6.1.07

Fragmento sem princípio, ou "Náufragos da Nostalgia"

... não é verdade que as opiniões políticas do García Márquez me irritem, repara. É falso. Na realidade não pago para as ler, ou muito raramente, e mesmo assim diluídas no preço do jornal onde vêem publicadas. O mesmo se passa com a Maria João Pires, que oiço tocar umas sonatas de Mozart; ela diz muitos disparates, é inegável: mas que importa? Toca como uma deusa.

Uma vez fui ouvi-la, em Genève. Mozart, também. Saí do concerto a pensar que não toca com os dedos, mas sim com a alma. Nunca tinha ouvido Mozart assim, "despido", sem aquele aspecto festivo - ia dizer frívolo, mas reconheço que o termo é exagerado, conjuntural - que tantos intérpretes lhe dão.

García Márquez também escreve como um deus, mesmo se a primeira parte do livro ("Del Amor y Otros Demonios"), essa galeria de retratos, me pareceu, desta vez, um pouco longa.

Mas que dizer de passagens como esta:
"«Es horríble», dijo el obispo. «Cada hora me resuena en las entrañas como un temblor de tierra»"; ou: "No pudo continuar, porque un trueno retumbó en la casa y se escapó rodando por el mar, y un aguacero bíblico los apartó del resto del mundo. El obispo se tendió en el mecedor y naufragó en la nostalgia.
«¡Qué lejos estamos!», suspiró.
«¿De qué?»
«De nosotros mismos», dijo el obispo.
...
«No podemos intervenir en la rotación de la tierra», dijo Delaura.
«Pero podríamos ignorarla para que no nos duela», dijo el obispo. «Más que la fe, lo que a Galileo le faltaba era corazón»"?

Não podemos (não devemos) dizer nada, claro, porque seja o que for que se disser é inferior. Maria João Pires é a mesma coisa: deixa-nos sem ar quando toca, e tolerantes, generosos, surdos, quando fala.

Passei o dia quase todo em casa, e desse quase todo, a maior parte na cozinha. Isto não é grave, nem espantoso: o que o é, é ter gostado. Há em mim um mecanismo perverso que faz que só reaja aos desafios se forem gigantescos, ou absurdos. Uma vez parei completamente de beber - trabalhava num bar, onde tinha acesso legítimo a todo o alcoól que quisesse. Agora que, por razões de medecina geral, tenho de fazer dieta, passo os momentos livres a cozinhar. Não sei se está a resultar, nota: ainda é muito cedo, e ainda não comprei uma balança...

Enfim, o dia e a Maria João Pires chegam ao fim, o jantar está a quase meio, e vou dizer-te uma coisa, mas só a ti, não o repitas a ninguém: eu só tenho nostalgia do futuro. Do passado, nenhuma, ou quase nenhuma.

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