21.2.08

Fuga

Este texto foi composto durante o concerto de Tomasz Stanko na Culturgest. Deve-lhe muito. Deve, também – menos – ao senhor de cerca de 50 anos que estava sentado ao meu lado e que aos 15, provavelmente, se zangou com os desodorizantes. Aos 20 esqueceu definitivamente a existência deles e agora é tragicamente tarde para se aperceber dos inúmeros progressos da química.

Eu não fugi. Fui-me embora, o que é bastante diferente. Era uma da manhã e deixei-te, exausta, no quarto da estalagem. Não choraste, claro: eras demasiado orgulhosa para isso. Fui para o barco, larguei as amarras, naveguei dez ou quinze milhas para sul, arreei o pano todo e fui dormir. Acordei eram dez da manhã, tinha passado a noite toda a pairar e a manhã e pairei durante muitos anos, cada vez que pensava em ti.

Estávamos exaustos, os dois, todas as noites nos exauríamos – até o suor se nos esgotava, um dia disseste-me “não tenho nem mais uma gota de suor para transpirar”. “Eu também não”. Fui para o largo e fiquei a dormir, nunca dormi tanto tempo seguido sozinho num barco no mar.

Sempre foi assim, sempre, desde o primeiro dia, em que acabei de fazer uma reparação no motor, estava coberto de óleo e tu lavavas a loiça, tinhas as mãos cheias de detergente, isto não se inventa, foi assim mesmo que aconteceu, e quando demos por nós estávamos na cama e depois no duche e depois de jantar outra vez a cama e assim durante o mês ou dois que passámos juntos. Eras pequenina, tinhas os cabelos negros retintos e eras a pessoa mais bonita, mais inteligente e mais sensual a quem jamais me dei, que jamais se me deu.

Insisto: não fugi. Fui-me embora. Tu procuravas as tuas raízes, dizias-me, e eu pensava que tinha encontrado as minhas. Mentira, claro: as raízes nem se perdem nem se encontram, estão onde nós estamos e nunca saem do seu lugar, e pouco há que possamos fazer a este respeito. Umas putas, as raízes, enganaram-nos aos dois, e enganam meio mundo.

Nessa altura era skipper de um barco de charter, e tu eras dançarina, jornalista, fotógrafa e “ocasionalmente empregada de mesa”, acrescentavas sempre. A maioria das pessoas acreditava mas anos depois, quando a internet apareceu, pus o teu nome num motor de busca e descobri que eras bastante conhecida em Nova Iorque, onde nasceras e vivias, jornalista e fotógrafa, e que o “empregada de bar” tinha sido um artifício para vires para bordo.

Só não encontrei referência à “bailarina”, mas dessa não precisava, porque todos os dias tinha os teus músculos em mim, o ventre contra o qual esbarrava como horda de bárbaros contra a muralha da China, as coxas que me apertavam como tenazes com um bocado de carvão ardente sobre um tapete raro, os braços e as mãos com as quais me passeavas o corpo para lá do descritível, para lá das palavras, para lá.

Tinhas um nome de deusa, o corpo a sensualidade e o olhar de uma deusa, e olhos azuis como um dia de sol no mar, e eu fui-me embora. Não fugi.

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