, e a pressão baixa. Amanhã ou depois virá mau tempo.

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