4.12.07

Conversas de ponte

Uma vez naveguei com comandante que era louco, totalmente louco. Via bacalhaus no sextante, por exemplo, ou o sol quadrado.

Eu gostava dele: por vezes ficava na ponte a conversar, quando eu entrava de quarto, à meia-noite, e contava-me as coisas mais inverosímeis que imaginar se possam. (Sempre detestei as conversas de ponte, em que as pessoas se contam tudo, despudoradamente. O pudor é uma qualidade parcamente distribuída, infelizmente, sobretudo nos navios. Mas destas conversas gostava, porque a questão não era o pudor, ou falta dele, mas sim o abismo, por muito esperado, ou previsível, que fosse).

Um dia, estávamos no mar da China a caminho das Filipinas, voltou-se para mim, com o seu habitual ar compenetrado e disse-me "sempre gostei de mulheres altas, magras e mamalhudas". Não sabia que responder, para além de apoiar com um certo entusiasmo, e não disse mais nada. "Mas dessas tive poucas, até hoje", continuou.

Acho um bocado insuficiente julgar as mulheres pelo aspecto físico: gostar de loiras, morenas, grandes, pequenas ou magras é, parece-me, redutor e estúpido. Não é o corpo o que define uma pessoa, se bem seja, por assim dizer, a sua porta de entrada, perdoem-me a falta de gosto na analogia, a sua montra.

"Já tive, repara", insistia com uma intensidade desconfortável, "mulheres de todas as formas e feitios: grandes, pequenas, redondas, secas, com mamas ou sem elas. Todas eram diferentes, mas todas tinham uma coisa em comum: compreendiam-me". Não respondi, porque ele era dado a acessos de melancolia de tal forma violentos que um dia tivémos que lhe pôr um marinheiro de guarda, não fosse atirar-se ao mar.

"Uma mão das minhas não abarcava um mamão dos dela", disse-me doutra vez, sonhador, com rara e inexcedível elegância. Desembarcámo-lo no Egipto, e nunca mais o vi.

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