4.7.08

Sem título

O quadro é sempre o mesmo: um homem senta-se a uma mesa, num restaurante; está sozinho. Ninguém - e muito menos eu - sabe se ele é feliz ou não, se está sozinho porque quer, se está perto de concretizar os sonhos de uma vida ou, pelo contrário, de os perder.

Lá fora, a luz rasante do fim do dia ilumina os prédios de frente; as ruas, e os veículos que nelas circulam ficam na contra-luz. O efeito é surpreendente, saisissant: a luz e o seu contrário, o escuro e a ausência de escuro, as velhas linhas de eléctrico encandeantes no meio do negro do alcatrão, como duas linhas da luz de um farol numa noite de tempestade, duas linhas.

O homem fala num modo neutro com a empregada. Visivelmente não é cliente habitual. Na realidade, tem aspecto de quem não é cliente habitual de lado nenhum: há muito que não habita um mundo - ou melhor: há muito que o único habitante do seu mundo é ele, isso é visível. Que mundo é o dele? Que sou eu, a empregada do restaurante, as pessoas com quem se cruzou para aqui chegar, nesse mundo?

Não sei. Levanto-me e contemplo a luz, a contra-luz, o homem sozinho e a empregada sorridente, ligeira, resplandecente, no seu uniforme florido. É pequena, magra, estrábica e quase bonita, quase: o sorriso franco, aberto, claro compensa largamente o pouco que lhe falta para o ser. Será que o homem a viu, quando falou com ela? Penso que não; é míope, totalmente míope. Vê ainda menos para dentro do que para fora; não deve haver muitas coisas, muitas pessoas, muitos sonhos capazes de passar para o lado de dentro daquela face que se imagina tratada com uma mistura de vento, rum, mar, sol, whisky e solidão, em doses variáveis. Nada passa para o lado de fora, igualmente: as anteparas são estanques, naquele mundo.

A empregada diz-me adeus, mas não a oiço.

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