Tenho uma recordação muito vaga dele: não me lembro se era um português que encontrei num país tropical, se um estrangeiro em Portugal. Inclino-me mais para a primeira hipótese: lembro-me que o cenário não correspondia ao seu olhar, nem ao "my hobby is drinking", com que, praticamente, iniciou a nossa conversa.
Mas recordo-me perfeitamente do que me disse quando nos despedimos: "em português, só conheço duas palavras: "dor" e "tristeza", por ordem alfabética". Estávamos num bar todo branco, rodeado de palmeiras e de mar, ao fundo. "É um vocabulário limitado, eu sei", continuou. "Mas era a isso que a minha vida se resumia".
Depois, sem pré-aviso, mudou de tema e começou a falar de trivialidades - as pernas da empregada do bar, a incurável preguiça dos locais, o mar, que ou era "demasiado quente" ou "demasiado frio", não me lembro.
Pensei nele hoje, muitos anos depois, na Madeira, num bar que dá para uma curva na estrada, com uma escada em caracol perigosíssima e um fantástico polvo de escabeche. Na mesa ao lado uma senhora diz, referindo-se ao filho, "amanhã tem escola". São duas da manhã, e o garoto não tem mais de cinco anos.
Eu bebia cafés e whiskies uns atrás dos outros; e foi nesse momento que me lembrei daquele longínquo encontro, num bar branco cheio de palmeiras e de mar, e de um tipo com olhos tristes a falar-me da dor e da tristeza, por ordem alfabética. A minha vida era uma desordem total, alfabética ou não, a música do bar era abominável - não era má sequer, era deprimente, de tão vulgar - e eu só queria que beber se transformasse, para mim também, num hobby e deixasse de ser a única forma de me manter vivo.
Todas as pessoas que conhecia me deixavam (dos amigos ao senhorio, da namorada aos irmãos) , por razões que percebia perfeitamente mas não conseguia controlar - eu próprio tinha vontade de me deixar, todos os dias, todo o dia. O inverno tinha sido horrível, de frio e de chuva; e o trabalho não passava de uma longa espera pelo despedimento, que finalmente chegou com os primeiros dias de calor da primavera.
A senhora que falava do filho parecia uma caricatura da vulgaridade: gorda, com umas calças que lhe deixavam metade das nádegas a descoberto, um ventre que me fazia pensar num bocado de gelatina que se esquecera de cair, duas mamas quase imperceptíveis e uma t-shirt às riscas encarnadas e cinzentas que ficava a um palmo da cintura das calças.
Não é de admirar que aquele longíquo encontro, num bar (lembro-me agora claramente) em Manila, me venha ao espírito. Escrever tem essa vantagem: ordena o passado e perspectiva o presente. Quanto ao futuro, mais vale deixá-lo para um astrólogo, ou um hepatologista.
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