O Chafariz do Vinho é um sítio muito bonito; mas perde a graça toda quando na mesa ao lado se senta uma senhora muito feia, baixinha e gorda, com pelo menos 15 cm de pele à vista entre as calças e a camisola. Não haverá quem lhes diga? Aparentemente não: ela acaba de tirar a camisola e ficou em t-shirt, branca, de mangas muito curtas, os braços gordos e curtos como pepinos gelatinosos. Está de costas para mim, mas vejo-lhe a face a três quartos, tão diferente de ti, a quem hoje enviei um beijo com todas as letras, um beijo desmerecido. Tens pelo menos a desculpa de ser bonita, e inteligente, e complexa e estranha.
Mas não merecias aquelas letras todas naquele beijo: uma ou duas, quando muito, uma ou duas - e escolhidas ao acaso, se é que isso tem algum significado.
Passam agora um disco de fado. Há pouco era blues e em breve será, adivinha-se, música sul-americana, tango ou salsa. Não gosto sempre de fado, mas nos dias em que gosto gosto muito, e hoje é um desses dias. Já vinha do restaurante com a cabeça cheia dele, enquanto o senhor da mesa ao lado se regojizava ruidosamente com a vitória da Académica sobre o Benfica (antigamente havia um clube de futebol que se chamava assim, Benfica, mas não sei se é o mesmo).
Esta mistura de fado, pedras antigas e vinho tinto é esmagadora: hoje percebo, finalmente, que a táctica é muito mais importante que a estratégia - a partir de uma série de tácticas uma estratégia aparece, quer se queira quer não. Já o oposto não é verdade: uma estratégia não se decompõe, de per si, em tácticas.
O beijo e as letras do beijo passam para segundo plano. O fado, o quadro e a ideia de que amanhã me vou encher de sol e de sal chegam perfeitamente para preencher a vida, o seu passado e esta noite, com as suas descobertas e as suas memórias. Lembro-me, por exemplo, dos beijos que te dei sem letras, só com pele e lábios e as mãos possessivas da distância. Penso na memória do futuro (a única que vale a pena) e nas pessoas que me dizem "não sou hoje a sombra do que fui"; a minha resposta, silenciosa como o beijo que hoje te dei e com todas as letras, também, é sempre a mesma: "e eu não sou hoje a sombra do que serei".
Passa por mim uma jovem japonesa, e lembro-me do que costumavas queixar-te de teres os seios pequenos. Esta de seios não tem mais do que as auréolas - e mesmo assim desenhadas a lápis, imagino. Mas é linda, atraente, sensual, tanto quanto os 15 cm de pele das costas da senhora à minha frente são assustadores, aterradores.
A vida é isto, parece-me por vezes: um copo de bom vinho bebido por uma pessoa meio constipada - a qualidade do vinho depende do grau de constipação; ou um bom beijo dado por um semi-analfabeto; ou 15 cm de pele nas costas de uma senhora da qual não vemos mais nada; e teremos sempre e para sempre que adivinhar o resto.
Mas não merecias aquelas letras todas naquele beijo: uma ou duas, quando muito, uma ou duas - e escolhidas ao acaso, se é que isso tem algum significado.
Passam agora um disco de fado. Há pouco era blues e em breve será, adivinha-se, música sul-americana, tango ou salsa. Não gosto sempre de fado, mas nos dias em que gosto gosto muito, e hoje é um desses dias. Já vinha do restaurante com a cabeça cheia dele, enquanto o senhor da mesa ao lado se regojizava ruidosamente com a vitória da Académica sobre o Benfica (antigamente havia um clube de futebol que se chamava assim, Benfica, mas não sei se é o mesmo).
Esta mistura de fado, pedras antigas e vinho tinto é esmagadora: hoje percebo, finalmente, que a táctica é muito mais importante que a estratégia - a partir de uma série de tácticas uma estratégia aparece, quer se queira quer não. Já o oposto não é verdade: uma estratégia não se decompõe, de per si, em tácticas.
O beijo e as letras do beijo passam para segundo plano. O fado, o quadro e a ideia de que amanhã me vou encher de sol e de sal chegam perfeitamente para preencher a vida, o seu passado e esta noite, com as suas descobertas e as suas memórias. Lembro-me, por exemplo, dos beijos que te dei sem letras, só com pele e lábios e as mãos possessivas da distância. Penso na memória do futuro (a única que vale a pena) e nas pessoas que me dizem "não sou hoje a sombra do que fui"; a minha resposta, silenciosa como o beijo que hoje te dei e com todas as letras, também, é sempre a mesma: "e eu não sou hoje a sombra do que serei".
Passa por mim uma jovem japonesa, e lembro-me do que costumavas queixar-te de teres os seios pequenos. Esta de seios não tem mais do que as auréolas - e mesmo assim desenhadas a lápis, imagino. Mas é linda, atraente, sensual, tanto quanto os 15 cm de pele das costas da senhora à minha frente são assustadores, aterradores.
A vida é isto, parece-me por vezes: um copo de bom vinho bebido por uma pessoa meio constipada - a qualidade do vinho depende do grau de constipação; ou um bom beijo dado por um semi-analfabeto; ou 15 cm de pele nas costas de uma senhora da qual não vemos mais nada; e teremos sempre e para sempre que adivinhar o resto.
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Não prometo responder a todos os comentários, mas prometo que fico grato por todos.