O Marchand de Sable (tradução francesa de João Pestana - o nome vinha-lhe das cabeceiras de cama que ornamentavam a parede do bar) era um café - bar - restaurante (ao meio-dia, só. Depois parou completamente) em Carouge, o bairro católico, e por conseguinte o do "pecado", de Genève.
Era um lugar peculiar. Foi, creio, o meu primeiro emprego naquela cidade, e encontrei-o porque a minha vizinha, uma actriz de teatro obesa, lá trabalhava. Um dia foi preciso uma pessoa para lavar os copos e ela avisou-me. Por minha causa a malta da vela começou a frequentar o sítio, e o bar, que sempre teve características especiais, tornou-se um lugar mágico, para mim.
Já aqui contei uma história que se passou com a dona do bar, comigo e um jarro de Piña Colada - mas essa é quase das mais inocentes. Às sextas aquilo enchia de tal maneira que frequentemente eu tinha que andar por cima das mesas (que eram grandes, pesadas, antigas, em madeira maciça). Um dia, preparava-me para saltar de uma delas para o chão com o tabuleiro cheio de copos e de garrafas vazias, e alguém gozou comigo "olh'ós copos, malta". Imediatamente organizei um concurso, entre os clientes: saltar de cima da mesa, com um determinado nº de copos e garrafas (o mesmo para todos, claro). Quem partisse mais pagava uma rodada aos participantes.
Partiram-se muitos copos, é certo, e fez-se uma quantidade de cacos indescrítivel; mas a receita compensou-os largamente - e durante muito, muito tempo falou-se naquela noite.
Aquilo servia também de Job Center para trabalhos na vela - transportes, regatas - e eu tinha um acordo com a Daisy, a proprietária: ia-me embora quando quisesse; no regresso haveria sempre um lugar para mim - podia era não ser o mesmo que tinha à saída. Por isso lá me aguentei durante quase três anos: ia, vinha, ficava, partia, bebia, amava, repartia. Por vezes ficava fora três e quatro meses de seguida, mas quando voltava era inevitavelmente ao Marchand que regressava. Trabalhar ali dava, nos meios "artísticos" (nos dois sentidos) de Genève um status que imagino equivalente ao de trabalhar no Frágil, ou num bar assim, em Lisboa.
Depois acabou, claro: durante alguns anos continuou o bar da malta da vela, e quando esse grupo se dispersou ficou o ponto de encontro de tudo o que havia como adolescente naquela cidade. A minha vizinha (ela própria um carácter especial, por vezes insultava os clientes de tal forma que a certa altura lhe chamavam a Capitã Hadock) deixou de ser actriz - "esses parvalhões desses encenadores só querem magrichonas", explicava ela, com uma quantidade de má-fé muitas vezes superior à sua massa corporal - e foi trabalhar para um tribunal.
Passei muito tempo sem lá ir, e de repente nunca mais lá fui.
O Marchand era pequeno, mas tinha uma acústica fenomenal, e nós púnhamos todo o tipo de música - desde ópera a free jazz, tudo por ali passava, tudo. Hoje lembrei-me daquilo, quando ouvia um disco do Rao Kyao que era um hit, o Fado Bailado. Rivalizava com os blues, quando se tornava necessário aumentar um bocadinho a facturação.
Gosto muito desse disco - por vezes pensava que o saxofone tinha sido inventado para o fado, e que fado era, realmente, digno de rivalizar com os melhores blues. Mas não é: podia passar uma noite a pôr discos de blues, mas não podia fazer a mesma coisa com o fado. Para além do Fado Bailado, só a Amália a cantar o Barco Negro,
um fado que ainda hoje me faz chorar, e sempre fez.
Era um lugar peculiar. Foi, creio, o meu primeiro emprego naquela cidade, e encontrei-o porque a minha vizinha, uma actriz de teatro obesa, lá trabalhava. Um dia foi preciso uma pessoa para lavar os copos e ela avisou-me. Por minha causa a malta da vela começou a frequentar o sítio, e o bar, que sempre teve características especiais, tornou-se um lugar mágico, para mim.
Já aqui contei uma história que se passou com a dona do bar, comigo e um jarro de Piña Colada - mas essa é quase das mais inocentes. Às sextas aquilo enchia de tal maneira que frequentemente eu tinha que andar por cima das mesas (que eram grandes, pesadas, antigas, em madeira maciça). Um dia, preparava-me para saltar de uma delas para o chão com o tabuleiro cheio de copos e de garrafas vazias, e alguém gozou comigo "olh'ós copos, malta". Imediatamente organizei um concurso, entre os clientes: saltar de cima da mesa, com um determinado nº de copos e garrafas (o mesmo para todos, claro). Quem partisse mais pagava uma rodada aos participantes.
Partiram-se muitos copos, é certo, e fez-se uma quantidade de cacos indescrítivel; mas a receita compensou-os largamente - e durante muito, muito tempo falou-se naquela noite.
Aquilo servia também de Job Center para trabalhos na vela - transportes, regatas - e eu tinha um acordo com a Daisy, a proprietária: ia-me embora quando quisesse; no regresso haveria sempre um lugar para mim - podia era não ser o mesmo que tinha à saída. Por isso lá me aguentei durante quase três anos: ia, vinha, ficava, partia, bebia, amava, repartia. Por vezes ficava fora três e quatro meses de seguida, mas quando voltava era inevitavelmente ao Marchand que regressava. Trabalhar ali dava, nos meios "artísticos" (nos dois sentidos) de Genève um status que imagino equivalente ao de trabalhar no Frágil, ou num bar assim, em Lisboa.
Depois acabou, claro: durante alguns anos continuou o bar da malta da vela, e quando esse grupo se dispersou ficou o ponto de encontro de tudo o que havia como adolescente naquela cidade. A minha vizinha (ela própria um carácter especial, por vezes insultava os clientes de tal forma que a certa altura lhe chamavam a Capitã Hadock) deixou de ser actriz - "esses parvalhões desses encenadores só querem magrichonas", explicava ela, com uma quantidade de má-fé muitas vezes superior à sua massa corporal - e foi trabalhar para um tribunal.
Passei muito tempo sem lá ir, e de repente nunca mais lá fui.
O Marchand era pequeno, mas tinha uma acústica fenomenal, e nós púnhamos todo o tipo de música - desde ópera a free jazz, tudo por ali passava, tudo. Hoje lembrei-me daquilo, quando ouvia um disco do Rao Kyao que era um hit, o Fado Bailado. Rivalizava com os blues, quando se tornava necessário aumentar um bocadinho a facturação.
Gosto muito desse disco - por vezes pensava que o saxofone tinha sido inventado para o fado, e que fado era, realmente, digno de rivalizar com os melhores blues. Mas não é: podia passar uma noite a pôr discos de blues, mas não podia fazer a mesma coisa com o fado. Para além do Fado Bailado, só a Amália a cantar o Barco Negro,
um fado que ainda hoje me faz chorar, e sempre fez.
obrigado pela partilha!
ResponderEliminargostei muito de ler esta história :-)
dias felizes para ti!